APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS
PODERES DO JUIZ
PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DO DISPOSITIVO
INEFICÁCIA DA VENDA
TERCEIROS PARA EFEITOS DE REGISTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - Na sentença devem enunciar-se os factos provados e não provados.
II - O tribunal não está adstrito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo declarar a ineficácia da compra e venda de um bem alheio em relação ao Autor-proprietário ainda que este peça a nulidade desse negócio.
III - Não viola os princípios do contraditório ou do dispositivo essa nova veste jurídica quando estão em causa os mesmos factos que foram alegados pelas partes e a defesa apresentada em relação à nulidade do negócio mantém validade em relação à ineficácia do negócio.
IV - O proprietário do bem pode intentar uma ação em que pede a declaração da ineficácia da compra e venda desse bem por terceiro não proprietário.
V - A circunstância de a ineficácia do negócio impedir a aplicação do disposto no artigo 291.º, do C. C. também não implica a violação da possibilidade de plena defesa pelo comprador da sua posição que somente vê a invocação da qualidade de terceiro de boa-fé não ter relevo jurídico em relação ao proprietário.

Texto Integral

Proc.º 2989/14.3TBVFR.P1

Sumário.
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1). B..., residente na Rua …, n.º ., . …, Santa Maria da Feira, propôs contra
C..., residente na Av. …, n.º .., …, Vila Nova de Gaia,
D..., residente na Rua …, n.º …, …
E..., com domicílio profissional na Av. …, n.º …, sala .., Matosinhos,
Ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que:
- se declarem impugnados os factos exarados em escritura de compra e venda de 17/05/2013, nomeadamente: «declaram os primeiros outorgantes: que pela presente escritura, pelo preço de trinta e um mil novecentos e cinquenta euros, já recebido, vendem à segunda outorgante, livre de quaisquer ónus ou encargos, o imóvel a seguir identificado.»;
- se declare nula e de nenhum efeito a dita escritura de compra e venda;
- se declare que não assiste à 2.ª Ré o direito invocado na mesma escritura;
- se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base em tal escritura.
O sustento de tais pedidos consiste na venda do referido bem em que, sendo a verdadeira e legítima proprietária do imóvel, não deu o seu assentimento nem emitiu qualquer declaração de vontade para a sua venda, tendo alguém usurpado a sua identidade no ato da escritura de compra e venda.
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Todos os Réus contestaram, negando a procedência da ação, sendo que o 3.º invocou ainda sua ilegitimidade.
Em sede de despacho saneador, foram os 2ºs. e 3ºs. Réus julgados partes ilegítimas e absolvidos da instância.
Fixou-se como objeto do litígio quem do lado do vendedor celebrou a escritura de compra e venda a que se reportam os articulados e como temas de prova:
«1 – Foi a A. ou uma terceira pessoa fazendo-se passar pela A. que celebrou o contrato de compra e venda relativamente à fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra ., no … …, com varandas, uma garagem e um arrumo, ambos assinalados pela letra “C” na …, inscrita na matriz sob o artigo …..-C, que integra o prédio em regime de propriedade horizontal sito em …, freguesia de …, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº …., nos termos da escritura pública junto como doc. nº 8 junto com a petição inicial.
2 – Preliminares do negócio;
3 – Pagamentos efetuados
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Foi proferida sentença onde se decidiu julgar a ação procedente por provada e, em consequência:
«Declarar em relação à A. a ineficácia da escritura de compra e venda do imóvel (fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra C, no … …., com varandas, uma garagem e um arrumo, ambos assinalados pela letra “C” na cave, inscrita na matriz sob o artigo …..-C, que integra o prédio em regime de propriedade horizontal sito em …, freguesia de …, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº ….) em relação à A., escritura essa realizada em 17/5/13, lavrada a Fls. 68 a Fls. 69 do livro duzentos e setenta-A, do Cartório Notarial de Matosinhos a cargo do Lic. E….
- Determinar o cancelamento de todas as inscrições e registos relativas àquele imóvel e que sejam posteriores à inscrição a favor da autora, operados com base na escritura de compra e venda realizada em 17/5/13, lavrada a Fls. 68 a Fls. 69 do livro duzentos e setenta-A, do Cartório Notarial de Matosinhos a cargo do Lic. E…, nomeadamente a Ap. …. de 2013/05/17.».
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Inconformada, recorre a Ré D..., formulando as seguintes conclusões:
«1. O Tribunal a quo violou o disposto no art. 607º, nº4, por se ausentar da indicação e fundamentação da matéria de fato não provada.
2. Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjetivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável, pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considera dos incorretamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.
3. Por ser verdade, encontra-se a Apelante impossibilitada de recorrer da matéria de fato, sob os depoimentos das testemunhas F..., pai da Ré, G... e correlação da demais prova testemunhal, por ausência de indicação e fundamentação dos fatos não provados pelo tribunal a quo.
4. A deficiente e obscura alusão aos factos não provados, compromete o direito da R. ao recurso da matéria de facto e, nessa perspetiva, contende com o acesso à Justiça e à tutela efetiva, consagrada como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República.
5. A douta sentença padece de nulidade nos termos do art.° 615°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, no que concerne à falta de especificação e fundamentação dos fatos não provados.
7. A Autora, na qualidade de proprietária de imóvel dos autos, invoca perante o Tribunal a quo, nulidade do negócio jurídico celebrado entre a seu marido, (de quem estava separada de pessoas e bens à data do negócio), e a R..
8. A causa de pedir consubstancia fatos atinentes à sua titularidade como proprietária do imóvel, modo de realização do negócio, e outorgantes.
9. O pedido da Autora diz unicamente respeito à declaração de nulidade do negócio e por essa via ao cancelamento dos registo predial a favor da R.
10. A douta sentença reconhece que a Autora não poderá, por falta de legitimidade reconhecida legalmente, arguir a nulidade do negócio, por se considerar aquele, quanto a esta, ineficaz por força do art.º 291.º do Código Civil, visto que esse direito apenas é conhecido aos contraentes do negócio jurídico,
11.Porém, afirma o Tribunal a quo, não sendo o negócio válido nem eficaz quanto à autora, o seu direito de propriedade subsiste e tem de ser declarado.
