Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INCONSTITUCIONALIDADE
PROPRIEDADE HORIZONTAL
LOGRADOURO
PARTES COMUNS
PRESUNÇÃO
OBRAS
Sumário
I - A sentença, como decisão judicial que é, não pode ser objeto de um juízo de inconstitucionalidade. II - O juízo de inconstitucionalidade abrange somente as normas jurídicas, embora também na dimensão e interpretação que lhes foram dadas III - A generalidade da jurisprudência entende que os logradouros são presumidamente comuns (integrando-se no art. 1421º, n.º 2, al. a) do Cód. Civil ); outros há, contudo, que defendem que os logradouros são imperativamente comuns (cabendo no art. 1421º, n.º 1, al. a) do CC). IV - Na primeira hipótese, a referida presunção de comunhão pode ser ilidida por qualquer via e não somente com base no título constitutivo. V - Não especificando o título constitutivo que o logradouro integrava qualquer fração ou que pertence em exclusivo a qualquer dos condóminos, nem tão pouco constando a sua afetação ao uso exclusivo do condómino titular daquela fração e não existindo, por referência à data da constituição da propriedade horizontal, sinais de qualquer destinação objetiva ou afetação material do espaço a determinada fração autónoma, não se verifica impedimento ao funcionamento da presunção de comunhão do n.º 2 do art. 1421º do CC quanto a tal espaço do prédio.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
J. F. intentou, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M. A., pedindo a condenação do Réu:
a) No reconhecimento de que o Autor é o legítimo proprietário e possuidor da fração “C” do prédio identificado em 1 da P.I.;
b) Na restituição do acesso original à fração do Autor e restantes bens, como sejam os contadores e poço;
c) Recolocação do muro na parte aberta, do número de porta, da caixa de correio e do portão de acesso ao logradouro de acesso à garagem à sua forma original – processo n.º 308/66 da Câmara Municipal de …;
d) No pagamento de uma indemnização por violação dos direitos do autor, em montante nunca inferior a € 10.000,00;
e) Pagamento de todas as despesas com o presente processo judicial, que se determinará em sede de conta final;
f) No pagamento da sanção acessória pelo incumprimento, desde a data de citação até integral cumprimento, no montante diário de € 50,00.
g) No pagamento de juros incidentes sobre todos os valores, desde citação até integral e efetivo cumprimento de sentença de condenação a ser decretada.
Para tanto alegou, em resumo, que é proprietário da fração autónoma que identifica, que integra um prédio constituído em propriedade horizontal, sendo o réu proprietário de uma outra fração desse mesmo prédio; que verificou que existem diversas irregularidades nos acessos à sua identificada fração, embora admita que a adquiriu com os acessos que apresenta presentemente; que as referidas irregularidades no acesso servem apenas o réu, o qual se apoderou do logradouro de acesso à sua garagem, tendo procedido a alterações de forma abusiva e ilegal, com isso, provocando danos ao autor.
*
Citado, o réu apresentou contestação-reconvenção (fls. 35 a 44), pugnando pela verificação da exceção de ilegitimidade ativa e passiva e improcedência da ação. A título reconvencional pediu a condenação do autor/reconvindo a reconhecer o logradouro da fração D, do réu/reconvinte, como área privativa da referida fração, e a retirar o contador de água que serve a fração C, do autor, do logradouro da fração D, do réu/reconvinte.
Subsidiariamente, pediu a condenação do autor/reconvindo a remover o contador para local onde se torne menos oneroso para o réu/reconvinte, ou seja, junto ao muro exterior.
Para tanto alegou, em síntese, que as frações que hoje são do autor e do réu pertenceram à mesma pessoa, altura em que o acesso a ambas as frações se fazia pelo acesso à garagem do réu, tendo sido o anterior proprietário quem vedou o acesso existente à fração C, agora do autor, criando um novo acesso, sendo que, desde então, 2014, o acesso à fração do autor deixou de se fazer pelo logradouro da fração do réu e passou a fazer-se pelo novo acesso criado, sendo a situação existente da autoria do anterior proprietário, que com essas condições a vendeu ao autor.
Mais alegou que o contador de água da fração C, do autor/reconvindo, se encontra dentro do seu (Réu) logradouro.
*
O autor replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção (fls. 53 a 57).
*
Admitida a intervenção das mulheres do autor e do réu, foi considerada sanada a invocada ilegitimidade das partes.
*
Procedeu-se à audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, em que se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo sido identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e admitidos os meios de prova (fls. 72 e 73).
*
Procedeu-se a audiência de julgamento (fls. 84 a 86).
*
Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença, nos termos da qual:
1) Julgando a ação parcialmente procedente, decidiu:
a) Condenar os réus a reconhecerem que os Autores são legítimos proprietários e possuidores da fração “C” do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial.
b) Absolver os réus dos demais pedidos contra si formulados.
2) Julgando procedente a reconvenção, decidiu:
a) Condenar os autores/reconvindos a reconhecerem o logradouro da fração “D”, propriedade dos réus, como área privativa da referida fração.
b) Condenar os autores/reconvindos a retirarem o contador de água que serve a fração “C”, do logradouro da fração “D”, dos reconvintes.
*
Inconformados, os Autores interpuseram recurso da sentença e, a terminar as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«A) A meritíssima Juiz a quo decidiu, e muito bem, que a fração “C” do prédio urbano, sito em inscrito na matriz sob o art. ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...-C da freguesia de …; B) Decidiu que “o autor adquiriu o prédio com os acessos presentes”; C) Tendo olvidado que o existente não se encontra legalmente corrigido e registado, D) As alterações que a Meritíssima Juiz a quo verificou, não foram objeto de correção junto quer da entidade administrativa, quer da entidade pública Conservatória de Registo Predial. E) Nem nunca o poderá ser. F) Já que, a Sentença colide de forma direta e contundente com o inscrito na Constituição da República Portuguesa, mormente no que dispõe quanto ao Direito individual de propriedade. G) Embora o Direito individual de Propriedade, não seja absoluto, a sua previsão Constitucional é garantística. H) A todo o cidadão, nos termos do Constitucionalmente previsto no artigo 62º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte…; I) Retirando-se daí, numa primeira abordagem “uma relação privada de uma pessoa ou entidade com determinados bens, de que resulta para os demais consociados, num segundo momento ou dimensão, um dever de abstenção ou de não perturbação, uma obrigação universal de respeito” – J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa anotada, Vol. I, Coimbra, 2007, p.801. J) Ora, foi isto mesmo que a Douta Sentença olvidou, mormente ao não sancionar devidamente o facto de se encontrar instalada uma calha de portão de correr, que ocupa cerca de cinquenta centímetros do rasgo, que agora entende o Tribunal destinado à entrada do prédio do Autor. K) Mantendo-se aquele instrumento, a “suposta” entrada do autor – porque mais à frente iremos demonstrar porque não pode manter-se no estado em que se encontra – não é da sua livre utilização. L) Existe, jurisprudencialmente uma perspetiva de que o Direito privado pode ser comprimido em determinadas circunstâncias; M) Porém, tal compressão, tem que ter fundamento e justificação em princípios e valores, que também eles têm dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afigurem necessárias à prossecução dos outros valores salvaguardados. N) O que manifestamente nem sequer é o caso presente. O) Pois pretende-se manter um objeto inútil em local propriedade de outrem sem qualquer justificação/fundamento, já que na sentença se impossibilita a recolocação de portão de correr para aquele lado da propriedade. P) Pelo que, sem qualquer tipo de dúvida se invoca nesta parte a total ilegalidade da sentença aqui recorrida, pois não obriga a que o consociado se abstenha de perturbar e respeitar o direito de propriedade do Autor. Q) Da Douta Sentença, resulta claramente uma violação do Direito Constitucional do autor, na medida em que, invocando o facto de ter adquirido assim o prédio – com violações graves de projeto, como seja a criação de uma entrada violadora do projeto que se encontra junto da entidade administrativa Câmara Municipal e da Escritura da Propriedade Horizontal, na qual todas as frações têm entrada pelo n.