I - O requerente formula petição de habeas corpus por entender que o facto de lhe ter sido negada a possibilidade de estar presente na sala onde decorria o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no momento em que o Ministério Público e o seu advogado formularam as suas conclusões, constitui uma nulidade insanável, razão pela qual inválida se mostra a diligência onde ocorreu e os actos dela dependentes.
II - Contudo, a pretensa nulidade, sendo fundamento para um recurso ordinário (que, aliás, interpôs) não justifica a dedução desta providência.
III - O facto de o arguido não ter estado presente – ele próprio – na sala onde decorreu o 1.º interrogatório judicial, no momento em que o Ministério Público e o seu próprio mandatário se pronunciaram sobre os indícios recolhidos e as medidas de coacção a aplicar, não interferiu, em rigorosamente nada, na decisão proferida pela Mª juíza. E daí que, independentemente de se saber se tal ausência se traduziu numa nulidade insanável (o que é objecto de recurso ordinário entretanto interposto), certo é que tal ausência não teve qualquer consequência que se possa acolher aos fundamentos da petição referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
Acordam nesta 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
A) AA, melhor identificado nos autos, requereu a presente providência de habeas corpus, em documento subscrito pelo seu mandatário e onde afirma:
«1º - O peticionante foi detido no dia 16 do corrente e interrogado no JIC de …. no dia seguinte.
2.º - Durante o citado interrogatório, depois de ser inquirido pelo Tribunal, foi, por ordem da Mª JIC mandado sair da sala, sendo assim impedido de assistir à douta Promoção do Digno MP e às alegações do seu mandatário que discretearam acerca da aplicação de medida de coacção.
3.° E Isso no decurso da sessão nos termos do disposto no art.º 141º do CPP.
4.º - O arguido requerera, através do seu mandatário, como da Acta consta, que pudesse estar presente em todo o decurso da audiência, mas tal pretensão foi-lhe indeferida por despacho de que o arguido já interpôs - e motivou - o respectivo recurso.
5.° - A nulidade do Auto de Interrogatório é assim patente a olho nu, por verificação da nulidade prevista no art.° 119.° c) do CPP uma vez que o arguido não esteve presente em acto processual cuja comparência era obrigatória. (art,° 141.° CPP e art.° 61.° n.° 1 alínea a) CPP).
Assim,
6.° - Sendo nulo o respetivo Auto de Interrogatório, por aplicação do art.° 122.° do mesmo CPP o arguido encontra-se ainda sob detenção, que ultrapassa já o prazo de 48 horas, atenta a data da sua detenção
7.° - Pelo que a detenção do arguido se mostra ilegal.
8° - Pelo que a detenção e subsequente prisão do peticionante do arguido se mostram, por isso, a todos os títulos ilegais e assim devem ser declaradas por este Supremo Tribunal de Justiça.
9.°- A qualquer pessoa que se encontre ilegalmente presa, o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência extraordinária do Habeas Corpus. (art.° 222 n.° 1 do CPP),
Requer-se, por isso,
a) - a concessão da referida providência do Habeas Corpus, com a declaração de ilegalidade da prisão imposta ao peticionante, a qual que se mantém actual,
b) e a imediata restituição à liberdade do peticionante AA (art.° 222.° n.° 1 e 2 alínea b) do CPP e art.° 31.° n.° 1 2 e 3 da Constituição da República)».
B) A Mª juíza do Juízo de instrução criminal de ….. prestou a informação a que alude o artº 223º, nº 1 do CPP, nos seguintes termos:
«Os arguidos BB fls, 4153-4157) e AA (fls. 4249-4253) suscitaram a providência de habeas corpus com base no art. 222.º, n° 2, al. B) do C.P.P. (sic).
Em síntese, alegaram os arguidos que aquando da realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, depois de terem prestado declarações, o Tribunal determinou que os arguidos saíssem da sala, tendo os mesmos ficado impedidos de assistir à promoção do MºP° e aos requerimentos do respectivo mandatário judicial, o que consubstancia a nulidade do auto de interrogatório, nos termos do art. 119°, al. C) do CPP. Assim, concluem os arguidos que, encontrando-se os mesmos detidos há mais de 48 horas, a sua detenção é ilegal.
Concluem pugnando pela libertação imediata.
