INCOMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
SERVIÇOS DE FORNECIMENTO DE ÁGUA OU SANEAMENTO
Sumário

I - Os tribunais comuns não são os competentes para a apreciação de um litígio em que uma empresa concessionária do serviço municipal de abastecimento de água pretende cobrar quantias referentes à construção de ramais de ligação a rede de saneamento de águas residuais, vistorias e taxas correspondentes, uma vez que a respetiva causa de pedir se reconduz a uma relação jurídica administrativa.
II - A competência pertence aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do art. 1º e 4º/1 o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro na redação da Lei 114/2019 de 26 de julho.

Texto Integral

CompMat-3078/21.0T8VNG.P1

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SUMÁRIO[1]( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, instaurada em 22 de abril de 2021, em que figuram como:
- AUTORA: B…, S.A., NIPC ………, com sede na Av. …, 1601, 4460-316, … ; e
RÉ: C…, UNIPESSOAL, LDA, pessoa coletiva n.º ………, com sede na Rua … - … – … ., nº …, ., sala …, ….-… Vila Nova Gaia
pede a autora a condenação da ré no pagamento da quantia de 1.426,28€, sendo 1.331,43€ de capital, 47,49€ de juros vencidos calculados à taxa legal de mora comercial em vigor desde a data de vencimento da supra citada fatura até 18 de março de 2021, e ainda os vincendos às sucessivas taxas legais comerciais de mora em vigor até efetivo e integral pagamento, bem como, as despesas administrativas havidas no valor de 47,36€.
Alegou para o efeito e em síntese, que a Autora é uma sociedade comercial anónima que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município de....
A Autora detém a concessão para exploração dos serviços municipais de distribuição de água e recolha e tratamento de água residuais no concelho de ..., com contrato de concessão em vigor desde 17.09.2007 até à presente data (https://www.B.......pt/fotos/editor2/contratoconcessaomts.pdf ).
Em virtude de tal contrato de concessão, e no âmbito das suas funções e obrigações contratuais, a Autora disponibilizou ramal de ligação de saneamento público, junto do imóvel propriedade da Ré, sito na Rua …, lote n.º .., ….-… …, ..., possibilitando a ligação da rede predial do imóvel do Réu ao sistema público de saneamento (https://www.B.......pt/fotos/editor2/contratoconcessaomts.pdf ).
O empreiteiro da obra do prédio em causa efetuou, junto da A., pedido de contador de obra e posteriores vistorias do imóvel.
O procedimento de ligação da rede predial do imóvel em questão ao sistema público de saneamento para efetivação de contratação do respetivo serviço, iniciou-se com a apresentação dos projetos de rede de abastecimento de água e drenagem de águas residuais apresentados pela Ré à Autora em junho de 2019.
Verificando-se a disponibilidade das redes públicas junto do imóvel da Ré, como no caso, nos termos do disposto no art. 59º do DL 269/2009 de 20 de Agosto, a ligação da rede predial do imóvel da Ré ao sistema público era e é obrigatória ao abrigo do disposto no art. 69º do citado Decreto Lei.
Foi remetida à Ré, na qualidade de proprietária, a Fatura n.º ………., no valor de 1.331,43€, emitida em 24/08/2020, com vencimento em 13/09/2020, para liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, ensaio/inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel da mesma, para subsequente efetivação da ligação e contratação do serviço.
A fatura foi emitida em consonância com os tarifários em vigor, devidamente publicitados anualmente (http://www.B.......pt/pt/clienteatendimento/tarifario/) e e ainda de acordo com o art. 25º do Regulamento do Serviço Público Municipal de Abastecimento de água do Concelho de ..., “por cada ramal de ligação ao sistema público a B... cobrará os serviços prestados, de acordo com o tarifário em vigor.”http://www.B.......pt/fotos/editor2/regulamentoB.......pdf).
Mais alegou que a Ré nada pagou, motivo pelo qual lhe foi enviada uma carta de interpelação para pagamento, sem que a ré tenha procedido ao pagamento.
Acresce ao valor em dívida a quantia de 47,36€ a título de despesas administrativas havidas com preparação e elaboração de cartas e custos de CTT, que se peticionam ao abrigo do art.º 7.º do DL 62/2013, de 10 de Maio.

Proferiu-se o despacho liminar que se transcreve:
“ Autora:
B…, S.A., NIPC ………, com sede na Av. …, …., ….-…, ….
Ré:
C…, UNIPESSOAL, LDA, pessoa coletiva n.º ………, com sede na Rua … - … – Edifício, nº …, ., sala …, ….-… Vila Nova Gaia
Pedido:
De condenação da ré «a pagar à Autora a quantia total de 1.426,28€, sendo 1.331,43€ de capital, 47,49€ de juros vencidos calculados à taxa legal de mora comercial em vigor desde a data de vencimento da supra citada fatura até hoje (18/03/2021), e ainda os vincendos às sucessivas taxas legais comerciais de mora em vigor até efetivo e integral pagamento, bem como as despesas administrativas havidas no valor de 47,36€.»
Conclui estes autos ao abrigo do n.º 1 do artigo 590º, do Código de Processo Civil, porquanto os tribunais judiciais não têm competência material para a apreciação das ações da natureza da presente, de resto como já se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9/10/2012, disponível em www.dgsi.pt, o Acórdão do Tribunal de Conflitos n.º 01573/20.7T8CSC.S1, de 24.02.2021 e, também do Tribunal de Conflitos, o Acórdão n.º 01574/20.5T8CSC.S1 de 20.01.2021, onde se pode ler,: «[n]os termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
o presente litígio pertence ao âmbito da Jurisdição Administrativa e Fiscal e, de acordo com a al. c) do artigo 49.º do mesmo Estatuto, é da competência dos Tribunais Tributários. Como se escreveu no acórdão de 17 de Julho de 2014, acima citado, «(…), atendendo a que este litígio assenta na exigência do pagamento de consumos de água, e demais encargos relativos à disponibilização dum contador totalizador, a questão suscitada reveste uma natureza fiscal entendendo-se como tal, “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objetivamente conexas”, conforme se decidiu no acórdão de 9/11/2010, proferido no conflito nº 17/10, e que seguiu a posição já antes assumida no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 26/09/2006, Processo n.º 14/06.».
Conforme alega a própria autora, «[a] Autora é uma sociedade comercial anónima que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município de...» detendo «a concessão para exploração dos serviços municipais de distribuição de água e recolha e tratamento de água residuais no concelho de ..., com contrato de concessão em vigor desde 17.09.2007 até à presente data.»
E, como se pode ler no supra referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, “às autarquias locais compete o planeamento, fornecimento, gestão de equipamentos e a realização de investimentos no domínio do fornecimento de água (art. 26º, nº1 al. a) do da Lei 159/99, de 14.09) tendo estas, entre outros poderes, o de fixar os preços e as taxas devidas, sem que os clientes (utentes) tenham liberdade negocial de escolha do fornecedor e preços. Donde, conclui que as autarquias ao celebrarem contratos de fornecimento de água estão a agir no exercício de poderes administrativos e unilaterais e os clientes/utentes não passam de meros consumidores finais, pois não lhes é dada a prerrogativa de contratar ou não contratar e/ou negociar o preço do serviço estando, portanto, em causa uma relação de poder público à qual não se aplicam as normas de direito privado”.
Resultando que o contrato de fornecimento de água em causa está regulado em normas de direito público, com vista a salvaguardar os interesses dos consumidores e sobretudo da saúde pública, nomeadamente, através do Decreto-Lei n° 243/2001 de 5 de Setembro que veio regular a qualidade da água destinada ao consumo humano com vista a proteger a saúde humana dos efeitos nocivos da contaminação da água e assegurar a salubridade e limpeza públicas, e do Decreto Regulamentar n° 23/95 de 23 de Agosto que aprovou o Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem das Águas Residuais. Concluindo-se, portanto, que a natureza da relação material em litígio não é manifestamente privada, porquanto balizada, em várias vertentes, por normas de direito público que lhe são impostas e a desenham, à luz do art. 4º, nº 1, al. f) do ETAF, sendo que é à jurisdição administrativa que cabe apreciar as questões relativas aos contratos a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo.
Como tal, não é este tribunal competente para apreciar desta ação.
Isto dito, a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria constitui exceção dilatória que pode ser conhecida em qualquer estado da causa que deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 96.º e 97.º, n.º 2 – e tem como consequência a absolvição do réu da instância – artigos 99.º, do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julgando verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria, e ao abrigo das mencionadas disposições, declaro este tribunal incompetente para conhecer do pedido formulado pela autora contra a ré e, em consequência, absolvo a ré da instância.
Custas a cargo da autora”.

A Autora veio interpor recurso da sentença.

Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1. Os presentes autos têm por base a fatura emitida e enviada à Recorrida na sequência do procedimento de ligação da rede predial do imóvel em causa ao sistema público de saneamento iniciado com o pedido de contador de obras e com a apresentação pela Recorrida dos projetos de rede abastecimento de água e drenagem de águas residuais em Junho de 2019.
2. A fatura nº ……….., no valor de 1.331,43€, datada de 24/08/2020, com vencimento a 13/09/2020, respeita à tarifa de ligação de águas residuais, ensaio/inspeção e vistorias efetuadas ao respetivo imóvel, para subsequente efetivação da ligação e contratação do serviço.
3. Trata-se, assim, de serviços ligados à prestação de bens públicos essenciais, conforme resulta da causa de pedir e pedido formulado.
4. Concretamente, trata-se de uma relação pré-contratual entre a Recorrente (concessionária) e a Recorrida (consumidor), após esta última ter solicitado expressamente (cfr. doc. 1 da p.i.) junto da Recorrente, a execução de ramais de ligação para prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos.
5. Relação contratual esta que, apesar de não configurar o contrato de fornecimento do bem em si (água e saneamento), trata-se de uma relação de consumo.
6. Sendo a Recorrente a prestadora de serviço: a que exerce uma atividade económica, com caráter profissional, para obtenção de benefícios, incluindo a construção de ramais, a efetiva ligação e contratação do fornecimento do bem: drenagem de águas residuais, e a Ré a consumidora: aquela a quem foram fornecidos bens, no caso, prestados serviços, destinados a uso não profissional.
7. Nos termos do art 1º da Lei 24/96 atualizada, consumidor é cada um de nós, é todo aquele todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.
8. São, assim, elementos da relação de consumo, o consumidor e o fornecedor (elementos subjetivos) o produto ou o serviço (elemento objetivo), independentemente do tipo contratual celebrado entre as partes, o que se verifica preenchido no caso dos autos.
9. A relação de consumo relativa aos bens de serviço público essencial (água e saneamento) não se subsume ao abastecimento mensal de água e saneamento, mas inclui todos os serviços relacionados.
10. Quanto à relação de consumo, é deveras relevante o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020, proferido no processo 3392/19.4T8MTS.P1, em que a B… era Autora.
11. Por outro lado, a Recorrente não pratica atos administrativos, nem celebra contratos administrativos com os utilizadores, presta apenas, por força do contrato de concessão (este sim público), serviços/bens de caráter público essencial e, a considerar-se – o que por mero dever de patrocínio se admite - que atua no âmbito de poderes públicos transmitidos por força da concessão.
12. Então todos os seus poderes teriam que ser considerados de natureza pública, e todos os seus atos teriam natureza pública incluindo os praticados no abastecimento mensal de água e prestação de saneamento a todos os consumidores.
13. Dado que todos os seus poderes e atos têm a mesma origem: o contrato de concessão.
14. E a verdade é que a alteração efetuada pela Lei 114/2019 ao art. 4º do ETAF não refere contratos de consumo ou contratos respeitantes a bens públicos essenciais mas, de uma forma muito mais abrangente, refere-se a relações de consumo, aqui incluídos todos os atos relacionados com o contrato de consumo.
15. Nos termos do disposto na alínea e) do atual art. 4º do ETAF, na redação dada pela Lei 114/2019 publicada, recentemente, a 12.09.2019 em Diário da República está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva. - leia-se o Anteprojeto de Proposta de Lei - in http://www.smmp.pt/wp-content/uploads/Oficio-n-452-de-14-03-2018.pdf.
16. Ou seja, a alteração legislativa veio no sentido de clarificar as questões interpretativas, nomeadamente jurisprudenciais, e com conflitos de competência, que se levantavam no âmbito da anterior redação do art. 4º do ETAF.
17. Consequentemente, e desde logo, não faz sentido fazer tábua rasa da clarificação interpretativa que veio a ser plasmada na nova disposição legal – a própria lei, com justificação expressa no seu anteprojeto, veio resolver as dúvidas de interpretação até aí existentes. Em simultâneo, não faz sentido igualmente, fundamentar as atuais decisões nesta matéria com base na jurisprudência anterior à entrada em vigor da supra citada Lei, que se tornaram obsoletas, na medida em que se tratava até aí de uma questão de interpretação da Lei, agora ultrapassada.
18. Muito menos sentido fará, a mesma matéria vir a ser discutida nuns casos/processos no TAF com base em tal entendimento e, noutros casos/processos, vir a ser discutida nos tribunais comuns com base no entendimento da atual Lei.
19. No fundo, o que a alínea e) do art. 4º do ETAF diz é o seguinte: mesmo que esteja em causa a prestação de um serviço público essencial no âmbito de uma relação de consumo, os Tribunais Administrativos e Fiscais não são competentes para decidir sobre tal matéria.
20. Obviamente, tratando-se de uma relação de consumo particular, serão sempre competentes os tribunais cíveis comuns.
21. Neste sentido, e nos demais supra invocados, leia-se o Acórdão da Relação do Guimarães de 04.03.2020, proferido no processo 202/18.3T8MTC-A.G1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020, proferido no processo 3392/19.4T8MTS.P1, os muito recentes Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2020, de 27.10.2020 e de 24.11.2020, em que a B... era parte.
22. E, em complemento, o Acórdão da Relação do Porto de 13.09.2018 bem como o Acórdão da Relação do Porto de 13.06.2019 (processo 22456/18.5T8PRT-A.P1 do Juízo Local Cível 3 deste Tribunal).
23. Assim sendo, a Recorrente não atua como titular de um poder público, é uma entidade privada, nem em causa está um contrato ou ato administrativo – mas tão só a relação de consumo privada para prestação de um bem público essencial.
24. Tratando-se de uma relação de consumo, como é, para prestação de bens públicos essenciais, dúvidas não restam quanto ao supra exposto na jurisprudência e quanto à letra da lei (alínea e) do art. 4º do ETAF).
25. Por último, em causa nos autos está um preço/tarifa, ou qualquer taxa, muito menos de caráter tributário, relativo aos serviços que a Recorrente prestou, por solicitação expressa da Recorrida.
26. Nos termos do artigo 82º da Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro), resulta que os preços ou, como são chamados, tarifas, são instrumentos de remuneração e, no caso específico de o serviço estar concessionado, visam, ainda, assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respetivo contrato de concessão.
27. Rege o “Princípio da recuperação dos custos”, nos termos do qual os tarifários (preçários) dos serviços de águas e resíduos devem permitir a recuperação tendencial dos custos económicos e financeiros decorrentes da sua provisão, em condições de assegurar a qualidade do serviço prestado e a sustentabilidade das entidades gestoras, operando num cenário de eficiência de forma a não penalizar indevidamente os utilizadores com custos resultantes de uma ineficiente gestão dos sistemas;” – cfr. RECOMENDAÇÃO ERSAR Nº 01/2009 in http://www.ersar.pt/pt/o-que-fazemos/recomendacoes
28. Sentido este – falta de ius imperi da A. e inexistência de caráter de tributo – sufragado igualmente nos supra referidos Acordão da Relação do Guimarães de 04.03.2020, no processo 202/18.3T8MTC-A.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020 no processo 3392/19.4T8MTS.P1.
29. Resta ainda acrescentar a última sentença proferida pelo TAF do Porto a 30.10.2020, no processo 2854/19.8BEPRT, em que a B... ... era Ré, que declarou ser materialmente incompetente para decidir.
30. Em suma, quer pela existência de uma relação de consumo privada quer pela inexistência de aplicação de quaisquer taxas com caráter de tributo, verifica-se a competência do tribunal comum para decidir nos presentes autos.
31. Terá de concluir-se pois que, o douto Acórdão recorrido violou os artigos 89º nº 1 do CPC, o art. 157º do CPTA, os arts. 1º e 4º nº 1 al. e) do ETAF, art. 211º nº 1 e art. 212º nº 3 da CRP, art. 18º nº 1 da LOTJ e do art. 6º, nº 1, al. c) do Código dos Contratos Públicos, por errada interpretação jurídica.
Termina por pedir o provimento do recurso, com a revogação da sentença recorrida, prosseguindo os autos até final.

Não foi apresentada resposta ao recurso.

O recurso foi admitido como recurso de apelação.

Dispensaram-se os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- admissão dos documentos com as alegações de recurso;
- determinar se a jurisdição comum tem competência para preparar e julgar uma ação em que uma entidade concessionária pretende cobrar a tarifa de ligação de águas residuais, ensaio/inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel da ré, para subsequente efetivação da ligação e contratação do serviço.

2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.

3. O direito
- Da admissão dos documentos com a alegação de recurso –
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- Da competência em razão da matéria -
Na presente ação, em sede de despacho liminar, proferiu-se despacho que julgou a jurisdição comum incompetente em razão da matéria para julgar a presente ação.
A questão que se coloca, perante as conclusões de recurso, consiste em determinar se os tribunais comuns são competentes para julgar e decidir a presente ação.
Analisadas as conclusões de recurso, entendemos que os argumentos apresentados pela apelante, não justificam a alteração da decisão recorrida pelos motivos que a seguir se expõem.

A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia ( de subordinação ou dependência ) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual reserva-se para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[2].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal, como observa MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[3].
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[4].
Instaurada a presente ação em 22 de abril de 2021, cumpre ter presente o art. 211º e 213º da Constituição da Republica Portuguesa (abreviadamente CRP), o regime previsto no art. 40º/1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e o art. 64º CPC e o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, considerando as sucessivas alterações, sendo a última, a que decorre da Lei 114/2019 de 26 de julho, que entrou em vigor em 11 de novembro de 2019.
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Prevê assim o art. 40º/1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e o art. 64º CPC que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Nos termos do art. 213º Constituição da República Português compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Desta forma, no art. 1º/1 do ETAF, sob a epígrafe: “Jurisdição administrativa e fiscal “ passou a prever que:
“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no art. 4º deste Estatuto”.
O art. 4º do ETAF enunciou um conjunto de litígios que são da competência dos tribunais administrativos e fiscais (nº 1 e 2), bem como, os que estão excluídos de tal competência (nº3 e 4).
Considerando o pedido e os factos que sustentam a causa de pedir, verifica-se que a autora na qualidade de sociedade comercial anónima que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município de..., pretende obter a condenação da ré no pagamento das quantias por esta devidas a título de liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, ensaio/inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel da mesma, para subsequente efetivação da ligação e contratação do serviço.
A Autora detém a concessão para exploração dos serviços municipais de distribuição de água e recolha e tratamento de água residuais no concelho de ..., com contrato de concessão em vigor desde 17.09.2007 até à presente data (https://www.B.......pt/fotos/editor2/contratoconcessaomts.pdf ).
Em virtude de tal contrato de concessão, e no âmbito das suas funções e obrigações contratuais, a Autora disponibilizou ramal de ligação de saneamento público, junto do imóvel propriedade da Ré, sito na Rua da …, … n.º .., ….-… …, ..., possibilitando a ligação da rede predial do imóvel do Réu ao sistema público de saneamento (https://www.B.......pt/fotos/editor2/contratoconcessaomts.pdf ).
O empreiteiro da obra do prédio em causa efetuou, junto da A., pedido de contador de obra e posteriores vistorias do imóvel.
O procedimento de ligação da rede predial do imóvel em questão ao sistema público de saneamento para efetivação de contratação do respetivo serviço, iniciou-se com a apresentação dos projetos de rede de abastecimento de água e drenagem de águas residuais apresentados pela Ré à Autora em junho de 2019.
Perante este enquadramento de facto na decisão recorrida concluiu-se que a decisão do litígio é da competência dos tribunais administrativos e fiscais.
A decisão recorrida não considerou as sucessivas alterações do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a jurisprudência que cita está deslocada da concreta questão em análise e da decisão apenas se extrai, com algum relevo interpretativo, que os factos alegados na petição se enquadram no âmbito das relações jurídicas administrativas.
Com efeito, no Ac. Rel. Porto 09 de outubro de 2012, Proc. 10407/08.0TBMAI-A.P1 (acessível em www.dgsi.pt) estava em causa apreciar perante o incumprimento de um contrato de fornecimento de água, por uma empresa concessionária a um particular, se a jurisdição comum tinha competência em razão da matéria para julgar a ação. A decisão foi proferida com aplicação do ETAF na redação da Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro.
Os Acórdãos do Tribunal de Conflitos citados na decisão recorrida - Acórdão do Tribunal de Conflitos n.º 01573/20.7T8CSC.S1, de 24 de fevereiro 2021 e, também do Tribunal de Conflitos, o Acórdão n.º 01574/20.5T8CSC.S1 de 20 de janeiro de 2021- visam dirimir o conflito de jurisdição para julgar ação em que se discute o incumprimento de um contrato de fornecimento de água. Nos doutos arestos estava em causa a aplicação do ETAF na redação do DL 214-G/2015 de 02 de outubro, pois afastou-se a aplicação das alterações introduzidas no ETAF, pela Lei 114/2019 de 20 de agosto, em particular o regime do art. 4º/4 e) introduzido por este diploma.
A questão que se aprecia na presente ação não se prende com a celebração de um contrato de fornecimento de água e recolha de águas residuais, mas com os custos ou despesas devidas com realização de vistorias/ensaios e tarifa de ligação a um ramal de águas residuais.
A apelante considera que a jurisdição comum é competente para julgar a ação, por se tratar de litígio emergente das relações de consumo relativo à prestação de serviços públicos essenciais, os quais estão expressamente excluídos da competência da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do art. 4º/4 e) do ETAF e não se tratar de litígio emergente das relações jurídicas administrativas e fiscais, por não estar em causa a aplicação de uma taxa, mas a cobrança do preço devido pelo serviço prestado.
Para sustentar os argumentos apresentados junta cópia de diversos acórdãos proferidos no Tribunal da Relação do Porto, Tribunal da Relação de Guimarães e Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, sem fazer menção à respetiva publicação oficial.
Na jurisprudência citada pela apelante, apenas o Ac. Rel. Porto 19 de março de 2020, Proc. 3392/19.4T8MTS.P1 (não publicado) apreciou questão idêntica aquela que nos cumpre analisar e sustentou os fundamentos da sua decisão no Ac. Rel. Porto 01 de julho de 2019, Proc. 204/18.0YRPRT (acessível em www.dgsi.pt.), concluindo que o jurisdição comum tem competência em razão da matéria para julgar e apreciar tal questão.