º 1 – pretende coartar o seu Direito de Recusa em manter as ilegalidades existentes. R) Com o “forte” argumento de que já adquiriu a propriedade no estado presente. S) O que salvo o devido respeito – reitera-se – não tem a mínima correspondência com a realidade. T) O que ali se encontra é totalmente ilegal e o Autor não pretende viver na ilegalidade. U) O que se exige, é a restituição de toda a legalidade e não a convolação da ilegalidade. V) Não entendemos que possa ser resolvido de forma tão simplista mas tão violenta ao Direito de propriedade do Autor. W) Até mesmo pelo que supra ficou referenciado, relativamente à possibilidade de compressão do Direito de propriedade, que com a presente sentença obrigaria ao cometimento de ilegalidades, como é o determinado retirar do contador de água, do local em que o mesmo se encontra, para um outro local. X) Violação legal infligida pelo próprio Tribunal e não compressão de Direitos. Y) Razão pela qual se invoca a inconstitucionalidade da sentença ora recorrida. Z) Ainda que assim não fosse, o que por mera hipótese académica se coloca, sempre se invocará a ilegalidade da sentença ora recorrida. AA) Já que se considera manifesta a violação do legalmente previsto no artigo 1419º do código civil, que no seu n.º 1 refere: “…o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos. (Sublinhado nosso). BB) Ou seja, se, como é o caso presente, o Autor não concorda com as alterações concretizadas no prédio em propriedade horizontal, porque as mesmas produzem malefícios à sua propriedade, conforme resulta invocado e demonstrado com Relatório Pericial de Engenharia, CC) A lei impossibilita a concretização de alteração da propriedade horizontal se não houver acordo de todos. DD) Documento que consagra a génese de todo o prédio e estipula as permilagens de utilização. EE) Além de que, o argumento de que vigora a caderneta predial - que nem sequer diz o que a meritíssima juiz a quo retira na sua fundamentação, pois que, não fala em existência de qualquer logradouro privado - vingaria sobre o efeito do registo em sede de Conservatória de Registo Predial. FF) Manifestamente mais uma ilegalidade cometida pela Douta Sentença, já que no nosso ordenamento jurídico, prevalece o Registo sobre qualquer outro documento – artigo 5º do Código de Registo Predial. GG) Tal como resulta claro da certidão predial, a fração do Réu, não tem permilagem suficiente para o que ele invocou. HH) Aliás, pela análise e demonstração dos documentos apresentados, a permilagem de tal espaço encontra-se registado na fração do Autor. II) Logo, em sede de prova registral, tal espaço (logradouro de acesso à garagem) é da propriedade do Autor e não do Réu, como erroneamente decidiu o Tribunal a quo. JJ) Violações legais que de forma expressa aqui se invocam.
Nestes termos e nos mais que V.ª Ex.ªs suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando a Douta Decisão Recorrida por ser manifestamente inconstitucional e ilegal, nos termos supra expostos e ser substituída por sentença que condene o Réu a retirar a calha que se encontra colocada no terreno do Autor; remover todos os obstáculos existentes no acesso à fração do Autor; restituição do muro de vedação à sua forma original, mormente com o “fecho daquela entrada ilegal”; determinar a possibilidade de acesso ao motor do poço existente no logradouro de acesso à garagem do Réu; a não determinação de retirada do contador de água por parte do autor, para local que o próprio não concebe qual seja, tal seria a ilegalidade cometida e por fim, condenar os Réus na indemnização peticionada por todos os incómodos provocados com os comportamentos ilegais adotados, bem como no pagamento das custas judiciais e de parte. SÓ ASSIM SE FAZENDO A ACOSTUMADA JUSTIÇA!».
*
Contra-alegaram os réus, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida (ref.ª 39166495).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
No caso, por ordem lógica da sua apreciação, apresentam-se as seguintes questões a decidir:
i) – Da inconstitucionalidade da sentença;
ii) - Da reapreciação da decisão de mérito.
*
III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto.
A - A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. O Autor é legítimo proprietário e possuidor da fração “C” do prédio em Propriedade Horizontal, sito em Rua ..., n.º 1, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo atual ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... – C.
2. O Réu é o legítimo proprietário e possuidor da fração “D” do prédio em Propriedade Horizontal, sito em Rua ..., n.º 1, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo atual ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ....
3. O Autor adquiriu o prédio com os acessos presentes.
4. Os acessos à fração “C”, tal como existem, foram alterados em relação à construção inicial.
5. Os acessos, tal como existem, não estão de acordo com o projeto original.
6. O acesso ao imóvel concretiza-se pela Rua ....
7. Na entrada existente para a fração dos autores, foi colocada uma “calha de um portão de correr”, que lhe limita a acessibilidade.
8. A presença dessa calha, dificulta a boa acessibilidade para qualquer pessoa, mas mais ainda para pessoas com mobilidade condicionada.
9. Mais reduzida ficava a possibilidade de acesso ao local, quando o portão se encontrava corrido/aberto para saída da viatura.
10. Nessa circunstância específica, o portão tapava a quase totalidade do espaço de acesso.
11. A entrada tem cerca de um metro de largura.
12. A calha colocada no chão, tem mais de meio metro, dentro daquele espaço.
13. O acesso era concretizado pelo portão de acesso ao logradouro e flexão à direita.
14. A entrada proveniente do rasgo do muro, originalmente não existia.
15. O número indicativo de porta encontrava-se no muro junto ao acesso ao logradouro e garagem do Réu.
16. Existiam umas escadas de acesso até ao primeiro patamar, que foi tapado.
17. No muro encontram-se claros vestígios da originalidade do local, nomeadamente, ferros cortados à face do muro, que indiciam de forma inequívoca, tratar-se da colocação originária do portão, de forma fixa.
18. Existem também, claros indícios do local original onde se encontrava colocada a caixa do correio, que não é o sítio atual.
19. A bateria de contadores encontra-se num muro, junto à garagem do Réu.
20. Existe um acesso, no identificado logradouro, agora vedado, ao poço.
21. O Réu é dono e legítimo possuidor da fração “D” do prédio em Propriedade Horizontal, sito na Rua ..., nº 1, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo atual ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...-D.
22. O Réu adquiriu a referida fração a J. B. e T. B..
23. Quando o Réu adquiriu a fração D, a fração C, que hoje é propriedade do Autor, pertencia a J. B..
24. Antes de o Réu adquirir a fração D, a sua fração e a do Autor pertenciam à mesma pessoa.
25. Nessa altura, o acesso a ambas as frações, fazia-se pelo mesmo portão, ou seja, pelo portão de acesso ao logradouro da garagem da fração D.
26. Quando J. B. vendeu a fração D ao Réu, vedou a abertura que existia no muro que separa as duas frações.
27. E, na mesma altura, criou um novo acesso à fração C, que é feito através de um portão de cerca de um metro de largura que se encontra ao fundo das escadas.
28. E entregou ao aqui Réu as chaves do portão de acesso ao logradouro da fração D.
29. Desde então, o acesso à fração C deixou de fazer-se pelo logradouro da fração D e passou a fazer-se pela abertura de cerca de um metro de largura que existe hoje ao fundo das escadas de acesso à fração C.
30. O que tudo foi feito segundo as ordens e orientações de J. B. e a expensas suas.
31. Uma vez que as duas frações deixaram de pertencer à mesma pessoa.
32. A fração C confronta diretamente com a via pública.
33. Pelo que se revelou perfeitamente viável a criação de um novo acesso à fração C.
34. O que permitiu a ambas as frações, que deixaram de pertencer ao mesmo proprietário, manterem saídas próprias.
35. Tudo isto foi operado pelo então proprietário da fração C.
36. Desde 2014, o acesso à fração C passou a ser feito pelo portão que existe atualmente, com cerca de um metro de largura.
37. O Autor já adquiriu a fração C com os acessos agora existentes.
38. Desde o momento em que as duas frações deixaram de estar concentradas na propriedade da mesma pessoa, o acesso às mesmas passou a fazer-se por entradas distintas, até porque, não se verificava qualquer necessidade de onerar a fração D com uma servidão de passagem, o que nunca foi feito.
39. O Réu limita-se a dar à sua fração um uso normal, a qual segundo o título constitutivo da Propriedade Horizontal, de 17 de junho de 1987, consta como: Fração “D” – Garagem - Tem a área coberta de dezassete vírgula duzentos e vinte e cinco metros quadrados, com entrada própria privativa por um logradouro com a área de vinte e dois vírgula setecentos e noventa metros quadrados…”.