Nos seus fundamentos de petição da providência extraordinária de habeas corpus entendemos que, na verdade e salvo melhor opinião, o arguido aduziu argumentos de discordância relativamente ao facto de terem sido impedidos de assistir à promoção do M°P° e requerimentos do seu Mandatário judicial. Sobre a suscitada questão, já o Tribunal se pronunciara na própria acta de primeiro interrogatório judicial.
O meio processual próprio/idóneo para reagir à decisão que impediu os arguidos de assistirem à promoção do MºPº e requerimentos do seu mandatário judicial, é a interposição de recurso, admissível nos termos previstos no regime dos recursos ordinários da Lei processual penal.
Em bom rigor, nenhuns dos argumentos/fundamentos invocados pelos arguidos se aproximou, sequer timidamente, da norma legal por si enunciada como fundamento de prisão ilegal.
Entendo, portanto, que o arguido se encontra legalmente preso, carecendo de fundamento o requerimento de habeas corpus para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não estando, de todo em todo, preenchido o requisito previsto no art. 222.°, n.°2, alínea b) do Código de Processo Penal.
No entanto, Vossas Excelências, Colendos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão».
C) Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efectuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais.
A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação, a qual imediatamente se torna pública.
O factualismo relevante para a decisão desta providência é o seguinte:
1. O requerente foi sujeito a 1º interrogatório judicial de arguido detido, que teve lugar em 17 de Setembro de 2021.
2. Em momento imediatamente anterior à promoção do Ministério Público, relativa às medidas de coacção a aplicar, o ilustre mandatário do arguido, alegando que este “tem o direito de conhecer, em sede de requerimento, a posição do seu advogado no processo, bem como a argumentação que o mesmo irá utilizar na defesa do seu constituinte” e, bem assim, que “a obrigatoriedade da assistência do defensor nos interrogatórios feitos perante autoridade judiciária tem de ser entendida como a possibilidade de o arguido assistir quer à promoção do Digno Ministério Público que irá propor a medida de coacção que entender como, ainda, os argumentos que o seu advogado irá apresentar junto do Tribunal”, requereu que o arguido fosse autorizado a permanecer na sala, nesse momento processual.
3. Tal pretensão foi indeferida pela Mª juíza que presidia ao acto, “por falta de fundamento legal”.
4. O arguido interpôs, de imediato, recurso para o Tribunal da Relação …..
5. No termo dessa diligência, foi proferido despacho onde se considerou fortemente indiciada a prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1 e verificada a possibilidade de continuação da actividade criminosa, o perigo de perturbação da tranquilidade pública e de perturbação do inquérito, razões pelas quais foi determinado que o mesmo aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva.
6. Em 21 de Setembro de 2021, veio o arguido requerer a presente providência cautelar.
D) “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente”, assim se dispõe no artº 31º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
E, nos termos do estatuído no artº 222º, nº 1 do CPP, “a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus”.
A petição, como se prescreve no nº 2 do mesmo dispositivo, deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
“a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.
Como já se sublinhou no Acórdão deste Supremo Tribunal, proferido no Proc. 48/08.7P6PRT-J.S1, da 3ª secção, o habeas corpus é uma providência “destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.
Mas “não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs., do CPP). A providência não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade” – Ac. deste STJ, proferido no Proc. 1084/19.3PWLSB-A.S1, da 5ª secção.
Ou, dito de outro modo: “A providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir‑se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere — mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art. 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem‑no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio” - Ac. STJ de 1/2/2007, Proc. 07P353, rel. Pereira Madeira).
Posto isto:
O requerente formula esta petição de habeas corpus por entender que o facto de lhe ter sido negada a possibilidade de estar presente na sala onde decorria o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no momento em que o Ministério Público e o seu advogado formularam as suas conclusões, constitui uma nulidade insanável, razão pela qual inválida se mostra a diligência onde ocorreu e os actos dela dependentes.
Contudo – sempre ressalvado o devido respeito por melhor opinião – a pretensa nulidade, invocada pelo requerente, sendo fundamento para um recurso ordinário (que, aliás, interpôs) não justifica a dedução desta providência.
O habeas corpus, enquanto providência extraordinária destinada a acautelar o direito à liberdade, visa reagir a situações de prisão manifestamente ilegais, mas não se confunde, não é substituto nem complemento do recurso ordinário.
Daí que não seja esta providência o meio adequado para impugnar o mérito do despacho que ordena a prisão preventiva. E “não é também o habeas corpus o meio adequado para impugnar as decisões processuais ou para arguir nulidades e irregularidades processuais, que terão de ser impugnadas através de recurso ordinário (…)” – Maia Costa, Código de Processo Penal comentado”, 3ª ed. revista, 853 (subl. nosso).
