COMPETÊNCIA TERRITORIAL
SEGURO DE VIDA
MÚTUO
Sumário


1) A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana;
2) Para conhecer da ação que tem por fundamento o acionamento, contra a seguradora, do pagamento dos valores que o autor despendeu a título de prestações de empréstimo que este celebrou com uma instituição bancária (beneficiária do seguro) e prémios de seguro, até ao trânsito em julgado da decisão que se vier a proferir e a liquidar o valor de empréstimo junto da instituição bancária mutuante, que se encontrar em dívida na data em que for proferida decisão, conforme garantia desse seguro, é territorialmente competente o tribunal do domicílio do credor onde deve ser efetuado aquele pagamento.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) A. R. veio intentar ação declarativa com processo comum contra X – Companhia de Seguros de Vida, SA, onde conclui pedindo que a ação seja julgada provada e procedente e, em consequência:
a) Declarar-se que a cláusula 8.2 da apólice em causa nestes autos não foi lida, explicada e comunicada ao autor, que viola o artigo 14º e 15º do DL 446/85 de 25 de outubro, declarar-se a mesma nula e proibida e, em consequência, excluída do contrato de seguro, mantendo-se o mesmo válido.
b) Caso assim se não entenda, deverá o conceito de invalidez total e definitiva bastar-se com a incapacidade de que padece o autor, a qual impossibilita o mesmo de exercer trabalho remunerado e, em consequência, ser a ré condenada a pagar ao autor todos os valores que este pagou a título de prestações de empréstimo e prémios de seguro, desde março de 2017 até trânsito em julgado da decisão que se vier a proferir e a liquidar o valor de empréstimo junto do Banco ... que se encontrar em dívida na data em que for proferida decisão (ou na data do seu trânsito em julgado).

Em qualquer dos casos, deverá ainda ser a ré condenada a:
c) A reconhecer que o autor está afetado de invalidez absoluta e definitiva, padecendo de uma incapacidade permanente total.
d) A reconhecer que foi o autor quem sempre efetuou o pagamento das prestações relativas ao empréstimo habitação junto do BANCO ... (atualmente Banco ...), bem como todos os prémios de seguro.
e) A liquidar junto do BANCO ... (atualmente, Banco ...) o valor do empréstimo com o número .......47, valor que em dezembro de 2020 ascende ao montante de €70.085,39.
f) A reembolsar o autor da quantia remanescente e da quantia relativa às prestações que este pagou junto do BANCO ... (atualmente, Banco ...) após março de 2017, no valor de €12.916,49, acrescida de todos os montantes que o autor venha a pagar ao BANCO ... (atualmente, Banco ...) em virtude do contrato de crédito hipotecário .......47, acrescida de todas as prestações de empréstimo que o mesmo continue a pagar, até trânsito em julgado da decisão a proferir.
g) A reembolsar o autor do valor relativo a todos os prémios de seguros pagos desde março de 2017 até dezembro de 2020, o que perfaz o montante de €2.565,65, acrescido de todos os prémios que o mesmo continue a pagar, até trânsito em julgado da decisão a proferir.
h) Na sanção pecuniária compulsória a que alude o nº 2 do artigo 365º do CPC, que não deverá ser inferior a €100,00 por cada dia de incumprimento da decisão que vier a ser proferida na presente ação – artigo 829º-A do Código Civil.
i) Deve ainda ser condenada nas custas e tudo que mais for de lei.

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Pela ré Y, Companhia de Seguros de Vida, SA, anteriormente denominada X – Companhia de Seguros de Vida, SA, foi deduzida contestação onde conclui entendendo dever:

1. Julgar-se inteiramente procedente e provada exceção de ilegitimidade do autor para intentar a presente ação desacompanhado da segurada N. S. e, em consequência, absolver-se a ré da instância;
2. Julgar-se inteiramente procedente e provada a exceção de incompetência territorial e, em consequência, ordenar-se a remessa dos presentes autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa;
3. Julgar-se inteiramente improcedente e não provada a presente ação e, em consequência, absolver-se a ré Y Vida inteiramente dos pedidos;
4. Condenar-se o autor em custas, incluindo custas de parte.
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Foi proferido o despacho de fls. 236 e segs, onde consta:
“Veio a Ré X – COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA, S.A., na presente ação que lhe move A. R., entre outras exceções suscitadas na contestação, invocar a incompetência do Juízo Central Cível de Guimarães por não ser o tribunal do domicílio do réu, nem o lugar onde a obrigação deveria ser cumprida.