40. Quando o Réu adquiriu a fração D, existia um portão de correr de acesso ao logradouro da mesma, o qual abria na direção do muro onde foi aberto o novo acesso à fração C.
41. Tal portão de correr não foi colocado pelo Réu.
42. O referido portão já existia quando o Réu adquiriu a sua fração e por consentimento do então proprietário da fração C, manteve-se inalterado após a venda.
43. Tal portão só obstruía, parcialmente, a entrada da fração C, momentaneamente, nos breves instantes necessários para o Réu entrar ou sair com a sua viatura, o que se verificava pontualmente.
44. Tal situação, apenas se manteve inalterada porque o então proprietário da fração C vendeu a fração D ao Réu com aquelas condições e disse sempre que não havia qualquer problema em tal situação se manter.
45. Quando o Réu adquiriu a fração D, o portão já corria na direção do portão de acesso à fração C, sendo que, tal situação se manteve assim, com o consentimento e conhecimento do então proprietário da fração C.
46. Quando o J. B. vendeu a fração C ao Autor, o Réu entendeu que, por uma questão de preservar as boas relações de vizinhança, tal situação não deveria ser mantida, razão pela qual, entretanto, já retirou o referido portão.
47. A calha por onde o portão corria continua fixada no solo, à entrada da fração C.
48. O acesso à fração do Autor é feito através de escadas, não existindo no local rampas, nem tampouco elevador.
49. Todas as frações têm o abastecimento de água assegurado pelo serviço público de águas.
50. O contador de água da fração do Autor, encontra-se dentro do logradouro da fração D, do Réu.
*
B - E deu como não provados os seguintes factos:
- As alterações concretizadas em nada melhoraram os acessos à fração “C”.
- Pela análise dos documentos oficiais, verificou o Autor que a fração “D”, apenas tem Área Bruta Privativa, não tendo qualquer área bruta dependente.
- De forma abusiva e ilegal, o Réu vedou e apoderou-se de um espaço que não lhe é permitido fazê-lo.
- Não lhe pertence o logradouro de acesso à sua garagem.
- Tendo procedido a alterações de forma abusiva e ilegal, provocando com isso, danos no Autor.
- O réu condicionou o acesso ao imóvel do Autor.
- Intervencionou em local que lhe estava vedado, retirando e colocando a seu belo prazer, onde entendia e onde queria.
- Viola de forma diária – pela utilização da sua garagem, ao tapar a entrada – que ele Réu criou para a fração do Autor, quando abre o portão.
- Viola circunstancialmente, quando há necessidade de verificação e contagem da água gasta pela fração do Autor.
- O réu persiste na sua atuação, em prejuízo ao Autor.
- O autor teve gastos, mormente com a obtenção de Relatório especializado por Técnico habilitado para o efeito – Eng. M. G. – a cuja entidade patronal concretizou o pagamento de € 492,00.
- A situação do acesso nunca causou incómodos ao proprietário da fração C.
- O Réu já solicitou, por diversas vezes, ao Autor que procedesse à alteração da localização do contador, mas sem sucesso.
- O Réu já se dirigiu à X, solicitando a retirada do contador daquele local e a colocação do mesmo no muro exterior, mas os serviços recusam-se a responder ao seu pedido por não lhe reconhecerem legitimidade para tal.
- Relativamente ao poço que o Autor diz existir no logradouro da fração do Réu, quando este último adquiriu a sua fração, o mesmo já não se encontrava ativo, situação que já na altura se verificava há largos anos, conforme lhe foi comunicado pelo vendedor.
*
V. Fundamentação de direito.
1. Da inconstitucionalidade da sentença.
Invocam os recorrentes a inconstitucionalidade da sentença recorrida, afirmando (com relevo) que dela resulta claramente uma violação do Direito Constitucional do autor, na medida em que, invocando o facto de ter adquirido assim o prédio – com violações graves de projeto, como seja a criação de uma entrada violadora do projeto que se encontra junto da entidade administrativa Câmara Municipal e da Escritura da Propriedade Horizontal, na qual todas as frações têm entrada pelo n.º 1 – pretende coartar o seu direito de recusa em manter as ilegalidades existentes.
Vejamos.
A Constituição Portuguesa consagrou o controlo difuso e concreto da constitucionalidade.
Perante as caraterísticas do controlo difuso, a fiscalização concreta assume-se como um incidente na ação principal e, por isso, em cada ação judicial o tribunal pode conhecer e decidir uma questão de constitucionalidade (1).
O juízo de inconstitucionalidade só tem razão de ser enquanto reportado a normas jurídicas e não a decisões judiciais.
Com efeito, segundo o preceituado no art. 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro – correspondente ao art. 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição da Républica Portuguesa (CRP) –, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (recurso este que, como expressamente acrescentam os arts. 280º, n.º 6, da CRP e 71º da Lei n.º 28/82, é restrito à questão da inconstitucionalidade suscitada).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o conceito funcional de norma para efeito de controlo da constitucionalidade se expressa (i) quando a norma consta de um ato legislativo, ou (ii) quando a norma é geral e abstrata. Pelo primeiro critério, são normas todas as disposições contidas em leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais, independentemente do seu conteúdo; pelo segundo critério, são normas todas as disposições gerais e abstratas, independentemente da sua forma (2).
Objeto do recurso é sempre a constitucionalidade ou a legalidade de uma norma, não a constitucionalidade ou a legalidade de uma decisão judicial. Não abrange, obviamente, a questão principal discutida no tribunal “a quo” (3).
Nessa conformidade, o Tribunal Constitucional tem decidido em numerosos arestos que decorrem claramente daquele dispositivo que, por um lado, o recurso de inconstitucionalidade só pode ter por objeto normas jurídicas, pelo que não cabe na sua competência o controlo de outro tipo de atos jurídicos, designadamente de decisões judiciais; e que, por outro lado, esse seu controlo normativo compreende não só a norma jurídica como o que simplesmente se reporta a certa dimensão ou interpretação dada pelas instâncias à norma questionada (4).
Daqui se extrai a conclusão de que a sentença, como decisão judicial que é, não pode ser objeto de um juízo de inconstitucionalidade.
O que poderá ser objeto desse juízo são as normas jurídicas que a sentença explicita ou implicitamente aplicou (5).
Sucede que, no caso, os recorrentes omitiram qualquer concreta norma jurídica que padeça do vício de inconstitucionalidade.
Resta-nos, assim, concluir pela improcedência do apontado vício invocado pelos recorrentes.
*
2. Reapreciação da decisão de mérito.
2.1. Da qualificação do logradouro como parte comum ou, ao invés, como parte própria.
O espaço (logradouro) que está no centro do litígio faz parte de um prédio constituído em propriedade horizontal.
Importa, por isso, enunciar os traços fundamentais do regime da propriedade horizontal e retirar as respetivas consequências para o caso concreto.
Dispõe o art. 1414.º (“Princípio geral”) do Código Civil (CC) que as «fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal».
Logo, a «propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma a que, entre dois planos, se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas» (6).
O art. 1415.º (“Objecto”) do CC prescreve que só «podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública».
É necessário, portanto, que se trate de frações privativas, mas existindo instalações comuns ou serviços de utilização comum (7).
Nos termos do art. 1418.º (“Conteúdo do título constitutivo”) do CC:
«1 - No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio. 2 - Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente: a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum; (…)».
“Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1422.º-A e do disposto em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos” (n.º 1 do art. 1419.º do CC).
Estatui o art. 1420.º (“Direitos dos condóminos”) do CC que:
«1. Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. 2. O conjunto dos dois direitos é incindível (…)»
Na propriedade horizontal congregam-se duas situações jurídicas distintas: uma, de propriedade singular e exclusiva, que tem por objeto as frações autónomas do edifício (andares, apartamentos) - art. 1420.º, n.º 1 do CC); e outra, de compropriedade, incidente sobre as partes comuns referidas no art. 1421.º do CC (8).
Logo, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela (9), o “que verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é, pois, a fruição de um edifício por parcelas ou fracções independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afectados ao serviço do todo. Trata-se, em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, ao lado da compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns”.
