PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
NULIDADE
PARTES COMUNS DO PRÉDIO
Sumário

1. Um vestíbulo de uso comum a dois ou mais condóminos é imperativamente parte comum do edifício (art. 1421º, nº 1, al. c), do Código Civil).
 2. O título constitutivo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao integrar numa das frações individualizadas do prédio um vestíbulo de uso comum a dois ou mais condóminos (art. 294º do Código Civil).

Texto Integral

Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
J. R. L. e A. F. Leite, residentes na Rua…, em …., vieram intentar ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A. J. S., residente na Travessa …., em…, alegando, em síntese:
- Os autores e o réu compraram em 28/05/2015, à “C…Lda” (sociedade cujos únicos sócios eram o autor …. e o réu), o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinado a serviços e comércio, sito na ….., concelho de …..;
- Pelo mesmo documento submeteram o prédio ao regime de propriedade horizontal, que assim, ficou composto por duas frações (A e B), com saída própria diretamente para a via pública;
- Autores e réu, cada um, detinha metade indivisa da fração A e da fração B, que se encontravam arrendadas à Ótica… e à “C… Lda.”, respetivamente;
- Em outubro de 2018, autores e réu acordaram pôr termo à compropriedade e formalizaram escritura pública de permuta da metade indivisa que cada um detinha nas frações autónomas, tendo o réu ficado com a propriedade plena da fração B;
- Depois da formalização da escritura, veio o autor a tomar conhecimento, através da inquilina da fração A, que a mesma não possuía as chaves de acesso à caixa de correio, e aos contadores de água e luz, uma vez que o réu havia alterado a fechadura da porta de acesso aos ditos e não lhe tinha fornecido a nova chave;
- Agiu assim o réu por entender que os contadores da água, os contadores da luz, as caixas de pré-instalação dos contadores do gás natural, o quadro geral da eletricidade, a caixa da telecomunicações, e as caixas de correio não estavam em parte comum de acesso livre a todos os condóminos, mas na fração autónoma que havia adquirido em consequência da permuta;
- Junto da Câmara Municipal de …., veio o autor a constatar que a colocação dos contadores no hall de entrada do piso 0 do nº116, está em conformidade com o projeto de legalização da construção do edifício;
- De acordo e nos termos do aprovado na Câmara Municipal de …., o destino, o fim atribuído ao hall de entrada do piso 0 e ao hall de entrada do piso 1 nº116, é de parte comum e não de uma divisão exclusiva de qualquer fração;
- O hall de entrada do piso 0, e do piso 1 do nº116, encontra-se destinado no processo de construção nº1055/2005 aprovado pela Câmara Municipal, a constituir uma área comum;
- Sucede, porém, que no título constitutivo de propriedade horizontal, está consignado que o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 do nº 116 fazem parte integrante da fração B, em contradição com o fim e a utilidade que foi fixado no projeto aprovado pela entidade competente, a Câmara Municipal de …;
- Os autores estavam plenamente convencidos de que o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 do nº 116 constituíam uma parte comum do edifício e só no sobredito momento constataram o lapso cometido aquando da constituição da propriedade horizontal;
- Pelo que, e nos termos do nº 3, do art. 1418º do Código Civil, deverá ser declarada a nulidade parcial do documento particular autenticado através do qual foi constituída a propriedade horizontal.
Terminam, pedindo:
1) Seja o réu condenado a reconhecer que os autores são os legítimos proprietários da fração autónoma designada pela letra “A”, destinada a comércio, do prédio urbano, sito na Av. ….., no lugar e freguesia de …., concelho de … descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, inscrito na respetiva matriz predial urbana da União das freguesias de….;
2) Seja declarada a nulidade parcial do documento particular autenticado “Compra e Venda e Propriedade Horizontal”, lavrado no dia 28 de maio de 2015, na parte em que individualiza o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 como fazendo parte da fração autónoma, identificada como letra “B”, e o réu condenado a reconhecer essa nulidade, e o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 ser declarado como parte comum do edifício;
3) Seja o réu condenado a entregar aos autores a chave da porta de acesso ao nº 116 da Avenida …..
*
Devidamente citado para contestar, disse o réu em sua defesa, e em síntese, que:
- O documento cuja nulidade parcial os autores ora invocam foi por eles outorgado, encontrando-se os mesmos na posse de todas as suas faculdades, inexistindo motivo para virem invocar a nulidade passados cerca de quatro anos;
- O título constitutivo da propriedade horizontal cumpre todos os requisitos elencados no artigo 1418.º do Código Civil e foi feito de acordo com a certidão exarada previamente pela Câmara Municipal de …., sem que os autores tenham feito qualquer reclamação, inexistindo qualquer fundamento para a invocada nulidade, ou, sequer, para a anulabilidade do título, sendo que, nesse caso, tal só seria possível no prazo de um ano a contar da cessação do vício que lhe serviu de fundamento, nos termos do artigo 287.º do Código Civil, já ultrapassado à data da entrada da ação em juízo;
- Já quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a fração A, trata-se dum pedido inútil, que deve ser desconsiderado, já que o réu nunca questionou o direito de propriedade dos autores sobre a fração “A”.
Termina, pedindo que a ação seja julgada totalmente improcedente por não provada, com a sua consequente absolvição dos pedidos.
*
Findos os articulados, foram os autores convidados a clarificar a causa de pedir da ação, considerando a factualidade alegada sob os arts.  30º e 31º, da petição inicial, e nesse contexto, se pretendiam ainda e concomitantemente ou em alternativa com a invocação da nulidade do citado art. 1418º, nº 3, do Código Civil, invocar algum vício da vontade no que tange ao negócio de constituição da propriedade horizontal conducente à peticionada nulidade, tendo para o efeito sido notificados para apresentarem articulado em que se limitassem a esclarecer se pretendiam invocar algum vício da vontade, caso em que deveriam melhor concretizar a factualidade aduzida naqueles artigos e precisar em termos jurídicos o dito vício.
*
Em resposta ao convite que lhes foi endereçado vieram os autores alegar, em síntese, que por força da relação de confiança que mantinham com o réu manifestaram no documento particular de constituição da propriedade horizontal uma vontade que não correspondia com o seu íntimo e verdadeiro querer, na medida em que se soubessem verdadeiramente que o hall do piso 0, e o hall do piso 1, ambos do nº116, constituiriam partes integrantes da fração B, não teriam querido a constituição da propriedade horizontal nos precisos termos em que a concluíram.
Acresce ser lógico, usual e do senso comum que os contadores da água, os contadores da luz, as caixas de pré-instalação dos contadores do gás natural, o quadro geral da eletricidade, a caixa das telecomunicações, e as caixas de correio de todas as frações, estarem localizados em áreas comuns aos condóminos, pelo que o réu não podia ignorar que a circunstância do hall do piso 0 e do hall do piso 1 do nº 116 constituírem parte integrante da fração B, seria determinante para os autores não terem querido a constituição da propriedade horizontal nos precisos termos em que a concluíram.
Por esse motivo, entendem ocorrer um erro na declaração cuja essencialidade para os declarantes (autores) o declaratário (réu) não podia ignorar.
Concluem, pedindo que a ação seja julgada procedente por provada, como peticionado na petição inicial, e no caso de por mera hipótese de assim não se entender, seja decretada a anulabilidade da constituição da propriedade horizontal outorgada pelo documento particular lavrado no dia 28 de maio de 2015, e o réu condenado a devolver aos autores a chave da porta de acesso ao nº 116 da Avenida …..
*
Em resposta, o réu impugnou os factos alegados pelos autores no sobredito requerimento, concluindo pelo não preenchimento do requisito da essencialidade para o declarante e do requisito da cognoscibilidade do declaratário, e concluiu, pedindo a improcedência do pedido de reconhecimento da anulabilidade da constituição da propriedade horizontal com fundamento em erro na declaração e a sua consequente absolvição de tal pedido.
*
Os autores foram posteriormente notificados para responderem, querendo, às exceções invocadas pelo réu.
No exercício de tal direito, os autores propugnaram pela improcedência da exceção de caducidade do direito à ação suscitada pelo réu na contestação.
