PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
DIREITO AO TRABALHO
Sumário

A pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é sempre aplicada ao agente que seja condenado por condução de veículo em estado de embriaguez.
Assim sendo, as circunstâncias que o arguido invoca na motivação do recurso (não possuir antecedentes criminais ou contraordenacionais, ter confessado os factos, necessitar da respetiva carta de condução - por motivos profissionais e familiares -, etc.) não podem conduzir ao deferimento da pretensão recursória consistente em que a pena acessória de proibição de conduzir imposta pelo tribunal a quo seja revogada (não se aplicando essa pena, pura e simplesmente).
Está, assim, vedado ao juiz, mesmo que este utilize argumentos da mais esclarecida e avançada consciência político-criminal, não aplicar, num caso como o destes autos, um instrumento sancionatório criminal como o agora em análise (proibição de conduzir veículos com motor, a título de pena acessória para quem comete um crime de condução de veículo em estado de embriaguez).
Por sua vez, o “direito ao trabalho”, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma determinada atividade profissional, se confere ao seu titular, por um lado, determinadas dimensões de garantia, e, por outro lado, se impõe ao Estado o cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que, à partida, se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa quer noutra perspetiva, determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado em virtude de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Ora, a esta luz, a constrição do direito ao trabalho que possa resultar para o recorrente da aplicação da medida sancionatória em causa apresenta-se, de um ponto de vista constitucional, como plenamente justificada.
Tal justificação resulta da circunstância de a sanção de proibição (temporária) de conduzir se apresentar como um meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, quer, por um lado, na perspetiva do arguido, a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro lado, na perspetiva da sociedade, posto que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, como que “compensá-la” do risco a que os seus membros foram sujeitos com a prática de uma condução em estado de embriaguez.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de processo sumário, com o nº 197/21.6PBTMR, do Juízo Local Criminal de Tomar, e mediante pertinente sentença, a Exmª Juíza decidiu:

“1 - Condenar o arguido AAGS pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ocorrido em 30-05-2021, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, do C.P, com referência ainda ao disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 400,00 (quatrocentos).

2 - Condenar o arguido AAGS na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses.

3 - Condenar o arguido a pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, reduzida a metade por força da confissão (artigo 513º do Código de Processo Penal)”.

*

O arguido, inconformado, interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“A - O arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de seis meses.

B - O artigo 65º, nº 1, do Código Penal, estipula o princípio do carácter não automático dos efeitos das penas, pelo que, para que se justifique a aplicação de uma pena acessória, é necessário que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória.

C - No caso concreto, o grau de ilicitude do facto e a censurabilidade da conduta do arguido foram moderados, o crime que lhe é imputado foi um episódio único na sua vida e o arguido confessou os factos e demonstrou arrependimento.

D - O arguido é primário e nunca cometeu nenhuma contraordenação, encontrando-se inserido profissional e socialmente.

E - O arguido deverá ser absolvido da pena acessória aplicada, uma vez que a prevenção especial ficará acautelada apenas com a pena de multa aplicada.

F - Sem prescindir, e por mera cautela processual, sempre se dirá que o período de 6 meses é manifestamente excessivo.

G - A determinação da pena acessória deve ter por base as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção.

H - O arguido sempre trabalhou como motorista, sendo que, apesar de se encontrar desempregado, tinha uma proposta de emprego que implicava conduzir veículos.

I - Certamente, com a pena aplicada será impossível ao arguido encontrar um trabalho, e, assim, este prejuízo é manifestamente excessivo face à finalidade da norma, porquanto irá impedir o arguido de desempenhar a sua atividade profissional habitual.

J - A Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao trabalho no artigo 58º, e o interesse punitivo do Estado não poderá limitar, para além do estritamente necessário, os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados (artigos 18º e 30º, nº 5, da C.R.P.).

K - Por outro lado, o agregado familiar do arguido não aufere qualquer rendimento, sendo que o arguido tem um filho portador de uma deficiência profunda, tendo necessidade de efetuar vários tratamentos médicos que distam a vários quilómetros da residência.