O conjunto dos direitos de cada condómino sobre as partes comuns e sobre a fração que exclusivamente lhe pertence é incindível, o que significa que nenhum desses direitos pode ser alienado, onerado ou penhorado separadamente.
A existência da propriedade horizontal implica, como se viu, a existência de frações autónomas e de partes comuns. Porém, não é clara nem evidente a distinção entre as partes comuns e as fracções autónomas de um edifício constituído em propriedade horizontal.
A principal sede legal da definição das partes comuns (do prédio) é o art. 1421º do CC, o qual estabelece:
«1. São comuns as seguintes partes do edifício: a) O solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção; c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos; d) As instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes. 2. Presumem-se ainda comuns: a) Os pátios e jardins anexos ao edifício; b) Os ascensores; c) As dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro; d) As garagens e outros lugares de estacionamento; e) Em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. 3 - O título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns».
A citada disposição normativa permite a distinção entre partes necessária ou imperativamente comuns (n.º 1) e partes presumidamente comuns (n.º 2), ou seja, estas últimas apenas são comuns quando os condóminos não declarem o contrário. Só quanto aos elementos imperativamente comuns se verifica uma compropriedade necessária e permanente. No tocante às partes comuns previstas no n.º 2 do art. 1421º, a comunhão poderá cessar em qualquer momento, por acordo dos condóminos (10).
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (11), «a enumeração das partes comuns do edifício, feita no n.º 1, é imperativa, no sentido de que os elementos nela incluídos são necessariamente comuns a todos os condóminos. Outras coisas podem entrar na comunhão, como as que constam da discriminação feita no n.º 2, mas não entram nela forçosamente. O n.º 2 presume, de facto, que são comuns outros elementos do prédio. Mas essa presunção pode ser ilidida (…)».
No caso a questão que se coloca é a de saber se o logradouro deve ser qualificado como parte comum, necessária ou presumidamente, por o mesmo, na 1ª hipótese, se considerar compreendido no conceito de “solo” (al. a) do n.º 1 do art. 1421º do CC) ou, na 2ª hipótese, no de “pátios e jardins” (al. a) do n.º 2 do mesmo artigo) ou, ao invés, se deve antes considerar-se como fração autónoma ou parte integrante da fração autónoma dos RR./recorridos.
Trata-se de matéria muito controvertida, encontrando-se doutrina e jurisprudência em diversos sentidos.
A lei não define o que é um logradouro, nem refere expressamente se estamos perante uma parte comum do prédio ou não.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 25/03/2010 (relator Oliveira Rocha), in www.dgsi.pt., um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial.
A expressão “logradouro”, civilisticamente, “tem assento no n.º 2 do artigo 204° do Código Civil: aí se diz que se entende por «prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro». Daqui decorre que o logradouro sendo, basicamente, terreno, não é edifício; juridicamente, faz parte da unidade predial mas, fisicamente, tem diferença e autonomia; serve o edifício, ou seja, é complementar e serventuário do edifício. (…) Portanto, logradouro é o que pode ser logrado ou fruído por alguém; ou seja e fazendo apelo ao seu cariz complementar, em princípio por quem fruir o edifício correspondente”.
O logradouro de um prédio consiste no "terreno não edificado que circunda o prédio, podendo servir fins diversos: estacionamento, delimitação do prédio, entrada, base de edificações secundárias, entre outros" (12).
Há quem entenda que o logradouro só é comum se outra classificação não resultar do título constitutivo da propriedade horizontal.
A generalidade da jurisprudência entende que os logradouros são presuntivamente comuns (integrando-se assim no art. 1421º, n.º 2, al. a) do CC); outros há, contudo, que defendem que os logradouros são imperativamente comuns (cabendo no art. 1421º, n.º 1, al. a) do CC) (13).
Sem cariz exaustivo, vejamos algumas posições enunciadas (sobretudo) na doutrina.
Para Moitinho de Almeida (14), em prédio constituído no regime de propriedade horizontal, só o solo é parte necessariamente comum, traduzindo os páteos e logradouros a mesma realidade física e funcional - terrenos contíguos a casa de habitação para a serventia. Assim, no ato constitutivo da propriedade horizontal pode um logradouro ser atribuído a uma só fração.
Segundo Luís Carvalho Fernandes (15), o solo só é necessariamente parte comum no que respeita à zona de implantação do edifício. Os pátios e os jardins anexos ao edifício, em geral o seu logradouro, só são comuns se outra qualificação não resultar do título constitutivo.
Por sua vez, Pires de Lima e Antunes Varela (16) consideram que o logradouro é ainda parte imperativamente comum (17) (18).
Perfilhando este entendimento, Sandra Passinhas (19) argumenta em seu abono que não podemos desconsiderar o estatuído no n.º 2 do art. 204º do CC, nos termos do qual se entende por prédio urbano “qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”. Por outro lado, o logradouro pode não ser um pátio ou jardim, mas corresponder a algo completamente diferente –um mero terreno acimentado, ou um areal coberto ou não, com gravilha. Por fim, se o legislador quisesse abranger na al. a) do n.º 2 do art. 1421º o logradouro tê-lo-ia referido expressamente, e não usado a prolixa fórmula “pátios e jardins”.
Contra este entendimento, Rui Miller (20) (no sentido de que pode ser parte própria) e o Ac. da RP de 23/05/1989 (21), quando afirma que “pátio ou logradouro são expressões usadas pata traduzirem a mesma realidade física e funcional: terrenos contíguos a casa de habitação para serventia”.
Na jurisprudência, no Ac. da RP de 20/10/2003 (relator José Lameira), in www.dgsi.pt. foi considerado resultar «de forma clara, quer da análise do conceito - logradouro -, quer da leitura do artigo 1421 que o logradouro é parte comum do prédio (quer se entenda que o é presuntivamente quer se entenda que o é imperativamente)» (22).
Pois bem, sendo muito diferentes as configurações e a destinação dos diferentes logradouros, importa dar o devido relevo à materialidade fáctica dada como provada no caso concreto.
Nessa medida dir-se-á que se discorda do entendimento segundo o qual o logradouro deve ser considerado parte necessariamente comum do edifício (23).
Em 1º lugar, porque, na interpretação que se faz do n.º 1 do art. 1421º do CC, se entende não dever incluir o “logradouro” no conceito de “solo” (24), tendo por referência o elemento delimitador atinente às partes estruturais do prédio.
Em 2º lugar, porque aquele entendimento conduziria, em rigor, à impossibilidade de individualização e de apropriação exclusiva do logradouro por um ou vários condóminos, impedindo, no limite, como consequência da sua natureza de parte necessária ou imperativamente comum, que o título constitutivo da propriedade horizontal dispusesse em sentido diferente.
Por outro lado, uma interpretação extensiva do conceito de “solo” revelar-se-ia contrária aos princípios hermenêuticos.
Na verdade, existindo um elemento delimitador, mas englobante, que é a estrutura do prédio, revelar-se-ia atentatório das regras de interpretação não respeitar, no caso concreto, o elemento literal.
A adoção, no caso, de uma interpretação extensiva do conceito de “solo”, de modo a nele incluir o logradouro, representaria, também, uma violação do elemento racional, determinando o desrespeito do princípio segundo o qual o intérprete terá sempre como limite a letra da lei (art. 9º, n.º do CC).
Acresce que o entendimento segundo o qual o “logradouro” deveria integrar as partes necessariamente comuns do prédio não se harmonizaria, do ponto de vista jurídico, com a existência de acordo ou convenção no sentido de excluir, quanto a ele, a comunhão. Nem sequer com a possibilidade de diferente destinação constante do próprio título constitutivo da propriedade horizontal. Isto na medida em que, face à sua natureza de coisa imperativamente comum, não seria possível a sua apropriação individual.
Donde se conclua que o “logradouro” não deve ser considerado elemento imperativamente comum do prédio, tratando-se antes de coisa que o legislador presume comum (n.º 2 do art. 1421º do CC), contanto que do título constitutivo da propriedade horizontal não conste que o mesmo pertence ou esteja afeto a alguma fração autónoma (art. 1418º do CC).