*
Dispensada a realização da audiência prévia, foi saneado o processo, relegado para final o conhecimento da sobredita exceção, e fixados os temas da prova.
*
Na primeira sessão de julgamento, realizada no dia 18 de novembro de 2020, o réu formulou o seguinte requerimento:
“Considerando-se o tema de prova enunciado que se dá por inteiramente reproduzido consistir na apreciação da validade ou invalidade do título constitutivo de PH o qual só é emitido com base em juízo técnico emitido por entidade licenciadora;
Considerando também que não está posta em causa que esse juízo técnico foi emitido pelo município;
Considerando o limite de competência em função da matéria deste Tribunal;
Considerando finalmente que o Tribunal é convocado a emitir um juízo de legalidade que uma determinada constituição de PH que tem como pressuposto actos administrativos;
Cuida-se salvo o devido respeito, que é muito, se torna necessário, imperativo e por ser uma questão prejudicial, no mínimo oficiar o douto Tribunal a Câmara Municipal de… para que esta em sede inspectiva confirme a legalidade urbanistica do que se acha executado, se foi aquilo que foi sujeito a controlo prévio e se existe alguma objecção técnica e legal do ponto de vista da legislação urbanistica aplicável à introdução de modificações que retirem de uma fracção o acesso a equipamentos ou redes que pertencem a outra fracção.
Salvo o devido respeito, reitera-se que a produção de prova, toda ela, poderá estar prejudicada sem que nos autos as testemunhas possam ser confrontadas com essa informação técnica mas mais importante que o confronto com as testemunhas é permitir ao Tribunal circunscrever o limite da sua cognição àquilo que se acha realizado ao invés de juízos não certificados para prova pericial que não se acha pedida ou por opiniões mais ou menos avalizadas de terceiros.
Espera e roga deferimento”.
Os autores opuseram-se a este pedido, nos seguintes termos:
“ Não surpreende esta tomada de posição por parte do Réu além de constar no processo desde o início da petição inicial até à fixação dos temas de prova toda a matéria que o Réu ora põe em causa, aliás a informação que o Réu ora requer encontra-se inclusivamente junta pelo próprio em requerimento autónomo junto ao processo onde consta "consultado o processo OB/1055/2009 e suas alterações OB/1055/2005/CP01 verifica-se que foram aceites as alterações em 13.07.2009, onde os contadores se encontravam instalados em área designada como áreas comuns do edifício", quanto à questão que pretende o Réu fazer crer que a validade ou invalidade do título constitutivo de PH no que ao hall de entrada diz respeito esta depende duma colocação de contadores virados para a fracção ora em crise nos presentes autos, fracção A, é uma mera distração ao essencial da questão que se prende única e exclusivamente com o facto de ter sido atribuído um fim ou destino diferente ao aprovado pela Câmara Municipal de …. No nosso entender trata-se de um expediente meramente dilatório que em nada contribuirá para a resolução da questão jurídica em causa, antes impeditiva, salvo o devido respeito, a uma justiça breve e célere, conclui-se indeferindo o requerido”.
*
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho:
“O documento junto pelo Réu apenas parcialmente responde ao ora requerido sendo que o Tribunal entende relevante para a descoberta da verdade o ora solicitado.
Assim, oficie à Câmara Municipal de …. solicitando que informe, com nota de urgente, informando que o termo do julgamento depende da informação solicitada, se existe algum óbice à introdução de modificações em que se se retire duma fracção equipamentos ou contadores que pertencem a uma outra fracção.
Contudo o ora determinado não impede que se dê início à produção de prova sendo que, se for esse o caso, serão novamente inquiridas as testemunhas sobre tal matéria.”
*
Em 2 de dezembro de 2020, a Câmara Municipal de … enviou resposta aos autos, com informação prestada pelo Departamento de Gestão de Território, que dava conta de não dispor de dados suficientes para responder ao pedido e que solicitava à DDUR o fornecimento do nº de processo ou localização da edificação, por forma a que eventualmente pudesse ser dada resposta ao que fora solicitado.
As partes foram notificadas desta informação.
Nada disseram e/ou requereram.
Afirmando ter tomado conhecimento da dita informação, a Mª juíza do tribunal a quo designou data para continuação do julgamento, para alegações finais.                                                **
Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte decisão:
“Por todo o exposto, e com base nas citadas disposições legais, julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:
1) Condeno o Réu … a reconhecer que os Autores …. são os legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada a comércio, do prédio urbano, sito ……, no lugar e freguesia de ….., concelho de ….. descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número …, inscrito na respetiva matriz predial urbana da União das freguesias de ….;
2) Declaro a nulidade parcial do documento particular autenticado “COMPRA E VENDA E PROPRIEDADE HORIZONTAL”, lavrado no dia 28 de Maio de 2015, na parte em que individualiza o hall de entrada do piso 0 como fazendo parte fração autónoma, identificada como letra “B”, devendo o Réu ser condenado a reconhecer essa nulidade, mais declarando o hall de entrada do piso 0 como parte comum do edifício;
3) Por fim, condeno o Réu a entregar aos Autores a chave da porta de acesso ao hall de entrada do piso 0 do nº 116 da Avenida …...
4) Absolvo o Réu dos demais pedidos contra si deduzidos.
*
Regime de custas:
Custas da acção a cargo dos Autores e Réu na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 1/4 a cargo dos Autores e 3/4 a cargo do Réu - art. 527.º, do CPCivil.”
*
Não se conformando com tal decisão, dela vem o réu recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Vem o Tribunal a quo julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, determinar a «nulidade parcial do documento particular autenticado “COMPRA E VENDA E PROPRIEDADE HORIZONTAL” lavrado no dia 28 de maio de 2015, na parte em que individualiza o hall de entrada do piso 0 como fazendo parte da fração autónoma, identificada como letra “B”, devendo o Réu ser condenado a reconhecer essa nulidade, mais declarando o hall de entrada do piso 0 como parte comum do edifício» e condenar «o Réu a entregar aos Autores a chave da porta de acesso ao hall de entrada do piso 0 (…)».
2. Decisão com a qual o Recorrente não pode concordar a vários níveis.
3. O Tribunal a quo considerou PROVADOS factos que demonstram que os Autores bem sabiam que o hall de entrada do piso 0 integrava a Fração B, não o podendo desconhecer pelas diversas razões invocadas na douta Sentença.
4. O Tribunal a quo considerou NÃO PROVADOS os factos alegados pelos Autores que pretendiam demonstrar que tinha existido um erro na declaração, aquando da outorga do título constitutivo da propriedade horizontal.
5. O Tribunal a quo fundamenta a factualidade provada e não provada, com base nos depoimentos das testemunhas e diversas circunstâncias, nomeadamente pessoais e profissionais.
6. Ora, atenta toda esta factualidade, não se percebe como pode o Tribunal a quo concluir pela nulidade do título constitutivo da Propriedade Horizontal, por ser patente que não houve qualquer erro vício e, como tal, o documento deve manter-se inalterado.
7. Acresce que, a douta Sentença invoca amiúde a circunstância de ser obrigatória a fixação, pelos municípios, do fim das frações autónomas.
8. Todavia, a mesma, erroneamente, desconsidera a certidão emitida pela Câmara, a qual discrimina as frações autónomas e os fins a que as mesmas se destinam.
9. O que mais uma vez demonstra a clara contradição patente na douta Sentença.
10. Mais, considera que não constam do título constitutivo as menções facultativas a que alude o disposto no n.º 2 do artigo 1418.º.
11. Ora, salvo o devido respeito, tal não corresponde à verdade, conforme se pode verificar pela análise do Doc. 1 junto com a Petição Inicial, porquanto o Título constitutivo corresponde na íntegra ao definido na Certidão Camarária, discriminando em concreto o fim a que se destina cada fração.
12. Pelo que, mais uma vez se conclui que erra o Tribunal a quo.
13. Aliás, com o devido respeito que é muito, o Tribunal a quo invoca Acórdãos para embelezar a sua fundamentação de direito e, posteriormente, acaba por decidir em contradição com os mesmos.
14. Sendo patente na douta Sentença uma verdadeira contradição com os fundamentos apresentados, com a jurisprudência assente e também com a documentação junta aos autos.