L - O arguido sobrevive com ajuda de familiares, não tendo qualquer possibilidade de contratar um motorista, e a pena aplicada causar-lhe-á inúmeros prejuízos que podem colocá-lo numa situação de absoluta carência económica.

M - A pena aplicada provocará não só sérios problemas na sua vida profissional, mas também e principalmente na vida do seu filho, já que é imprescindível que o arguido possa sempre ter a possibilidade de o transportar rapidamente para o Hospital.

N - Os fundamentos em que assentou a medida de sanção acessória não tiveram em atenção a ilicitude do facto (moderada), a inexistência de antecedentes criminais, as condições pessoais do arguido e a sua situação económica e profissional.

O - Face a todo o exposto, a medida da pena acessória deve ser reduzida para o seu limite mínimo (3 meses).

P - Em suma, foi violado o disposto no artigo 65º, nº 1, do Código Penal, e nos artigos 58º, 18º e 30º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

Nos termos expostos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

A. – O arguido ser absolvido da pena acessória aplicada; ou, subsidariamente,

B. – A mesma ser reduzida para o seu limite mínimo (três meses)”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo pela sua improcedência, e terminando tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. O arguido foi condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, pelo que tem que ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados prevista no artigo 69º, nº 1, do mesmo diploma legal.

2. Da redação do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, resulta que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é sempre aplicada ao agente que seja condenado por condução de veículo em estado de embriaguez.

3. Ponderando os factos que resultaram provados e relevantes para a fixação da medida da pena, em face da respetiva moldura - de 3 meses a 3 anos - e considerando o valor da taxa de alcoolemia registada, de pelo menos 2,64 g/l/, afigura-se que a pena acessória de proibição de conduzir por 6 meses aplicada ao recorrente se revela necessária, adequada e proporcional ás exigências de prevenção geral e especial.

4. Ao condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir a douta sentença recorrida não violou qualquer norma legal.

5. Assim sendo, deverá ser negado provimento ao recurso e manter-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos”.

*

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo também que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1- Delimitação do objeto do recurso.

No presente caso as únicas questões evidenciadas no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, são as seguintes:

1ª - Determinar se, perante as circunstâncias do caso, o arguido pode ser “absolvido” (na expressão constante da motivação do recurso) da pena acessória aplicada.

2ª - Saber se é de manter a medida concreta da pena acessória de proibição de condução aplicada ao arguido na sentença revidenda (6 meses), ou se a mesma deve ser reduzida.

2 - A decisão recorrida.

Na sentença revidenda foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 30-05-2021, pelas 12,13 horas, o arguido AAGS conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca e modelo …, com a matrícula …, na Rua de …, ….

2. O arguido conduzia naquelas circunstâncias de tempo, lugar e modo, quando se despistou, tendo sido fiscalizado e submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue.

3. Ora, ao ser-lhe efetuado o teste de pesquisa de álcool no sangue através do alcoolímetro de marca ACS SAFIR EVOLUTION, o arguido apresentou a taxa de álcool de pelo menos 2,640 gramas por litro de sangue, correspondente à taxa de álcool no sangue de 2,87 gramas por litro de sangue, deduzido o valor do erro máximo admissível.

4. Ao proceder conforme o descrito, tinha o arguido perfeito conhecimento de que não podia circular, na via pública, conduzindo o mencionado veículo, sob a influência do álcool, mas não obstante essa cognição, ingeriu, antes de iniciar a condução, bebidas alcoólicas necessárias e suficientes para acusar a supra referida taxa de alcoolemia.

5. O arguido atuou de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, não se tendo, mesmo assim, abstido de a concretizar.

6. O arguido é pintor da construção civil, mas, atualmente, encontra-se desempregado, não auferindo qualquer subsídio ou qualquer rendimento.

7. Reside com a esposa, que também não aufere qualquer rendimento, e com um filho, deficiente.

8. O agregado familiar subsiste com a ajuda financeira de familiares do arguido.

9. O agregado familiar vive em casa arrendada, pagando o arguido 150 euros de renda mensal.

10. O arguido confessou os factos, integralmente e sem reservas.

11. O arguido não possui antecedentes criminais.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da aplicação da pena acessória.