Entendemos, porém, que os concretos serviços prestados e que estão na base do presente litígio não se podem qualificar como “prestação de serviços públicos essenciais” e que estamos perante litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo facto da entidade concessionária atuar investida de poderes de autoridade por impor aos particulares restrições que não têm na atividade privada, para cumprir tarefas de interesse público.
Seguimos de perto a posição acolhida no Ac. Tribunal de Conflitos de 13 de setembro de 2021, Proc. 05016/19.0T8MTS.P1.S1 e no Ac. Supremo Tribunal Administrativo 17 de fevereiro de 2021, Proc. 01685/18.7BEBRG (ambos acessíveis em www.dgsi.pt), nos quais estava em causa apreciar litígio idêntico aquele que vem descrito na petição, envolvendo até a mesma entidade concessionária, no acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos.
Como se referiu, no caso presente está em causa apreciar se são devidas pela ré as quantias reclamadas a título de liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, ensaio/inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel da mesma, para subsequente efetivação da ligação e contratação do serviço.
Prevê o art. 4º/1 d) /o) ETAF que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
“ […]
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
A competência dos tribunais administrativos passa, assim, por interpretar o conceito: “ litígios emergentes das relações jurídicas administrativas “.
FREITAS DO AMARAL[5] defendia que “relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
Este tipo de relação jurídica pressupõe, assim, a intervenção da Administração Pública investida do seu poder de autoridade “jus imperium”, impondo aos particulares restrições que não têm na atividade privada. É para dirimir os conflitos de interesses surgidos no âmbito destas relações e com vista à garantia do interesse público que se atribui competência específica aos tribunais administrativos”.
VIEIRA DE ANDRADE[6] considera que o conceito de “relação jurídica administrativa“ consagrado na Constituição passa “pela distinção material entre o domínio público e o direito privado”.
Seguindo um critério estatutário que combina sujeitos, fins e meios defende o mesmo autor que “relações jurídicas públicas [são] aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido“[7].
A “ordem jurídica administrativa”, de acordo com um critério material, resultará da existência de “um regime de administração executiva, em que se define um domínio de atividade, a função administrativa, e, nesse contexto, um conjunto de relações onde a Administração, é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”[8].
Os litígios emergentes de relações criadas neste contexto seriam assim “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”, que justificam a existência de uma ordem judicial diferente da ordem dos tribunais judiciais.
Nesta linha de raciocínio VIEIRA DE ANDRADE defende que são da competência dos tribunais administrativos, por se integrarem nas relações jurídicas administrativas externas: “as relações entre sujeitos privados que atuem no exercício de poderes administrativos (sejam entidades públicas em forma privada ou verdadeiros privados) e os particulares”[9].
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[10], na interpretação do art. 1º/1 ETAF defende que: “a atribuição de prerrogativas de autoridade ou a imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público são os traços distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo, constitutivas de relações jurídico-administrativas“. O Direito Administrativo para este Autor, «“não regula apenas a atuação da administração pública em sentido orgânico”, mas regula para além disso, a atuação de todos os sujeitos jurídicos, ainda que não integrantes daquela, que exerçam a função administrativa, e ainda a atuação de todo e qualquer sujeito jurídico, quando e na medida em que se interseccione com o exercício da função administrativa ( … ) com o que assume um âmbito regulatório que ultrapassa em muito o da mera definição do estatuto da administração pública”».
Nesta conceção de relação jurídica administrativa, os tribunais administrativos são competentes para julgar e decidir o concreto litígio, com fundamento no art. 1º, 4º /1 o) ETAF em que a entidade concessionária uma sociedade comercial anónima que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município de..., atua munida de poderes de autoridade, impondo deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público.
A Lei 159/99 de 14/09 – Lei das Autarquias Locais - que estabeleceu o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais no art. 26º atribuiu competência aos órgãos municipais para o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos nos seguintes domínios:
a) Sistemas municipais de abastecimento de água;
b) Sistemas municipais de drenagem e tratamento de águas residuais urbanas;
c) Sistemas municipais de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.
No âmbito desses poderes de gestão, os municípios socorrendo-se de diversos instrumentos jurídicos, como seja, o contrato de concessão, passaram a atribuir a gestão dos serviços de abastecimento de água a entidades privadas (art. 179º do CPA).
O DL 379/93 de 05/11, na sequência da alteração da lei de delimitação de sectores, veio consagrar o regime legal da gestão e exploração de sistemas que tenham por objeto as atividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos, permitindo o acesso de capitais privados a estas atividades e serviços.
Resulta do preâmbulo do DL 379/93 de 05/11 que: “a gestão e exploração dos sistemas municipais é regulamentada pelo decreto-lei, podendo ser diretamente efetuada pelos respetivos municípios ou atribuída, mediante contrato de concessão, a entidade pública ou privada de natureza empresarial”.
Contudo, salienta-se, ainda, no preâmbulo, que “a titularidade do património afeto à concessão reverte sempre para o concedente”, regime que ficou consagrado no art. 4º e 7º do citado diploma.
Em conformidade com o regime previsto, os sistemas criados regiam-se pelo princípio da prossecução do interesse público e apesar da autonomia do concessionário na gestão do respetivo serviço ou área de atividade, em relação à qual assumia os respetivos riscos, a entidade concedente assumia uma função de fiscalização ou reguladora, na medida em que fiscalizava a qualidade da água e dos serviços, as tarifas a cobrar aos utentes dos serviços (art. 12º, 13º, 14º/3, 15º).
Este diploma veio a ser alterado pelo DL 194/2009 de 20/08, no qual se prevê de forma expressa os vários modelos de gestão, entre os quais o sistema de concessão e onde se sublinha, no art. 3º, a natureza de serviço público, quando se refere que:
“A exploração e gestão dos sistemas municipais, tal como referidas no n.º 1 do artigo anterior, consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público”.
O regime prevê a intervenção de uma entidade reguladora e determinou de forma minuciosa as obrigações das partes e a natureza da participação da entidade concedente no cumprimento do contrato, o regime das relações com os utilizadores (art. 59º e seg.) e bem assim, as normas dos contratos de fornecimento de água.
Neste regime prevê-se também a atribuição da gestão a entidades privadas, através da celebração de contratos de concessão.