15. Pelo exposto, deve ser declarada a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo, em face da oposição, ambiguidade e obscuridade supra demonstradas.
16. No que à interpretação do direito veio, o Tribunal a quo, de forma contrária à sua própria sistemática, invocar o artigo 1421.º do CC para determinar a nulidade do título constitutivo e consequente consideração do hall de entrada como parte comum, na medida em que o referido preceito estabelece que são comuns as instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.
17. Ora, salvo o devido respeito, erra o Tribunal a quo na interpretação do preceito legal.
18. Conforme se constata da leitura do artigo 1421.º, são também comuns: o solo, os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fração; as entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos.
19. Não implicando tal determinação legal que todos os condóminos têm por isso acesso ilimitado a todas as frações e às respetivas chaves.
20. O que seria se assim fosse!
21. Sendo o telhado uma parte comum de qualquer prédio, é unânime que as frações existentes nos últimos andares não passam a ser comuns, nem têm que fornecer as chaves aos restantes condóminos para prevenir a eminência de danos que possam afetar toda a estrutura do prédio.
22. Com efeito, não é pelo simples facto de uma parte de uma infraestrutura do prédio ser comum que torna todo o espaço envolvente como comum.
23. Quanto muito poder-se-á considerar que existe um ónus sobre determinadas frações de permitir o acesso sempre que se afigure necessário, mas o facto de todas as partes comuns referidas no artigo 1421.º se encontrarem em certa fração não determina, nem pode determinar, que a fração em causa deixa de o ser.
24. Refira-se, aliás, que toda a canalização e tubagem está inserida no mesmo preceito legal e, mais uma vez, não é por essa circunstância que os condóminos têm as chaves de todas as frações.
25. Acresce que, foi evidenciada na ação a pretensão do Recorrente e consequente aceitação dos Recorridos em virar os contadores para o interior da fração A, por forma a que os Recorridos possam ter acesso absoluto aos mesmos.
26. Pelo que, teria, ao abrigo dos princípios da economia processual e da adequação formal, sido mais adequado o Tribunal a quo indagar da possibilidade de se fazer esta alteração urbanística, o que aliás fez quando oficiou a Câmara Municipal de …., não tendo, todavia, esperado pela efetiva resposta.
27. Tendo decidido, sem mais, de acordo com a interpretação literal que fez do artigo 1421.º.
28. Pelo exposto supra, é nula a declaração de que o hall de entrada do piso 0 deve ser considerado como parte comum pela simples existência no seu interior dos contadores de água, luz, gás e telecomunicações, porquanto, o facto destas instalações serem comuns não pode acarretar a alteração do hall no seu todo, conforme aliás se demonstrou supra, nem tão pouco pode obrigar à entrega das chaves da fração B.
29. Aliás, fazendo uma interpretação sistemática, bem se compreende que se é possível afetar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns, de igual modo se compreende que o Recorrente não tenha que ver parte da sua fração transformada em comum.
30. Por outro lado, o Tribunal a quo ao declarar a nulidade parcial do título constitutivo, não se pronunciou sobre a situação suis generis que criou.
31. Tendo proferido Sentença sem obter posição da Câmara Municipal em concreto e sem se pronunciar quanto à cisão da fração B resultante da declaração do hall como parte comum.
32. A decisão deixou por responder uma série de questões essenciais, como por exemplo o que acontece à sala de apoio e arrumos no piso 0, em virtude da cisão operada por sentença.
33. Mais, a omissão verificada constitui em si uma violação do artigo 1422º-A do CC que dispõe que a contiguidade das frações só pode ser dispensada quando se trate de frações correspondentes a arrecadações e garagens.
34. Não tendo sequer sido produzida prova quanto a isto, nem existindo qualquer certificação prévia camarária.
35. Acresce que este tema não foi discutido antes, como nem sequer constava do pedido tal classificação.
36. Pelo que é patente o excesso do poder jurisdicional, na medida em que é às partes que compete o impulso e a utilização do prédio é matéria de competência reservada da autarquia.
37. A circunstância da Fração B ser fragmentada pela criação de uma parte comum precisamente a meio dos espaços que a compunham, gera uma situação suis generis e violadora do disposto no artigo 1422-A do CC, que deveria ter sido alvo de pronúncia não só do Tribunal a quo, como, salvo o devido respeito, da Câmara Municipal de …, em cumprimento do disposto nos artigos 4º e 62º a 66º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 177/2001 de 4 de Junho e nos termos dos artigos 1.º e 6.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo dec-lei 38382, de 7-8-51, a execução da obras e trabalhos a que se refere o art. 1º do mesmo diploma, não pode ser concretizada sem prévia licença das Câmaras Municipais.
38. Não pode decidir a douta Sentença que divide a fração autónoma B, reduzindo a sua composição ao piso superior, cria uma nova parte comum que contempla o hall de entrada e esquece, omite e não classifica, deixando sem qualquer designação o espaço existente ao nível do R/c composto por sala de apoio com casa de banho e dois espaços de arrumos, não classificando como arrecadação nem garagem.
39. Ora, a não classificação como arrecadação ou garagem inviabiliza desde logo a divisão da Fração B, nos termos do n.º 2 do artigo 1422.º-A do CC.
40. Mais, não se pronunciou o Tribunal a quo sobre o hall do piso 1, que os Recorridos também alegaram desconhecer que pertencia à Fração B.
41. Pelo que, não andou bem o Tribunal a quo ao omitir a pronúncia sobre questão de tamanha importância para o funcionamento do Condomínio existente em face da Propriedade Horizontal constituída, que aliás consubstancia uma violação ao artigo 1422.º-A do CC.
42. Até porque nos termos dos nºs 3 e 4 deste artigo o poder de cindir frações cabe exclusivamente aos condóminos e a cisão só pode ser efetuada sem a oposição destes.
43. Nestes termos, deve a sentença proferida ser considerada nula por omissão de pronúncia, devendo a produção de prova repetida, nomeadamente no que à consulta prévia vinculativa da Autarquia diz respeito.
44. Paralelamente, refira-se que no decorrer da segunda sessão de julgamento, realizada em 19/11/2020, decidiu o Tribunal a quo oficiar a Câmara Municipal de … para vir aos autos juntar os elementos solicitados.
45. Em concreto, pretendia o Tribunal a quo saber se existia algum óbice à introdução de modificações em que se retirasse duma fração equipamentos ou contadores que pertencem a uma outra fração.
46. Tendo, na notificação, dirigida ao Município solicitado muita urgência e referido que o termo do julgamento dependia dessa informação.
47. Face à ausência de resposta, o Tribunal a quo nada disse, limitando-se a marcar nova data para continuação da audiência de julgamento.
48. Ora, não se compreende por que razão uma informação que era determinante para a continuação do julgamento, não implicou uma notificação a reiterar o pretendido e, muito menos, se compreende como pode o Tribunal a quo ter prosseguido com o julgamento.
49. Pois, a prestação das informações solicitadas poderia ter alterado drasticamente a decisão proferida.
50. Porquanto, a confirmação de que os contadores poderiam ser virados para o interior da Fração A, mantendo-se no mesmo local, mas com acesso pela Fração A, resolveria a questão sub judice, dado que o direito que os Recorridos invocam é precisamente o acesso aos contadores.
51. Sendo que, o Recorrente já se tinha comprometido a fazer as obras de modificação a suas expensas e os Recorridos tinham aceite e, consequentemente, apenas se aguardava confirmação por parte do Município.
52. Desta forma, considera-se que é nula a sentença sem prévia audição da entidade oficiada, devendo, como tal, repetir-se a notificação à Câmara Municipal de … e, em consequência, repetir-se o julgamento, por forma a assegurar o cumprimento do princípio da tutela jurídica.
53. Quanto à alegada existência de nulidade parcial do documento particular autenticado, refira-se que o Recorrente não concorda com decisão, porquanto, o documento particular em questão não está ferido de qualquer nulidade, quer em termos de forma, quer em termos materiais.
54. Veio a Sentença proferida pelo Tribunal a quo confirmar erroneamente a existência de uma contradição com o projeto aprovado, dado que o título constitutivo em apreço coincide na íntegra com o que foi fixado pela entidade pública.