Respondeu o autor, invocando que a obrigação em apreço deve ser cumprida no seu domicílio, pois a ré é pessoa coletiva e o autor pretende a liquidação de contrato de crédito celebrado no balcão do antigo BANCO ..., em Celorico de Basto, enquanto segurado e credor, que exonerará o autor do pagamento das prestações de empréstimo vincendas e reembolsará das prestações que este pagou. O segurado tem e conserva a qualidade de credor, só ele tendo, em princípio e não sendo ressalvada vontade contrária das partes, o direito de exigir o cumprimento do contrato.
A violação das regras de competência territorial constantes dos arts. 70º e ss. do CPC, determina, nos termos dos artºs. 102º e 105º, nº 3 do mesmo diploma, a incompetência relativa do tribunal onde a ação foi interposta e a remessa do processo para o tribunal competente.
A incompetência relativa deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal sempre que os autos forneçam os elementos necessários, entre outras, nas causas a que se reporta a primeira parte do número 1 e o número 2 do art.º 71º do CPC (cfr. art.º 104º, nº 1, a) do CPC) e constitui exceção dilatória por obstar ao conhecimento do mérito da causa pelo tribunal (cfr. artºs. 576º, nº 2 e 577º, al.ª a), do CPC).
Cumpre decidir (cfr. artºs. 104º, nº 1, 105º e 578º “a contrario”, do CPC ).
Com a presente ação comum, o autor pretende determinar o réu ao cumprimento do contrato de seguro entre ambos celebrado, pagando ao Banco ..., na qualidade de beneficiário, o valor em dívida de contrato de mútuo celebrado entre o autor e aquela instituição financeira. Encontramo-nos, por isso, no domínio de ação destinada a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato de seguro.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 71º do Cód. Proc. Civil:
“A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida quando o réu seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.”

Nos termos previstos pelo artigo 772º do Código Civil:
“Na falta de estipulação ou disposição especial a lei, a prestação deve ser efetuada no lugar do domicílio do devedor.”
Assim, tomando como critério, quer o lugar da residência do réu, quer o lugar onde a prestação deve ser efetuada, é na comarca de Lisboa que se encontra o elemento de ligação territorial da lide, porque a ré/devedora é uma sociedade comercial com sede em Lisboa e o beneficiário do pagamento previsto pela cobertura contratual do seguro é o “Banco ..., S.A.” que também tem sede naquela cidade.
Contra esta decorrência afiguram-se insubsistentes os argumentos aventados pelo autor. Por um lado, a circunstância do contrato ter sido celebrado na antiga agência do BANCO ... de Celorico de Basto não significa, salvo expressa derrogação contratual, que em caso de acionamento do seguro a obrigação de pagamento sofra desvio relativamente à regra de que o lugar do cumprimento é o domicílio/sede do credor “Banco ..., S.A.”, em Lisboa.
Por outro, a faculdade de o autor, enquanto segurado, exigir o cumprimento do contrato em apreço, também não deve ser confundida com o lugar do cumprimento da obrigação contratual que, tendo por beneficiário “Banco ..., S.A.”, e não o autor, é na sede daquela instituição financeira.
Termos em que não dispõe este tribunal de competência, em razão do território, para apreciar a presente ação.
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Pelo exposto, julgo incompetente para apreciar a presente ação, em razão de território, o Juízo Central Cível de Guimarães, determinando a remessa dos autos, após trânsito em julgado, ao Juízo Central Cível de Lisboa, territorialmente competente.
Custas do incidente pelo autor, fixando-se a taxa de justiça devida no mínimo legal.
Notifique.”
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B) Inconformado com esta decisão, veio o autor A. R. interpor recurso que não foi admitido, tendo sido interposta reclamação desse despacho, que determinou a subida daquele, que tem efeito meramente devolutivo.