12. Dispõe a douta sentença, não obstante o peticionado pela A., o tribunal não está limitado à qualificação jurídica das partes, declarando o negócio ineficaz quanto à Autora e por via dessa ineficácia decreta cancelados todos os registos posteriores ao registo do imóvel a favor da autora.
13. Como consequência da disponibilidade das partes sobre o objeto do processo, o âmbito da sentença comporta dois limites, um limite mínimo segundo o qual ao juiz compete resolver todas as questões submetidas pelas partes à sua apreciação, com exceção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e um limite máximo ao conhecimento do juiz, decorrente da proibição de apreciação de questões que as partes não tenham suscitado.
14. O desrespeito por este limite máximo, constitui igualmente causa de nulidade da sentença por excesso de pronúncia ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado.
15. A liberdade de as partes colocarem termo ao processo, à atividade jurisdicional, podendo dispor livremente, tanto da res in iudicium deducta, determinando o conteúdo da sentença de mérito, através de confissão, desistência do pedido ou transação (arts. 283º, nº 1, 284º, 285º, nº1, 286º, nº 2 e 289º, nºs 1 e 2 como da continuação do processo, podendo pôr-lhe termo através da desistência da instância (arts. 283º, nº 2, 285º, nº 2 e 286º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
16. Ao decidir sobre a ineficácia do negócio, e por essa via ordenar o cancelamento dos registos do imóvel, a favor da Ré., a douta sentença desvirtua integralmente os fatos e o pedido carreados ao pleito pelas partes, porquanto a Autora não alega nem peticiona a ineficácia do negócio e sim pela nulidade, não lhe admitindo a lei, legitimidade para o efeito.
17. Autora não carece de ver reconhecida o seu direito de propriedade, porquanto o bem encontra-se na sua esfera jurídica, o reconhecimento de tal existência não terá como consequência dessa declaração o cancelamento dos registos predais a favor da Ré., pois se esse fosse o entendimento do legislador, teria em sede do art.º 291.º do Código Civil, permitido à proprietária do imóvel, por meio da ineficácia do negócio a si referente, o cancelamento dos registos predial.
18. A A. pode reivindicar a coisa, diretamente, do poder do comprador.
19. Nem se concebe que o tribunal o faça, pois seria subverter todos os mecanismos legais à disposição do proprietário, em sede de negócio nulo de venda de imóvel, designadamente a reivindicação da propriedade, sobre a qual, esgrimiria a R., argumentos diversos dos vertidos no presente pleito.
20. A douta sentença, viola o preceituado do n.º 1 do art.º 3, e 5.º do Código de processo civil ferindo-a de nulidade por efeito de condenação em objeto diverso do pedido, pelo que deverá nos termos do disposto na al e), do n.º 1 do art.º 615.º do Código de Processo Civil, ser declarada nula, substituindo-se a decisão por outra que absolva a R. do pedido.
21. Com efeito, o Tribunal a quo não podia – sem antes dar a oportunidade às partes de exercerem o contraditório – fazer um enquadramento legal dos factos completamente distinto dos temas jurídicos que estiveram em discussão nos autos.
22. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não respeitou em toda a linha o princípio do dispositivo. De igual modo não foi observada a estrutura dialética do processo, pelo que a decisão proferida redundou numa decisão-surpresa.
23. O Tribunal a quo violou o disposto no art.º 3.º, n.1 e art.º 5.º, do Código de Processo Civil, ao decidir pela declaração de ineficácia do negócio quanto à A., e cancelamento de registos prediais a favor da R. , decidiu em objeto diverso do pedido e causa de pedir, ferindo a decisão de nulidade nos termos dispostos no art.º 615º n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.
24. Assim, também por esta razão, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que absolva a ré dos pedidos.
25. A entender-se a pronuncia sobre a ineficácia do negócio relativamente à A., como sendo do conhecimento oficioso, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito.
26. Nesse mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.04.2018, disponível em www.dgs.pt,
27. A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição.
28. Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
29. A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º do Código de Processo Civil.
30. A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso.
31. Neste termos, e no presente recurso invoca a R., violação do princípio do contraditório, nos termos do art.º 3. n-º 3, e art.º 5.º do Código de Processo Civil, mediante a prolação da presente decisão-surpresa, que constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, do Código de Processo Civil, por efeito da ausência concedida às partes da possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz -ineficácia - em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito.
32. Do exposto decorre que o Tribunal a quo conheceu de uma questão de direito inovatória, sem que para tanto fosse concedida às partes nos termos do art.º 3, n.º 3 do Código de Processo Civil, a possibilidade de antes de ser proferida decisão, se pronunciarem sobre questões de direito suscitadas oficiosamente em termos inovatórios, pelo que a douta sentença recorrida é nula , nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do nº 1 do art. 615º do Código de Processo Civil.
33. Assim, também por esta razão, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que absolva a Ré dos pedidos.».
Termina pedindo que se revogue a decisão recorrida, sendo substituída por uma outra que absolva a Apelante dos pedidos.
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A Autora/recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido e pediu, em conclusões que apresenta, neste segmente recursivo:
«44) No caso de eventual procedência do recurso interposto pela Ré, o que apenas se admite mera cautela e dever de patrocínio, requer-se desde já a ampliação do recurso, ao abrigo do disposto no n.º 1 e n.º 2 do artigo 636.º do CPC.
45) Efetivamente, como refere o Conselheiro Abrantes Geraldes “(…) a parte não tem legitimidade para recorrer, uma que (…) não é vencido. Apesar disso, tendo em vista a manutenção do resultado expresso através da decisão recorrida, pode não ser de todo indiferente para si o modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão, se acaso vierem a ser acolhidos pelo tribunal ad quem questões suscitadas pelo recorrente. Ora se porventura fosse vedado ao recorrido a possibilidade de promover a ampliação do objecto do recurso, poderia ver-se definitivamente prejudicado pela resposta que o tribunal ad quem viesse a dar às questões suscitadas pelo recorrente, num momento em que já não teria capacidade de reagir”.