55. Pese embora o primeiro projeto apresentado pelos proprietários e aprovado pela Câmara (entidade competente para o efeito) previsse a existência de três frações, i.e., A, B e C, partilhando a fração B e C a mesma saída para a via pública, tal constituição foi alterada posteriormente, por forma a eliminar a fração C, conforme aliás se provou.
56. Ora, quer o douto Tribunal a quo, quer os Recorridos, com o devido respeito que é muito, fizeram tábua rasa desta alteração.
57. Na Certidão emitida posteriormente pela Câmara para efeitos de constituição de propriedade horizontal, são descriminadas as frações existentes, a sua composição e afetação.
58. Ora deste documento decorre logo a inexistência da Fração C, bem como a afetação exclusiva do hall de entrada à Fração B.
59. Sendo este documento de extrema importância, na medida em que é essencial à constituição da propriedade horizontal, não se compreende como foi desconsiderado.
60. Mais, não se compreende por que razão, tanto o douto Tribunal a quo, como os Recorridos, baseados no projeto inicial, podem afirmar que o hall de entrada não é parte integrante da fração B mas sim parte comum e nada dizer quanto ao desaparecimento da fração C.
61. Isto porque, se os Recorridos invocam esse projeto para alegar a nulidade do título constitutivo, devem fazê-lo na integra e de forma coerente, não se limitando ao que lhes convém, sob pena de litigância de má fé.
62. Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao determinar a nulidade parcial do título constitutivo, impondo-se alterar a decisão proferida e, em consequência, reitera-se a plena validade do documento particular autenticado, nos precisos termos em que foi outorgado em 28 de maio de 2015.
63. Conforme se demonstrou supra o título constitutivo da propriedade horizontal, coincide na íntegra com a certidão emitida, para o efeito, pela Câmara Municipal de ….
64. Razão pela qual, a determinação, pela sentença proferida, de nulidade parcial do mesmo é nula.
65. Caso contrário, estará a própria sentença a violar o disposto nos artigos 1415.º e 1418.º do CC, porquanto, determinará a alteração do título constitutivo e, em consequência, torná-lo-á (agora sim) incompatível com a certidão administrativa.
66. Ora, tal fere a Sentença de nulidade, por violação das normas dispostas no Código Civil e no Regulamento Jurídico da Urbanização e Edificação, mas sobretudo por violação das regras de competência material.
67. Isto porque, não tem o Tribunal a quo competência para determinar a alteração de um ato administrativo e, como tal, a simples declaração de nulidade parcial e alteração do conteúdo do título equivale a uma constituição de propriedade horizontal por sentença judicial.
68. Situação que gerará, no caso em apreço, a contradição prevista no número 3 do artigo 1418.º CC, ou seja, o título que era válido, passará a ser nulo nos termos do número 3 do artigo 1418.º CC.
69. Porquanto, o Tribunal a quo não se certificou previamente, junto das competentes autoridades camarárias, de que tal alteração cumpria os requisitos, conforme resulta da legislação aplicável.
70. Desta forma, não andou bem o Tribunal a quo ao declarar a nulidade parcial do título constitutivo da PH e, assim, alterá-lo, sem prévia certificação camarária, pelo que a sentença deve ser declarada nula nesta parte, nulidade essa que desde já se argui.
71. Por todo o exposto, nos diversos pontos autonomizados, deve a sentença ser declarada nula e repetir-se a produção de prova e o julgamento.
Como é imperativo do Direito e da Justiça!”
*
Os autores contra-alegaram. Não formularam conclusões, tendo propugnado pela improcedência do recurso e confirmação da decisão da 1ª instância.
*
O recurso foi admitido pelo tribunal de 1ª instância, que em cumprimento do disposto no art. 617º, nº 1, do Código de Processo Civil, apreciou as invocadas nulidades da sentença, designadamente, de oposição dos fundamentos com a decisão, e de omissão de pronúncia, previstas no art. 615º, nº 1, nas suas alíneas c), e d), respetivamente, do Código Processo Civil, tendo concluído pelo seu indeferimento.
O recurso foi admitido neste tribunal e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
*
II. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso em apreço cabe decidir:
a) Alteração sobre a decisão de facto;
b)Das invocadas nulidades da sentença: oposição da fundamentação com a decisão e omissão de pronúncia;
c) Da nulidade parcial do documento de constituição da propriedade horizontal do prédio identificado nos autos.
*
III. Matéria de Facto
a) Da alteração da matéria de facto   
O réu/recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, o que não obsta a que a mesma possa ser objeto de alteração por este tribunal de recurso, no âmbito do poder oficioso de controlo sobre tal decisão, nomeadamente, e com interesse nestes autos, perante contradição sobre pontos determinados da matéria de facto (cf. art. 662º, nº 2, al. c), do Código de Processo Civil).
Analisada a decisão factual verificamos o seguinte:
Sob o ponto 11, deu-se como assente:
“11 Os contadores da água, os contadores da luz, as caixas de pré-instalação dos contadores do gás natural, o quadro geral da electricidade, a caixa das telecomunicações e as caixas de correio comuns às fracções A) e B) estão instalados no hall de entrada do piso 0, da Fracção B.”
Sob o nº 15, foi dado como provado o seguinte facto:
“15 As referidas instalações de água, luz, gás e telecomunicações, existentes no hall de entrada do piso 0, e do piso 1 do nº 116, servem, são úteis a todas as fracções do edifício, e não em exclusivo à fracção B.”
E foi dado como não provado o seguinte:
“10- Os contadores referidos em 11) estão ainda instalados estão instalados no hall de entrada do piso 1, da Fracção B).”
Verifica-se, deste modo, contradição entre o seguinte segmento do facto nº 15: ““As referidas instalações de água, luz, gás e telecomunicações, existentes no hall de entrada (…) do piso 1 do nº 116 (…)”, com o facto provado em 11) e com a matéria de facto julgada como não provada sob 10.
O processo contém, porém, todos os elementos que nos permitem proceder à eliminação da contradição. Efetivamente, ouvidos os depoimentos das testemunhas que estiveram na base da fundamentação dos sobreditos factos, e bem assim a documentação apresentada e que foi objeto de apreciação, é inequívoco que os contadores (ou as instalações mencionadas em 15, e que são aqui objeto de discussão) estão apenas instalados no hall do piso 0 da fração B) – (como é também reconhecido na sentença proferida em 1ª instância), pelo que se determina a eliminação daquele segmento factual descrito sob o nº 15, passando o facto ali descrito a ter a seguinte redação:
“15 As referidas instalações de água, luz, gás e telecomunicações, existentes no hall de entrada do piso 0, servem, são úteis a todas as fracções do edifício, e não em exclusivo à fracção B.”
*
Ainda no âmbito factual, cabe apreciar e decidir da necessidade de determinar a repetição de julgamento como defende o réu nas suas conclusões, que funda tal pedido na circunstância da Mmª juíza do tribunal a quo ter terminado o julgamento e proferido a sentença sem ter obtido resposta sobre a informação que tinha solicitado à Câmara Municipal de …, que permitiria formular decisão sobre a possibilidade de virarem os contadores para o interior da fração A, conforme pretensão, que ele, réu, havia manifestado na ação e que tinha obtido a aceitação dos autores, concluindo que não tendo o tribunal esperado pela resposta que tinha solicitado, a sentença é nula, devendo repetir-se a notificação à Câmara Municipal de … e, em consequência, repetir-se o julgamento, por forma a assegurar o cumprimento do princípio da tutela jurídica.
No decorrer da audiência e na sequência de requerimento formulado pelo réu, foi proferido despacho que deferindo parcialmente o requerido, determinou que fosse oficiado “(…) à Câmara Municipal de … solicitando que informe, com nota de urgente, informando que o termo do julgamento depende da informação solicitada, se existe algum óbice à introdução de modificações em que se se retire duma fracção equipamentos ou contadores que pertencem a uma outra fracção”.
Deste modo, o pedido de informação dirigido à Câmara Municipal de …. teve, aparentemente, por escopo a obtenção de informação sobre a possibilidade de ser satisfeita aquela pretensão do réu/recorrente, não obstante a mesma não constitua fundamento da ação e não tenha sido deduzida ação reconvencional, evidenciando apenas os autos – a matéria de facto fixada em 1ª instância - que as partes discutiram entre si a possibilidade de assim resolverem o litígio.
Dirigido o pedido à Câmara Municipal de …, esta edilidade encaminhou para os autos a informação prestada pelo Departamento de Gestão de Território, que dava conta de não dispor de dados suficientes para dar resposta ao pedido e que solicitava à DDUR o fornecimento do nº de processo ou localização da edificação, por forma a que eventualmente pudesse ser dada resposta ao que fora solicitado.
Desta informação foram as partes notificadas e nada disseram, como nada disseram quando perante aquela informação – da qual se aferia que podia não ser possível dar resposta ao que fora solicitado - o tribunal decidiu dar continuidade à audiência de julgamento, terminando-a, assumindo também deste modo as partes, em concreto o réu, e tacitamente, e em face do que em concreto foi transmitido pela sobredita edilidade, desinteresse pela informação que fora solicitada.
Improcede, assim, a pretensão do recorrente.
No demais, e como veremos infra, os factos emergentes da prova produzida em audiência são os essenciais à decisão da causa, tal como esta se mostra configurada pelos autores, inexistindo fundamento para determinar a realização de quaisquer outras provas e determinar, para o efeito, a repetição/continuação do julgamento.
Improcede, neste tocante, a pretensão do recorrente.
*
Posto e isto, e na sequência da sobredita alteração da decisão de facto, para além dos factos descritos no relatório deste acórdão, tem-se como fixado o seguinte quadro factual:
Factos Provados
“1 Por documento autêntico, outorgado a 28 de Maio de 2015, cuja cópia se mostra junta a fls. 8v a 11v e cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, o Réu e os Autores, quer por si, quer o Ré e o Autor Marido ainda na qualidade de sócios gerentes e em representação da sociedade comercial por quotas C….CONTABILIDADE, ….LDA., na qualidade de proprietária do prédio urbano, composto de casa e de rés-do-chão e primeiro andar, destinado a serviços e comércio, sito na Avenida da …, n.º .. e …, no lugar e freguesia de ….., concelho de … sob o n.º …., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da União das Freguesias de …. sob o art. …, com o valor patrimonial de €307.058,51, disseram o seguinte:
A sociedade vende aos outorgantes que a representam, em comum e partes iguais o imóvel acima identificado, que o aceitam, pelo preço de €230.000,00 (duzentos e trinta mil), que já receberam para a sua representada e de que dá quitação.
2 Mais declararam, em tal documento, A..S.. e J..L.. e mulher, na qualidade de únicos proprietários do referido prédio, que:
Que pelo presente documento particular autenticado, submetem o prédio que acabam de adquirir, ao regime de propriedade horizontal, composto pelas duas seguintes  fracções que constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria directamente para a via pública:
FRACÇÃO A – UM PISO – Destinada a Comércio/Serviços composta por loja com dois gabinetes, espaço de arrumos e duas instalações sanitárias, com a permilagem de quatrocentos e trinta e um.
FRACÇÃO B – DOIS PISOS- Destinada a Serviços, composto por hall de entrada, sala de apoio, dois espaços de arrumos, piso um composto por hall de entrada, sala de trabalho, uma antecâmara, duas instalações sanitárias, uma copa, um espaço de arrumos, um logradouro privado com a área de reza vírgula doze metros quadrados e uma varanda com cinco vírgula oitenta e nove metros quadrados, ambos privados, com a permilagem de quinhentos e setenta e nove.
São pertença comum das fracções todas as definidas por lei.
3 Por escritura pública, outorgada em 15-11-2018, cuja cópia se mostra junta a fls. 15v e ss e cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, A..J..S.., J..R..L.. e mulher, casados sob o regime de comunhão de adquiridos, denominada “Permuta”, declararam pôr termo à compropriedade do prédio identificado em 1), nos seguintes termos:
O primeiro outorgante …, transmite aos segundos a sua metade indivisa na fracção A).
Como contraprestação os segundo outorgantes J.. e mulher transmitem ao primeiro a sua metade indivisa da fracção B).
4 Relativamente ao prédio urbano supra aludido foram inscritos no registo predial os seguintes actos:
- pela AP 4649 de 2015-06-03 a aquisição por compra por A.. e J..R.. L.., casado com A..L.. no regime de comuhão de adquiridos;
- pela AP. 4650 de 03-06-2015 a constituição da Propriedade Horizontal, da Fracção A, com permilagem de 431 e Fracção B com permilagem de 569; conforme teor das certidões do registo predial a fls. 12 a 12 v, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
5 Relativamente à fracção A do prédio urbano supra aludido foram inscritos no registo predial os seguintes actos:
- pela AP. 3299 de 2018-11-15 a aquisição de ½, por permuta, a favor de J.. R.. L.., casado com A..L.. no regime de comunhão de adquiridos, conforme teor das certidões do registo predial a fls. 13 cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
6 Relativamente à fracção B do prédio urbano supra aludido foram inscritos no registo predial os seguintes actos:
- pela AP. 3300 de 2018-11-15 a aquisição de ½, por permuta, a favor de A..J..S.., conforme teor das certidões do registo predial a fls. 14 cujo teor se dá integralmente por reproduzido
7 Quer a fracção A, quer a B, encontravam-se arrendadas, tal como ora sucede, à Ótica … e à C…Lda, respetivamente, recebendo Autores e Réus as rendas dos respetivos arrendamentos, na proporção das partes detidas.
8 Na sequência do referido em 3), o Autor Marido comunicou à arrendatária Ótica…que a partir de então era o único proprietário da fracção A) e que, como tal, a totalidade da renda deveria ser-lhe paga só a si.
9 Momento em que esta o informou que já não possuía as chaves de acesso à caixa de correio e aos contadores de água e luz, uma vez que o Réu havia alterado a fechadura da porta de acesso aos ditos e não lhe tinha fornecido a nova chave.
10 Ao confrontar o Réu com tal facto, por o Autor não ter dado o seu consentimento à alteração da fechadura, respondeu aquele ao Autor que não entregava as chaves por se tratar da sua fracção autónoma, ficando o acesso condicionado à sua permissão.
11 Os contadores da água, os contadores da luz, as caixas de pré-instalação dos contadores do gás natural, o quadro geral da electricidade, a caixa das telecomunicações e as caixas de correio comuns às fracções A) e B) estão instalados no hall de entrada do piso 0, da Fracção B.
12 O prédio supra descrito encontra-se licenciado no âmbito do processo de construção n.º1055/2005.
13 Consta da Memória descritiva e justificativa – Projecto da Rede de Águas, que se mostra junta a fls. 19 a 24 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, que instruiu o processo de construção n.º 1055/2005, além do mais, o seguinte:
Objectivo:
O presente projecto tem por objectivos a definição e o dimensionamento da rede interna e externa de água fria e quente, de um edifício de dois pisos destinado a comércio e serviços, pertencente à C…, Lda.. O edifício localiza-se na Avenida da …..
Instalações:
A rede interior de cada fogo é constituída por duas condutas de abastecimento, uma para as águas frias e outra para as águas quentes.
A rede de água potável fria, terá como adução a rede pública. Os contadores e respectivos olhos de boi serão colocados no hall de entrada comum às várias fracções.
(…)
A rede de água quente tem características semelhantes à de água fria, mas será devidamente isolada. Esta iniciar-se-á na copa, nos casos das fracções A e B, mais propriamente no aparelho de produção de água quente escolhido pelo requerente esquentadores de 13/14 l. No caso da fracção C a rede iniciar-se-á na antecâmara, sendo o aparelho de produção de água quente um termoacumulador eléctrico.
(…)
14 Consta da Memória descritiva e justificativa – Telecomunicações, que se mostra junta a fls. 24v a 26 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, que instruiu o processo de construção n.º 1055/2005, além do mais, o seguinte:
1- Objectivo:
Definir e implantar os diversos elementos de que é composta a rede de Telecomunicações do edifício de escritórios, por forma a realizar a recepção de sinal de TV, seja qual for a proveniência, e a transmissão de dados/voz, com a qualidade desejável.