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O apelante A. R. formula as seguintes conclusões:
1) O autor, na ação, peticiona, entre outros, a liquidação do empréstimo junto do Banco ... e o reembolso do remanescente que pagou desde março de 2017 (e que continua a pagar) ao Banco ..., bem como o reembolso dos prémios de seguro pagos à ré desde março de 2017 (bem como os montantes que continua a pagar).
2) Nos termos do art. 71º nº 1 do CPC, o demandante poderá optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área.
3) Nos termos do artigo 774º do CC, sendo o autor credor da ré (porque apesar de a instituição bancária ser beneficiária irrevogável do contrato de seguro de vida, o autor – enquanto segurado – não perde a qualidade de credor, até porque peticiona também o reembolso de quantias pagas, quer a título de prestações, quer a título de prémios de seguro), a ação deverá ser julgada no lugar do domicílio do autor (Juízo Central Cível de Guimarães).
4) Caso venha a entender-se que a Instituição Bancária reserva a qualidade de credora da ré, para efeitos de determinação do lugar da prestação e, por isso, para atribuição da competência territorial do tribunal, não será adequado considerar, como critério definidor dessa competência, a sede de tal Instituição (artigo 12º nº 3 do CSC).
5) O contrato de mútuo foi celebrado na Agência de Celorico de Basto do Banco ... (documentos 13 e seguintes da petição inicial), aí tendo sido assinada também a proposta do seguro e pagos os respetivos prémios através de conta que o autor aí tem domiciliada.
6) Trata-se, portanto, de ato praticado por essa agência que, apesar de constituir uma sucursal sem personalidade jurídica (alínea ll) do artigo 2º-A do RGICSF – DL 298/92, de 31/12), tem, em relação a esse ato, personalidade judiciária (art. 13º, nº 1 do CPC), podendo, na qualidade de ré, ser demandada no tribunal da sede (lugar onde se situa) de tal agência (art. 81º nº 2 do CPC), pois naquela Agência (sucursal) praticam-se atos comerciais do mesmo género dos que constituem a atividade principal da sociedade, sob direção do órgão de administração da sociedade, mas com alguma autonomia.
7) Foi, portanto, nessa agência (de Celorico de Basto) que foi celebrado pelo autor o contrato de mútuo e assinada até a proposta de seguro, sendo também aí que o autor paga as prestações por ele devidas, quer em relação ao mútuo, quer respeitantes ao seguro.
8) Verificado o risco coberto pela garantia do seguro (a morte ou invalidez dos segurados), a Seguradora substitui-se ao segurado, pagando o referido capital ao Banco beneficiário. Na falta de indicação noutro sentido, deve naturalmente fazê-lo na agência onde o contrato de mútuo deveria ser cumprido pelo mutuário.
9) Assim, a entender-se que é "credor" o Banco ..., para efeito de definição do lugar do cumprimento da prestação, deve para tal considerar-se, não a respetiva sede, mas o lugar onde se situa a agência dessa Instituição que, com autonomia, praticou o ato de onde deriva o seu crédito (no caso, em Celorico de Basto).
10) Por outro lado, pode entender-se que se trata de um contrato a favor de terceiro.
11) Segundo dispõe o art. 444º do CC, o promissário tem o direito de exigir do promitente o cumprimento da promessa, a não ser que outra tenha sido a vontade dos contraentes. E quando se trate de promessa de exonerar o promissário de uma dívida para com terceiro, só àquele é lícito exigir o cumprimento do contrato (nº 3).
12) No contrato de seguro de vida, devendo ser qualificado como contrato a favor de terceiro, o segurado tem e conserva a qualidade de credor.
13) Assim, quer o autor, como segurado, quer o Banco ... (Agência de Celorico de Basto), como terceiro beneficiário, são ambos credores da obrigação assumida pela ré Seguradora.
14) Considerando os objetivos prosseguidos pelo legislador, com as alterações introduzidas pela Lei 14/2006 – defesa do consumidor, aproximação da justiça do cidadão e equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível – e nos termos do critério consagrado no art. 774º do CC, o tribunal da residência do autor – que nunca perde a qualidade de credor – satisfaz todos os referidos objetivos, sendo competente para julgar a presente ação o Juízo Central Cível de Guimarães.