A presunção de comunhão do n.º 2 do art. 1421º do CC é uma presunção relativa e, portanto, suscetível de ser ilidida mediante prova em contrário (25), “desde que se prove que os referidos elementos foram atribuídos pelo título constitutivo da propriedade horizontal a um ou a alguns dos condóminos ou adquiridos por estes através de actos possessórios. E deve mesmo considerar-se afastada em relação às coisas que, exorbitando das necessariamente comuns, não possam servir senão pela sua destinação objetiva, um dos condóminos” (26).
Coloca-se, porém, a questão de saber se a presunção pode ser afastada se existem elementos que apontem no sentido de uma determinada parte do edifício estar incluída numa fração autónoma ou se a qualificação como comum das partes elencadas no n.º 2 do art. 1421º do CC só pode ser ilidida através do título constitutivo da propriedade horizontal, se dele constar que certa parte do prédio está afetada ao uso exclusivo de um ou mais condóminos.
Respondendo à questão colocada diremos que a referida presunção pode ser ilidida por qualquer via e não somente no título constitutivo. Com efeito, a afetação material, ab initio, de uma parte do prédio que se presume comum por força do art. 1421º, n.º 2, do CC, a uma das frações autónomas, é bastante para afastar a presunção estabelecida no mesmo preceito (27).
Como se afirma no Ac. do STJ de 08.02.2000 (28), “se bastasse confirmar a afectação pelo teor do título, estar-se-ia a limitar o preceito aos casos em que não haveria qualquer dúvida, pelo que não faria sentido falar em presunção que por definição, quando ilidível, é algo que pode ser afastado, ao contrário do que ocorre com o teor do título. (…) Se fosse intenção do legislador considerar comuns todas as partes cuja afectação ao «uso exclusivo de um dos condóminos» não constasse do título, «então não faria sentido o n.º 2 falar em presunção, bastaria o preceito dizer: «são comuns, salvo menção em contrário no título constitutivo da propriedade horizontal(…). Quer isto dizer que, não constando do título a afectação de certa parte ao uso exclusivo de um condómino, resulta daí, em face do disposto pela norma em apreço, que essa parte se presume comum, sendo que tal presunção poderá ser ilidida”.
Feitos estes considerandos teóricos é altura de particularizarmos o caso concreto, iniciando a nossa análise por verificar se, em face da matéria apurada, se deve ou não considerar afastada a presunção de que o logradouro é comum (visto que a resposta a esta questão, por lhe servir de pressuposto, pode prejudicar a apreciação das demais levantadas na apelação).
Com vista à procedência dessa pretensão reconvencional o Tribunal de 1.ª instância expendeu o seguinte o raciocínio:
i) - Do respetivo registo predial a favor dos réus consta apenas uma garagem com 17,225 m2, sem referência ao logradouro;
ii) - o registo não é constitutivo de direitos e existem outras provas que não deixam dúvidas de que o logradouro faz parte integrante da fração “D”, como seja a caderneta predial e, sobretudo, o título de constituição da propriedade horizontal, onde se menciona a área respetiva, referindo-se concretamente como: “Fração “D” – Garagem - Tem a área coberta de dezassete vírgula duzentos e vinte e cinco metros quadrados, com entrada própria privativa por um logradouro com a área de vinte e dois vírgula setecentos e noventa metros quadrados…”;
iii) - Concluiu, assim, que se mostra devidamente provado o direito de propriedade dos réus sobre o logradouro em causa, enquanto parte integrante da fração “D”, propriedade dos réus.
Da caderneta predial, atinente à fração D do prédio identificado nos autos, consta a seguinte descrição: “Garagem com entrada própria privativa e logradouro de acesso à garagem” (29).
A inscrição do prédio – e a consequente emissão de caderneta predial – baseia-se numa participação da parte interessada, normalmente nem sequer sujeita a controlo da respetiva Repartição de Finanças (30).
A inscrição matricial é tão só um elemento de identificação que, sendo importante, é apenas um entre os vários que o prédio contém, já que constitui até um dos elementos que podem nem existir.
E as certidões das matrizes prediais emitidas pelas Repartições de Finanças apenas constituem presunção para efeitos fiscais, não para efeitos civis (31).
Os elementos matriciais apenas conseguem obter relevância, indiretamente, através do registo predial, com as quais se devem em princípio harmonizar (art. 28º e segs. do Cód. Registo Predial).
Ora, no que respeita ao registo predial, atinente à fração D do identificado prédio, consta apenas inscrito a favor dos réus a aquisição do direito de propriedade de uma garagem com 17,225 m2, sem referência ao logradouro (32). O que significa que o espaço em discussão não se encontra registado a favor dos réus, na competente Conservatória.
Por sua vez, do título constitutivo da propriedade horizontal (33), referindo-se concretamente à concreta fração em causa consta: “Fração “D” – Garagem - Tem a área coberta de dezassete vírgula duzentos e vinte e cinco metros quadrados, com entrada própria privativa por um logradouro com a área de vinte e dois vírgula setecentos e noventa metros quadrados, com o rendimento coletável de mil seiscentos cinquenta e seis escudos, de que resulta o valor matricial de vinte e quatro mil oitocentos e quarenta escudos.
No referido título constitutivo não se especificou que o referido logradouro constituía uma fração privativa, nem que integrava qualquer das frações, nomeadamente a D ou que pertence em exclusivo a qualquer dos condóminos, nem tão pouco a sua afetação ao uso exclusivo do condómino titular daquela fração; e, por isso, o mesmo presumir-se-ia parte comum (conforme al. e), do n.º 2, do art. 1421.º do CC).
Tentando, contudo, apreender o sentido útil do segmento “com entrada própria privativa por um logradouro”, afigura-se-nos que o mesmo pretende indicar que o acesso à fração constituída pela garagem efetivar-se-á, em exclusivo, pelo logradouro, e não por qualquer outra via, sem que daquela menção se possa concluir que o logradouro faz parte integrante ou está afeto em exclusivo à fração D do prédio identificado nos autos. Essa menção tão pouco permite inferir que houve uma afetação ao uso exclusivo do condómino titular da fração D, pois não exclui que outros condóminos possam também usar essa parcela de terreno (como era, aliás, o caso do condómino da fração C, que à data coincidia com o da fração D, visto que o acesso à via pública daquela fração fazia-se através do dito logradouro, pois não tinha entrada direta para o arruamento público).
Por conseguinte, embora resulte dos autos que o referido logradouro servia primordialmente os condóminos titulares das frações D e C, os elementos apurados não permitem concluir que o dito espaço estava unicamente afeto à fração autónoma D, nem que não possa servir senão pela sua destinação material ou objetiva o condómino da fração D.
O que significa – salvo sempre o devido respeito por entendimento diverso – que os argumentos aduzidos pela Mm.ª Juíza “a quo” são insuficientes para se poder concluir pelo afastamento de presunção de comunhão do n.º 2 do art. 1421º do CC no tocante ao referido logradouro do prédio.
Julgamos que outros elementos apurados apontam no sentido da não ilisão dessa presunção de comunhão.
Desde logo, o facto de, no título constitutivo da propriedade horizontal, não ter sido atribuído qualquer valor ao logradouro, o que indicia tratar-se de uma parte comum.
Ora, conforme resulta do disposto no art. 1418º, n.º 1, do CC, no título constitutivo deve ser indicado, entre o mais, o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio. Donde se entenda que, sendo atribuído a uma parte do prédio um valor relativo no título constitutivo, a presunção legal de que essa parte do edifício é comum deve considerar-se afastada (34). No caso, esse pressuposto não se verifica, pelo que não se mostra excluída a dita presunção legal.
O facto de o contador de água da fração dos Autores estar situado no referido logradouro que dá acesso à fração dos RR., e não na fração própria daqueles, aponta também no sentido daquele espaço do prédio ser comum.
Depõe igualmente a favor de um tal juízo o facto de o número indicativo de porta encontrava-se no muro junto ao acesso ao logradouro e à garagem do Réu e de aí existirem, também, indícios do local original onde se encontrava colocada a caixa do correio, que não é o sítio atual. Estes factos não são condizentes com a afetação do logradouro em exclusivo ao condómino titular da fração D.
Acresce que, aquando da constituição do condomínio, em 23/06/1987, o referido logradouro passou a estar afeto ao uso dos condóminos das frações D e C, que na altura pertenciam à mesma pessoa. Ou seja, não se poderá concluir que o referido espaço do edifício ficou afeto, ab initio, ao uso exclusivo do condómino da fração D, pois é incontroversa também a sua afectação ao condómino da fração C – que, à data, coincidiam –, sendo que, nessa altura, o acesso a ambas as frações fazia-se pelo mesmo portão, ou seja, pelo portão de entrada no logradouro que dá acesso à garagem da fração D, visto que a fração C não tinha sequer acesso direto à via publica. Essa afetação do logradouro ao uso exclusivo do condómino da fração D apenas se passou a verificar com a venda dessa fração aos ora RR., em 14/12/2014, sendo que previamente a esse negócio translativo o anterior condómino – que era também titular da fração C – alterou a realidade física do prédio, de modo a delimitar fisicamente as duas frações, vedando a abertura que existia no muro que as separava e criando um novo acesso à via pública da fração C, que é feito através de um portão de cerca de um metro de largura que se encontra ao fundo das escadas, deixando o acesso à dita fração de fazer-se pelo logradouro referenciado nos autos.
Donde os factos provados não atestam, por referência à data da constituição da propriedade horizontal ou do início da construção do prédio, a existência de sinais de qualquer destinação objetiva ou afetação material do logradouro à fração autónoma D.
Admitindo, porém, que uma destinação objetiva possa ocorrer em momento ulterior, independentemente do acordo de todos os condóminos expresso em alteração do título constitutivo, ela relevará para usucapião se houver inversão do título, mas não relevando o mero uso da coisa comum, pois, como prescreve, o art. 1406.º, n.º 2 do CC “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título” (35).
Ora, aquela afetação ao uso exclusivo de um dos condóminos para efeitos de ilidir a presunção prevista no art. 1421.º, n.º 2, al. e) do CC não poderia ser posterior, mas sim existente à data da constituição do condomínio, o que, como vimos, não é o caso.
Por fim, os RR. também não demonstraram que a parcela em causa foi por si adquirida através de actos possessórios (36).
Nesta conformidade, não se mostrando ilidida a dita presunção de comunhão prevista no art. 1421.º, n.º 2, do CC, impõe-se a revogação da sentença recorrida na parte em que condenou “os autores/reconvindos a reconhecerem o logradouro da fração “D”, propriedade dos réus, como área privativa da referida fração”.
De igual modo, não se tendo concluído que o logradouro constitui parte integrante da fração D, antes se presumindo que o referido espaço constitui uma parte comum do condomínio, não poderá manter-se a condenação dos “autores/reconvindos a retirarem o contador de água que serve a fração “C”, do logradouro da fração “D”, dos reconvintes”.
Na verdade, encontrando-se o contador da água instalado num espaço comum, situação essa que se deduz perdurar desde o início da construção do prédio, carece de fundamento a invocação do disposto no art. 1305º do CC para alicerçar a pretensão de remoção desse equipamento.
Termos em que, revogando nessa parte a sentença recorrida, é de concluir pela total improcedência dos pedidos reconvencionais.
*
2.2. Vejamos, agora, se no tocante aos pedidos formulados pelos AA./recorrentes a sentença recorrida merece, ou não, censura, mormente se deve a mesma ser substituída por outra que «condene o Réu a retirar a calha que se encontra colocada no terreno do Autor; remover todos os obstáculos existentes no acesso à fração do Autor; restituição do muro de vedação à sua forma original, mormente com o “fecho daquela entrada ilegal”; determinar a possibilidade de acesso ao motor do poço existente no logradouro de acesso à garagem do Réu; (…) e por fim, condenar os Réus na indemnização peticionada por todos os incómodos provocados com os comportamentos ilegais adotados, bem como no pagamento das custas judiciais e de parte».
Tendo em conta a solução jurídica anteriormente alcançada sobre a natureza presumidamente comum do logradouro em apreço, poder-se-ia (ser tentado a) julgar que tais pretensões (ou, pelo menos, parte delas) deveriam ser julgadas procedentes.
Considerando, porém, o específico circunstancialismo fáctico apurado, julgamos ser de sufragar nessa parte a subsunção jurídica feita na sentença recorrida.
Resulta da prova produzida o seguinte:
i) O Autor é legítimo proprietário e possuidor da fração “C” do prédio em Propriedade Horizontal, sito em Rua ..., n.º 1, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo atual ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... – C.
ii) O Réu é o legítimo proprietário e possuidor da fração “D” do prédio em Propriedade Horizontal, sito em Rua ..., n.º 1, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo atual ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...-D.
iii) O Autor adquiriu o prédio com os acessos presentes.
iv) Os acessos à fração “C”, tal como existem, foram alterados em relação à construção inicial, não estando de acordo com o projeto original.
v) O acesso ao imóvel concretiza-se pela Rua ....
vi) Na entrada existente para a fração dos autores, foi colocada uma “calha de um portão de correr”, com mais de meio metro dentro daquele espaço, que lhes limita a acessibilidade e dificulta a boa acessibilidade para qualquer pessoa, sobretudo para pessoas com mobilidade condicionada.
vii) Mais reduzida ficava a possibilidade de acesso ao local, quando o portão se encontrava corrido/aberto para saída da viatura, sendo que nessa circunstância específica o portão tapava a quase totalidade do espaço de acesso.
viii) A entrada tem cerca de um metro de largura.
ix) O acesso à fração “C” era concretizado pelo portão de acesso ao logradouro e flexão à direita.
x) A entrada proveniente do rasgo do muro, originalmente, não existia.
xi) Existiam umas escadas de acesso até ao primeiro patamar, que foi tapado.
xii) O Réu adquiriu a referida fração a J. B. e T. B..
xiii) Quando o Réu adquiriu a fração D, a fração C, que hoje é propriedade do Autor, pertencia a J. B..
xiv) Antes de o Réu adquirir a fração D, a sua fração e a do Autor pertenciam à mesma pessoa.
xv) Nessa altura, o acesso a ambas as frações fazia-se pelo mesmo portão, ou seja, pelo portão de acesso ao logradouro da garagem da fração D.
xvi) Quando J. B. vendeu ao Réu a fração D vedou a abertura que existia no muro que separa as duas frações e, na mesma altura, criou um novo acesso à fração C, que é feito através de um portão de cerca de um metro de largura que se encontra ao fundo das escadas, tendo entregado ao aqui Réu as chaves do portão de acesso ao logradouro da fração D.
xvii) Desde então, o acesso à fração C deixou de fazer-se pelo logradouro que dá acesso à fração D (37) e passou a fazer-se pela abertura de cerca de um metro de largura que existe hoje ao fundo das escadas de acesso à fração C, o que tudo foi feito segundo as ordens e orientações de J. B. e a expensas suas, uma vez que as duas frações deixaram de pertencer à mesma pessoa.
xviii) A fração C confronta diretamente com a via pública, pelo que se revelou perfeitamente viável a criação de um novo acesso à fração C, o que permitiu a ambas as frações, que deixaram de pertencer ao mesmo proprietário, manterem saídas próprias, sendo que tudo isto foi feito pelo então proprietário da fração C.
ixx) Desde 2014, o acesso à fração C passou a ser feito pelo portão que existe atualmente, com cerca de um metro de largura.
xx) O Autor já adquiriu a fração C com os acessos agora existentes.
xxi) Desde o momento em que as duas frações deixaram de estar concentradas na propriedade da mesma pessoa, o acesso às mesmas passou a fazer-se por entradas distintas (38).
xxii) O Réu limita-se a dar à sua fração um uso normal, a qual segundo o título constitutivo da Propriedade Horizontal, de 17 de junho de 1987, consta como: Fração “D” – Garagem - Tem a área coberta de dezassete vírgula duzentos e vinte e cinco metros quadrados, com entrada própria privativa por um logradouro com a área de vinte e dois vírgula setecentos e noventa metros quadrados…”.
xxiii) Quando o Réu adquiriu a fração D, existia um portão de correr de acesso ao logradouro da mesma, o qual abria na direção do muro onde foi aberto o novo acesso à fração C.
xxiii) O referido portão já existia quando o Réu adquiriu a sua fração e por consentimento do então proprietário da fração C, manteve-se inalterado após a venda.
xxiv) Tal portão só obstruía, parcialmente, a entrada da fração C, momentaneamente, nos breves instantes necessários para o Réu entrar ou sair com a sua viatura, o que se verificava pontualmente.
xxv) Tal situação apenas se manteve inalterada porque o então proprietário da fração C vendeu a fração D ao Réu com aquelas condições e disse sempre que não havia qualquer problema em tal situação se manter.
xxvi) Quando o Réu adquiriu a fração D o portão já corria na direção do portão de acesso à fração C, sendo que, tal situação se manteve assim, com o consentimento e conhecimento do então proprietário da fração C.
xxvii) Quando o J. B. vendeu a fração C ao Autor, o Réu entendeu que, por uma questão de preservar as boas relações de vizinhança, tal situação não deveria ser mantida, razão pela qual, entretanto, já retirou o referido portão.
xxviii) A calha por onde o portão corria continua fixada no solo, à entrada da fração C.
ixxx) O acesso à fração do Autor é feito através de escadas, não existindo no local rampas, nem tampouco elevador.
Nos termos do preceituado no n.º 1 do art. 1422.º (“Limitações ao exercício dos direitos”), os “condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis. (…)».
E o n.º 1 do art. 1425.º (“Inovações”) do CC prescreve que, “sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio”.
Acrescenta o n.º 7 do mesmo artigo que, “nas partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns”.
Embora não de forma unânime, a doutrina e a jurisprudência maioritárias defendem que o art. 1425.º do CC se reporta exclusivamente a obras inovadoras realizadas nas partes comuns, e não também nas fracções autónomas, e que o art. 1422.º do CC se reporta exclusivamente a obras realizadas em fracções autónomas (39).
O regime das fracções autónomas é disciplinado pelas regras da propriedade sobre imóveis, ao passo que as partes comuns se encontram subordinadas ao regime estabelecido para a compropriedade, conforme resulta do preceituado, respetivamente, nos art.ºs 1405º e 1406º do CC. Nos termos deste último preceito, na «falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».
Resulta da disposição legal em análise que ao condómino é consentido o uso da coisa comum, mas não a sua ocupação, ainda que parcial, na medida em que dela sempre resultaria a privação do uso por banda dos demais comproprietários.
No caso versado nos autos constata-se que os recorrentes alicerçaram as suas pretensões no facto de os recorridos terem praticado atos atentatórios do direito de comunhão dos condóminos, na medida em que vedaram e se terão apoderado de um espaço que não lhes pertence, mais concretamente do logradouro que existe na parte frontal da sua garagem, e de terem alterado o acesso à fração dos autores.
Ora, conforme foi já explicitado, mostra-se efetivamente provado que a realidade física do prédio foi objeto de alteração pelo anterior proprietário das frações C e D, porquanto o mesmo alterou o acesso à fração C, que anteriormente se processava através do dito logradouro, tendo para o efeito vedado a abertura que existia no muro que separa as duas frações e, na mesma altura, criou um novo acesso à fração C, que passou a ser feito através de um portão de cerca de um metro de largura que se encontra ao fundo das escadas.
No tocante ao facto dos acessos à fração “C”, tal como existem, terem sido alterados em relação à construção inicial, não estando de acordo com o projeto original, essa circunstância, no que respeita à eventual violação de qualquer norma do Regulamento Geral das Edificações Urbanas ou de outro diploma sobre construções, extravasa o âmbito dos presentes autos (carecendo a mesma de ser reconhecida junto da entidade administrativa competente), pelo que nos abstemos de quaisquer considerações suplementares.
Relativamente à questão de saber se tais obras/intervenções traduzem uma violação do disposto no n.º 1 do art. 1419º do CC – por o título constitutivo da propriedade horizontal não ter sido modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, e de não ter havido acordo de todos os condóminos –, registamos o facto de, no que respeita à fração C, o referido instrumento não ser elucidativo quanto ao modo como que se processava o acesso à referida fração. Na verdade, o mesmo é completamente omisso sobre essa questão, nada referindo quanto à saída se processar para uma parte comum do prédio (como seja, o logradouro mencionado nos autos) ou para a via pública.
Pelo exposto, não poderá concluir-se que a realização das apontadas alterações físicas do prédio traduzam uma alteração ilegal do título constitutivo da propriedade horizontal.
Quanto ao mais, resta-nos reforçar o facto de – contrariamente ao alegado pelos AA./recorrentes – os RR./recorridos serem completamente alheios a tais modificações físicas introduzidas nos acessos às duas frações, visto que as mesmas foram realizadas pelo anterior condómino titular das duas fracções em causa, antes mesmo de os RR. terem adquirido a fração D em 14/02/2014. Diversamente do propugnado pelo recorrentes, não se mostra provado que os recorridos tenham praticado qualquer ato violador do regime da propriedade horizontal, seja o direito de compropriedade que subjaz às partes comuns, seja o de propriedade plena de que os recorrentes são titulares sobre a sua fração autónoma.
Acresce que os AA/recorrentes adquiriram a sua fração já com os acessos agora existentes, sendo certo que esse facto não foi impeditivo da sua aquisição.
Tão pouco invocam qualquer circunstância superveniente que seja impeditiva do gozo e fruição quer das partes comuns, quer da sua fração autónoma.
Mesmo a questão da calha do portão existia já à data em que adquiriam o seu prédio.
Nesse ponto, aliás, a sentença recorrida só não condenou os recorridos a retirar a referida calha uma vez que os recorrentes omitiram a formulação desse pedido, sob pena violação do estatuído no art. 608º, n.º 2 do CPC e de nulidade da sentença com fundamento no art. 615º, n.º 1, al. d) do CPC.
Resta-nos, por isso, secundar a sentença recorrida quando nela se explicita que “tendo os autores adquirido a fração, como confessam, com os acessos que a mesma apresenta, virem agora pretender que o réu, que nem sequer teve intervenção na aquisição da fração dos autores, seja condenado a repor uma situação que já não existia quando os autores compraram a fração e que não lograram provar ter sido este a alterar, constitui mesmo abuso de direito, face ao disposto no art. 334º do Código Civil, por a sua atuação exceder os limites impostos pela boa fé”.
Improcede, assim, nesta parte o recurso de apelação interposto pelos Autores, devendo confirmar-se (quanto à ação) a sentença recorrida.
*
3. Das custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito, acrescentando o n.º 2 que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Como a apelação foi julgada parcialmente procedente, quer os recorrentes, quer os recorridos ficaram parcialmente vencidas no recurso, pelo que devem os mesmos ser responsabilizados pelo pagamento das custas do recurso na proporção do respetivo decaimento, o que no caso equivale a ½ a cargo de cada um deles.
Por sua vez, as custas da reconvenção (40), mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos RR./reconvindos, atento o seu integral decaimento.
*
Síntese conclusiva:
I - A sentença, como decisão judicial que é, não pode ser objeto de um juízo de inconstitucionalidade.
II - O juízo de inconstitucionalidade abrange somente as normas jurídicas, embora também na dimensão e interpretação que lhes foram dadas
III - A generalidade da jurisprudência entende que os logradouros são presumidamente comuns (integrando-se no art. 1421º, n.º 2, al. a) do Cód. Civil); outros há, contudo, que defendem que os logradouros são imperativamente comuns (cabendo no art. 1421º, n.º 1, al. a) do CC).
IV - Na primeira hipótese, a referida presunção de comunhão pode ser ilidida por qualquer via e não somente com base no título constitutivo.
V - Não especificando o título constitutivo que o logradouro integrava qualquer fração ou que pertence em exclusivo a qualquer dos condóminos, nem tão pouco constando a sua afetação ao uso exclusivo do condómino titular daquela fração e não existindo, por referência à data da constituição da propriedade horizontal, sinais de qualquer destinação objetiva ou afetação material do espaço a determinada fração autónoma, não se verifica impedimento ao funcionamento da presunção de comunhão do n.º 2 do art. 1421º do CC quanto a tal espaço do prédio.
*
VI. Decisão
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida quanto ao decidido sobre a ação e revoga-se o decidido quanto à reconvenção, substituindo-se o aí decidido pela absolvição dos AA./reconvindos dos pedidos reconvencionais.