(…)
3-Armário de Telecomunicações de Ediício (ATE)
Destina-se a fazer a transição entre as redes públicas de telecomunicações e a rede colectiva. Será colocado na entrada do lote; em zona comum, a uma altura não inferior a 0,60m. A tubagem da entrada de cabos, ligará a esta caixa. Será do tipo C#, e albergará os repartidores de Cabos Coaxiais e Pares de Cobre.
(…)
6.2. Localização dos órgãos de protecção
Todas as protecções com ligação à terra, serão ligadas no Barramento Geral de Terras (BGT) existente no ATE.
(…)
6.3. Segurança na Ligação a outros Serviços
(…) Estas interligações, situam-se ao nível do ATI, mas também do ATE.
7. Instalação Eléctrica de Apoio
Serão instaladas quatro tomadas de energia eléctrica, com protecção de corte 10 A, proveniente do quadro de serviços comuns do edifício.
(…)
15 As referidas instalações de água, luz, gás e telecomunicações, existentes no hall de entrada do piso 0, servem, são úteis a todas as fracções do edifício, e não em exclusivo à fracção B.
16 Em resposta a pedido de esclarecimento sobre o processo de construção OB/1055/2005 o Departamento de Gestão e Licenciamento do Território da Câmara Municipal de …, prestou aos ora Autores e Réu a informação constante de fls. 69, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, com além do mais, o seguinte teor:
O requerente A..S.., com o pedido SM/1523/2019 vem solicitar aos serviços a informação de como poderá passar os contadores da fracção A para dentro da mesma, uma vez que refere que os contadores de ambas as fracções estão dentro da fracção B, sua propriedade e o requerente J..L.., através do pedido SM/2100/2019, de 29/03/2019, informa de um processo em tribunal, solicitando a não decisão no processo.
Consultado o processo OB/1055/2009 e suas alterações OB/1055/2005/CP01 verifica-se que foram aceites alterações em 13-07-2009, onde os contadores se encontravam instalados em área designada como áreas comuns do edifício.
Com o pedido de autorização de utilização os contadores passam a estar dentro da fracção B, e é emitida licença de utilização 573/2009, em 06/11/2009. Posteriormente, através de pedido de certidão de propriedade horizontal, datado de 16-12-2014, deferido e emitido em 23-02-2015, o requerente solicita a constituição de propriedade horizontal, conforme a autorização de utilização emitida.
(…)
17 O Autor … e o Réu, à data da assinatura do documento particular autenticado, lavrado no dia 28 de Maio de 2015, eram sócios, aliás os únicos sócios, na sociedade por quotas C…, Lda.
18 Na data referida em 3), os Autores sabiam que o hall de entrada em apreço fazia parte da fracção B.
19 Mais sabendo que as leituras dos contadores e a receção do correio das arrendatárias de ambas as frações era feita no hall de entrada em crise na presente ação.
20 Tendo igualmente conhecimento de que a Fração A tem total autonomia do referido hall de entrada, com acesso direto ao exterior e o seu funcionamento não depende de forma alguma do referido hall de entrada.
21 Não sendo, possível entrar para a Fração A ou sair da mesma através desse hall.
22 Ao contrário do que sucede com a Fração B, que não tem outra forma de sair ou entrar no prédio que não a utilização dessa parte do prédio.
23 Como aliás sempre foi propósito dos comproprietários.
24 Perante a exigência de uma chave por parte dos AA o Réu propôs aos Autores a realização de obras de alteração da localização dos contadores e caixas de correio, assumindo todos os custos inerentes, tendo os Autores autorizado que os Réus procedessem às obras que considerassem necessárias, a suas expensas, de forma a permitir o livre acesso aos referidos contadores e caixas de correio, nos precisos termos constantes da missiva junta a fls. 56-57, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
25 O Réu permite o acesso à sua fração durante o horário de funcionamento do estabelecimento da fração A e do mesmo ter demonstrado total disponibilidade para abrir a porta ao sábado,
26 Além disso, tem sido prática comum desde o início, manter a porta do hall de entrada inferior aberta.”
Factos não provados:
“1- O Réu exigiu ficar com a propriedade plena da fracção B).
2- A alteração da fechadura referida em 9) foi efectuada em data anterior à referida em 3).
3- Em 2015 havia entre J..L… e o Réu uma forte relação de confiança.
4- Os Autores estavam plenamente convencidos de que o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 do nº 116 constituíam uma parte comum do edifício.
5- Tendo apenas constatado a efectiva composição da fracção B), após a data referida em 3), após a recursa por parte do réu em entregar as chaves de acesso ao n.º 116.
6- Os autores manifestaram no documento particular de constituição da propriedade horizontal uma vontade que não correspondia com o seu íntimo e verdadeiro querer.
7- Pois se os Autores soubessem verdadeiramente que o hall do piso 0, e o hall do piso 1 do nº116, constituiriam partes integrantes da fracção B, não teriam querido a constituição da propriedade horizontal nos precisos termos em que a concluíram.
8- O Réu não podia ignorar que a circunstância do hall do piso 0 e do hall do piso 1 do nº 116 constituírem parte integrante da fracção B, seria determinante para os Autores não terem querido a constituição da propriedade horizontal nos precisos termos em que a concluíram.
9- O hall de entrada do piso 0 da fracção B) tem utilidade para a fração A.
10- Os contadores referidos em 11) estão ainda instalados estão instalados no hall de entrada do piso 1, da Fracção B).”
Fundamentação de direito
b) Das invocadas nulidades da sentença
O réu/recorrente alega que a sentença enferma, entre outras, da nulidade de oposição entre a fundamentação e a decisão, e de omissão de pronúncia.
As nulidades da sentença constituem um vício da própria decisão. São únicas e típicas, encontrando-se descriminadas nas alíneas a), a e), do nº 1 do art. 615º, do Código de Processo Civil, que sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”, dispõe:
1-É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido;
(…)
4- As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do nº 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.
Constituindo um vício da própria decisão, a nulidade tipificada na primeira parte da sobredita alínea c), do nº 1, do art. 615º, ocorre quando os fundamentos que o juiz invoca conduziriam a resultado oposto ao que foi expresso[1].
Trata-se dum vício que “(…) implica, por um lado, a uma contradição lógica no Aresto, o que significa, para a sua ocorrência, que a fundamentação siga um determinado caminho e a decisão opte por uma conclusão completamente diversa, e, por outro, que tal fundamentação inculque sentidos diversos e/ou seja pouco clara ou imperceptível.”[2]
A propósito da invocada nulidade, diz o recorrente que o tribunal considerou como provados factos demonstrativos de que os autores sabiam que o hall de entrada do piso 0 integrava a Fração B e como não provados os factos por aqueles alegados e que pretendiam demonstrar que tinha existido um erro na declaração aquando da outorga do título constitutivo da propriedade horizontal, não se percebendo, por isso, como pode o tribunal concluir pela nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, já que é patente que não ocorreu qualquer erro vício.
Ora, como resulta claramente da sentença, o tribunal concluiu ter ficado demonstrada a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal, face ao regime contido no art. 1421.º, nº 1, alínea d), do Código Civil, tendo deixado expressamente consignado, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, que tinha como prejudicado o conhecimento da matéria da exceção de caducidade, como das demais questões submetidas à apreciação do tribunal, ou seja, o invocado vício da vontade no momento da constituição da propriedade horizontal (cf. art. 247º do Código Civil), trazido à discussão na sequência do sobredito convite dirigido aos autores, e que, manifestamente, não constitui fundamento da decisão, tanto mais que o vício da vontade (erro na declaração) que fora invocado nem sequer conduziria à nulidade da declaração, mas sim à sua anulabilidade, não ocorrendo qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.
Acresce que a decisão apresenta-se como o culminar lógico da subsunção dos factos apurados ao regime jurídico que se considerou ser o aplicável, pelo que, independentemente do acerto da decisão – que constitui questão de mérito – a sentença mostra-se clara e inteligível, sendo manifesta a inexistência da nulidade que lhe é assacada.
O réu/apelante imputa, ainda, à sentença o vício da omissão de pronúncia.
Trata-se de nulidade que deriva da violação do dever de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.[3]
E neste tocante é patente que também não assiste razão ao recorrente, que no essencial, e não obstante invocar a referida nulidade, acaba por manifestar a sua  discordância quanto ao mérito da decisão.
O tribunal apreciou uma das duas pretensões apresentadas pelos autores e só deixou de apreciar a outra, e bem assim a exceção de caducidade do direito à ação que fora suscitada pelo réu, e como já anteriormente se disse, em virtude de ter julgado prejudicado o seu conhecimento face à decisão que concluiu pela nulidade parcial do documento particular autenticado denominado “Compra e venda e propriedade horizontal”, por violação do disposto no art. 1421º, nº 1, al. d), do Código Civil.
Diz também o recorrente que o tribunal a quo não se pronunciou sobre o hall do piso 1, que os recorridos também alegaram desconhecer que pertencia à Fração B.
Não é verdade.
Concluída a apreciação jurídica da causa, diz-se expressamente na sentença que: “Por conseguinte, a pretensão dos Autores não poderá deixar de proceder parcialmente, porquanto apenas se apurou que as referidas instalações gerais comuns a ambas as fracções estão instaladas no hall de entrada do piso 0, da Fracção B e não, também do piso 1).”, reiterando-se, mais uma vez, que o alegado “desconhecimento” sobre a integração do piso 1 na fração “B” diz respeito a fundamento da ação cujo conhecimento foi julgado prejudicado.
Finalmente, diz o réu que o Tribunal a quo ao declarar a nulidade parcial do título constitutivo não se pronunciou sobre a situação suis generis que criou, pois proferiu sentença sem obter posição da Câmara Municipal e sem se pronunciar quanto à cisão da fração B resultante da declaração do hall como parte comum; como não respondeu a uma série de questões essenciais, como por exemplo, o que acontece à sala de apoio e arrumos no piso 0, em virtude da cisão operada por sentença, constituindo tal omissão uma violação do artigo 1422º-A do CC, que dispõe que a contiguidade das frações só pode ser dispensada quando se trate de frações correspondentes a arrecadações e garagens, concluindo que é patente o excesso do poder jurisdicional, na medida em que é às partes que compete o impulso, e a utilização do prédio é matéria de competência reservada da autarquia.
Não assiste razão ao recorrente.
Nunca esteve em discussão nos autos e não passou a estar por força da declaração de nulidade parcial do título de constituição da propriedade horizontal, qualquer situação concernente a junção ou divisão de frações, pelo que não cabia ao tribunal apreciar qualquer questão ao abrigo do regime contido no invocado art. 1422º-A do Código Civil.
Por outro lado, a decisão não só não coloca minimamente em causa a utilização do edifício que foi definida e certificada pela entidade camarária, como não colide com ela, tendo a Mmª juíza do tribunal a quo apreciado e decidido a pretensão dos autores à luz do regime jurídico que entendeu ser o convocável, concluindo pela desconformidade parcial do título constitutivo de propriedade horizontal com regra civil imperativa que se encontra inserta no art. 1421º, nº 1, do Código Civil, e consequentemente, pela nulidade parcial do documento através do qual foi constituída a propriedade horizontal do prédio identificados nos autos.
Inexiste, assim, omissão de pronúncia, pelo que improcede a pretensão do recorrente.   
As demais questões que o réu/apelante classifica como nulidades não são subsumíveis às que são tipificadas como nulidades da sentença, nem configuram verdadeiramente nulidades, traduzindo a concretização da discordância face à decisão de mérito e que ora cabe, então, apreciar.
*
Os autores vieram pedir, além do mais, e na parte que ora interessa, face ao objeto do recurso, a declaração de nulidade parcial do documento particular autenticado, denominado de “Compra e Venda e Propriedade Horizontal”, lavrado no dia 28 de maio de 2015, na parte em que individualiza o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 como fazendo parte da fração autónoma, identificada como letra “B”, com a consequente condenação do réu a reconhecer essa nulidade; a consequente declaração de que o hall de entrada do piso 0 e o do piso 1 constituem parte comum do edifício; e a condenação do réu na entrega da chave da porta de acesso ao nº 116 da Avenida da Liberdade, Pêro Pinheiro.
Julgada a ação, foi a mesma julgada parcialmente procedente, tendo-se concluído pela nulidade parcial do sobredito documento, na parte em que individualiza o hall de entrada do piso 0 como fazendo parte da fração autónoma “B”, com a consequente condenação do réu a reconhecer a existência de tal nulidade e a entregar aos autores a chave da porta de acesso ao dito hall de entrada.
Segundo o princípio geral enunciado no art. 1414, do Código Civil, “As frações de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”.
A constituição de propriedade horizontal exige a existência de frações autónomas, independentes, distintas e isoladas entre si, e que tenham saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (art. 1415º, do Código Civil).
A par destes requisitos, e considerando o disposto no art. 1418º daquele mesmo código, nomeadamente, o seu nº 3, a propriedade horizontal só poderá ser constituída se estiver previamente aprovada pela entidade pública competente, o que significa que os interessados em cumprimento do disposto nos arts. 62º, a 66º, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, têm de diligenciar junto da Câmara Municipal competente em ordem a obterem a emissão de certificação de que o edifício cumpre, entre outras, as exigências técnicas de arquitetura, segurança, salubridade, em ordem a poder ser autorizada a utilização pretendida.
A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário (art. 1417º, nº 1, do Código Civil).
No caso, a constituição da propriedade horizontal referente ao imóvel identificado nos autos foi constituída por negócio jurídico, como evidencia o facto assente sob o nº 1:
- Por documento autêntico, outorgado a 28 de maio de 2015, o réu e os autores, compraram à sociedade C….Ldª”, de que eram sócios gerentes o autor marido e o réu, o prédio urbano composto de casa e de rés-do-chão e primeiro andar, destinado a serviços e comércio, sito na Avenida da .., no lugar e freguesia de …, concelho de …, tendo ainda os autores e o réu declarado no mesmo documento, na qualidade de únicos proprietários do referido prédio, que o submetiam ao regime de propriedade horizontal, composto pelas duas seguintes frações que constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria diretamente para a via pública:
Fração “A”, destinada a comércio/serviços composta por loja com dois gabinetes, espaço de arrumos e duas instalações sanitárias, com a permilagem de quatrocentos e trinta e um.
Fração “B”, destinada a serviços, composto por hall de entrada, sala de apoio, dois espaços de arrumos, piso um composto por hall de entrada, sala de trabalho, uma antecâmara, duas instalações sanitárias, uma copa, um espaço de arrumos, um logradouro privado com a área de reza vírgula doze metros quadrados e uma varanda com cinco vírgula oitenta e nove metros quadrados, ambos privados, com a permilagem de quinhentos e setenta e nove.
Declararam ainda os outorgantes nesse documento que são pertença comum das frações todas as definidas por lei.
O sobredito prédio encontrava-se licenciado no âmbito do processo de construção n.º1055/2005 da Câmara Municipal de ….
De acordo com a Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Rede de Águas, que instruiu o dito processo, e que versou sobre a definição e o dimensionamento da rede interna e externa de água fria e quente, do dito edifício de dois pisos destinado a comércio e serviços, os contadores e respetivos olhos de boi seriam colocados no hall de entrada comum às várias frações (segundo o mesmo documento o processo de construção visaria a individualização de uma terceira fração (“C”).
 De acordo com a Memória Descritiva e Justificativa – Telecomunicações, que instruiu também o mesmo processo, o Armário de Telecomunicações de Edifício (ATE), destinado a fazer a transição entre as redes públicas de telecomunicações e a rede coletiva, seria colocado na entrada do lote, em zona comum.
Evidenciam ainda os autos (facto 16) que o dito processo de construção foi objeto dum pedido de alteração (nº OB/1055/2005/CP01), aceite em 13 de julho de 2009, em consequência do qual a área designada como área comum do edifício e onde estavam instalados os contadores de que se fala nos autos, passou a integrar a fração imobiliária “B”, tendo sido emitida em 6 de novembro de 2009 a licença de utilização 573/2009. Posteriormente, em 16 de dezembro de 2014, foi pedida certidão de propriedade horizontal, que tendo sido deferida, foi emitida em 23 de fevereiro de 2015, tendo a constituição de propriedade horizontal sido realizada conforme a sobredita licença de utilização.