15) De um lado temos o devedor (Seguradora) e do outro dois credores (o autor, como segurado (para receber o reembolso de todas as prestações de empréstimo e prémios de seguro que pagou desde março/2017) e a instituição bancária, como terceiro beneficiário (para receber o pagamento do montante correspondente ao valor relativo ao empréstimo que se encontrar em dívida à data da decisão).
16) E caso se venha a considerar que o credor é o terceiro beneficiário (instituição bancária), será competente (na mesma ordem) o Juízo Central Cível de Guimarães, correspondente ao tribunal do domicílio do credor a quem deve ser feito o pagamento do capital, ou seja, pelo que acima se disse, o da agência de Celorico de Basto do Banco ....
17) Pelo que, devem os presentes autos manter-se no Juízo Central Cível de Guimarães e aí ser julgados, por ser o Tribunal territorialmente competente.
18. O despacho de que se recorre violou a interpretação, entre outros, dos artigos 774º do CC, 444º do CC, 71º nº 1 do CPC, 13.º, nº 1 do CPC, 81º nº 2 do CPC, 12º nº 3 do CSC, alínea ll) do artigo 2º-A do RGICSF – DL 298/92 de 31/12).

Termina entendendo dever ser dado total provimento ao presente recurso e respetivas conclusões, revogando-se o douto despacho de que se recorre, substituindo-se por um outro que julgue totalmente improcedente a alegada exceção de incompetência territorial e determine o julgamento da presente ação pelo Juízo Central Cível de Guimarães (por ser este o Tribunal competente em razão do território).
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C) Pela apelada Y – Companhia de Seguros de Vida, SA, foi apresentada resposta onde conclui entendendo dever rejeitar-se o presente recurso de apelação autónoma, considerando a irrecorribilidade do despacho recorrido e o mesmo não admitir recurso de apelação autónoma; negar-se provimento ao presente recurso de apelação autónoma e, em consequência, manter-se o despacho recorrido.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) A questão a decidir neste recurso é a de saber qual o tribunal territorialmente competente para conhecer da presente ação.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) Como questão prévia veio a recorrida suscitar, na sua resposta, a irrecorribilidade do despacho recorrido, entendendo não caber qualquer recurso de apelação autónoma quanto à questão sobre que o mesmo versou.
Sucede, porém, que o conhecimento da questão se mostra prejudicado, na medida em que a decisão proferida pelo relator, na reclamação, determinou a subida imediata do recurso e, não tendo a recorrida impugnado tal decisão, nos termos do disposto nos artigos 643º nº 4 e 652º nº 3 NCPC, a mesma tornou-se definitiva.
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No despacho recorrido foi entendido que o autor pretendendo determinar a ré ao cumprimento do contrato de seguro celebrado entre ambos, com vista ao pagamento ao Banco ... do valor da dívida do contrato de mútuo celebrado entre o autor e a referida instituição bancária, se encontra no âmbito da ação destinada a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato de seguro, pelo que tendo em conta o disposto nos artigos 71º nº 1 NCPC e 772º do Código Civil, o tribunal competente é o Juízo Central Cível de Lisboa.
Nas suas alegações o recorrente afirma que no contrato de seguro de vida, o segurado tem e conserva a qualidade de credor e tendo em conta o disposto no artigo 71º NCPC e 774º do Código Civil, apesar de o Banco ... ser beneficiário irrevogável do contrato de seguro de vida, o autor não perde a qualidade de credor, pelo que o tribunal territorialmente é o Juízo Central Cível de Guimarães, que é o do seu domicílio.
E ainda que se entenda que o Banco reserva a qualidade de credor da ré, para efeitos de determinação do lugar da prestação, não será adequado considerar como critério definidor a sede de tal instituição, mas antes o lugar onde se situa a agência bancária que praticou o ato de onde deriva o seu crédito, no caso, em Celorico de Basto.
Vejamos.
Estabelece o artigo 71º nº 1 NCPC que A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.