46) Assim, pretende-se a ampliação do objeto do recurso, apenas no que concerne à matéria de direito, no sentido de considerar procedente o pedido de declaração da nulidade da escritura, com todos os efeitos legais daí decorrentes.
47) Com efeito, atento os factos dados como provados, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos efeitos legais, resulta que a Ré declarou comprar o imóvel melhor identificado nos autos a H…, sendo esta quem outorgou a escritura de compra e venda na qualidade de pretensa vendedora, fazendo-se passar pela proprietária do mesmo imóvel (ora Autora), tendo sido H… quem interveio no acto de escritura pública notarial no lugar da verdadeira proprietária (a Autora), sem que esta tivesse dado consentimento ou tivesse conhecimento do sucedido.
48) Nos termos do disposto no Artigo 639.º, n.º 2 do CPC considera-se que foi violado o disposto nos artigos 285.º, 286.º, 289.º e 290.º do Código Civil, entendendo a Autora que o Tribunal deveria ter proferido decisão no sentido de declarar nulo e de nenhum efeito a escritura melhor identificada nos autos, existindo erro na determinação da norma aplicável, pois deveria ter sido aplicado o regime da nulidade.
49) Visto que, no caso a escritura de compra e venda foi realizada por pessoa sem legitimidade, com usurpação de identidade, usando documento de identificação que não lhe pertence, a venda é nula.
50) A proprietária pode pedir a declaração da sua nulidade, nos termos do artigo 286.º do Código Civil), tendo a declaração de nulidade efeito retroativo nos termos do artigo 289.º, nº 1, do Código Civil.
51) Nestes termos, requer-se a título subsidiário, e caso seja considerado que o negócio não é ineficaz, se digne e de qualquer forma, considerar procedente o pedido de declaração da nulidade da escritura, com todos os efeitos legais daí decorrentes.».
Pede assim a improcedência do recurso e, caso assim não se entenda, sempre deverá ser admitida a ampliação do recurso e sempre ser considerado o negócio nulo com todos os efeitos.
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As questões a decidir são:
- nulidade de sentença por:
- falta de especificação e fundamentação dos factos não provados;
- violação do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e artigo 5.º, do C. P. C. (condenação da Ré, em objeto diverso do pedido e causa de pedir);
- violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3 e 5.º, do C. P. C. (princípio do dispositivo e contraditório).
- eventual alteração da análise jurídica (efeitos, em relação a proprietário, de venda de coisa alheia).
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
Foram julgados provados os seguintes factos:
- A A. foi casada, em primeiras núpcias de ambos, com o 1º R., C..., cfr. assento de casamento nº …../2014 da Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, no regime de comunhão de adquiridos.
- A A. decidiu separar-se do 1º R., devido ao facto deste ter contraído várias dívidas.
- O que veio a suceder em 4/10/2011 (cfr. Docs. 1 e 2 juntos com a petição inicial, para os quais se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- Posteriormente foi convertida a separação de pessoas e bens em divórcio, deixando o 1º R. de viver com a A. (cfr. Doc. 3 junto com a petição inicial, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).
- A partilha do património conjugal efectuou-se através do procedimento de partilha do património conjugal nº …./2011 na 1ª Conservatória do Registo Civil do Porto a 5/12/2011 ( cfr. Doc. 4 junto com a petição inicial, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).
- Entre os bens adjudicados à A. na partilha encontra-se a verba nº. 2, correspondente a uma fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “C”, no … …, com varandas, uma garagem e um arrumo, ambos designados pela letra “C” na cave, que faz parte do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em …, freguesia de …, concelho de Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. …. e inscrito na matriz sob o artigo 2061. (cfr. Doc. 4 referido).
- Imóvel esse que à data tinha o valor patrimonial e lhe foi atribuído para efeitos de partilha o valor de €53.537,32. (cfr. Doc. 4 referido).
- O bem imóvel encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o nº. … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2061. (cfr. Doc. 5 e 6 junto com a petição inicial, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).
- É a Autora que gere os seus bens, e no caso o imóvel supra identificado.
- Pagando os seus impostos e quotas condominiais.
- Em virtude do imóvel estar arrendado é a Autora quem recebe as rendas.
- Durante a semana de 06 a 12 de Maio de 2013, a Autora deu conta que lhe faltava o seu cartão de cidadão, pois o mesmo, já não se encontrava na sua carteira, como habitualmente.
- A Autora decidiu então dirigir-se à Conservatória do Registo Civil em 13 de Maio de 2013 onde relatou à funcionária que não sabia do seu cartão de cidadão, tendo requerido uma nova via do mesmo e procedido à anulação do cartão em falta. ( cfr. Doc. 7 junto com a petição inicial, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).
- Em 17 de Maio de 2013, no Cartório Notarial de Matosinhos a cargo do notário Lic. E..., sito na Av. …, nº. …, . , Sala .., Matosinhos, foi realizada a escritura de compra e venda do imóvel identificado acima. (cfr. Doc. 8 junto com a petição inicial, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).
- A Autora não deu o seu assentimento, e nunca em tempo algum emitiu qualquer declaração de vontade para a venda de qualquer bem constante do seu património, e no caso, o imóvel em questão.
- A autora não esteve sequer presente no acto notarial - escritura de compra e venda - e nunca interveio no mesmo, ao contrário do que aí aparece exarado.
- Veio a confirmar-se mais tarde, que o 1º Réu esteve presente no Cartório Notarial onde teve lugar o acto de compra e venda fazendo-se acompanhar de uma senhora, a qual se apresentou e se fez passar por sua mulher.
- A qual se arrogou como proprietária do bem imóvel objecto da escritura de compra e venda.