E neste sentido já assim se decidiu neste Supremo Tribunal, no Ac. de 16/7/2003, Proc. 2860/03 da 3ª secção: “II. Quanto à providência de habeas corpus, os fundamentos legalmente enunciados no artº 222º, nº 2 do CPP revelam que a ilegalidade da prisão que lhe está pressuposta, se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a prisão preventiva), ou a directa, manifesta e auto-determinável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo). III. Deste controlo estão afastadas todas as condicionantes, procedimentos, avaliação prudencial segundo juízos de facto sobre a verificação de pressupostos, condições, intensidade e disponibilidade de utilização in concreto dos meios de impugnação judicial. (…) IX. A invocação no âmbito de tal providência da negação ao arguido do acesso a determinados elementos constantes do processo em fase de inquérito é manifestamente impertinente àquela providência: trata-se, de novo, de referências de natureza simplesmente processual (amplitude processual do direito de defesa, igualdade de armas, processo equitativo), inteiramente fora do âmbito da providência extraordinária de habeas corpus”.
No mesmo sentido se decidiu no acórdão deste Tribunal de 9/4/2015, Proc. 1052/05.2TAVRL-C.S1: “Não cabe ao STJ no âmbito da providência (de habeas corpus) requerida pronunciar-se sobre nulidades ou irregularidades processuais ou inexistência, que poderiam ter ocorrido no processo onde foi aplicada a pena de prisão” (sub. nosso).
Ou, ainda, no Ac. do STJ de 4/2/2009, Proc. 09P0325: “O habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários - mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou, erro grosseiro) enquadrável no disposto das três alíneas do nº 2 do artº 222ºdo CPP. O habeas corpus, é assim e, apenas, um meio excepcional de controlo da legalidade da prisão, estritamente vinculado aos pressupostos e limites determinados pela lei”.
Ora, cremos ser inquestionável que, no caso em apreço, a prisão (preventiva) do requerente foi ordenada por entidade competente: um juiz de instrução, no termo de um primeiro judicial de arguido detido – artº 222º, nº 2, al. a) do CPP.
Como, de igual modo, temos como certo que a prisão se queda dentro dos prazos fixados por lei (iniciou-se apenas no dia 17 de Setembro de 2021) – artº 222º, nº 2 al. c), do mesmo diploma.
O requerente peticiona a sua libertação ao abrigo do artº 222º, nº 2, al. b) do mesmo diploma: por a prisão “ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite”.
Mas, como é evidente e dispensa grandes considerações, a prisão foi motivada por facto pelo qual a lei a permite: fortes indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto no artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1 e aí punido com prisão de 4 a 8 anos, sendo certo que, nos termos do disposto no artº 202º, nº 1, al. a) do CPP, é admissível – nessa situação - a sujeição do arguido à medida de prisão preventiva.
Por outro lado, e como referido no no Ac. do STJ de 4/2/2009 acima referido, “nesta providência excepcional, há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma dada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo, valendo os efeitos que em cada momento produzam no processo, e independentemente da discussão que aí possam suscitar e decidir, segundo o regime normal dos recursos, produzem alguma consequência que se possa acolher aos fundamentos da petição referidos no artigo 222°, nº 2 do Código de Processo Penal”.
Ora, o facto de o arguido e ora requerente não ter estado presente – ele próprio – na sala onde decorreu o 1º interrogatório judicial, no momento em que o Ministério Público e o seu próprio mandatário se pronunciaram sobre os indícios recolhidos e as medidas de coacção a aplicar, não interferiu, em rigorosamente nada, na decisão proferida pela Mª juíza. E daí que, independentemente de se saber se tal ausência se traduziu numa nulidade insanável (o que é, como vimos, objecto de recurso ordinário entretanto interposto), certo é que tal ausência não teve qualquer “consequência que se possa acolher aos fundamentos da petição referidos no artº 222º, nº 2 do Código de Processo Penal”.
O mesmo é dizer, portanto e a concluir, que no caso não se verifica qualquer dos fundamentos enunciados no artº 222º, nº 2 do CPP, razão pela qual outra solução não resta que não seja a do indeferimento do pedido formulado pelo requerente.
São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, alínea a) do CPP).
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 6 de Outubro de 2021 (processado e revisto pelo relator)
Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)
Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)
Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)