Acompanhado de muito perto a posição sustentada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de Porto de 16 de dezembro de 2009, no processo 713/09.1TBLSD.P1, relatado pelo Desembargador Fernando Pinto de Almeida, em www.dgsi.pt, que retrata uma situação análoga à tratada nestes autos, dir-se-á que a Lei nº 14/2006, de 26/04, que introduziu a redação final ao artigo 74º do anterior Código de Processo Civil, que corresponde ipsis verbis ao atual artigo 71º NCPC, a mesma teve a sua origem na Proposta de Lei nº 47/X, que foi discutida na generalidade na Assembleia da República em 02/02/2006.

Na exposição de motivos dessa Proposta de Lei refere-se, no que aqui interessa, que:
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a proteção de bens jurídicos que efetivamente mereçam a tutela judicial e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função, constitui um dos objetivos da Resolução do Conselho de Ministros nº 100/2005, de 30 de maio de 2005, que, aprovando um Plano de Ação para o Descongestionamento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as ações relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto».
A adoção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de ações, reforça-se o valor constitucional da defesa do consumidor - porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo-lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo - e obtém-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a exceção justifica-se por estar ausente o referido valor constitucional de proteção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropolitana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribuição do volume processual hoje verificado em cada uma das respetivas comarcas.
Foi, pois, propósito do legislador, ao impor a regra da competência do tribunal do demandado, obviar à concentração geográfica da litigância de massa, buscando um maior equilíbrio na distribuição territorial das ações e execuções cíveis, daí advindo, ao mesmo tempo, um reforço do valor constitucional da proteção do consumidor.
Porém, desde logo, excecionou duas situações, em que o autor pode optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação deve ser cumprida: quando o réu seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do autor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.
No caso apreciado no citado acórdão, a ação tinha por fundamento um contrato de seguro de vida celebrado entre o autor (e mulher) e a ré, sendo proposta, portanto, pelo segurado contra a seguradora, pessoa coletiva, visando a celebração desse contrato de seguro garantir o pagamento do capital em dívida pelo autor a uma instituição bancária no âmbito de um mútuo concedido por esta Instituição.
Face ao disposto no artigo 74º do Código de Processo Civil que, conforme se referiu, corresponde ao atual artigo 71º NCPC, o autor deveria propor a ação no tribunal do domicílio do réu, podendo optar pelo tribunal onde a obrigação deveria ser cumprida, uma vez que a ré é pessoa coletiva.
E conforme aí se referia, para este efeito, importava considerar que a prestação devia ser efetuada no lugar estipulado pelas partes ou fixado pela lei para o cumprimento (cfr. art. 772º do CC).
Importa notar que o autor e apelante alegou na sua PI que, no âmbito do contrato de mútuo em questão, o autor se obrigou a pagar o seguro contratado com a então companhia de seguros W Vida, cujo pagamento era efetuado por débito direto em conta, matéria esta que a ré, legal sucessora da primitiva seguradora, admitiu como verdadeira (cfr. artigo 3º da contestação), alegando o apelante ainda que o contrato de mútuo, foi celebrado na agência de Celorico de Basto do Banco ..., onde também foi assinada a proposta de seguro e onde são pagos os prémios do seguro.
E, tal como se refere no mencionado acórdão, trata-se, portanto, de ato praticado por essa agência que, apesar de constituir uma sucursal sem personalidade jurídica (art. 13º nºs 5 e 6 do RGICSF – DL 298/92 de 31/12), tem, em relação a esse ato, personalidade judiciária (art. 7º do CPC), podendo, tendo a qualidade de ré, ser demandada no tribunal da sede (lugar onde se situa) de tal agência (art. 86º nº 2 do Código de Processo Civil, que corresponde ao atual artigo 81º nº 2 NCPC).
Essa agência, neste domínio com o sentido de sucursal, constitui um estabelecimento comercial secundário, sem personalidade jurídica, em que se praticam atos comerciais do mesmo género dos que constituem a atividade principal da sociedade, sob direção do órgão de administração da sociedade, mas com alguma autonomia.