- Tendo esta última apresentado um título de identificação com os dados da autora - cartão de cidadão - que se presume ser falso, ou então ser o cartão de cidadão, que desapareceu da carteira da Autora, na semana de 06 a 12 de Maio de 2013.
- Usurpando a identidade da Autora.
- A data de validade do cartão de cidadão apresentado no dia da escritura, perante o Notário, não condiz com a data de validade do actual cartão de cidadão na posse da Autora, que é de 12 de Maio de 2018. (cfr. Doc. 9 junto com a petição inicial, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).
- Apesar de constar uma assinatura, manuscrita, na escritura de compra e venda, com o nome da Autora,
- A assinatura constante da escritura de compra e venda não foi aposta pelo punho da Autora, que a não reconhece como a sua verdadeira e própria assinatura.
- A Autora nunca assinou tal documento.
- Nem na qualidade de vendedora, nem a qualquer outro título o fez, ou sequer, pretendeu fazer.
- A Autora nunca esteve presente no acto notarial sub judice.
- A Autora não recebeu nem fez sua a quantia de €31.950,00 (trinta e um mil novecentos e cinquenta euros), proveniente da venda do imóvel, tal como aparece mencionado na escritura de compra e venda.
- A Autora não conhece a 2ª Ré que figura na escritura como compradora.
- A 2ª Ré não vive no concelho onde se situa o imóvel.
- A 2ª Ré nunca foi ver o imóvel antes da escritura de compra e venda.
- A 2ª Ré é totalmente desconhecedora do estado de conservação do imóvel.
- Como o imóvel se encontra arrendado, teria a R. que contactar a Autora para pedir permissão aos inquilinos para lá entrar.
- O que nunca sucedeu.
- Pelos factos relacionados com o furto, falsificação de assinatura, burla e usurpação de identidade a Autora já apresentou queixa-crime nos serviços do Ministério Público do Tribunal de Matosinhos, à qual foi atribuída o nº. de processo 3005/13.8TAMTS que corre termos na 2ª Secção, tendo H… sido condenada, por sentença transitada em julgado em 13/02/2017, na pena de 140 dias de multa, à razão diária de cinco euros, como autora de um crime de falsificação de documentos p. e p. pelos Arts. 255º, l. a) e 256º, nº 1, al. c) e 3, do C.Penal, conforme certidão junta a Fls. 251 e ss dos autos.
-. A R. D…, recebeu o aviso para proceder ao pagamento do IMI sobre o imóvel melhor id., (cfr. Doc. 1.1 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- A R. no exercício da sua profissão de Médica veterinária Municipal de … juntou algumas poupanças.
- Atenta a baixa rentabilidade dos depósitos bancários, associada à incerteza vivida nos últimos anos no sistema financeiro, incutiram na R.D… a vontade a de aplicar as suas poupanças na aquisição de um imóvel para arrendar.
- Estabeleceu contacto com pessoas ligadas ao imobiliário, no sentido de concretizar o seu projecto de investimento das suas poupanças.
- Em 2013 foi contactada por F..., directora da agência I…, Ldª, sita em Viana do Castelo propondo-lhe a realização de um negócio de venda de um apartamento.
- A R. D... deslocou-se às instalações da I..., Ldª, em Viana do castelo, onde foi recebida por F..., que lhe explicou os termos do negócio, dizendo-lhe que teria que se decidir rapidamente, uma vez que as pessoas interessadas na venda do imóvel tinham muita urgência na obtenção do dinheiro, que motivava a venda em condições muito atractivas.
- F... explicou à R. D... que a pessoa pretendia vender o apartamento de que era proprietária pelo valor correspondente ao financiamento de que precisava, comprometendo-se o comprador e novo proprietário a celebrar um contrato de arrendamento por cinco anos, ficando o inquilino/vendedor com direito de opção de compra do imóvel no decurso dos 5 anos mediante o pagamento do preço vendido.
- A mais valia para o comprador resultaria da renda mensal que o arrendatário iria pagar ao novo proprietário.
- A referida F... esclareceu a R. D... que quem estava a organizar o negócio, tratando de toda a documentação, era o Dr. J..., responsável pela K..., S.A.
- Perante a demonstração preliminar do interesse da R. D..., F... informou-a que lhe enviaria por correio electrónico o dossier sobre o negócio elaborado pela K..., S.A.
- A R. D... recebeu no dia 14/05/13, por correio electrónico, dados sobre o imóvel onde constava uma avaliação do imóvel bem como documentação referente ao mesmo (cfr. Doc. 2 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- No dia 16/05/13 a R. D... recebeu um email da K..., S.A., onde refere “ … conforme combinado, envio em anexo, as minutas do contrato de arrendamento com opção de compra e respectivos anexos” (cfr. Doc. 3 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- Email que a R. D... reenviou para o seu Advogado que lhe disse que do ponto de vista formal estava tudo correcto (cfr. Doc. 4 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- A R., atenta a informação disponibilizada, após verificação da documentação fornecida, consulta do registo predial e do dossier que lhe foi fornecido com fotografias, aceitou o negócio.
- O negócio proposto à R. ia de encontro à sua pretensão de rentabilizar as suas poupanças através da aquisição de um imóvel para arrendar, com a vantagem de com a compra garantir o arrendamento do mesmo.
- No cartório Notarial do Dr. E..., a R. conheceu C....
- A R. D... procedeu ao pagamento do IMT e do Imposto de selo referente ao imóvel (cfr. Doc. 5 a 7 com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- Uma vez no Cartório Notarial o Dr. E... celebrou a escritura de compra e venda, tendo procedido à identificação de todos os intervenientes, mediante verificação dos respectivos documentos de identificação referidos na escritura de compra e venda.
- A aquisição do imóvel titulada pela escritura de compra e venda celebrada em 17/5/2013 foi objecto de registo na mesma data, onde se encontra registada em nome da R. D..., pela Ap. …. de 2013/05/17 ( cfr. Doc. 10 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- Com a celebração da escritura de compra e venda, foi assinado um contrato de arrendamento - ( cfr. Doc. 11 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- O contrato de arrendamento foi participado ao Serviço de Finanças, tendo sido liquidado o imposto de selo ( cfr. Doc. 12 e 13 junto com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra).
- A R. D... não conhecia a A. nem o seu marido.
- Foi a intervenção conjunta das empresas I…, na pessoa de F... e a K..., S.A., que possibilitou à R. D... a concretização do negócio em apreço.»
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Não foram elencados factos não provados.
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2.2). Do mérito do recurso.
A). Nulidade da sentença por violação dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, b), do C. P. C. - falta de especificação e fundamentação dos factos não provados -.
A recorrente suscita esta nulidade por não terem sido elencados factos não provados que a mesma entende que teriam de constar nessa sede (matéria constante dos artigos 35.º a 59.º da contestação) para, desse modo, os poder contradizer e assim exercitar o seu direito constitucional de acesso à justiça.
Vejamos.
Em sede de sentença, o artigo 607.º, do C. P. C., dispõe, no que aqui releva, que:
- n.º 2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
- n.º 3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
- n.º 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Ora, lendo estes normativos, ficamos com a dúvida sobre se efetivamente os factos não provados têm ou não de ser discriminados; na verdade, essa discriminação é literalmente exigida para os factos provados (n.º 3) e depois é feita a menção que na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados.
Pensamos que desta diferença de redação nos dois números se pode concluir que, quanto aos factos não provados, não teria de ser efetuada a discriminação – neste sentido julgamos que aponta o Ac. da R. P. de 24/09/2020, processo n.º 173/20.6YRPRT ao só se referir à necessidade de discriminação de factos provados – www.dgsi.pt -; Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 2.º, página 707: «…o legislador de 2013 neles manteve, respetivamente, os verbos «discriminar» e «declarar», com o que fica claro que a deslocação da decisão de factos e da sua fundamentação para a sentença não afasta a distinção entre o que interessa à fundamentação da decisão final (os factos principais que hajam sido provados, os quais têm de ser discriminadamente descritos) e o que interessa à fundamentação da (…) anterior decisão de facto (…bem como a justificação da falta de prova dos factos não provados, sem necessidade de os referir discriminadamente).». Os mesmos Autores, ainda na página 707, referem, citando em parte Helena Cabrita, que «considerando que, depois de indicar na sentença os factos não provados e antes de enveredar pela análise crítica da prova, o tribunal deverá fazer uma referência aos factos constantes dos articulados aos quais não responderá (em termos de os considerar provados ou não provados), por os mesmos conterem matéria conclusiva, irrelevante ou de direito.
Na nossa perspetiva, o tribunal tem de declarar/enunciar os factos que julga provados e não provados, de igual modo. Ou seja, a lei, do modo que a vislumbramos, não determina que só se tenham de discriminar os factos provados e depois, em relação aos factos não provados, se possa emitir uma declaração genérica do género «não resultam provados todos os outros factos alegados» - note-se que não é esta a decisão em causa, apenas estamos a procurar atingir uma conclusão sobre o que deve ser elencado e como -.
No n.º 3 do artigo 607.º, do C. P. C., menciona-se que, na parte da fundamentação, devem discriminar-se os factos provados que servem de base à aplicação jurídica e que conduzirão à decisão final.
Mas quando se menciona, agora no n.º 4, do mesmo artigo, que na mesma fundamentação de sentença, o juiz declara os factos que julga provados e não provados, refere-se que têm de ser enunciados os dois, ou seja, tem de existir um elenco destes dois tipos de factos. O que sucede é que, em relação aos não provados, na análise crítica que se tem de efetuar da prova, o tribunal não precisa de discriminar a motivação em relação aos factos não provados.
Ao motivar a prova dos factos provados, o tribunal está a fundamentar factos que vão ter relevo para a decisão, daí ter de discriminar a respetiva motivação; ao motivar factos não provados, está apenas a fundamentar porque entendeu que não ocorreu a prova, não servindo depois estes factos para a decisão.
Seguindo o referido pelo Juiz Conselheiro Tomé Gomes, in Decisões Judiciais: simplificar a escrita, comunicar melhor, ganhar eficácia, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_I_Novo%20_Processo_Civil, página 340, «a fundamentação da sentença segmenta-se:
a) na enunciação, de forma discriminada, dos factos pertinentes dados como provados e dos factos não provados;
b) na subsequente motivação dos juízos probatórios enunciados;
c) por fim, no enquadramento normativo dessa factualidade, sob a perspetiva da pretensão do autor e dos meios de defesa. A enunciação factológica tem por objeto os factos que se consideram admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão com eficácia probatória plena, bem como os factos que forem julgados por provados e por não provados, mediante a livre mas prudente convicção do julgador, em resultado da prova produzida, mormente na audiência final – artigo 659.º, n.º 3 e 4, do CPC.».
Assim, pensamos que os factos não provados também têm de ser enunciados, discriminadamente, eventualmente podendo a sua fundamentação ser feita não tão especificadamente como exigido para os factos provados.
Mas não se pode, na nossa opinião, adotar uma postura rígida quanto a esta matéria pois tem sempre que a enunciação e a fundamentação dos factos de ser claramente percetível e suficientemente exaustiva, no sentido de que se compreende o que resultou provado e não provado e o motivo dessa decisão.
Se tal clareza e perceção resultar do texto elaborado pelo julgador, tendo a parte ao seu dispor todo o conhecimento que lhe permite não só apreender a atividade do julgador como fundamentar os seus motivos de discórdia, nomeadamente em sede de recurso, não releva se a motivação dos factos não provados foi efetuada discriminadamente ou não. Pode o tribunal ter motivado discriminadamente os factos não provados e não proferido uma efetiva fundamentação.
Ora, tomando como certo, para nós, que têm de ser enunciados os factos não provados, a questão que se coloca no recurso abrange duas situações:
- enunciação genérica de factos não provados com a expressão não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa;
- falta de enunciação de factos por o julgador ter entendido que o demais alegado pelas partes nos seus articulados encerrar matéria puramente conclusiva, displicente, repetida e/ou de direito, ou não ter logrado obter adesão de prova.