Alega-se na motivação do recurso, em breve resumo, que, neste caso concreto, face ao grau de ilicitude e de culpa (moderados), e ponderando que o arguido é primário, confessou os factos e está inserido profissional e socialmente, deve o mesmo “ser absolvido da pena acessória aplicada, uma vez que a prevenção especial ficará acautelada apenas com a pena de multa aplicada”.

Mais se alega na motivação do recurso que o arguido sempre trabalhou, sendo que, apesar de se encontrar desempregado, tinha uma proposta de emprego que implicava conduzir veículos, pelo que, com a pena acessória aplicada será impossível ao arguido encontrar um trabalho, o que viola a Constituição da República Portuguesa - quando esta consagra o direito ao trabalho (no seu artigo 58º) -.

Alega ainda o recorrente que não aufere qualquer rendimento, que tem a seu cargo um filho portador de uma deficiência profunda, que tem necessidade de efetuar vários tratamentos médicos que distam a vários quilómetros da sua residência, que sobrevive com a ajuda de familiares e que não tem qualquer possibilidade de contratar um motorista, pelo que a pena acessória aplicada lhe causará inúmeros prejuízos e sérios problemas (na sua vida profissional e familiar).

Cabe decidir.

I - O arguido vem condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal.

Estabelece o artigo 69º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal, que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido (…) por crimes previstos nos artigos 291º e 292º”.

Perante este normativo legal, e a nosso ver, não existe a possibilidade de a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor poder não ser cumprida pelo condenado (verificadas que sejam certas circunstâncias), sendo ainda certo que tal possibilidade não é aberta por qualquer outra disposição legal.

Ou seja, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é sempre aplicada ao agente que seja condenado por condução de veículo em estado de embriaguez, como acontece no caso destes autos.

Assim sendo, as circunstâncias que o arguido invoca na motivação do recurso (não possuir antecedentes criminais ou contraordenacionais, ter confessado os factos, necessitar da respetiva carta de condução - por motivos profissionais e familiares -, etc.) não podem conduzir ao deferimento da pretensão recursória consistente em que a pena acessória de proibição de conduzir imposta pelo tribunal a quo seja revogada (não se aplicando essa pena, pura e simplesmente).

Essa pretensão do recorrente não tem qualquer cabimento legal.

Desde logo, nos casos de condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292º, nº 1, do Código Penal), a pena acessória surge estruturalmente ligada à prática do crime, pelo que, uma vez este cometido, o tribunal não pode deixar de aplicar tal pena acessória.

Com efeito, a definição e o modo de aplicação das penas estão balizados pelo princípio da legalidade. O catálogo das penas (como o dos crimes), e do seu modo de execução, é taxativo e estabelecido, necessariamente, por lei (cfr. o disposto nos artigos 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, e 1º do Código Penal).

Ora, no caso da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a lei não prevê qualquer possibilidade de o tribunal não a aplicar.

Está, assim, vedado ao juiz, mesmo que este utilize argumentos da mais esclarecida e avançada consciência político-criminal, não aplicar, num caso como o destes autos, um instrumento sancionatório criminal como o agora em análise (proibição de conduzir veículos com motor, a título de pena acessória para quem comete um crime de condução de veículo em estado de embriaguez).

Repete-se: o normativo contido no artigo 69º do Código Penal não prevê a possibilidade da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não dever ser cumprida, nem tal possibilidade é aberta por qualquer outra disposição legal.

Mais: como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 226, nota nº 8 ao artigo 69º), “a proibição não pode ser limitada a certos períodos do dia, nem a certos veículos (…), nem pode ser diferido o início da respetiva execução”.

Mais ainda: a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não pode ser substituída por qualquer outra pena, nomeadamente pela suspensa da sua execução.

Com efeito, o Código Penal (no seu artigo 50º) não permite a suspensão de outra pena que não seja a de prisão.

Face ao disposto no artigo 50º do Código Penal, só é suscetível de suspensão a pena de prisão (até cinco anos), e nunca a pena de multa, nem a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados prevista no artigo 69º do Código Penal.