( … )
Ora, o seguro visa garantir o pagamento do capital em dívida desse mútuo. Verificado o risco coberto pela garantia do seguro (a morte ou invalidez dos segurados), a Seguradora substitui-se ao segurado, pagando o referido capital ao Banco beneficiário. Na falta de indicação noutro sentido, deve naturalmente fazê-lo na agência onde o contrato de mútuo deveria ser cumprido pelo mutuário.
Assim, a entender-se que é "credor" o demandante, para efeito de definição do lugar do cumprimento da prestação, deve para tal considerar-se, não a respetiva sede, mas o lugar onde se situa a agência dessa Instituição que, com autonomia, praticou o ato de onde deriva o seu crédito.
E como aí se refere, no contrato de seguro de vida, devendo ser qualificado como contrato a favor de terceiro, o segurado tem e conserva a qualidade de credor. Aliás, não sendo ressalvada vontade contrária das partes, só ele, em princípio, tem o direito de exigir o cumprimento do contrato.
Mas o terceiro, beneficiário, também é, quer antes, quer depois da adesão, titular do interesse tutelado e senhor da tutela desse interesse, já que adquire o direito por mero efeito do contrato (no sentido de que o direito só resulta do contrato, não se exigindo qualquer ato posterior para a sua aquisição) – art 444º nº 1 do CC.
Os direitos do promissário e do terceiro têm, portanto, o mesmo objeto: o efetivo cumprimento do prometido. Limitam-se um ao outro no que se chama a concorrência funcional com vista a essa finalidade. Mas tal não impede que o direito do terceiro seja um verdadeiro direito de crédito [Leite de Campos, Contrato a Favor de Terceiro, 2ª ed., 105 e 106 e segs].
Do que fica dito decorre que quer o autor, como segurado, quer o Banco ..., como terceiro beneficiário, são ambos credores da obrigação assumida pela ré Seguradora.
E, continua aquele aresto, considerando os objetivos prosseguidos pelo legislador, com as alterações introduzidas pela Lei 14/2006 – defesa do consumidor, aproximação da justiça do cidadão e equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível – poderia ser-se tentado a defender para o caso, visto o critério consagrado no art. 774º do CC, a competência do tribunal da residência do autor – que, como vimos, também é credor – o único que lograria satisfazer todos os referidos objetivos.
No nosso caso, a situação é algo diferente: de um lado temos o devedor (Seguradora) e do outro dois credores (o autor, como segurado, e a instituição bancário, como terceiro beneficiário).
Só que, como vimos, apesar de os direitos destes credores terem o mesmo objeto – o cumprimento pela seguradora da obrigação assumida no contrato de seguro – este cumprimento tem de ser feito apenas ao terceiro beneficiário.
Sublinhe-se que se pretende determinar o lugar em que deve ser efetuada a prestação, diz-nos o art. 774º que esta deve ocorrer no domicílio do credor, sendo este o critério para definir a competência territorial do tribunal, daí deriva que, no caso, é competente o tribunal do domicílio do credor a quem deve ser feito o pagamento do capital, isto é o Juízo Central Cível de Guimarães, onde se deve manter o processo.
Por todo o exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de proceder, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, considerar-se o Juízo Central Cível de Guimarães, o tribunal territorialmente competente para conhecer a presente ação, onde se deverá manter.
Face ao vencimento total da pretensão do apelante e ao decaimento da apelada, sobre esta recai o encargo de suportar o pagamento das custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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C) Em conclusão:

1) A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana;
2) Para conhecer da ação que tem por fundamento o acionamento, contra a seguradora, do pagamento dos valores que o autor despendeu a título de prestações de empréstimo que este celebrou com uma instituição bancária (beneficiária do seguro) e prémios de seguro, até ao trânsito em julgado da decisão que se vier a proferir e a liquidar o valor de empréstimo junto da instituição bancária mutuante, que se encontrar em dívida na data em que for proferida decisão, conforme garantia desse seguro, é territorialmente competente o tribunal do domicílio do credor onde deve ser efetuado aquele pagamento.
*
III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando que o tribunal territorialmente competente para conhecer dos presentes autos é o Juízo Central Cível de Guimarães.
Custas pela apelada.
Notifique.
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Guimarães, 13/01/2022

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares