ACÇÃO POPULAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
CAMINHO PÚBLICO
Sumário

I. O artigo 13.º da Lei 83/95 de 31.8. ( DIREITO DE PARTICIPAÇÃO PROCEDIMENTAL E DE ACÇÃO POPULAR) consagra, como a epígrafe revela, um “Regime especial de indeferimento da petição inicial”.
II. Este indeferimento liminar, norteado pelo princípio da economia processual, é justificado por uma certeza objectiva de que não há qualquer possibilidade do pedido do autor obter provimento qualquer que seja a interpretação jurídica que se venha a fazer.
III. Uma vez que se tem entendido que o Assento, hoje com força de AUJ, nº 7/89 carece de ser interpretado restritivamente, de modo a harmonizá-lo com o disposto no artigo 1383º do Código Civil, não se poderia ter indeferido liminarmente a petição inicial perante a integralidade dos factos nela alegados tendentes a revelar a natureza pública do caminho em causa.

Texto Integral

I. RELATÓRIO
1. A... e B... instauraram acção popular, nos termos do disposto na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, contra C..., pedindo que seja:
A) Reconhecido que é público o caminho referido nos art.ºs 8.º a 11.º da petição inicial;
B) Reconhecido que os AA. têm o direito a circular livremente pelo referido caminho, utilizando-o, designadamente, para circular entre a EN 261-4. E o Monte Malha Ferro, bem como para aceder, a pé, de tractor, carro agrícola ou qualquer outro veículo motorizado, ao seu prédio identificado nos art.ºs 1.º, 2.º e 3.º da p. i..
C) A Ré condenada a repor, no imediato, o trato de terreno afecto a tal caminho que lavrou e obstruiu com a colocação de barreiras em cimento e barreiras metálicas;
D) A Ré condenada a repor o caminho no estado em que se encontrava antes de ser destruído, por forma a permitir o uso directo e imediato pelo público em condições de segurança;
E) A Ré condenada a abster-se no futuro de praticar outros actos que, de alguma forma constituam acto de apropriação do referido caminho público, ou que por qualquer forma dificulte ou impeça o acesso dos AA. e demais utilizadores ao caminho público.

F) A Ré condenada a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor de € 50,00 por cada dia que decorra, uma vez proferida a sentença em 1ª instância, sem que se mostrem removidas a barreira em cimento e as barreiras metálicas ali colocados e restituído todo o tracto de terreno em que assenta o caminho, montante esse que deverá reverter para o Lar da Casa do Povo de Panoias.
G) Ser a Ré condenada a pagar à demandante a quantia de € 5000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a data da notificação do presente pedido.

O Tribunal a quo ao abrigo do disposto no artigo 13º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto entendeu ser de indeferir liminarmente a petição por considerar manifestamente improvável a procedência do pedido.