Como bem se escreve no Ac. do T.R.C. de 17-01-2001 (in C.J., 2001, Tomo I, pág. 52), “se a pena acessória apenas visa prevenir a perigosidade que imanente está na própria norma incriminadora, que a justifica e impõe, sendo-lhe indiferente quaisquer outras finalidades, é evidente que tal desiderato só poderá ser conseguido mediante a execução efetiva da correspondente pena” (cfr., neste mesmo sentido, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Crimes Rodoviários - Pena Acessória e Medidas de Segurança”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1996, pág. 32; e Francisco Marques Vieira, in “Direito Penal Rodoviário”, Publicações Universidade Católica, Porto, 2007, pág. 211).

Em suma: a pretensão do arguido, de que a pena acessória de proibição de conduzir não seja aplicada in casu, carece de qualquer fundamento válido.

II - Alega o recorrente que o cumprimento da pena acessória em causa viola o seu direito ao trabalho, direito este constitucionalmente consagrado (artigo 58º da Constituição da República Portuguesa).

Estabelece o artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.

Por sua vez, o artigo 58º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa refere que “todos têm direito ao trabalho”.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

Por último, traduzindo a reprodução, ao nível da lei ordinária, do comando constante do artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, dispõe o artigo 65º, nº 1, do Código Penal, que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”.

Aplicando estes normativos ao caso dos autos, há que dizer que, levando a tese do recorrente às últimas consequências, chegaríamos à absurda conclusão de que, quando fosse aplicada a um cidadão uma pena privativa de liberdade, resultaria violado, por forma constitucionalmente inadmissível, o “direito ao trabalho” desse cidadão (sobretudo se ele, em liberdade, tinha um emprego, emprego que perdeu com a privação de liberdade).

Salvo o devido respeito, a alegação do recorrente em todo este segmento carece de sentido.

Com efeito, embora a Constituição da República Portuguesa garanta o direito ao trabalho, não é menos certo que permite a limitação a esse direito em caso de cumprimento de pena ou medida de segurança.

Não há dúvidas que, no caso da proibição de conduzir veículos com motor em causa nestes autos (sanção prevista no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal), estamos perante uma pena acessória, pois a mesma pressupõe a aplicação de uma pena principal (prisão ou multa - cfr. o disposto no artigo 292º, nº 1, do mesmo Código Penal -).

Por sua vez, o “direito ao trabalho”, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma determinada atividade profissional, se confere ao seu titular, por um lado, determinadas dimensões de garantia, e, por outro lado, se impõe ao Estado o cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que, à partida, se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa quer noutra perspetiva, determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado em virtude de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Ora, a esta luz, a constrição do direito ao trabalho que possa resultar para o recorrente da aplicação da medida sancionatória em causa apresenta-se, de um ponto de vista constitucional, como plenamente justificada.

Tal justificação resulta da circunstância de a sanção de proibição (temporária) de conduzir se apresentar como um meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, quer, por um lado, na perspetiva do arguido, a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro lado, na perspetiva da sociedade, posto que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, como que “compensá-la” do risco a que os seus membros foram sujeitos com a prática de uma condução em estado de embriaguez.

É claro que não pode esquecer-se o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais e a sua ponderação relativa, onde avultam, neste caso, de um lado, o direito ao trabalho, e, de outro lado, a justificação de restrições a direitos fundamentais que a aplicação das penas implica.

No que diz respeito à primeira vertente assinalada, o conteúdo essencial do direito ao trabalho, que o recorrente vê ofendido com a aplicação da pena acessória de proibição de condução, não é atingido, na medida em que a ponderação que resulte do confronto do direito ao trabalho com a proteção de outros bens - que fundamentam a sua limitação, através da aplicação da pena acessória infligida - não redunda na aniquilação, ou, sequer, na violação desproporcionada de qualquer direito fundamental ao trabalho.

No tocante à segunda vertente descrita, é inquestionável que se pretendem proteger, com a aplicação da pena acessória de proibição de condução, bens ou interesses de grande relevo e constitucionalmente protegidos (por exemplo, a vida e a segurança das pessoas), sobretudo em face da dimensão do risco que para esses bens a conduta criminosa de condução de veículo em estado de embriaguez comporta, pondo em causa a vida, a integridade física e a segurança de todos os que circulam nas estradas.

Daí que a alegada violação do direito ao trabalho, tal como é sustentado pelo recorrente, não possa, sem mais, ser valorada em termos absolutos, pois que a limitação que a este direito é imposta com a aplicação da sanção inibitória o é na medida em que o sacrifício parcial que daí resulta não é arbitrário, gratuito ou carente de motivação, mas sim justificado para salvaguarda de outros bens ou interesses de grande relevo e constitucionalmente protegidos.

Acresce que, não estando o recorrente perante qualquer perda do direito de conduzir, mas apenas perante uma proibição temporária do exercício da condução, não pode considerar-se que a sua liberdade de exercer o trabalho esteja postergada ou limitada de forma desproporcionada e desadequada.

O núcleo essencial do direito ao trabalho do recorrente está, por conseguinte, plenamente assegurado.

Por último, não está proibido pela Constituição da República Portuguesa a possibilidade de a lei definir como penas (ou medidas de segurança) a privação definitiva ou temporária de direitos.

O que o artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, isso sim, é, tão-só, a perda automática desses direitos (civis, profissionais ou políticos), ou seja, a perda como consequência automática de uma condenação penal.

Neste ponto, o que decorre da nossa Lei Fundamental é que as penas devem ser aplicadas em função de uma prévia decisão judicial, tomada de acordo com as regras pertinentes em matéria penal, decisão judicial essa na qual, necessariamente, têm que ser respeitados os princípios da culpa, da tipicidade, da proporcionalidade e da necessidade.

O relevante, neste aspeto, é que a duração da proibição de condução varie consoante a gravidade da infração. Ou seja, o aplicador da pena inibitória tem de ponderar as circunstâncias da infração por forma a adequar o tempo da proibição em causa.

Como muito bem se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 362/92 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 08 de abril de 1993), não se está, no presente caso, "perante um efeito ope legis da condenação por certos crimes (…) que leve à perda do direito de conduzir veículos, mas, antes, perante um tipo de conduta (condução de veículo sob o efeito do álcool) que, sendo valorada para a condenação, pelo crime que integra, deve também poder ser apreciada complementarmente para, segundo os mesmos critérios de justiça, permitir a aplicação pelo tribunal da medida de inibição temporária de condução, enquanto pena acessória”.

A aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, como é bom de ver, não decorre, sem qualquer intervenção jurisdicional (isto é, automaticamente), da imposição da pena aplicada pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa pena acessória, ainda que no seu limite mínimo, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, colisão com a proibição de automaticidade.

A necessidade da adequação da proibição de conduzir a cada caso concreto revela que esta pena acessória se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada às penas de prisão ou de multa se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para estas últimas.

Isto é, a aplicação da proibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação das penas de prisão e de multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respetiva culpa, e a determinação da medida concreta do período de proibição de conduzir rege-se pelos mesmos critérios seguidos para a determinação da medida concreta da pena principal.

Em jeito de síntese: atenta a natureza do crime em questão, com a inerente perigosidade decorrente da conduta nele pressuposta, surge como adequada e proporcional a sanção de proibição de conduzir, mesmo que dela possa decorrer, no caso concreto, a perda do trabalho exercido pelo arguido (ou, de igual forma, a perda da oportunidade de o arguido vir a obter um trabalho).

Conclui-se, assim, que a norma constante do artigo 69º do Código Penal, na forma como foi aplicada na sentença recorrida, não viola qualquer disposição da Constituição da República Portuguesa.

III - Alega o recorrente que tem um filho portador de uma deficiência profunda - o qual tem necessidade de efetuar tratamentos médicos que distam a vários quilómetros da residência -, que não aufere quaisquer rendimentos e que sobrevive com a ajuda de familiares, pelo que a pena acessória fixada nestes autos lhe causa inúmeros prejuízos e sérios problemas, quer na sua vida profissional, quer na sua vida familiar.