Custas da reconvenção a cargo dos RR./reconvintes e da apelação a cargo do Autores e da Réus, na proporção de ½ a cargo de cada um deles.
*
Guimarães, 13 de janeiro de 2022
Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)
1. Cfr. Manuel Afonso Vaz, Ana Teresa Ribeiro, Inês Folhadela, Raquel Carvalho e Catarina Santos Botelho, Direito Constitucional / O sistema constitucional português, 2ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, 2015, p. 171.
2. Cfr. Manuel Afonso Vaz, Ana Teresa Ribeiro, Inês Folhadela, Raquel Carvalho e Catarina Santos Botelho, obra citada, p. 174
3. Cfr. Jorge Miranda, O Regime de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade em Portugal, in https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/1119-2440.pdf.
4. Cfr. v. g., os Acórdãos n.º 388/87, no DR - 2 série-, de 15 de Dezembro de 1987; n.º 28/88, no DR, 2 série, de 7 de Maio de 1988; n.º 70/88, no DR, 2 série, de 22 de Agosto de 1988; n.º 123/88, do DR, 2 série, de 5 de Setembro de 1988, e n.º 199/88, no DR, 2 série, de 28 de Março de 1989. Como sublinhado, por exemplo, no acórdão n.º 151/2012 do Tribunal Constitucional (relator Joaquim de Sousa Ribeiro), in www.dgsi.pt. no seguimento de jurisprudência antiga e constante do mesmo Tribunal: “No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador — não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais”.
5. Cfr. Ac. da RL de 11/12/1990 (relator Coutinho de Azevedo), in www.dgsi.pt.
6. Cfr. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967, p. 273.
7. Cfr. Mota Pinto, Direitos Reais (Segundo as prelecções do Prof. Mota Pinto ao 4º Ano Jurídico de 1970-71, coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga), Almedina, p. 270.
8. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 396/397 e M. Henrique Mesquita, obra citada, p. 295.
9. Cfr., Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 397.
10. Cfr. M. Henrique Mesquita, obra citada, p. 280.
11. Cfr., Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 419
12. Cfr., Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2ª ed., Almedina, p. 30.
13. Cfr., para análise das diversas posições, o Ac. da Relação de Lisboa de 18/01/2001, Col. Jur., Ano XXVI, 2001, T. I, pp. 87/91.
14. Cfr., Propriedade Horizontal, Almedina, p. 31.
15. Cfr., Lições de Direitos Reais, Quid Juris, pp. 311/312.
16. Cfr., obra citada, anotação ao art. 1421º, p. 420, (nota 5).
17. Cfr., No mesmo sentido, Aragão Seia refere que o “solo, sendo a superfície natural da crusta terrestre, a chamada litosfera, é a parte do terreno estável e suficientemente firme, por natureza ou por consolidação artificial, para suportar com segurança as cargas que lhe são transmitidas pelos alicerces, deve ser entendido como o terreno onde se encontra implantada a construção e qualquer logradouro que lhe sirva de apoio” (cfr. Propriedade Horizontal, Almedina, p. 67).
18. Contudo, por referência ao regime previsto na al. e) do n.º 2 do art. 1421º, consideram os citados autores que se, por exemplo, determinado logradouro só tem acesso através de uma das frações autónoma do rés-do-chão, deve entender-se que pertence a esta fração (cfr. obra citada, anotação ao art. 1421º, p. 420, (nota 11)].
19. Cfr., obra citada, p. 30.
20. Cfr., Propriedade Horizontal, p. 158.
21. Cfr. CJ, 1989, T. III, p. 204.
22. Cfr., com relevo, veja-se também o Acórdão desta Relação de 17/12/2019 (relatora Anizabel Sousa Pereira) e o Ac. da RL de 15/12/2009 (relatora Maria José Simões), in www.dgsi.pt., considerando este último que os logradouros podem constituir partes da exclusiva propriedade dos respetivos condóminos.
23. Na exposição seguinte acompanhamos de parte, com as devidas adaptações, a fundamentação do Ac. do STJ de 8/02/2000 (relator Garcia Marques), CJSTJ, Ano VIII, T. I/2000, pp. 67/72, se bem que nesse aresto o que se discutia era a qualificação do “sótão” (ou “vão do telhado”) em face da previsão do art. 1421º do CC.
24. Remete-se, para o efeito, para a posição supra explicitada defendida por Luís Carvalho Fernandes.
25. Segundo Rui Pinto Duarte, a presunção pode ser ilidida quando existem elementos no sentido de que a parte é integrante de certa fração autónoma (cfr. Curso de Direitos Reais, Parede, Principia, 2013, 3.ª ed., pp. 115-116).
26. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 419.
27. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela entendem não ser necessário que essa afetação conste do título constitutivo, bastando que se verifique uma destinação objetiva (cfr. obra citada, p. 423); no mesmo sentido, Ac. do STJ de 8/02/2000, CJSTJ, Ano VIII, T. I/2000, pp. 67/72 e Ac. da RG de 19/11/2020 (relatora Maria João Matos), in www.dgsi.pt. Densificando o conceito de “destinação objetiva” refere Sandra Passarinha ser a coisa que, pela sua estrutura objetiva, pela sua situação ou por alguma outra circunstância juridicamente relevante, se encontra destinada à fração autónoma (v.g. um jardim a que só se possa aceder pela sala de rés-do chão). Estas coisas que, não estando especificadas no título constitutivo, deveriam ser consideradas comuns, nos termos da presunção do n.º 2 do art. 1421º, não poderão, todavia, deixar de ser consideradas como partes próprias. A destinação objetiva da coisa funciona com um elemento limitador do domínio (cfr. obra citada, pp. 45/46).
28. Cfr. CJSTJ, Ano VIII, T. I/2000, pp. 67/72.
29. Cfr. documento de fls. 10.
30. Cfr. Ac. da RP de 07/11/1995 (relator Araújo Barros), www.dgsi.pt.
31. Cfr. Ac. da RE de 5/02/2004 (relator Bernardo Domingos), in www.dgsi.pt.
32. Cfr. documento de fls. 44 vº.
33. Cfr. documento de fls. 46 vº a 49 vº.
34. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pp. 410, 422 e 423, e Ana Taveira Fonseca, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, p. 442.
35. Cfr. Ac. do STJ de 19/05/2009 (relator Salazar Casanova), in www.dgsi.pt.
36. As partes que se presumem comuns podem constituir frações autónomas ou integrar uma delas, pelo que a propriedade individual destas partes do prédio pode ser adquirida por usucapião, ao contrário do que sucede com as partes imperativa ou necessariamente comuns (cfr. Ana Taveira Fonseca, obra citada, p. 442); no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 19/12/2018 (relatora Catarina Serra), in www.dgsi.pt. [onde se lê que a presunção contida no n.º 2 do art. 1421.º do CC “pode ser ilidida demonstrando algum condómino que determinadas partes presumivelmente comuns do edifício foram por ele adquiridas pela prática de actos possessórios”].
37. É de assinalar a natureza conclusiva das menções contidas nos pontos 28 e 29 dos factos provados (quando neles se refere a “logradouro da fração D”), visto comportarem em si a solução da questão de direito em discussão nos autos (qual seja, a de saber se o logradouro faz, ou não, parte integrante da fração autónoma D), pelo que carecem aquelas da respetiva retificação.
38. É manifestamente conclusivo o restante segmento da ponto 38 dos factos provados (“até porque, não se verificava qualquer necessidade de onerar a fração D com uma servidão de passagem, o que nunca foi feito”), pelo que se tem o mesmo como não escrito.
39. Cfr. Neste sentido, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pp. 433/434; Aragão Seia, obra citada, pp. 131/133; Rui Pinto Duarte, obra citada, p. 127; na jurisprudência, Ac. do STJ de 22.02.2017, CJSTJ, Ano XXV, Tomo I, p. 83 e segs; Ac. da RC, de 26.04.2006, CJ, Ano XXXI, Tomo II, p. 29 e segs., Ac. da RL de 15/12/2009 (relatora Maria José Simões) e Ac. da RG de 19/11/2020 (relatora Maria João Matos), estes disponíveis in www.dgsi.pt.
40. No tocante à ação propriamente dita, inexiste qualquer alteração, visto nessa parte a apelação ter sido julgada improcedente.