À partida, pensamos que se pode afirmar que, lendo estas duas frases, não se sabe quais são os factos que resultaram não provados nem quais os que não foram enunciados – quais são os demais que não se provaram e aqueles que nem sequer foram julgados não provados por aqueles motivos, sendo que nestes se inclui a falta de adesão de prova.
Se a sentença, como um todo, se mantivesse nesta imprecisão, pensamos que se deveria concluir que o tribunal não tinha cumprido devidamente o seu dever de enunciação dos factos; no entanto, depois de assim o referir, o tribunal acaba por, em sede de motivação de factos, se pronunciar também sobre factos não provados.
Daí que, para que se possa concluir se, ainda que (na nossa opinião) não o tenha efetuado do modo mais correto, a enunciação de factos é percetível e cumpre a finalidade a que se destina, tenhamos de analisar também a fundamentação de facto para aferir o que o tribunal entendeu julgar não provado e o que não foi enunciado nessa parte da sentença.
Entremos então na análise do que deve ser considerado provado e não provado numa sentença, sendo que não existirão dúvidas que devem ser julgados provados ou não provados os factos que sejam essenciais para a procedência da ação ou de uma exceção.
Em conjunto com estes factos essenciais também devem ser elencados os que lhes sejam complementares ou concretizadores (artigo 5.º, n.º 2, b), do C. P. C.); e no que se refere a factos instrumentais, tendo presente o que o artigo 607.º, n.º 4, do C. P. C. menciona – o julgador indica as ilações tiradas dos factos instrumentais – por regra estes devem ficar reservados à motivação dos factos. Mas, como menciona o acima indicado Juiz Conselheiro na mesma obra, página 343, essa regra pode ser atenuada em determinados casos (factos complexos, dificuldade em destrinçar se está em causa efetivamente um facto instrumental ou essencial, …).
Além destes factos, têm de ser indicados os factos que resultam provados por acordo, documento ou confissão escrita, conforme mesmo n.º 4, do citado artigo 607.º.
Importa então aferir se efetivamente há factos que foram julgados não provados ainda que com enunciação em local menos próprio (motivação) e outros em que, não resultando provados, não tinham de ser elencados e, por isso, também não tinham de ser fundamentados.
É preciso aferir se há, naqueles artigos que são indicados no recurso (35 a 59 da contestação) algum tipo de facto que deveria ter sido considerado não provado e não foi.
Na presente ação, a Autora/recorrida pede que um contrato de compra e venda seja declarado nulo por estar em causa a alienação, por terceiro, de um bem que lhe pertence. A alegação sustenta-se na celebração desse contrato sem a intervenção da proprietária (Autora) pelo que ocorreu a venda de coisa alheia.
Assim, os factos essenciais que importa dar como provados que sustentam a ação serão todos os que integrem a alegação da propriedade do bem e a falta de declaração de venda pela proprietária da alienação.
Por seu turno, a Ré, na diversidade de possibilidades que teria para contrapor a sua versão manifestou, na contestação, por um lado, a sua posição impugnando a versão da Autora por desconhecimento e, por outro, na sua motivação para a aquisição do bem, nas diligências que efetuou para preparar a compra e, já estando em causa a matéria dos factos que a recorrente entende terem de ser elencados como não provados, o modo como se celebrou a escritura pública – com quem foi para o notário, quem aí conheceu, o que pagou, os atos praticados pelo notário e sua relevância e a conclusão de que agiu de boa-fé - e ainda que a Autora, conluiada com o seu marido (1.º Réu), foi quem a prejudicou.
De toda esta factualidade, pensamos que, potencialmente, só uma poderia ser relevante de ser elencada como (no caso) não provada que é a de estar em causa um conluio entre Autora e seu marido (1.º Réu) no sentido de a enganarem.
Vejamos então.
- como foi a recorrente para o notário e com quem (artigo 35.º, da contestação) – de carro e com o pai e uma pessoa de uma agência que mediou o negócio. Nem estes factos são essenciais para a defesa da Ré e para a contraprova da ação (em nada se toca na celebração do negócio) nem são concretizadores ou mesmo instrumentais de qualquer outro facto – não se alegou que se tinha ido com a própria Autora para o cartório pois aí, mesmo não provada essa factualidade, tinha alguma relevância aferir em que termos o tribunal tinha afastado a prova dessa alegação; mas ir com pessoas totalmente alheias ao círculo de vida da proprietária é matéria sem interesse para a decisão;
- encontravam-se pessoas no cartório tendo aí conhecido a Autora. Esta matéria pode ter relevância pois, na sequência da impugnação da versão da mesma Autora, alega-se que a mesma estava no local e momento em que a escritura se realizou. Assim sendo, importa então aferir se de algum modo se pode perceber que este facto teria sempre de estar não provado e se foi, como tal, declarado.
Pensamos que este é o único facto que acaba por ser declarado não provado, ainda que em local menos próprio e inserido num discurso de motivação de factos. Na realidade, na motivação o tribunal refere, após discorrer sobre factos não provados constantes da petição inicial, que «no que concerne ao alegado pela R. D..., ao alegar que conheceu a A. no Cartório notarial, tal resulta não provado, pois que em contradição absoluta com o demais apurado, uma vez que resultou provado à saciedade que a A. não esteve presente em tal Cartório, não tendo outorgado na escritura de compra e venda, não sendo sabedora da mesma.».
Está aqui vertida não só a enunciação do facto como não provado como a motivação para que tal assim tenha sucedido.
Efetivamente, tendo resultado provado que em 17/05/2013, no cartório notarial de Matosinhos a cargo de E..., sito na Av. …, nº. …, .., Sala .., Matosinhos, foi realizada a escritura de compra e venda do imóvel em causa e que a Autora não deu o seu assentimento, e nunca em tempo algum emitiu qualquer declaração de vontade para a venda do imóvel em questão nem esteve presente na escritura de compra e venda - e nunca interveio na mesmo, ao contrário do que aí aparece exarado, está em causa a mesma realidade, numa versão oposta à provada.
Daí que, querendo recorrer, a Ré tinha (e tem) a sua disposição todo o conhecimento de que necessita para o fazer do modo mais completo que conseguir pois:
- sabe que a sua versão dos factos não obteve vencimento;
- o facto que foi julgado provado é aquele que é essencial para a decisão – a dona do bem não declarou vendê-lo -;
- foi apresentada fundamentação para aquele resultado;
- a versão contrária é declarada como não provada e está fundamentado o motivo de tal decisão.
- o pagamento de I. M. T. resultou provado – a R. D... procedeu ao pagamento do IMT e do Imposto de selo referente ao imóvel (cfr. Doc. 5 a 7 com a contestação, para o qual se remete e aqui se dão por reproduzidos na íntegra) – artigo 37.º -;
- a atuação do notário também resultou provada - uma vez no Cartório Notarial o Dr. E... celebrou a escritura de compra e venda, tendo procedido à identificação de todos os intervenientes, mediante verificação dos respectivos documentos de identificação referidos na escritura de compra e venda – artigo 40.º -;
- a falta de expressão de dúvidas pelo notário sobre a identidade de pessoas e assinatura (artigos 41.º a 43.º) é irrelevante pois, nos autos, não está em causa a sua atuação mas antes a atuação da Ré. Essa atuação poderia ser importante para aferir, em termos probatórios, como se desenrolou o ato de escritura, nomeadamente se houve algum tipo de facilidade na atuação enganosa por parte de quem a praticou ou se, pelo contrário, o notário, numa atuação normal, não a poderia detetar. Mas para a decisão, é irrelevante a atuação do notário quando se sabe que a escritura foi lavrada e não foi suscitada qualquer questão;
- também é irrelevante o alegado nos artigos 44.º a 46.º - outras pessoas que estavam no local e pareciam conhecer a Autora pois não é o parecer que se conheciam bem que importa para a decisão nem a atuação dessas pessoas está em causa nos autos;
- o artigo 47.º é um juízo de valor – estranha-se a alegação da Autora -;
- o artigo 48.º - está em causa a emissão de cheque para pagamento de preço da compra e venda, alegadamente a favor da Autora/recorrida. Ora, resultou provado que a Autora não recebeu nem fez sua a quantia de €31.950 EUR proveniente da venda do imóvel, tal como aparece mencionado na escritura de compra e venda.
Desde logo, pensamos que não era necessário dar como não provado que a Autora recebeu o valor desse cheque que será parte (25 000 EUR) do preço em questão. Na prova de que nada recebeu, já está ínsita a afirmação de que não se prova que recebeu parte desses mesmos 31 500 EUR.
No fundo, seria estar a dar como provado a negação do recebimento e como não provado um recebimento parcial (através de depósito).
Por outro lado, é certo que pode ter interesse aferir em que conta foi depositada tal quantia mas essa circunstância, através do respetivo documento, é um meio de prova que visa contradizer o não recebimento do preço alegado pela Autora; provado que, afinal, a Autora nada recebeu, esse meio de prova esgota a sua função, não tendo se ser vertido em facto.
- os artigos 49.º a 51.º são, de novo, juízos de valor sobre a atuação da Autora;
- os artigos 52.º a 55.º resultaram provados - com a celebração da escritura de compra e venda, foi assinado um contrato de arrendamento. O contrato de arrendamento foi participado ao Serviço de Finanças, tendo sido liquidado o imposto de selo. A R. D... não conhecia a A. nem o seu marido.
- artigos 56.º a 59.º - não contêm factos, são meros juízos de apreciação da recorrente em relação à sua própria atuação. E mesmo que se possa entender que há a alegação que atuou de boa-fé, esta já poderia ressaltar como provada da falta de conhecimento da Autora, sendo certo que o que está em causa é a alegada falta de enunciação/fundamentação de factos não provados.
Por fim, ainda no artigo 59.º, a menção ao conluio entre Autora e marido para se apropriarem das suas poupanças não passa de uma conclusão, sem qualquer facto alegado na contestação onde possa assentar. Ou seja, a Ré não alega que houve um determinado acordo entre Autora e marido para enganarem a Ré, não indica uma única situação fáctica que possa fazer concluir que estaria em causa essa atuação e depois, a final, conclui que o conluio existiu sem nunca o ter minimamente explicitado.
Daí que foi correta a não inserção dessa afirmação em nenhum dos factos pois não se está perante um facto.
Pelo exposto, não há vício na elaboração da fundamentação (enunciação dos factos não provados e sua fundamentação) que se possa assacar, em concreto, à sentença em causa. De um modo que, para nós, poderia ser exarado de um outro modo formalmente mais correto, o tribunal acaba por enunciar os factos não provados que tinham de o ser e fundamenta-os.
A recorrente tinha ao seu dispor toda a matéria factual necessária e a visão que o tribunal recorrido teve da mesma para assim a julgar para recorrer da matéria de facto se assim o entendesse.
Improcede assim esta argumentação.
*
B).
B1). Nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, e), por violação do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e artigo 5.º, do C. P. C. (condenação da Ré, em objeto diverso do pedido e causa de pedir).
B2). Nulidade da sentença nos termos dos artigos 195.º, 615.º, n.º 1, d), por violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3 e 5.º, todos do C. P. C. (do princípio do dispositivo e contraditório, no conhecimento de questões de direito de que não se podia tomar conhecimento, sem que houvesse dado às partes possibilidade de pronúncia).
Estas duas questões estão ligadas pelo que iremos apreciá-las em conjunto.
O tribunal não está adstrito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artigo 5.º, n.º 3, do C. P. C. -.
Assim a qualificação jurídica que a parte confere a um seu alegado direito não vincula o tribunal.
No caso, a Autora/recorrida entendeu que um contrato de compra e venda de um bem que lhe pertencia por pessoa que não era a sua proprietária encerrava um contrato nulo; o tribunal, com base nos factos que foram alegados, entendeu que a consequência não era a nulidade mas antes a ineficácia do negócio perante a real proprietária.
Atendendo aos factos, o imóvel em causa pertence à Autora (foi-lhe adjudicado em sede de partilha de bens comuns, subsequentemente separação de pessoas e bens, sendo que a propriedade está registada a seu favor desde 05/12/2011 – documento n.º 5, junto com a petição inicial, dado por reproduzido nos factos provados), matéria que não é questionada nos autos; o que se questiona é se a Autora não o terá vendido.
Ao ter considerado que a venda do imóvel constituía uma venda de coisa alheia e que a consequência para a Autora era a ineficácia dessa transmissão, o tribunal usa da livre interpretação do direito e de retirar as devidas consequências do que é alegado.
Note-se, toda a matéria que é julgada provada foi alegada pelas partes; a Autora é que retirou uma consequência jurídica diversa daquela que o tribunal atingiu.
A consequência da ineficácia que foi retirada ainda se enquadra naquilo que a Autora pretendia: destruir os efeitos do negócio celebrado por quem se fez passar por proprietária de um bem, pelo que a decisão não ultrapassa o que foi peticionado, não violando o princípio do dispositivo tal como previsto no artigo 3.º, n.º 1, do C. P. C..
Sendo a base factual atendida pelo tribunal a mesma que foi alegada e pedindo-se a destruição dos efeitos do contrato de compra e venda em questão, pela Autora pela via da nulidade e, pelo tribunal, por via da ineficácia, nada impedia a decisão de convolar o pedido de declaração de nulidade em ineficácia (neste sentido Ac. R. C. de 12/12/2006, processo n.º 195/04.4TBSBG.C1, www.dgsi.pt).
Pensamos que esta questão já não é jurisprudencialmente controvertida, conforme entendimento do Supremo Tribunal de Justiça em sede de uniformização de jurisprudência, em sede de impugnação pauliana - «tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (art. 616/1 do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, tal como permite o art. 664 do CPC.» - A. U. J. n.º 3/2001, D. R. n.º34/2001, I-A, de 2001/02/09 -.
E, na situação em análise, nem sequer é, na nossa opinião, caso de se ter proferido uma decisão-surpresa por violação do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do C. P. C.) já que esta nova qualificação jurídica (ineficácia) pressupõe uma defesa totalmente idêntica àquela que é deduzida em relação à nulidade de um contrato de compra e venda de coisa alheia: o Réu, interessado na validade do negócio, também quer que esse negócio produza todos os efeitos derivados de um contrato de compra e venda (artigo 864.º, do C. C.). E assim ou procura demonstrar que o negócio é válido ou que, sendo nulo, os efeitos da nulidade não o podem atingir (por estar de boa-fé, como se alegou no caso).
O que sucede é que essa parte da sua alegação (com eventual aplicação do disposto no artigo 291.º, do C. C.) não encontra aplicação já que, com a ineficácia (como explicado na decisão recorrida), tudo se passa como se não tivesse sido celebrado qualquer negócio por o verdadeiro proprietário não ter intervindo, excluindo-se assim a aplicação daquele artigo 291.º que pressupõe uma efetiva compra e venda provinda de um legítimo proprietário.
Desse modo, não vemos que a defesa (jurídica) do pleito fique prejudicado por haver matéria que foi alegada e que não pode obter provimento (se pudesse existir outra matéria a alegar com a alteração da qualificação jurídica e que não o tivesse sido, então poderia entender-se estar em causa a violação do contraditório) – veja-se Ac. da R. L. de 29/06/2017, processo n.º 5003/14.5T2SNT.L1–2, www.dgsi.pt -.
E, neste último Acórdão, é abordada uma outra questão que também a recorrente menciona no recurso: se o negócio é ineficaz para a Autora/recorrida, então não precisava de intentar uma ação de reivindicação, como não intentou[1], pelo que não tinha necessidade de propor a presente ação. Sendo ineficaz o negócio, poderia sempre alegar que o negócio de compra e venda lhe era ineficaz, não necessitando de pedir que assim fosse declarado.
Mas, se assim se pode entender, o certo é que, como exercício do direito a uma ação, pensamos que o verdadeiro proprietário não está impedido de propor uma ação em que peça a declaração de ineficácia do negócio que foi celebrado, conforme se menciona naquele mesmo Acórdão, citando-se o ensinamento de Raúl Ventura. No fundo, nesta presente ação, foi o que a Autora fez, pedindo que se considerasse inválido o negócio perante si, fulminando-o como nulo mas devendo antes tê-lo classificado como ineficaz.
E, assim sendo, podendo ser intentada a ação pelo proprietário, ao declarar-se a ineficácia do negócio, também entendemos que os registos que contradizem a propriedade têm de ser cancelados pois assim o impõe o artigo 13.º, do C. R. P. que dispõe que os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado.
Não existindo, substantivamente, o direito do vendedor em transferir o direito de propriedade, não pode subsistir o registo efetuado com base num direito inexistente; o registo sofre de uma invalidade substantiva ou extrínseca, ou seja, o vício do registo resulta da invalidade do negócio de que resultou o direito – Acs. da R. C. de 08/11/2011, processo n.º 207/09.5TBTMR.C1, R. L. de 28/06/2018, processo n.º 363/17.9T8MTA.L1-8, ambos em www.dgsi.pt -.
Daí que, nos termos do citado artigo 13.º, do C. R. P., os registos em questão devem ser cancelados como foi determinado.
Improcede assim o recurso, confirmando-se a decisão recorrida, não sendo necessário apreciar a ampliação do recurso.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo da recorrente.
Registe e notifique.

Porto., 18-11-2021
João Venade.
Paulo Duarte Teixeira.
Ana Vieira.
__________________________________
[1] E pensamos que corretamente pois não se alegou (nem se provou) a detenção do imóvel por terceiros