Com o devido respeito por tais alegações e pelas pretensões recursivas delas decorrentes, cumpre apenas dizer, a seu propósito, que os custos, de ordem profissional e/ou familiar, que poderão advir para o recorrente do facto de a proibição em causa poder afetar as suas eventuais funções profissionais, a assistência devida aos seus familiares, ou a obtenção de rendimentos (para si ou para o seu agregado familiar), são próprios das penas, que só o são se representarem para o condenado um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais, sendo que tais custos nada têm de desproporcionado em face dos perigos para a segurança das outras pessoas criados pela condução de veículos em estado de embriaguez e que a aplicação da pena pretende prevenir.

Face ao predito, e nesta primeira vertente, o recurso do arguido não merece provimento.

b) Da medida concreta da pena acessória.

Entende o recorrente que, in casu, a medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados não deve exceder os 3 meses (mínimo legalmente previsto).

A questão colocada à nossa apreciação consiste, pois, em saber qual a medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a estabelecer no caso dos autos.

Cumpre decidir.

A proibição de conduzir, como verdadeira pena que é, submete-se às regras gerais de determinação da medida da pena, constantes do artigo 71º do Código Penal, ressalvando-se a finalidade a atingir, que se revela mais restrita, porquanto a sanção em causa visa primordialmente prevenir a perigosidade do agente, ainda que se reconheçam também necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, através da tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada.

Culpa e prevenção são as referências norteadoras da determinação da medida da pena (quer ela seja pena principal ou acessória) - artigo 71º, nº 1, do Código Penal -, a qual visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40º, nº 1, do mesmo diploma legal).

A moldura penal abstrata da sanção acessória configurada no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, tem como limite mínimo e máximo de proibição de condução de veículos com motor três meses e três anos, respetivamente.

No caso em apreciação, há que ter em conta:

- O grau médio de ilicitude dos factos, revelado pela taxa de alcoolemia (2,64 g/l) detida pelo arguido (potenciadora de manifesto perigo para a eclosão de acidentes de viação - como aconteceu in casu, pois que o arguido se despistou, tendo sido fiscalizado e submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue após esse despiste do veículo automóvel que conduzia -).

- O dolo, que se manifesta de forma intensa.

- A conduta anterior do arguido, que não possui quaisquer antecedentes criminais.

- A confissão, integral e sem reservas, do arguido.

- As condições, pessoal e económica, do arguido (é pintor da construção civil, estando atualmente desempregado e não auferindo qualquer rendimento; vive com a esposa, que também não aufere qualquer rendimento, e com um filho, deficiente; subsistem todos com a ajuda financeira de familiares).

- Finalmente, as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, que não são despiciendas, num contexto temporal em que, a nosso ver, a condução de veículos em estado de embriaguez contribui, em relevante medida, para a eclosão da perniciosa sinistralidade rodoviária registada em Portugal.

Olhando a todos os fatores elencados, e à luz dos princípios que norteiam a determinação da medida concreta da pena (acima referidos), carece de fundamento válido, manifestamente, a pretensão do arguido de redução da pena acessória para o limite mínimo de três meses.

Contudo, e ponderada a globalidade complexiva dos fatores dados por provados na sentença revidenda, afigura-se-nos que a pena acessória de proibição de o arguido conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, imposta pelo tribunal a quo, está fixada de forma algo excessiva, merecendo da nossa parte uma compressão (ainda que pequena).

É certo que depõe contra o arguido o grau de alcoolemia registado (2,64 g/l) - o qual traduz, em nosso entender, um grau médio de ilicitude dos factos -.

Porém, depõem a favor do arguido a ausência de antecedentes criminais e a confissão.

Tudo ponderado, cremos que fixar em 5 meses a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados se mostra ajustado ao caso concreto.

Por conseguinte, e nesta segunda vertente, o recurso é parcialmente de proceder (reduzindo-se de 6 para 5 meses a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados a aplicar ao arguido).

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido, revogando a sentença recorrida na parte em que o condenou em 6 meses de proibição de conduzir, substituindo-a, nessa parte, pela condenação do arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses, de harmonia com o preceituado no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, mantendo-se em tudo o mais o decidido em primeira instância.

Sem custas (porquanto o recurso teve parcial provimento).

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 11 de janeiro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia