PRESTAÇÃO DE CONTAS
DIVÓRCIO
USO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Sumário


1. O uso exclusivo, por um dos ex-cônjuges, do imóvel que fora casa de morada de família, sem que tenha sido determinado o valor do seu uso, não gera receitas, pelo que o usuário não está obrigado a prestar contas nos termos do artigo 941 do CPC.

Texto Integral


Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães (1)

F. M. interpôs a presente ação de prestação de contas pedindo que a requerida seja condenada a prestar contas de todos os atos que praticou como administradora dos bens comuns do seu dissolvido casal com o autor, desde a data de 02.06.2015 e ainda ser condenada no pagamento ao autor do saldo a seu favor, que vier a ser apurado.

Alegou, para tanto, que por sentença de 4/3/16 foi decretado o divórcio de requerente e requerida, tendo sido fixada em 2/6/2015 a data da separação de facto. Na sequência desse divórcio foi instaurado no Cartório Notarial de … o competente processo de inventário, exercendo a requerida a função de cabeça de casal. Acontece que a ré não presta contas da sua administração, sendo certo que desde a separação de facto que usa em proveito exclusivo a casa de habitação sita na freguesia de ..., assim como todo o seu recheio. Do mesmo modo, usou em seu único proveito a casa de habitação sita em França, até ao momento da sua venda. Conclui, defendendo que nas contas a prestar pela requerida deve ser incluído como receita o valor locativo dos referidos dois prédios. Além disso, a requerida tem gerido as contas bancárias do casal sem dar qualquer informação ao requerente. Por fim, alega que depois da separação de facto, pagou impostos, taxas e seguros relativos ao património comum, cujo valor terá de ser suportado por ambos.

A requerida contestou, defendendo a incompetência do tribunal em razão da matéria, invocando a exceção dilatória inominada de intempestividade do uso do direito da ação (por não ter sido designada ainda a conferência preparatória nos autos de inventário). A requerida impugna também os factos alegados, negando a existência de rendas quanto à casa sita em Portugal, que é sua propriedade, e quanto à casa de morada de família, sita em França; quanto a esta, defende que não foi fixado qualquer valor pela fruição da mesma pela requerida, sendo certo que era uma faculdade que assistia ao requerente, assim como pedir a casa para sua habitação, o que não fez, pois era nessa casa que a requerida vivia com os filhos, um deles ainda menor; além disso, alega que foi sempre o requerente que recebeu todo o dinheiro pago pelos ocupantes da parte da casa de França que estava ilegal, mesmo depois de ter abandonado o lar. Quanto às contas bancárias, alega que o requerente tirou todo o dinheiro das contas do Banco …, tendo as mesmas sido encerradas, o mesmo se passando com a conta do Banque ….

O requerente respondeu, pugnando pela improcedência das exceções invocadas pela requerida. Quanto ao mais, esclareceu que com a presente ação pretende que a requerida preste contas dos movimentos das contas ou depósitos ocorridos desde a data da separação de facto, assim como do destino das quantias movimentadas e dos eventuais rendimentos provenientes desses depósitos.

Foi proferido despacho que decidiu nos seguintes termos:
“a) Julgar improcedente o pedido de prestação de contas quanto ao uso, pela requerida, da casa de morada de família sita em França e da casa propriedade da requerida sita em Portugal, na freguesia de ...;
b) Suspender a instância quanto ao pedido de prestação de contas dos movimentos e rendimentos das contas bancárias do ex-casal desde a data da separação, até que seja proferida decisão sobre a reclamação à relação de bens no processo de inventário de que estes autos são apenso.
As custas serão fixadas a final. Notifique.” 2

Inconformado com o decidido, o autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente recurso da, aliás, mui douta decisão que julgou improcedente o pedido de prestação de contas na parte referente ao uso, pela Recorrida, da casa de morada de família sita em França e que constituiu bem comum do casal, pelo que o presente recurso limitar-se-á a essa parte da douta sentença e versará sobre a matéria de direito e a sua respectiva apreciação.
2. Na petição inicial o Recorrente alegou que a Recorrida deteve e usou, em exclusivo e em proveito próprio, a casa de habitação situada em França e o seu respetivo recheio, no período entre a data da separação de facto do casal e a venda do imóvel; mais alegou que a Recorrida, durante vários anos, obstruiu a venda da referida casa, o que lhe permitiu o uso exclusivo e gratuito da mesma, ao mesmo tempo que o Recorrente se viu impossibilitado de haver para si o produto da venda para refazer a sua vida; pugnando o Recorrente que o valor locativo ou de utilização da casa e respetivo recheio deveria ser incluído e considerado como receita na prestação de contas e feita a correspondente compensação.
3. As considerações tecidas pela Meritíssima Juiz a quo quanto ao motivo pelo qual a Recorrida ficou a morar na casa após a separação não passam, salvo o devido respeito, de meras conjeturas tendenciosas que, poderiam ser sempre esclarecidas, caso os presentes autos prosseguissem para a fase da produção de prova, como era expectável.
4. Quando o casal se separou, o Recorrente saiu de casa, tendo a Recorrida e os filhos ficado ali a residir, não tendo, nessa altura, existido qualquer possibilidade de acordo ou de decisão sobre o destino da casa de morada de família do extinto casal, tendo, posteriormente, sido concertado entre ambos que a casa seria vendida o mais rápido possível e o produto da venda seria dividido por ambos em partes iguais.
5. Foi nesse pressuposto que o Recorrente foi condescendendo na permanência da Recorrida na casa, o que não significa que o Recorrente tenha prescindido de qualquer contrapartida pela utilização deste bem, que é comum aos dois.
6.A obstaculização pela Recorrida, à venda do imóvel, prolongando, deforma oportunista, a sua estadia no mesmo, privou o Recorrente do respetivo preço da venda e obrigou-o a recorrer a outras poupanças para poder fazer face às despesas da renda e de instalação de uma outra casa para morar.
7. A ocupação pela Recorrida da totalidade da casa do casal sem qualquer custo associado, levou ao seu enriquecimento, injusto, à custa do património do ex-cônjuge, exigindo esse enriquecimento que se proceda à compensação pecuniária do Recorrente, de modo a que se obtenha uma igualação do valor dos acréscimos patrimoniais que a Recorrida teve enquanto ocupou a casa comum do casal.
8. Essa compensação terá de ser considerada como receita no processo de prestação de contas, por referência ao valor locativo do imóvel e que terá de ser considerado na proporção de metade para o Recorrente.
9. Por outro lado, o silêncio do Recorrente, à data da separação de facto e posteriormente do divórcio, relativamente à contrapartida pela utilização da casa de morada de família, não traduz a aceitação de que a Recorrida permaneça na casa enquanto lhe aprouver, sem pagar a correspondente compensação, nem que o Recorrente tenha prescindido de ser compensado por essa utilização.
10.Isto porque, não havendo, como não há lei, uso ou convenção que, no caso concreto, atribua ao silêncio do Recorrente esse valor, não significa que tenha existido alguma declaração negocial quanto ao não pagamento da contrapartida pelo uso da casa.
11.Pelo que, salvo melhor opinião, será de aplicar o regime geral de que, por ser um bem comum, o Recorrente tem direito a ser compensado pelo benefício que a Recorrida retirou da casa de morada de família, não podendo deixar de estar obrigada a prestar contas da administração que faz do bem.
12.Neste sentido, o Tribunal da Relação de Guimarães, no seu acórdão de 12.01.2017 – Proc. 3146/13.1TBGMR-A.G1, disponível em www.dgsi.pt .
13.Seguindo de perto esse Acórdão, com cujo sentido de decisão se concorda integralmente, não está vedado ao Recorrente o direito de ser compensado pelo benefício que a Recorrida retirou pelo uso exclusivo do bem comum do casal, correspondente à casa de morada de família em França, sendo o processo de prestação de contas o processo idóneo para que o Recorrente possa obter essa compensação.
14.Ao decidir como decidiu o Tribunal Recorrido violou o estabelecido nos artigos 218º do Código Civil a contrário, e o artigo 941º do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito deve a douta decisão ser revogada na parte respeitante à casa de morada de família sita em França, e, consequentemente, determinar-se que a Recorrida deve prestar ao Recorrente, contas quanto ao uso dessa casa, assim e fazendo inteira JUSTIÇA.”

Das conclusões do recurso ressalta a questão de saber se impende sobre a ré o dever de prestar contas pelo uso exclusivo da casa de morada de família após a separação de facto e consequente divórcio.

Damos como assente a matéria de facto acima relatada.

O autor, em processo de prestação de contas, pede que a ré seja condenada a prestar contas do uso exclusivo do imóvel, que foi casa de morada de família, depois da separação de facto que terminou em divórcio, considerando o uso, em si, como uma receita.

A ré discorda, alegando que não se verificam os pressupostos do objeto da ação de prestação de contas, porque não foi determinado, por acordo, ou decisão judicial, o valor do uso do imóvel, pelo que não tem receitas a apresentar.

O tribunal apoiando-se no acórdão proferido a 28/03/2017 no Tribunal da Relação de Coimbra, julgou improcedente a existência de receitas, porquanto não houve acordo sobre o montante do uso do imóvel, e este, em si, não gera receitas.

Por sua vez o autor/apelante, para justificar a sua posição, cita o acórdão proferido a 12/01/2017 no TRG, que defendo o oposto.

Esta questão é controversa na jurisprudência das Relações e STJ, plasmada no acórdão proferido a 18/01/2018 no TRG, publicado em www.dgsi.pt , que faz uma resenha cronológica de vários acórdãos que versaram o tema, do qual sobressaem duas correntes, em que uma defende que o uso do imóvel, casa de morada de família, exclusivamente por um dos ex-cônjuges, gera receitas (traduzidas nas vantagens do uso, que fundamentam a prestação de contas) e a outra tem posição contrária, uma vez que não havendo acordo sobre o valor do uso, não há receitas a prestar como o exige o artigo 941 do CPC.

O uso do processo especial de prestação de contas tem como fundamento o dever de prestação de contas por quem administra bens que são exclusivamente alheios, ou não são exclusivamente próprios, quando geram receitas e despesas com vista a determinar-se o saldo a prestar.

E julgamos que a posição jurisprudencial que advoga que o uso em si, sem acordo sobre o seu valor, não gera receitas, pelo que o usuário e administrador do imóvel não tem que prestar contas, uma vez que não há receitas.

Isto não significa que o ex-cônjuge não tenha direito a ser compensado pelo facto de o bem ser comum, e estar a ser usufruído apenas pelo outro, mas terá de ser noutra ação.

Assim é de confirmar a decisão recorrida.

Concluindo: 1. O uso exclusivo, por um dos ex-cônjuges, do imóvel que fora casa de morada de família, sem que tenha sido determinado o valor do seu uso, não gera receitas, pelo que o usuário não está obrigado a prestar contas nos termos do artigo 941 do CPC.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Guimarães,


1 - Apelação 880.21.6T8VCT.A.G1– 2ª
Prestação Contas
Tribunal Judicial Comarca Viana Castelo – Ponte de Lima
Relator Des. Espinheira Baltar
Adjuntos Des. Eva Almeida e Luísa Ramos