O contrato de concessão, como refere JORGE ANDRADE DA SILVA[11] “ traduz sempre uma colaboração de uma entidade privada com uma pessoa coletiva pública na realização de uma ou mais atribuições desta última”. Trata-se de confiar a entidades privadas tarefas que cabem no âmbito do exercício da administração pública e constitui “uma técnica de gestão dos serviços públicos, a chamada gestão indireta ou por meio de empresas”[12].
A concessão de serviço público tem como pressuposto fundamental, como observa FERNANDA MAÇAS “a titularidade administrativa de uma atividade de serviço público, concebido como “uma tarefa administrativa de prestação, ou seja, uma atividade de prestações em relação à qual existe uma responsabilidade de execução”[13].
A concessão de serviços públicos exige, pois, o desenvolvimento de uma atividade prestacional aos utentes. Neste tipo de contrato existe uma relação direta entre o concessionário (entidade privada) e o utente final, na medida em que o concessionário (presta um serviço ao público em lugar da entidade administrativa, mas sob o seu controlo, a qual é remunerada através de tarifas ou taxas pagas pelos utentes ou mesmo subvenções pagas pela entidade administrativa[14].
A entidade concessionária fica assim investida de poderes administrativos, que vão modelar a natureza das relações jurídicas, que possa estabelecer com os particulares e que se podem enquadrar na “relação jurídica administrativa”.
No caso presente a Autora celebrou com a Câmara Municipal de ... um contrato de concessão de serviços públicos.
A Autora, apesar de ser uma sociedade anónima, assumiu com a celebração do contrato de concessão, a prestação de um serviço público que consiste na Exploração e Gestão dos Serviços Públicos Municipais de Abastecimento de Água e de Recolha Tratamento e Drenagem de Águas Residuais do Município de..., águas que se encontram afetas e pertencem ao sector público e bem assim, presta serviços de drenagem de águas residuais.
Os serviços são prestados diretamente aos utentes, sendo certo que toda a atividade de gestão está devidamente regulamentada em normas de direito administrativo, que estabelecem os procedimentos e relações com a entidade concedente e ainda, com a entidade reguladora, como decorre do respetivo regulamento (acessível na internet com a entrada: regulamento B.......pdf).
Tais normas impõem deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público – garantir o fornecimento constante da água, com qualidade e com respeito pelo meio ambiente e saúde pública, como sejam, para além dos citados, o Decreto-Lei n° 243/2001 de 5 de Setembro que veio regular a qualidade da água destinada ao consumo humano com vista a proteger a saúde humana dos efeitos nocivos da contaminação da água e assegurar a salubridade e limpeza públicas e do Decreto Regulamentar n° 23/95 de 23 de Agosto que aprovou o Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem das Águas Residuais.
A apelante funda a sua pretensão na liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, ensaio/inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel da mesma, para subsequente efetivação da ligação e contratação do serviço. A requisição de tais serviços é obrigatória para o utente, para poder beneficiar dos serviços de drenagem de água residuais (saneamento), os quais apenas são prestados por esta entidade e com as condições pré-estabelecidas pela mesma.
Com efeito, prevê o art. 59º DL 194/2009 de 20 de agosto:
Direito à prestação do serviço
1 — Qualquer pessoa cujo local de consumo se insira na área de influência da entidade gestora tem direito à prestação do serviço, sempre que o mesmo esteja disponível.
2 — O serviço de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais urbanas através de redes fixas considera -se disponível desde que o sistema infra- -estrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 m do limite da propriedade.
3 — Quando a rede de saneamento de águas residuais esteja localizada a uma distância superior à referida no número anterior e não seja solicitado o prolongamento do ramal, a entidade gestora deve assegurar, através de meios próprios e ou de terceiros, a provisão do serviço de limpeza de fossas sépticas, no cumprimento da legislação ambiental.
4 — O serviço de gestão de resíduos urbanos considera-se disponível desde que o equipamento de recolha indiferenciada se encontre instalado a distância inferior a 100 m do limite do prédio e a entidade gestora efetue uma frequência mínima de recolha que salvaguarde a saúde pública, ambiente e qualidade de vida dos cidadãos, cujos critérios são definidos em regulamento pela entidade titular.
5 — O limite previsto no número anterior pode ser aumentado até 200 m em áreas predominantemente rurais, quanto tal esteja previsto em regulamento de serviço aprovado pela entidade titular.
O art. 69º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Ligação de imóveis edificados aos sistemas de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais” prevê:
1 — Todos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de conceção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respetivos sistemas públicos.
2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, podem ser aceites pela entidade gestora, em casos excecionais, soluções simplificadas, desde que garantidas as condições adequadas de saúde pública e proteção ambiental.
3 — O disposto no n.º 1 não é aplicável a edifícios que disponham de sistemas próprios de abastecimento ou saneamento devidamente licenciados nos termos da legislação aplicável, nomeadamente unidades industriais.
4 — A instalação dos sistemas prediais e respetiva conservação em boas condições de funcionamento e salubridade é da responsabilidade do proprietário.
5 — Durante o procedimento de controlo prévio de operação urbanística, deve ser consultada a entidade gestora, para emissão de parecer, sobre os projetos dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais, nos termos do regime jurídico da urbanização e da edificação, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
6 — Compete à câmara municipal, caso o município não seja a entidade gestora, promover a consulta a que se refere o número anterior.
7 — Nos sistemas prediais de grande capacidade e quando se justifique pelo impacte no funcionamento do sistema público, pode a entidade gestora exigir aos utilizadores
um programa de operação que refira os tipos de tarefas a realizar, a sua periodicidade e sua metodologia.
8 — A entidade gestora deve, com uma antecedência mínima de 30 dias, notificar os proprietários dos edifícios abrangidos pelo serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais das datas previstas para início e conclusão das obras dos ramais de ligação para a disponibilização dos respetivos serviços.
9 — A execução de ligações aos sistemas públicos ou a alteração das existentes compete à entidade gestora, não podendo ser executada por terceiros sem a respetiva autorização”.
No Regulamento do Serviço Público do Abastecimento de Água a ... sob a epígrafe “Deveres dos Utilizadores” prevê-se no art. 9º e 10º a obrigatoriedade de Instalação e Ligação aos Sistemas Públicos.
“Art. 9º