E em face do que sucintamente se deixou exposto, há que concluir que a constituição do edifício em propriedade horizontal em 28 de maio de 2015 foi precedida da competente certificação por parte da entidade pública competente; que se mostram verificados os requisitos previstos no art. 1415º, bem como os contidos no art. 1418º, nº 1, ambos do Código Civil; constando ainda do título constitutivo o fim a que se destina cada uma das frações (requisito facultativo, a que se reporta a alínea a), do nº 2, deste último preceito legal), não se encontrando desconformidade entre o título constitutivo e a autorização/licença emitida pela Câmara Municipal.
O que cabe apreciar neste recurso, face ao enquadramento e à solução de direito dada em 1ª instância à pretensão dos autores, é saber se o título constitutivo da propriedade horizontal – que tem de se compatibilizar inequivocamente com a lei civil - enferma de nulidade (parcial) por violação de normas imperativas, nomeadamente, e como se concluiu na sentença recorrida, por violação do disposto no art. 1421º, nº 1, al. d), do Código Civil.
Dispõe este preceito legal:
1- São comuns as seguintes partes do edifício:
a) o solo, bem como os alicerces, coluna, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio;
b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fração;
c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos;
d) As instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.
2- Presumem-se ainda comuns.
a) Os pátios e jardins anexos ao edifício;
b) Os ascensores;
c) As dependências destinadas ao uso e habitação de porteiro;
d) As garagens e outros lugares de estacionamento;
e) Em geral, as coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.
3- O título constitutivo pode afetar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns”.
Extrai-se da leitura deste preceito legal que num edifício constituído em regime de propriedade horizontal há partes imperativamente comuns a todos os condóminos[4] - as elencadas no nº 1 -, e partes presuntivamente comuns, e que são as que se encontram enumeradas no nº 2.
 “No elenco das coisas forçosa ou necessariamente comuns cabem não só as partes do edifício que integram a sua estrutura (como elementos vitais da construção), mas ainda aqueles que, transcendendo o âmbito restrito de cada fração autónoma, revestem interesse colectivo, por serem objectivamente necessárias ao uso comum do prédio.
Quanto às primeiras (as que pertencem à estrutura da construção), elas são comuns, ainda que o seu uso esteja afectado a um só dos condóminos, pela razão simples de que a sua utilidade fundamental, como elemento essencial de toda a construção, se estende a todos os condóminos.
Quanto às segundas, a sua utilidade pode ser mais ou menos ampla, mas a justificação da sua natureza está no facto de constituírem, isolada ou conjuntamente com outras, instrumentos do uso comum do prédio”[5]
Depreendemos das conclusões do recurso do réu que o mesmo não questiona, propriamente, que as infraestruturas da água, luz, gás natural, e telecomunicações do edifício sejam comuns, apenas não admitindo que seja considerada como comum a zona onde estão instalados os respetivos contadores, e ainda, as caixas de correio das duas frações do prédio, em virtude de tal divisão integrar a fração imobiliária de que é proprietário.
Emerge da factualidade apurada em julgamento que os contadores da água, os contadores da luz, as caixas de pré-instalação dos contadores do gás natural, o quadro geral da eletricidade, a caixa das telecomunicações e as caixas de correio comuns às frações A) e B) estão instalados no hall de entrada do piso 0, da Fração B, e servem, são úteis, a todas as frações do edifício, e não em exclusivo à fração B; e que as leituras dos contadores e a receção do correio das arrendatárias de ambas as frações é feita no dito  hall de entrada.
  Está deste modo demonstrado que o proveito da sobredita parte do edifício não se refere apenas a um dos condóminos – ao réu – mas também ao autor, independentemente de tal divisão do prédio constar como integrante da fração imobiliária de que é proprietário o primeiro, pelo que cabendo o proveito da divisão aos dois condóminos, não pode qualquer deles, e nomeadamente, o réu, impedir ou restringir o acesso do autor (ou do arrendatário da fração) à dita divisão, condicionando-o à sua vontade ou disponibilidade.
O “hall” de entrada – estrangeirismo que entrou indubitavelmente no nosso léxico - é o mesmo que vestíbulo, ou seja, uma divisão que habitualmente se situa entre a entrada do prédio e o seu interior. No caso, esse vestíbulo dá acesso, apenas, à fração “B”, já que não é possível entrar para a fração “A” ou sair da mesma através desse hall, ao contrário do que sucede com a fração “B”, cujo condómino não tem outra forma de sair ou entrar no prédio. No entanto, a utilidade e essencialidade da dita divisão para o condómino da fração “A” é inequívoca, já que só através dela acede a equipamento essencial e inerente ao uso do prédio – contadores de água, luz, gás, caixa de telecomunicações - como ao recetáculo onde é recebido e depositado o correio, distribuído diariamente, como é do conhecimento comum.
Por isso, nos termos do art. 1421º, nº 1, al. c), do Código Civil, trata-se de divisão forçosa e necessariamente comum, de acesso a todos os condóminos em iguais circunstâncias, decorrendo inclusivamente dos autos que para o acesso a tal divisão basta que os autores tenham uma chave que lhes permita abrir a porta da entrada de acesso à fração “B”, sem que isso, em face do quadro factual apurado, afete ou interfira com o uso das restantes divisões de tal fração “B” ou afete o fim a que a mesma está destinada, tanto mais que, como resultou provado, tem sido prática comum desde o início manter a porta do hall de entrada inferior aberta, ainda que existam efetivamente conflitos, uma vez que o réu entendeu condicionar o acesso a tal zona à sua disponibilidade e vontade, como evidenciam também os factos provados, tendo sido precisamente tal comportamento que deu causa à propositura da presente ação.
Aliás, não obstante constar do título de constituição de propriedade que o hall de entrada integra a fração B, estipulou-se, expressamente, que “São pertença comum das fracções todas as definidas por lei”, ou seja, como tal, necessariamente, e por força da referida alínea c), do nº 1, do art. 1421º, do Código Civil, o dito vestíbulo, porque de uso comum a dois condóminos.
Em acórdão de 30 de abril de 1991, no âmbito do processo nº 0035451, (sumário acessível em www. dgsi.pt), decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, que “Em prédio constituído em propriedade horizontal as partes comuns podem ou não constar do respectivo título constitutivo.
As partes do prédio enunciadas taxativamente no art. 1421, n. 1 do CC são sempre comuns ainda que emitidas no título constitutivo ou neste incluídas como fazendo parte de determinada fracção autónoma”.
No caso concreto, pelo título constitutivo da propriedade horizontal não foi afetado o uso exclusivo a um dos condóminos de qualquer parte de zona que estivesse classificada como comum, mas integrada numa das frações autónomas uma parte do edifício que tem obrigatoriamente de ser comum pelas razões já expendidas, nomeadamente, pela utilidade que o seu uso acarreta, por igual, para os dois condóminos, não sendo por isso convocável o regime decorrente do nº 3 do dito art. 1421º, como aparentemente sustenta o recorrente.
Tendo presente o disposto no art. 294º, do Código Civil, nos termos do qual, “Os negócios celebrados contra disposição legal de caráter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”, e que do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em causa foi feito constar que o hall de entrada do piso 0 integra a fração B, em violação da norma imperativa que deixámos assinalada, designadamente, a alínea c), do nº 1, do art. 1421º, do Código Civil - e não a sua alínea d), como se deixou referido na sentença recorrida – impõe-se concluir pela declaração de nulidade parcial do dito documento nos termos decididos em 1ª instância, ainda que com a referida correção, improcedendo assim o recurso dos réus.

Decisão
Na sequência do exposto, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em alterar a matéria de facto conforme supra decidido, e não obstante, e pelos fundamentos ora indicados, julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Custas pelo réu/recorrente.
Notifique.

Lisboa, 27 de janeiro de 2022
Cristina Lourenço
Ferreira de Almeida
António Valente
_______________________________________________________
[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pág. 141.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/01/2021, proferido no processo nº 2350/17.8T8PRT.P1S2, com texto integral acessível em www.dgsi.pt.
[3] Professor Alberto dos reis, ob. citada, pág. 142.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 2ª edição, 1987, Coimbra Editora, pág. 419.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. citada, pág 420.