2. É desta decisão que, inconformados, recorrem os Autores, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:
1. Os Recorrentes discordam da Douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que, nos termos do Artigo 13.º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto indeferiu liminarmente a petição inicial.
2. A qual concluiu que “o alegado pelos Autores não permite qualificar o caminho em causa como sendo um caminho público, mas sim como um mero atravessadouro.”
3. Porém, no entender dos Recorrentes e, salvo o devido respeito, a douta decisão proferida, merece censura porque enferma de incorreta interpretação e apreciação.
4. Pelo que que existe vício na apreciação da prova, susceptível de apreciação em sede de recurso.
5. A causa de pedir, radica essencialmente na qualificação do caminho EN 261-4 “Malha Ferro”/“Vale Romeira” com a extensão de cerca de 1.900 metros, como sendo um caminho público ilicitamente apropriado pela Recorrida.
6. No ano de 2016 a Recorrida mandou abrir uma vala longitudinal naquele caminho para interromper a passagem dos utilizadores, entre quais os ora Recorrentes, lavrou-o, colocou uma placa em betão no solo e, posteriormente, pôs gradeamentos metálicos com cadeados a vedar o acesso ao mesmo (Docs. n.º 9,10,11,12, 13 e 14 da PI).
7. Este acto traduziu-se na violação de um direito de natureza coletiva ou difusa, como seja a apropriação indevida de um bem do domínio publico,
8. Impedindo, desta forma, os Recorrentes e todos os utentes do caminho de nele circularem, quer a pé, quer com automóveis, carros agrícolas, tractores e outros veículos motorizados, como sempre fizeram desde tempos imemoriais.
9. Apesar das inúmeras diligências e participações à Autarquia, esta não propôs qualquer acção contra a Recorrida.
10. Assiste assim, aos Recorrentes, enquanto cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e titulares de interesse difuso, o direito de defenderem tal bem, pugnando por verem declarada a pública dominialidade do caminho.
11. Esse direito e essa legitimidade estão hoje consagrados no artigo 52.º da CRP, conjugado com os artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 12.º da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular) e com o artigo 31.º do NCPC;
12. Os Recorrentes alegaram factos demonstrativos de um interesse difuso, de interesse unitário da comunidade e apresentaram provas suficientes para sustentarem as suas pretensões, quer na PI quer posteriormente, em requerimento autónomo dirigido ao Ministério Público, datado de 26/04/2021, com a Ref.ª 1960546, contendo informação complementar.
13. E assim, ao contrário do que é sustentado na Douta Sentença, os Recorrentes não se limitaram a alegar que o uso imemorial do caminho em causa se destinou ao acesso ao monte “Malha Ferro” do qual são proprietários, que não tem acesso directo à EN 261-4,
14. Ou que o acesso ao monte “Malha Ferro” sempre se fez, desde tempos imemoriais, pelo caminho do domínio público que ali existe, que consta da Carta Militar 1/25000 de 1989 e da Carta Cadastal de 1/5000 de 1947 .
15. Pois alegaram, no art. 21.º da PI e além do mais, que
“…tal acto da Ré impede e dificulta, entre muitas outras e, meramente a título de exemplo:
- A acção dos operacionais da Protecção Civil e dos Bombeiros, em caso de calamidade, desastres naturais e incêndios;
-as acções de desassoreamento no rio Sado, sendo que a última foi feita pela Câmara Municipal de Ourique, a qual se serviu do caminho, agora destruído, para a passagem de máquinas e viaturas;
- as acções de limpeza do rio;
- o acesso aos visitantes que pretendam passear até ao Rio Sado em programa de recreio e lazer;
- o acesso ao ramal da Rede Elétrica Nacional implantado ao longo do caminho destruído.
- o fornecimento de gás, de materiais de construção, e bens aos montes;
- o acesso de profissionais da construção civil e carpintaria para reparações ou obras nos montes;
a entrada e o escoamento de produtos agrícolas, nomeadamente azeitona para o lagar;
- a circulação de trabalhadores agrícolas;
- o uso pela Associação de Caçadores de Panoias, para reposição de alimentação das espécies e fiscalização da área de caça da respectiva associação a que o Malha Ferro pertence;
- a movimentação de manadas ou rebanhos de pastagens para outras pastagens de parcelas de prédios rústicos, sem acesso a estradas de alcatrão.
-o acesso de veículos para realização de ralies tal como sucedeu no passado, com o Rali de Portugal,
-ou por adeptos do turismo da natureza, para observação de fauna e flora e passeios pedestres.”
16. Além disso, os Recorrentes apresentaram provas que atestam que o referido caminho está classificado como um bem do domínio público que consta da Ficha Cadastral de Imóveis da Câmara Municipal de Ourique, tendo sido inventariado com o n.º 7399 (cfr. Doc. n.º 6 da PI).
17. Tendo sido avaliado nos termos da Portaria n.º 671/2000 de 17 de Abril de acordo com os objectivos do Cadastro e Inventário dos Bens do Estado – CIBE (cfr. Doc. n.º6 da PI).
18. Com efeito, em 17 de Maio de 2007, a Comissão de Avaliação da Câmara Municipal de Ourique, composta pela Dr.ª Maria Luísa Silva Lança, Arq.ª Patrícia Coelho Costa Raio, e Dr.ª Margarida Maria Gonçalves Félix, elaborou o Relatório de Avaliação dos Bens do Domínio Público-Vias de Comunicação Rodoviárias, nele consignando que o referido caminho: “é de terra batida, tem a extensão de cerca de 1.900,0 metros, iniciando-se na EN 261-4 e dando acesso aos montes “Malha Ferro”- “Vale Romeira”, localizado na freguesia de Panoias, não tendo qualquer tipo de pavimentação, enquadrando-se no tipo designado por “imóveis rústicos”, “infra-estruturas” rodoviárias, nos termos do n.º 2 do art.19.º da Portaria n.º 671/2000 de 17 de Abril (cfr. Doc. n.º7 da PI).
19. Em 2020, os Recorrentes, solicitaram ao Senhor Presidente da Câmara de Ourique que os informasse acerca da natureza pública ou privada do referido caminho, tendo obtido em 17/01/2020 a seguinte informação:
“Para os devidos efeitos cumpre-me informar que segundo o Sistema de Inventário e Cadastro Patrimonial da Secção de Património e Aprovisionamento da Câmara Municipal de Ourique, elaborado em 19/09/2006, o caminho identificado no pedido de informação está caracterizado como bem do domínio público (EN 261-4/Malha Ferro/Vale Romeiros e tem uma extensão de 1900 metros.” (cfr. Doc. n.º 15 da PI (sublinhado e sombreado nosso).
20. Acresce ainda que, da prova carreada para os autos pelo próprio MP, consta:
a) A informação prestada pelo Senhor Arquitecto Rodolfo Machado sobre a questão colocada pelo Recorrente sobre a natureza pública ou privada do caminho em causa, datada de 16 de Dezembro de 2016, enviada pela Câmara Municipal de Ourique aos presentes autos, em 17/03/2021, por solicitação do MP, a qual expressamente refere:
“…segundo o Sistema de Inventário e Cadastro Patrimonial da Secção de Património e Aprovisionamento Câmara Municipal de Ourique elaborado em 19 /9/2006 o caminho identificado no pedido de informação está caracterizado como bem do domínio público (EN 261-4/Malha Ferro/Vale Romeiros), numa extensão de 1900 metros.” (cfr. Doc. n.º 1 - Ref.ª 1937777- E-mail n.º 3) (sublinhado e sombreado nosso).
b) A informação prestada aos autos em 17/03/2021, pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Ourique, no seguimento da notificação que lhe foi feita para se pronunciar sobre a natureza do caminho em causa:
“O caminho identificado entre a EN261-4 e o Monte Malha Ferro consta da Carta militar 1/25000 de 1989 e da Carta cadastral 1/5000 de 1947 (…)”
“Não obstante, tal caminho não se encontrar devidamente classificado como público, a utilidade pública do mesmo justificou algumas intervenções por parte do município, no sentido de continuar a manter o seu uso por parte da população, sendo o mesmo integrado no “Sistema de Inventário e Cadastro Patrimonial” deste Município e caracterizado como bem do domínio público (EN 261-4/Malha Ferro/Vale Romeiros), numa extensão de 1900 metros.)”
“Em recente deslocação ao local (EN 261- 4/Malha Ferro/Vale Romeiros), o Assistente Técnico adstrito ao “Serviço de Fiscalização e Vistorias” verificou que o troço entre a EN261-4 e o Monte Malha Ferro foi lavrado e cultivado, passando o acesso ao Monte Malha Ferro a ser feito através de carreiro alternativo, que foi criado pelos rodados das viaturas com as sucessivas passagens, conforme imagens seguintes” ( cfr. Doc. n.º 1 - Ref.ª 1937777- E-mail n.º 1) (sublinhado e sombreado nosso).
c) A informação do Assistente Técnico da Câmara Municipal de Ourique, Heliodoro Guerreiro Delfino, datada 04/12/2018, na sequência da visita ao local efectuada, foi igualmente trazida aos autos pelo MP e é a seguinte:
“Relativamente ao assunto supracitado, cumpre-me informar V. Exª que no seguimento do requerimento efetuado pelo Sr. B..., desloquei-me ao local referido pelo requerente, onde verifiquei que o caminho que estabelece ligação entre E. N. 261-4/Malha Ferro/Vale Romeiras, na freguesia da União de Freguesias de Panóias e Conceição é constituído por terra batida e foi alvo de movimentação de terras em toda a sua extensão, pela execução da abertura de uma vala, tendo mesmo sido lavrado parte do mesmo, conforme demonstram fotografias em anexo; assim, o caminho passou a ter uma largura inferior ao inicialmente existente (aproximadamente 2,20 mts), dificultando a circulação viária e impossibilitando o cruzamento de veículos que circulem em sentidos opostos. (cfr. Doc. n.º 1 - Ref.ª 1937777- E-mail n.º 4) (sublinhado e sombreado nosso).
d) A informação prestada em 24/2/2021 pelo Comandante do Posto da GNR de Ourique, face ao solicitado pelo MP com a Ref.ª n.º 1926282: “Tem havido conflitos entre o filho da Sr.ª C… (…) e o Sr. B…, referente ao caminho mais informo que o mesmo actualmente está cortado, antigamente a Estrada dava acesso da EN 261-4 ao Vale Romeiras passava pelo Monte Malha Ferro. (sublinhado e sombreado nosso).
e) O requerimento dirigido ao Ministério Público pelo ora Recorrente em 26/04/2021 (Ref.ª 1960546) contendo informação complementar, entre os quais vários mapas do caminho e cópia de uma exposição que lhes foi facultada pela Associação de Regantes e Beneficiários de Campilhas e Alto Sado, dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de Ourique,
Sendo que, nessa exposição a ARBCAS informou o Presidente da Câmara da necessidade de utilização do caminho EN 261-4 “Malha Ferro”/”Vale Romeiras”, para os “trabalhos de manutenção e fornecimento de água junto ao Canal Condutor do Alto Sado.”
21. Do que supra se expôs é inquestionável que estamos perante um caminho público pertencente àquela edilidade, com inúmeras valências e manifesta utilidade pública, que justificou algumas intervenções por parte do município, que sobre ele exerce jurisdição, no sentido de continuar a manter o seu uso por parte da população, tal como expressamente referido pelo próprio Presidente da Câmara de Ourique na informação prestada aos autos.
22. E o facto de não existir registo do caminho no Cadastro da Rede Viária existente no Município de Ourique não significa que, o caminho em causa “não foi criado, nem mantido, nem apropriado por qualquer pessoa colectiva de direito público”, ou que o mesmo não tenha natureza pública,
23. Não se podendo extrair tais conclusões, dessa forma simplista, baseadas na informação jurídica datada de 20/12/2018, elaborada pela Chefe de Divisão Dr.ª Maria Luísa Lança Silva,
24. A qual, curiosamente integrou, como acima se referiu, a Comissão de Avaliação da Câmara Municipal de Ourique que, elaborou o elatório de Avaliação dos Bens do Domínio Público-Vias de Comunicação Rodoviárias, classificando esse mesmo caminho como bem do domínio público (cfr. Doc. n.º7 da PI).
25.Porquanto a única conclusão que daí se pode extrair é que a Câmara Municipal de Ourique não tem ainda o Cadastro da Rede Viária actualizado face aos bens já classificados e avaliados como pertencentes ao domínio público.
26. E que esta lacuna foi propícia e especialmente apetecível para quem se quis apropriar indevidamente de um bem público, in casu, a Recorrida.
27. Acresce ainda que as propriedades que ladeiam esse caminho estão perfeitamente identificadas na PI e nos vários documentos, certidões, mapas, fotografias e exposições, juntos aos autos, ao contrário do que é referido na douta sentença.
28. Como se pode verificar, o referido caminho tem o seu início na EN 261-4, passa pelo prédio rústico 12 N (Monte Negro propriedade da Ré), ladeando a partir de determinado ponto do seu percurso o prédio 15 N (Malha Ferro) até entrar neste, onde passa pelo Canal Condutor Geral do Alto Sado de Rega, prosseguindo no prédio 16 N (Malha Ferro) onde passa à Ribeira do Sado, continuando depois até ao Vale de Romeiras.
29. O referido caminho nunca foi um caminho particular integrante do prédio da Ré, nem tampouco um mero atravessadouro utilizado pelos proprietários dos prédios confinantes,
30. A autarquia de Ourique exerce jurisdição sobre o referido caminho, administrando-o como bem do domínio público, melhorando-o e conservando-o, conforme a informação clara e concisa do Presidente da Câmara ao solicitado pelo MP: “… a utilidade pública do mesmo justificou algumas intervenções por parte do município, no sentido de continuar a manter o seu uso por parte da população, sendo o mesmo integrado no “Sistema de Inventário e Cadastro Patrimonial” deste Município e caracterizado como bem do domínio público” (ut supra Doc. n.º 1 - Ref.ª 1937777- E-mail n.º 1)
31. O caminho, com as caraterísticas e localização constantes dos autos pertence ao domínio público, porquanto se trata do exercício do poder de facto pelo público em geral, desde tempos que se perderam na memória dos homens, constando já da Carta Cadastral de 1/5000 de 1947, sem que tenha sido posto em causa ou objecto de oposição.
33. Em nada relevam para a causa os conflitos existentes entre Recorrentes e Recorrida, os quais têm sido tratados em sede própria.
33. De realçar que, face às provas existentes nos autos, se dúvidas houvesse sobre a natureza do caminho, caberia ao douto Tribunal averiguar de acordo com as especiais atribuições do Juiz perante uma Acção Popular, que se encontram plasmadas no art. 17.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto actualizada pelo DL n.º 214-g/2015, de 02/10.
34. Da análise da prova já trazida aos autos não podem subsistir dúvidas de que o referido caminho é um bem dominial possuído pela autarquia e como tal insuscetível de apropriação particular, inalienável e imprescritível,
35.E que está afecto à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.
36. O que preenche o requisito da utilização directa do caminho pelo público em geral, desde tempos imemoriais, bem como o requisito da afectação do caminho a utilidade pública,
37. Não subsistem pois, quaisquer dúvidas, de que a Recorrida se apropriou de um bem que é do domínio público que, estando fora do comércio jurídico é insusceptível de apropriação individual,
38. Lesando, com o seu acto o interesse colectivo, para desse modo satisfazer interesses pessoais e subjectivos, aumentando o seu património de forma ilícita.
39. Os Recorrentes têm um interesse pessoal e directo no reconhecimento do carácter público do caminho, na medida em daí resulta um benefício próprio para acesso ao prédio de que são proprietários,
40.Mas são também titulares de um interesse próprio na manutenção da sua utilização colectiva.
41. O que justifica a presente acção por ter por objecto a defesa de interesses difusos e os interesses gerais da comunidade.
42. O art. 52.º n.º 3 da CRP confere a todos os cidadãos o direito de acção popular, nomeadamente para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural e assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
43. A LAP (direito de participação procedimental e de acção popular), aprovada pela Lei 83/95 de 31/8, estabeleceu o respectivo âmbito quanto ao direito de participação popular, quer em procedimentos administrativos quer também quanto ao direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição (art. 1.º n.º 1),
44. Estabelecendo que, são:
«designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público» (art. 1º n.º 2).
45. Os Recorrentes accionam a Ré C... com vista à reparação da ofensa cometida por esta ao domínio público, inalienável e imprescritível,
46. Visando defender os interesses inerentes ao domínio público de todas as pessoas da comunidade em que eles se inserem, por estarem, putativamente impossibilitadas de gozar das utilidades facultadas pelo bem do domínio público,
47. Bem como a reposição do caminho publico destruído e a circulação que, desde tempos imemoriais, está no uso directo e imediato da população local e público em geral,
48. E assim se obstar à apropriação do caminho público pela Ré, com sobreposição do interesse público pelos seus interesses privados.
49.Estão preenchidos os requisitos cumulativos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: o uso directo e imediato do mesmo pelo público; a imemorialidade desse uso; e a afectação à utilidade pública.
50. Num estado de direito é inconcebível e inaceitável que bens do domínio público possam ser apropriados por particulares face à inércia das entidades públicas e face a não atuação da autarquia.
51. A apropriação do caminho por parte da Ré é um acto ilícito ao qual a justiça não pode dar cobertura.
52. Do que foi alegado é manifestamente provável a procedência dos pedidos.
53. Assiste assim aos Recorrentes, enquanto titulares de interesse difuso, o direito de defenderem tal bem, pugnando por verem declarada a pública dominialidade do caminho,
54. Pois esse direito e essa legitimidade estão consagrados no artigo 52.º da CRP, conjugado com os artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 12.º da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular) e com o artigo 31.º do NCPC;
55. A douta decisão viola o disposto nos arts. 16.º, 17.º, 18.º e 20.º n.º 1.º da CRP, por ofender o direito à boa administração de justiça!
56. Atirar o processo “às urtigas” depois de todo o caminho percorrido e de todo o processado, é um acto inútil, proibido pela lei processual e violador dos direitos conferidos aos Recorrentes pela lei substantiva, processual e constitucional pois todos têm direito à boa administração da justiça!
NESTES TERMOS, Deve anular-se ou revogar-se a douta decisão em recurso, ordenando- se o prosseguimento dos autos.
Assim é de JUSTIÇA!”.

3. Contra-alegou a recorrida, defendendo a manutenção do decidido.

4. Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – a questão cuja apreciação as mesmas convocam é a seguinte : Se na petição inicial os Autores não alegaram factos que permitam concluir pela verificação dos requisitos do caminho em causa como caminho público e se, por isso, a petição inicial deveria ter sido liminarmente indeferida, como foi.


II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o teor da decisão recorrida:
“(…) Não tendo a acção sido instaurada pelo Ministério Público, foi-lhe notificada a pendência da mesma, por ter intervenção acessória, em conformidade com o disposto na al. b) do nº 1 e para os efeitos do nº 2 do Art. 10º da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto (novo ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO), o qual veio requerer a realização de várias diligências, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.
Essas diligências foram deferidas, tendo sido juntas aos autos as informações pretendidas.
A Digna Magistrada do Ministério Público apresentou douto parecer, extensamente fundamentado, concluindo que:
“(…) o caminho em apreço nos presentes autos não é um caminho público, porquanto, por um lado, não pertence a qualquer entidade pública nem foi legitimamente apropriado por qualquer entidade pública e, por outro lado, porque não foram alegados factos que permitam concluir que o referido caminho foi usado pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.
Por tudo o que antecede, o Ministério Público entende que é manifestamente improvável a procedência do pedido, devendo a petição inicial ser indeferida, nos termos do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.”
O Autor apresentou, entretanto, requerimento (REFª CITIUS: 1960546) dirigido à Digna Magistrada do Ministério Público, pronunciando-se sobre os elementos obtidos.
O Ministério Público pronunciou-se sobre o mesmo, considerando não terem sido alegados quaisquer factos que alterem o sentido do parecer emitido.
Cumpre apreciar e decidir, liminarmente, por força do disposto nos Arts. 13º e 15º da referida Lei n.º 68/2019.
*
Os autores pretendem ver reconhecida a dominialidade pública do caminho que identificam como sendo “um caminho, de terra batida, com a extensão de cerca de 1.900 metros iniciando-se na EN 261-4 e dando acesso aos montes “Malha Ferro”, “Vale Romeira” e à Ribeira do Sado, não tendo qualquer tipo de pavimentação, enquadrando-se no tipo designado por “imóveis rústicos”, “infraestruturas” rodoviárias”.
Os Autores não alegaram quais são (e de quem são) as propriedades que ladeiam esse caminho, alegando apenas que são proprietários do prédio misto denominado Malha Ferro e que a Ré é proprietária do prédio confinante denominado Monte Negro (ambos sitos na União das freguesias de Panoias e Conceição, Concelho de Ourique). Mais alegaram que o seu prédio (monte “Malha Ferro”) não tem acesso directo à EN 261-4, sendo que o acesso a esse seu monte sempre se fez, desde tempos imemoriais, pelo caminho do domínio público que ali existe, que consta da Carta Militar 1/25000 de 1989 e da Carta Cadastral de 1/5000 de 1947.
Em sustento da sua pretensão, os Autores invocam que, para além de constar da carta militar acima referida, o caminho consta da Ficha Cadastral de Imóveis da Câmara Municipal de Ourique com o n.º de Inventário 7399, como bem do domínio público (Doc. n.º 6) e do Relatório de Avaliação dos Bens do Domínio Público-Vias de Comunicação Rodoviárias, elaborado em 17 de Maio de 2007, pela Câmara Municipal de Ourique, de acordo com o determinado pela Portaria n.º 671/2000 de 17 de Abril (Doc. n.º 7).
O motivo da instauração da acção é o facto de a Ré, no ano de 2016, ter mandado abrir uma vala longitudinal naquele caminho para interromper a passagem dos utilizadores, entre quais os ora AA, lavrou-o, colocou uma placa em
betão no solo a meio do caminho e, posteriormente, pôs gradeamentos metálicos com cadeado a vedar o caminho (Docs. n.º 9,10,11,12, 13 e 14).
O Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, publicado no DR I-A de 2 de Junho de 1989, entendeu que “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”. E considerou que “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.
Interpretando o âmbito de aplicação da doutrina do referido assento, o Acórdão do STJ de 28 de Maio de 2009 (Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA; processo: 08B2450, in www.dgsi.pt) disse o seguinte:
“6. Como se sabe, o assento de 1989 deparou-se com o problema de saber como qualificar um caminho que “desde tempos imemoriais” (ou seja, desde tempos já não alcançados pela memória das pessoas vivas, directa ou indirectamente, por tradição oral dos seus antecessores) é utilizado pelo público em geral, “em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, reimp. da 2ª ed., Coimbra, 1987, pág. 282): se como caminho público (integrado, portanto, no domínio público de uma pessoa colectiva de direito público, seja o Estado, seja uma autarquia), se como atravessadouro (e, portanto, integrado em propriedade particular).
Sabe-se ainda que essa alternativa se reveste de particular importância, desde logo porque “os atravessadouros (…) desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões” foram (de novo, na realidade, como se dá conta no citado Código Civil Anotado, pág. 280 segs.) considerados abolidos pelo artigo 1383º do Código Civil (que, todavia, ressalvou os casos abrangidos pelo artigo 1384º).
O Supremo Tribunal de Justiça, ao pronunciar-se sobre esta mesma questão, sentiu já por diversas vezes a necessidade de fazer uma interpretação restritiva dos termos em que o assento decidiu, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Março de 2008, (disponível em www.dgsi.pt como proc. 08A542) “a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância (cf. os Acórdãos do STJ de 10 de Novembro de 1993 – BMJ 431-300 e “inter alia” de 10 de Abril de 2003 – P.º 4714/02-2.ª), numa clara adesão aos critérios do destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente de afectação”. No mesmo sentido, podem ver-se, por exemplo, os acórdãos deste mesmo Supremo Tribunal de 10 de Novembro de 1993, www.dgsi.pt como proc. nº 084192, 15 de Junho de 2000, anotado por M. Henrique Mesquita em Revista de Legislação e de Jurisprudência, anos 134º e 135º, págs. 366 e 62, respectivamente), de 18 de Maio de 2006, www.dgsi.pt, proc. 06B1468, ou de 8 de Maio de 2007, www.dgsi.pt, proc. 07A981.
Considera-se, aliás, que este entendimento se encontra subjacente à solução adoptada no assento, como resulta da transcrição feita (“serão públicas [as coisas] se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.”)
Assim se observou expressamente, por exemplo, nos acórdãos de 13 de Janeiro de 2004 (parte transcrita no acórdão de 14 de Outubro de 2004 (www.dgsi.pt, proc. 04B2576): “Nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”).
Não pode, naturalmente, deixar de ser assim, desde logo porque só por esta forma está materialmente justificada a integração do caminho no domínio público, por afectação à utilidade pública (através da “prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”, como escreve Marcelo Caetano, em Manual de Direito Administrativo, tomo II, reimp. da 9ªed., Coimbra, 1980, págs. 922-923).
Essa afectação à utilidade pública deve revelar-se na “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”, não sendo suficiente que “se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, [hipótese em que] os caminhos devem classificar-se de atravessadouros” (Acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Novembro de 1993 cit.).”
Em face do exposto, é de concluir que são requisitos cumulativos caracterizadores da dominialidade pública de um caminho: o uso directo e imediato do mesmo pelo público; a imemorialidade desse uso; e a afectação à utilidade pública.
Ora, os autores não alegaram factos susceptíveis de permitir extrair nenhuma dessas conclusões.
Com efeito, os Autores limitaram-se a alegar que o uso imemorial do caminho em causa se destinou ao acesso ao “monte” do qual são donos (monte “Malha Ferro”), que não tem acesso directo à EN 261-4. O que não preenche nem o requisito da utilização do caminho pelo público em geral (mas sim a utilização do caminho pelos vizinhos daquele prédio confinante), nem o requisito da afectação do caminho a utilidade pública, por também não revelar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância (mas sim os interesses particulares dos vizinhos, ora Autores).
De modo que o alegado pelos Autores não permite qualificar o caminho em causa como sendo um caminho público, mas sim como um mero atravessadouro.
Por outro lado, o caminho em causa não foi criado, nem mantido, nem apropriado por qualquer pessoa colectiva de direito público, pois como resulta da informação jurídica datada de 20/12/2018, elaborada pela Câmara Municipal de Ourique, não existe registo do caminho no Cadastro da Rede Viária existente no Município, não se encontrando classificado como caminho público municipal (de resto, como bem salienta o Ministério Público, a única interacção que a autarquia teve com o referido caminho foi a de efectuar visitas ao local e captar imagens para poder responder às solicitações de um administrado - que, por sinal, é o próprio Autor desta acção).
Em face do exposto, é de concordar inteiramente com o Ministério Público, que bem refere que “o caminho em apreço nos presentes autos não é um caminho público, porquanto, por um lado, não pertence a qualquer entidade pública nem foi legitimamente apropriado por qualquer entidade pública e, por outro lado, porque não foram alegados factos que permitam concluir que o referido caminho foi usado pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.”
Em consequência, é manifestamente improvável a procedência do pedido.
Com efeito, a causa de pedir, apesar de complexa, radica essencialmente na qualificação do caminho em causa como sendo um caminho público. De modo que, sendo manifestamente improvável a qualificação do caminho em causa como sendo usado pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, é evidente que nenhum dos pedidos poderá proceder.
Ora, nos termos do disposto no Artigo 13º da referida Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido.
Pelo exposto, indefiro liminarmente a petição.”.


6. Como se viu, os Autores lançaram mão de uma acção popular para defesa do caminho “EN 261-4 “Malha Ferro”/“Vale Romeira” com a extensão de cerca de 1.900 metros” que reputam de caminho público e que dizem ter sido ilicitamente apropriado pela Recorrida.

Ora, “a acção popular, sendo sempre uma acção judicial e, neste sentido, a expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais, distingue-se de todas as demais modalidades de acções pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura.
Mediante a acção popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade - ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal - estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual.
A acção popular traduz, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais. Deparamos aqui, por isso mesmo, com um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual.
Neste sentido, deverá afirmar-se que o actor popular age sempre no interesse geral da colectividade ou da comunidade a que pertence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judicial envolva a titularidade de qualquer interesse directo e pessoal.”[1].

No n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa consagra-se o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.

Por seu turno, a Lei 83/95, de 31. 8 estabelece os casos em que podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no citado art.º 52º, nº 3 da Constituição.
Entendeu-se, porém, na decisão recorrida que os Autores não alegaram factos integradores dos requisitos cumulativos caracterizadores da dominialidade pública do caminho em causa: o uso directo e imediato do mesmo pelo público; a imemorialidade desse uso; e a afectação à utilidade pública.
E, perante tal omissão, a única decisão possível seria o indeferimento liminar da petição inicial.

Será assim?

O artigo 13.º da Lei 83/95 consagra, como a epígrafe revela, um “Regime especial de indeferimento da petição inicial”.
Aí se estabelece que: “A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.”.

No fundo, este indeferimento liminar, norteado pelo princípio da economia processual, é justificado por uma certeza objectiva de que não há qualquer possibilidade do pedido do autor obter provimento qualquer que seja a interpretação jurídica que se venha a fazer.
E, por isso, esse julgamento antecipado do (de)mérito do feito introduzido em juízo torna inútil qualquer instrução ou discussão posterior.

De acordo com a decisão recorrida, tal juízo de certeza acerca da improcedência da acção adveio do facto de ser “manifestamente improvável a qualificação do caminho em causa como sendo usado pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância” perante a ausência de alegação de factos tendentes a esse desiderato.
Percorrendo a petição inicial, constatamos que foi alegado o seguinte (com relevo para a questão da dominialidade):
7.º
O monte “Malha Ferro” ( dos Autores) não tem acesso directo à EN 261-4 (Doc. n.º 5).
8.º
O acesso ao monte “Malha Ferro” sempre se fez, desde tempos imemoriais, pelo caminho do domínio público que ali existe, que consta da Carta Militar 1/25000 de 1989 e da Carta Cadastal de 1/5000 de 1947 .
9.º
Esse caminho público consta da Ficha Cadastral de Imóveis da Câmara Municipal de Ourique com o n.º de Inventário 7399, como bem do domínio público (Doc. n.º6).
10.º
Constando também do Relatório de Avaliação dos Bens do Domínio Público-Vias de Comunicação Rodoviárias, elaborado em 17 de Maio de 2007, pela Câmara Municipal de Ourique, de acordo com o determinado pela Portaria n.º 671/2000 de 17 de Abril (Doc. n.º7).
11.º
Sendo que, nesse relatório consta que o referido caminho, é de terra batida, tem a extensão de cerca de 1.900,0 metros, iniciando-se na EN 261-4 e dando acesso aos montes “Malha Ferro”, “Vale Romeira” e à Ribeira do Sado, não tendo qualquer tipo de pavimentação, enquadrando-se no tipo designado por “imóveis rústicos”, “infra-estruturas” rodoviárias, nos termos do n.º 2 do art.19.º da Portaria n.º 671/2000 de 17 de Abril (cfr. Doc. n.º7).
Não obstante,
12.º
Apesar de saber que o referido caminho é um bem do domínio público e que não lhe pertence, a Ré decidiu vedá-lo e lavrá-lo, incorporando-o no seu prédio”.

(…)
21.º
Tal acto da Ré impede e dificulta, entre muitas outras e, meramente a título de exemplo:
1. a acção dos operacionais da Protecção Civil e dos Bombeiros, em caso de calamidade, desastres naturais e incêndios;
2. as acções de desassoreamento no rio Sado, sendo que a última foi feita pela Câmara Municipal de Ourique, a qual se serviu do caminho, agora destruído, para a passagem de máquinas e viaturas;
3. as acções de limpeza do rio;
4. o acesso aos visitantes que pretendam passear até ao Rio Sado em programa de recreio e lazer;
5. o acesso ao ramal da Rede Elétrica Nacional implantado ao longo do caminho destruído.
6. o fornecimento de gás, de materiais de construção, e outros bens aos montes;
7. o acesso de profissionais da construção civil e carpintaria para reparações ou obras nos montes;
8. a entrada e o escoamento de produtos agrícolas, nomeadamente azeitona para o lagar;
9. a circulação de trabalhadores agrícolas;
10. o uso pela Associação de Caçadores de Panoias, para reposição de alimentação das espécies e fiscalização da área de caça da respectiva associação a que o Malha Ferro pertence;
11. a movimentação de manadas ou rebanhos de pastagens para outras pastagens de parcelas de prédios rústicos, sem acesso a estradas de alcatrão.
12. o acesso de veículos para realização de ralies tal como sucedeu no passado, com o Rali de Portugal,
13. ou por adeptos do turismo da natureza, para observação de fauna e flora e passeios pedestres.
Acresce que,
22.º
Em 17/01/2020, foi enviada aos AA., pelo Presidente da Câmara de Ourique, a seguinte informação:
“Para os devidos efeitos cumpre-me informar que segundo o Sistema de Inventário e Cadastro Patrimonial da Secção de Património e Aprovisionamento da Câmara Municipal de Ourique, elaborado em 19/09/2006, o caminho identificado no pedido de informação está caracterizado como bem do domínio público (EN 261-4/ Malha Ferro/Vale Romeiros) e tem uma extensão de 1.900,0 metros” (Doc. n.º 15).”.


Parece-nos evidente que foram alegados factos que, a provarem-se, são passíveis de revelar a natureza pública do caminho em causa (que não mero atravessadouro) i.e. pode-se vir a concluir que se trata de um caminho que tem entrada e saída através de outra via dominial e que se revela imprescindível para o acesso e fornecimento de bens e prestação de serviços essenciais à colectividade.

Como é afirmado no sumário do Acórdão do STJ de 15 de Junho de 2000, comentado por Henrique Mesquita na RLJ, nº 3933, pag, 366 e segs., um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública, ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.

É recordado, nesse comentário ( pag. 371) que a “ distinção entre caminhos públicos e atravessadouros deu origem, entre nós, a uma forte controvérsia doutrinal jurisprudencial que não terminou mesmo depois do Supremo Tribunal de Justiça ter proferido , em 1989, um Assento sobre a matéria”( hoje com força de AUJ, nº 7/89 e que formulou o seguinte entendimento : “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”).

E acrescenta-se: “Segundo uma corrente interpretativa, um caminho só reveste natureza dominial quando tenha sido construído ou legitimamente apropriado pelo Estado ou por uma autarquia local e se mantenha sob a administração de um ente estadual ou autárquico.
Os defensores deste entendimento baseiam-se em que o diploma preambular do Código Civil actual , conforme decorre do seu artigo 3º, não revogou os preceitos do Código de Seabra sobre bens do domínio público , designadamente o artigo 380º que enuncia o conceito de coisas públicas nos seguintes termos: São públicas as coisas naturais ou artificiais apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos individual e colectivamente utilizar-se com as restrições impostas pela lei ou pelos regulamentos administrativos.
Segundo uma outra corrente, para que um caminho revista natureza dominial basta que, desde tempos imemoriais, se encontre no uso directo e imediato do público independentemente de quem o administra.
Finalmente, segundo uma corrente intermédia, logo que se prove que determinado caminho está a ser usado pelo público desde tempos imemoriais, deve presumir-se a sua natureza dominial, mas tal presunção poderá ser ilidida mediante prova em contrário”.
Todas estas orientações obtiveram acolhimento em decisões judiciais e a oposição de julgados do Supremo acabou por dar origem ao dito Assento.

Todavia, como se assinala no Acórdão do STJ de 15 de Junho de 2000, tal Assento carece de ser interpretado restritivamente, de modo a harmonizá-lo com o disposto no artigo 1383º do Código Civil, devendo, por isso, para que se possa afirmar a dominialidade, que o uso do caminho vise a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.

Sendo certo que, como se disse, a provar-se a integralidade dos factos alegados poder-se-á alcançar tal conclusão no que ao caminho em causa concerne, o processo não podia ter sido objecto de indeferimento liminar com fundamento na manifesta improcedência da acção.
E, por isso, a decisão recorrida não pode subsistir.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

Sem custas.
Évora,25 de Novembro de 2021
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente
______________________
[1] Assim, Paulo Otero in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 59, dezembro de 1999, pp. 871 e seguintes.