1 — Dentro da área abrangida, ou que venha a sê-lo, pelas redes de distribuição de água, os proprietários dos prédios existentes ou a construir são obrigados a instalar, por sua conta, a rede de distribuição predial e a solicitar a ligação à rede geral de distribuição de água quando e mesma se encontre disponível, sem prejuízo de poderem ser aceites, em casos especiais, soluções simplificadas que assegurem as condições mínimas de salubridade.
2 — A instalação dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de Águas Residuais, de acordo com os projetos aprovados, é da responsabilidade dos proprietários ou usufrutuários.
3 — Qualquer pessoa cujo local de consumo se insira na área de influência da B... ... tem direito à prestação do serviço, sempre que o mesmo esteja disponível.
4 — O serviço de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais urbanas através de redes fixas considera-se disponível desde que o sistema infraestrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 m do limite da propriedade.
5 — Os prédios dotados de poço, mina ou furo como fonte de abastecimento de água, mas que se encontrem implantados em área onde esteja disponível a ligação ao sistema público de abastecimento de água, terão de se ligar a este, sem prejuízo da manutenção da origem particular para fins que não sejam de consumo humano, garantindo sempre a separação desta com a rede predial que garantirá o abastecimento público.
6 — Quando a rede de saneamento de águas residuais esteja localizada a uma distância superior à referida no número quatro e não seja solicitado o prolongamento do ramal, a B... ... deve assegurar, através de meios próprios e ou de terceiros, a provisão do serviço de limpeza de fossas séticas.
7 — As redes públicas criadas ao abrigo do número anterior serão sempre propriedade do Município de..., sob gestão da B... ..., mesmo que tenham sido executadas a expensas dos requerentes.
8 — Os prédios em mau estado de conservação ou ruína e que estejam efetiva e permanentemente desabitados ou fora de uso estão isentos de obrigatoriedade de ligação.
9 — Se os prédios se encontrarem em regime de usufruto ou uso e habitação compete aos usufrutuários ou usuário a obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos de abastecimento de água e de drenagem de águas residuais.
10 — Os arrendatários, comodatários, os todos aqueles que detenham títulos legítimo para utilizar os prédios ou fogos, mediante autorização escrita dos proprietários ou usufrutuários, poderão requerer a ligação dos prédios por eles habitados às redes públicas de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, pagando os custos nos prazos fixados.
11 — Após ligação à rede pública de abastecimento de água é obrigatória a imediata separação do sistema predial de fornecimento de água com outras origens, designadamente poços, minas ou furos privados.
12 — Após ligação à rede pública de drenagem de águas residuais, caso o prédio disponha de fossa sética, esta deverá ser desativada no prazo máximo de 30 dias, sendo despejada por entidades autorizadas, desinfetada e entulhada.
13 — Para o efeito do disposto nos n.º anteriores, a Entidade Gestora comunicará, por escrito, aos proprietários, usufrutuários ou arrendatários a data de disponibilidade dos Serviços.
14 — Recebida a comunicação referida no número anterior, os proprietários, usufrutuários ou arrendatários disporão de um prazo de 30 (trinta) dias para requerer a respetiva ligação.
Art. 10º - “Incumprimento da Obrigatoriedade de Ligação”
1 — Os proprietários, usufrutuários ou arrendatários que, depois de devidamente notificados, não cumpram as obrigações previstas no n.º 14 do artigo 9.º do presente Regulamento, no prazo de 30 (trinta) dias a contar da data da notificação, incorrem em contraordenação, nos termos do artigo 97.º do presente Regulamento, punível com a coima prevista na mesma disposição legal.
2 — Caso os proprietários ou usufrutuários, depois de devidamente notificados, não cumpram as obrigações impostas no artigo anterior, no prazo de 30 (trinta) dias a contar da data de notificação efetuada para o efeito, a B... ... procederá, a expensas dos interessados, às respetivas ligações, executando o Ramal de Ligação.
3 — O pagamento das despesas referentes às ligações referidas no ponto anterior deve ser efetuada no prazo de 30 (trinta) dias após a sua conclusão, findo o qual a B... ... procederá à cobrança coerciva da importância devida.
4 — Aos proprietários ou usufrutuários dos prédios abrangidos pelas redes públicas de abastecimento de água e/ou drenagem de águas residuais, ligados ou não às mesmas, será cobrada a respetiva Tarifa de Disponibilidade de Água e/ou Tarifa de Utilização de Águas Residuais, imediatamente após a execução dos ramais de ligação, nos termos do tarifário em vigor.
5 — O disposto no ponto anterior não é aplicável aos prédios que se encontram devolutos.
Art. 13º - “Responsabilidade da Instalação e Conservação”
1 — Compete à B... ... promover a instalação e gestão do sistema público de abastecimento de água e dos ramais de ligação aos sistemas de distribuição predial, garantindo a conservação e manutenção das redes públicas, bem como dos ramais de ligação, incluindo a sua substituição e renovação.
2 — Aos proprietários ou usufrutuários serão cobrados os encargos decorrentes da execução dos ramais de ligação, de acordo com o tarifário em vigor.
Art- 14º - “Fiscalização, Ensaios e Vistorias”
1 — A B... terá a responsabilidade de acompanhar e fiscalizar a boa execução das obras constantes dos projetos particulares, cujo início de execução lhe tenha sido comunicado, nomeadamente de infraestruturas de abastecimento de água do loteamento e do edifício em geral.
2 — Sempre que detete nas obras referidas no número anterior qualquer anomalia ou omissão que possa influenciar negativamente a prestação dos serviços, a B... notificará o técnico responsável pela execução da obra, para que proceda à respetiva correção.
3 — O Técnico Responsável informará a B... com a antecedência mínima de 10 (dez) dias da data em que as instalações se encontrarão em condições de serem ensaiadas.
4 — Salvo em caso de comprovada impossibilidade, a B... efetuará a vistoria e o ensaio das canalizações no prazo de 8 (oito) dias da data referida no n.º anterior, devendo a B... notificar o Técnico Responsável com a antecedência mínima de 3 (três) dias do dia e hora de vistoria.
5 — Os ensaios são da responsabilidade dos proprietários ou usufrutuários e deverão ser feitos com as canalizações e acessórios à vista na presença do Técnico Responsável.
6 — Nenhuma canalização do sistema predial de distribuição de água poderá ser coberta sem que tenha sido previamente vistoriada, ensaiada e aprovada nos termos do presente regulamento.
7 — No caso de qualquer sistema de distribuição de água ter sido coberto, no todo ou em parte, antes de vistoriado, ensaiado ou aprovado, o Técnico Responsável pela Obra, sem prejuízo da aplicação da coima a que houver lugar, será intimado a descobrir as canalizações, após o que deverá fazer nova comunicação para efeitos de vistoria e ensaio.
8 — Depois de efetuadas a vistoria e ensaios referidos nos pontos anteriores, a B... certificará, no prazo de 10 dias, a aprovação da obra, desde que executada nos termos do projeto aprovado, satisfeitas as condições do ensaio e emissão de termo de responsabilidade pelo Técnico Responsável conforme artigo 13.º do Dec. Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com a redação dada pelo Dec. Lei n.º 26/2010, de 30 de março de 2010.
9 — Nenhum sistema predial de distribuição de água poderá ser ligado ao sistema público de abastecimento de água sem que estejam satisfeitas as condições prescritas no presente Regulamento e demais legislação aplicável.
10 — A licença de utilização de novos prédios só pode ser concedida pela Câmara Municipal de ... depois da B... confirmar que o sistema predial de distribuição de água foi vistoriado, ensaiado e aprovado.
Art. 25º - “Custo do Ramal de Ligação”
1 — Por cada ramal de ligação ao sistema público a B... cobrará os serviços prestados, de acordo com o tarifário em vigor.
2 — A importância devida será paga de uma única vez, previamente à execução do ramal, pelo requerente interessado, mediante fatura emitida pela B....
Os custos dos serviços são publicados anualmente.
Neste contexto, a relação estabelecida entre a Autora e a Ré, reveste a natureza de relação jurídica administrativa, porque a Autora ao prestar um serviço público, atua munida de um poder e de uma autoridade própria, que resulta do facto de prosseguir um interesse público. O utente está subordinado aos procedimentos de fiscalização estabelecidos na lei e no citado regulamento para obter a prestação do serviço de tratamento de águas residuais, serviços estes apenas prestados por esta concreta entidade.
A natureza do litígio não está excluída da competência dos tribunais administrativos, porque não se enquadra na previsão do art. 4º /4 /e) do ETAF, como defende a apelante.
Nos termos do art. 4º/4 do ETAF estão excluídos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
“[…]
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
Como resulta da proposta de lei a nova alínea do preceito introduzida com a Lei 114/2019 de 12 de setembro visou: “clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade” e prosseguindo observa-se:”[e]sclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo (Proposta de Lei n.º 167/XIII Presidência do Conselho de Ministros)”.
Nos termos do art. 1º/1/2 da Lei 23/96 de 26 de julho considera-se “prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente”:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia elétrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações eletrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.
h) Serviço de transporte de passageiros
Prevê, ainda, o mesmo preceito que:
“3 - Considera-se utente, para os efeitos previstos nesta lei, a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.
4 - Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão”.
Apenas se consideram serviços públicos essenciais o serviços de fornecimento de água, serviço de recolha e tratamento de águas residuais e serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.
Não estão aqui contemplados a prestação de serviços de vistorias e ligações a ramal de saneamento.
De acordo com o regime previsto na Lei 23/96 de 26 de julho apenas o serviço de recolha e tratamento de água residuais está incluído na lista restrita de “serviços públicos essenciais”.
Os custos ou tarifas inerentes à prestação destes serviços são diferentes.
Estamos perante realidades jurídicas distintas: a ligação de um prédio ao sistema público de saneamento, que é obrigatória nas condições do art. 9º e 10º do citado Regulamento, bem assim, como a execução dos ramais de ligação, que ocorre previamente à prestação e à utilização dos serviços de recolha e tratamento de águas residuais, e que é faturada uma única vez ao utilizador, a quem incumbe o seu pagamento e, por outro lado, a prestação do serviço de recolha de águas residuais, no âmbito de um contrato de prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, que são faturadas aos utilizadores, de forma periódica (cfr. art. 67.º do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto), com periodicidade mensal (cfr. art. 9.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho), englobando, entre outros, a prestação dos serviços de manutenção, conservação e renovação de ramais, de recolha e encaminhamento de águas residuais, a manutenção, conservação e renovação de caixas de ligação de ramal (salvo se por motivo imputável ao utilizador) e a instalação de medidor de caudal individual (cfr. art. 92.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4).
Ao contrário do que se passa com o contrato de fornecimento de água, a relação que se estabelece entre o utente e a entidade que explora e presta o serviço “construção do ramal de saneamento” não é de índole estruturalmente civil. A entidade concessionária atua no exercício de uma atividade subsequente a uma decisão de um poder soberano, por a ligação ao sistema de água e saneamento ser obrigatória (art. 59º do DL 194/2009 de 20 de agosto), cabendo em exclusivo à entidade administrativa a decisão de definir o modo de execução do ramal (art. 69.° do DL. n.° 194/2009, de 20/08).
Por inerência, tais serviços teriam necessariamente que ser ordenados por uma entidade pública ou por uma entidade privada dotada de prorrogativas de autoridade pública, como é o caso da Autora.
Em face deste carácter de serviço público, a contrapartida a pagar é uma tarifa ou taxa (e não um preço).
Afigura-se-nos que os serviços de ligação ao sistema público de saneamento, de execução do ramal de ligação ao saneamento e de vistoria da ligação de saneamento, não cabem no conceito de serviço de recolha e tratamento de água residuais previsto na alínea f) do art. 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho e, consequentemente, na enumeração taxativa dos serviços públicos essenciais aí efetuada.
Por fim, cumpre referir que o Supremo Tribunal Administrativo tem considerado que: “a Tarifa Ligação Saneamento, Vistoria de Lig. Saneamento, Execução Ramais Saneamento», cobrada pela entidade Entidade Gestora responsável pela conceção, construção e exploração do sistema público de abastecimento de água e do sistema público de saneamento de águas residuais urbanas» […] tem a natureza de taxa, como ficou referido no acórdão proferido em 10 de Abril de 2013, Proc. 015/12 pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal ( acessível em www.dgsi.pt) em sede de reenvio prejudicial deduzido nos termos do art. 93.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, que veio firmar o entendimento de que «[n]o domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal»”.
Neste sentido se pronunciou o Ac. STA 17 de fevereiro de 2021, Proc.01685/18.7BEBRG e o Ac. STA 13 de dezembro de 2017, Proc. 0653/16 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Resta referir que no Ac. Rel. Porto 13 de setembro de 2016, Proc. 85567/15.2YIPRT.P1 (disponível em www.dgsi.pt) perante questão idêntica àquela que se discute nestes autos, se considerou competente a jurisdição administrativa e fiscal para dirimir o litígio, por ser enquadrável no âmbito do art. 1º/4 /1 d) do ETAF, na redação do DL 214-G/2015 de 02 de outubro.
Conclui-se que o litígio em causa, tal como configurado na petição reveste a natureza de relação jurídica administrativa e nos termos do art. 1º/1, art. 4º/1/ o) do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação da Lei 114/2019 de 12 de setembro) são os tribunais administrativos competentes para julgar e apreciar a questão e incompetente em razão da matéria, o tribunal da ordem jurídica comum, no caso concreto, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2.

Resta considerar as consequências a extrair de tal decisão.
O despacho recorrido foi proferido ao abrigo do art. 590º/1 CPC, onde se prevê:
“Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no art. 560º”.
A decisão recorrida absolveu a ré da instância, por se verificar a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria.
Com efeito, a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria constitui exceção dilatória que pode ser conhecida em qualquer estado da causa que deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 96.º e 97.º, n.º 2 CPC.
Nos termos do art. 99º/1 CPC a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporta.
No caso concreto, proferida decisão em sede de despacho liminar, por iniciativa do juiz e ao abrigo do art. 590º/1 CPC, a verificação da exceção tem como efeito o indeferimento liminar da petição, alterando-se nesta parte a decisão.

Perante o exposto improcedem as conclusões de recurso.

Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida que liminarmente julgou verificada a exceção de incompetência material do tribunal e nessa conformidade, indeferir liminarmente a petição.

Custas a cargo da apelante.
*
Porto, 28 de outubro de 2021
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
____________________________________________
[1]. Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990
[2] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[3] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[4] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço electrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[5] FREITAS DO AMARAL Direito Administrativo, III vol., 423 e segs,; citação obtida a partir do Ac. Rel. Porto 15.11.2011- Proc. 425824/10.1YIPRT.P1- endereço electrónico: www.dgsi.pt
[6] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, 12ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, pag. 49.
[7] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, ob. cit., pag. 49 – itálico no texto original.
[8] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, ob.cit., pag. 49-50 - itálico no texto original. .
[9] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE A Justiça Administrativa – Lições, ob. cit., pag.59.
[10] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Edições Almedina, SA, 2013, pag. 175.
[11] JORGE ANDRADE DA SILVA Código dos Contratos Públicos, Revista e Atualizada, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, pag. 833.
[12] E. GARCIA ENTERRIA / TOMÁS RAMON FERNANDEZ apud JORGE ANDRADE DA SILVA Código dos Contratos Públicos, Revista e Actualizada, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, pag. 833.
[13] FERNANDA MAÇAS “ A Concessão de Serviço Público e o Código dos Contratos Públicos “ in PEDRO GONÇALVES/ CEDIPRE Estudos de Contratação Pública – I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 387.
[14] Cfr. FERNANDA MAÇAS “ A Concessão de Serviço Público e o Código dos Contratos Públicos “ in PEDRO GONÇALVES/ CEDIPRE Estudos de Contratação Pública – I, ob.cit., pag. 390.