RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CASO JULGADO PARCIAL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
INCONSTITUCIONALIDADE
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
APREENSÃO DE CORREIO ELETRÓNICO E REGISTOS DE COMUNICAÇÕES DE NATUREZA SEMELHANTE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - Em matéria de recursos, o CPP prevê e regula autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E se a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso, é inviável a interposição de recurso para o Supremo por via do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, pois a norma processual civil não tem aplicação em processo penal.
II - E o presente recurso também soçobraria por razões de ordem material, pois sempre se estaria perante uma situação que, em concreto, não conduziria à afirmação de violação de caso julgado formal, a qual quedaria materialmente por justificar. Pois a decisão que o acórdão da Relação confirmou respeita a um despacho do juiz de instrução, proferido em inquérito, sobre recolha e aquisição de prova. E a decisão jurisdicional de inquérito tem natureza transitória no sentido de não poder obrigar em definitivo o tribunal de julgamento no que respeita à legalidade da prova. 

Texto Integral

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No processo comum colectivo n.º 184/12.5…-N, do Tribunal Central de Instrução Criminal, Secção Única, por despacho judicial de 6 de agosto de 2020, foi decidido “deferir a pretensão do Ministério Público e permitir a utilização da totalidade das mensagens de correio eletrónico apreendidas no processo”.

Inconformados, recorreram do despacho os arguidos AA e BB, recurso que foi julgado improcedente por acórdão da Relação de … de 22.04.2021, que assim confirmou a decisão em causa.

Novamente inconformados, vêm interpor agora os arguidos recurso do acórdão da Relação, dizendo fazê-lo ao abrigo do disposto nos artigos 379.º, n.º 2, 399.º, 403.º, n.º 1, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 3, 425.º, n.º 4, 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP e no artigo 629.º, n.º 2, a. a), do CPC, ex vi art. 4.º do CPP.

E concluem:

“1.   O presente Recurso é interposto do Acórdão da … Secção do Tribunal da Relação de …, de 22.04.2021, por este, seguindo a posição perfilhada pelo Ministério Público, (i) assumir expressamente que existiu, no âmbito deste processo, uma entrega voluntária de emails da titularidade dos Recorrentes, com o inerente consentimento destes acerca da respetiva apreensão e junção aos autos (nos termos do artigo 126.º , n.º 3, CPP), e por o aresto, com base nesse pressuposto, (ii) negar provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes da decisão do Mm.º Juiz de Instrução Criminal de 06.08.2021.

RECORRIBILIDADE DA DECISÃO RECORRIDA

2.    Conforme vem sendo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a violação do caso julgado, como fundamento do recurso, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), in fine, do CPC, constitui um motivo específico de admissibilidade de recurso a par de todos os demais pressupostos, típicos e comuns, de recorribilidade, diretamente regulados no CPP.

3.    O Acórdão Recorrido violou o caso julgado parcial formado pelo Acórdão do mesmo Tribunal da Relação de …, de 27.01.2021, anteriormente proferido nestes mesmos autos, no âmbito do apenso de recurso 184/12.5…-R.L1.

4.    De facto, o Tribunal da Relação de …, no referido Acórdão de 27.01.2021, nessa parte transitado em julgado, decidiu que a entrega de emails efetuada pela …, no dia 06.06.2017, na sequência das buscas de dia 02.06.2017, não representou qualquer entrega voluntária e que, ademais, nos presentes autos nunca se verificou qualquer consentimento (nos termos do artigo 126.º, n.º 3, CPP) por parte do Recorrente BB (aí único Recorrente) - o que mutatis, mutandis, se aplica ao aqui também Recorrente AA, por a situação avaliada e os argumentos considerados serem precisamente os mesmos.

5.    Violado que foi, pelo Acórdão Recorrido, o caso julgado parcial, assim, formado pelo Acórdão de 27.01.2017 é, desta forma, admissível a interposição do presente recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP.

6.   É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança – nos quais radicam os fundamentos da autoridade do caso julgado –, assentes na noção de Estado de Direito Democrático, assim como por violação do princípio da igualdade e do direito ao recurso, a norma, eventualmente extraída do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP – ou de qualquer outra disposição legal –, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, quando o fundamento do recurso é a violação do caso julgado.

7.    Existindo, no processo, decisões que gozem da força própria do caso julgado, em particular, quando das mesmas decorram soluções mais favoráveis ao Arguido, a Constituição impõe – por força dos invocados princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança, mas também do direito ao recurso – o direito de recorrer das mesmas, ainda que proferidas por um Tribunal Superior, assente que seja o recurso na violação do caso julgado e, assim, tendo como escopo a sua reposição.

8.    Se se permitisse a coexistência do Acórdão Recorrido de 22.04.2021 com a força e a vinculação do caso julgado, por um lado, e da parte do Acórdão do Tribunal da Relação de … de 27.01.2021 que transitou em julgado, por outro lado, estar-se-ia a reconhecer ao Estado a possibilidade de, no mesmo processo, e sem fundamento, tratar e decidir, de modo desigual, acerca da mesma matéria reportada aos mesmos Arguidos (caso do Recorrente BB) ou a Arguidos colocados na mesmíssima situação (caso do Recorrente AA).

9.   Por força da adoção, no Acórdão Recorrido, de uma solução jurídica diametralmente oposta à que goza da autoridade do caso julgado, os Recorrentes veem o seu direito fundamental à inviolabilidade da correspondência preterido, por ter o Estado, em decisão jurisdicional posterior, alterado a sua posição sobre a mesma questão de direito.

10.   Recusada a aplicação da norma inconstitucional questionada, deverá, consequentemente, ser reconhecido o direito aos Recorrentes de sindicarem, por via de Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão do Tribunal da Relação de …, de 22.04.2021, com fundamento na violação do caso julgado parcial formado pelo anterior Acórdão de 27.01.2021, proferido pelo mesmo Tribunal da Relação de …, neste processo (no âmbito dos autos de recurso n.º 184/12.5TELSB-R.L1).

11.   As inconstitucionalidades assinaladas são invocadas nos termos e para os efeitos do artigo 72.º, n.º 2, da  Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, estando os Tribunais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 204.º, da CRP, impedidos de aplicar normas “que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

FUNDAMENTO DE RECURSO: A VIOLAÇÃO DO CASO JULGADO

12.    Da conjugação dos princípios do caso julgado, da segurança jurídica e da tutela da confiança, decorre o direito de os cidadãos – e os Arguidos em particular – de não poderem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar.

13.     De facto, o princípio do Estado de direito impõe uma vinculação do Estado em todas as suas manifestações, e, portanto, também dos Tribunais, ao Direito criado ou determinado anteriormente, de modo definitivo.

14.     A vinculação do caso julgado impõe-se no que respeita ao dispositivo das decisões transitadas, mas também no que respeita à respetiva fundamentação, quando a própria fundamentação – e o raciocínio nela expendido – concorre para a compreensão e efetiva estruturação da decisão, conforme sucedeu com a prolação, nos presentes autos, do Acórdão da … Secção do Tribunal da Relação de …, de 27.01.2021, na parte em que transitou em julgado.

15.     A … Secção do Tribunal da Relação de …, no Acórdão de 27.01.2021 que, a este propósito, proferiu, julgou integralmente improcedentes os argumentos esgrimidos pelo Ministério Público e tomou posição clara sobre a questão que, desde então, goza, nos presentes autos, da autoridade do caso julgado formal: não existiu nos presentes autos qualquer entrega voluntária de emails titulados pelos Recorrentes, no dia 06.06.2017, após as buscas às instalações da …, ocorridas no dia 02.06.2017, nem os factos revelam ter existido qualquer consentimento do Recorrente BB (e mutatis, mutandis, do Recorrente AA), nos termos do artigo 126.º, n.º 3, CPP, quanto à apreensão e junção aos autos das referidas mensagens de correio eletrónico.

16.     O Acórdão Recorrido é, por isso, um ato do Estado violador da confiança legítima que os Recorrentes titulavam na consolidação de uma determinada solução jurídica (respeitante à avaliação da factualidade verificada no presente processo e sua compreensão à luz do artigo 126.º, n.º 3, CPP); um ato do Estado que surpreende (de modo constitucionalmente inadmissível) os Recorrentes; um ato do Estado que, sem fundamento ou substrato bastante, priva os Recorrentes, de modo desigual e incompreensível, da tutela constitucional da inviolabilidade da correspondência ou que já lhes foi expressamente assegurada, noutros recursos deste processo, com base na factualidade ora em apreço (caso do Recorrente BB, que figurava como Recorrente no apenso de recurso n.º 184/12.5…-R.L1, onde foi proferido o Acórdão 27.01.2021), ou que já foi assegurada a outros Arguidos, na mesmíssima situação (caso do Recorrente AA, que, não obstante não ter figurado como Recorrente no âmbito do apenso de recurso n.º 184/12.5…-R.L1, passou precisamente pelo mesmo que passou o Recorrente BB, por força do tratamento conjunto e igualitário que aos seus emails foi dado pela buscada …); e, por fim, um ato do Tribunal Recorrido que rompe, sem fundamento ou substrato bastante, a orientação e definição processual concretamente adotada, por Decisão anteriormente proferida e transitada em julgado, a respeito da não existência de qualquer consentimento, para efeitos do artigo 126.º, n.º 3, CPP, quanto à apreensão e junção aos presentes autos dos emails entregues, a 06.06.2017, pela buscada … .

17.     É, assim, a Decisão Recorrida, também por isso, inválida, ao violar diretamente o princípio da confiança jurídica e as legítimas expectativas das quais o Recorrente é titular, tendo, desse modo, o Tribunal a quo violado o disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP.

18.     A sanção pela violação do caso julgado formal é considerar o Acórdão Recorrido – exclusivamente na parte da qual foi interposto recurso, limitado nos termos do artigo 403.º, n.º 1, do CPP – sem qualquer eficácia jurídica.

19.      Em obediência ao disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP, deverão V. Exas., Colendos(as) Senhores(as) Juízes(as) Conselheiros(as) do Supremo Tribunal de Justiça, revogar o Acórdão Recorrido, substituindo-o por outro que, em obediência à autoridade do caso julgado parcial decorrente do Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de … a 27.01.2021, declare que não existiu qualquer consentimento dos Recorrentes quanto à apreensão e junção aos autos dos respetivos emails (artigo 126.º, n.º 3, CPP) e, nessa linha, considere ilegal a definição, feita a 06.08.2020, da base de incidência (de emails) a ter em conta em futuras operações de pesquisa e seleção de mensagens de correio eletrónico, por violação do regime que decorre do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e do artigo 179.º, nº 3, CPP, só assim se retirando do presente recurso as “consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (artigo 403.º, n.º 3, do CPP).

Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas., Colendos(as) Senhores(as) Juízes(as) Conselheiros(as) do Supremo Tribunal de Justiça, suprirão, deverá o recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência, em obediência ao disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP, deverá ser revogado o Acórdão Recorrido da … Secção do Tribunal da Relação de …, de 22.04.2021, substituindo-o por outro que, em obediência à autoridade do caso julgado parcial decorrente do Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de … a 27.01.2021, declare que não existiu qualquer consentimento dos Recorrentes quanto à apreensão e junção aos autos dos respetivos emails (artigo 126.º, n.º 3, CPP) e, nessa linha, considere ilegal a definição, feita a 06.08.2020, da base de incidência (de emails) a ter em conta em futuras operações de pesquisa e seleção de mensagens de correio eletrónico, por violação do regime que decorre do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e do artigo 179.º, nº 3, CPP, só assim se retirando do presente recurso as “consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (artigo 403.º, n.º 3, do CPP).”

O Ministério Público na Relação não respondeu ao recurso.

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu extenso e bem fundamentado parecer no sentido da rejeição do recurso por irrecorribilidade da decisão, concluindo, designadamente, que “ao recurso em matéria penal não tem aplicação o regime estabelecido no art.º 629º n.º 2 do CPC”; “como os recorrentes, bem sabem, foi no apenso R, decidido «rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, arts. 432º, nº 1-b), 400º, nº 1-c), 414º, nº 2 e 420º, nº 1-b), todos do CPP, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 414º, nº 3 do CPP)”; “o TC já afastou a prevalência do caso julgado como fundamento de recurso por referência a normas do processo civil e do processo penal, não surpreendendo nessa interpretação desconformidade constitucional, não tendo o acórdão reclamado levado a cabo interpretação tida por inconstitucional de qualquer norma do CPP”; “este entendimento da questão prévia suscitada, aquele que se mostra em perfeita concordância com a opção do legislador do CPP87, prosseguida nas alterações introduzidas pela Lei n º 48 / 2007, de 29 de Agosto, bem como nas seguintes, não devendo hoc die restarem dúvidas sobre a clara intenção do mesmo de criar um sistema de recursos, em processo penal, autónomo, completo, taxativo e suficiente, rompendo, como um sistema tributário do Código de Processo Civil, como era o caso do CPP29”; “as normas do CPC, apenas podem ser subsidiariamente aplicáveis ao processo penal, nos termos do art.º 4, do Código de Processo Penal, quando se harmonizem com este, nos casos omissos-lacunas, que já vimos não existirem quanto ao sistema de recursos".

Os recorrentes responderam ao parecer reiterando as razões do recurso e concluindo, por seu turno:

“A) Deverá, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 204.º da Constituição da Repúblico Portuguesa, ser recusada a aplicação das normas inconstitucionais expressamente invocadas;

B) Deverá ser reconhecida e declarada a recorribilidade do Acórdão Recorrido do Tribunal da Relação de …, de 22.04.2021;

C) Deverá o recurso interposto ser julgado integralmente procedente e, em consequência, em obediência ao disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP, deverá ser revogado o Acórdão Recorrido do Tribunal da Relação de …, de 22.04.2021, substituindo-o por outro que, em obediência à autoridade do caso julgado parcial decorrente do Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de …, de 27.01.2021, declare que não existiu qualquer consentimento dos Recorrentes quanto à apreensão e junção aos autos das respetivas mensagens de correio eletrónico (artigo 126.º, n.º 3, do CPP) e, nessa linha, considere ilegal a definição, feita a 06.08.2021, da base de incidência (de mensagens de correio eletrónico) a ter em conta em futuras operações de pesquisa e seleção de mensagens de correio eletrónico, por violação do regime que decorre do artigo 17.º da Lei do Cibercrime e do artigo 179.º, n.º 3, do CPP, só assim se retirando do presente recurso as “consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (artigo 403.º, n.º 3, do CPP).”

Teve lugar a conferência.


1.2. O acórdão recorrido, na parte que interessa ao recurso, tem o seguinte teor:

“(…) VI – Cumpre decidir.

3. No seu recurso, os arguidos vieram impugnar a decisão do Sr. J.I.C. entendendo que:

“a. É sustentada em pressupostos de facto não verificados e, portanto, não verdadeiros -ao sugerir uma (pretensa) entrega voluntária das mensagens de correio eletrónico tituladas pelos Recorrentes;

b. Ofende e viola o caso julgado formado pelas Decisões proferidas, nos termos do artigo 179.º, n.º 3, do CPP, no decurso das (semelhantes) diligências realizadas a 10.10.2017 e a 15.11.2018; e

c. Concebe e permite uma permanente utilização da totalidade das mensagens de correio eletrónico que hajam sido apreendidas no processo, não obstante o artigo 179.º, n.º 3, do CPP, ex vi do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, determinar que as mensagens de correio eletrónico que não hajam sido consideradas relevantes para a prova devam ser restituídas a quem de direito, não podendo ser utilizadas como meio de prova.”

4. Mantém-se o efeito meramente devolutivo do recurso, fixado na 1.ª instância, nos termos do disposto nos art.ºs 406.º n.º 2, 407.º n.º 1, e 408.º a contrario, todos do C.P.Penal, não se verificando a previsão da primeira parte do n.º 3 do artigo 408.° do CPP, porquanto a validade ou eficácia dos actos subsequentes à prolação do despacho em crise não depende da decisão a proferir no presente recurso.

5. Da fundamentação do despacho em termos formais.

Verifica-se que, na forma, o despacho recorrido não contém qualquer irregularidade – encontra-se claro e conciso, fundamentado, aplicando correctamente o facto à lei, e o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica, não merecendo qualquer dúvida de interpretação, não sendo, em consequência, merecedor, nesta parte, de crítica (vd. art.º 97.º n.º 5 do C.P.Penal).

Como aponta Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, Ed Univ. Católica, pag.268, a fundamentação “é um raciocínio argumentativo que possa ser entendido e reproduzido (nachvollziehbar) pelos destinatários da decisão”.

Em termos formais, o despacho recorrido encontra-se suficientemente fundamentado.

6. Decidindo.

Em termos substanciais, vejamos.

Transcreve-se parcialmente a resposta do M.P. na 1.ª instância, que subscrevemos: “I. OS FACTOS

1. Por despacho proferido a 24-05-2007 (fls. 1379-1383), o Ministério Público ordenou, na sequência do relatório intercalar da PJ (fls. 1360 a 1363 e 1375-1376 e despachos do K/1° P° de fls. 1356-1357, e 1371-1372), a realização de buscas não domiciliárias à … sendo o local a sede social sita na Avenida …, n° …, em …, e os alvos AA, BB, CC e DD.

2. Esclareceu-se, então, que "As buscas deverão incidir sobre toda a documentação encontrada nos respetivos postos de trabalho e arquivos utilizados pelos visados, ou pela instituição respetiva, incluindo toda a que se encontre em formato digital, ainda que se trate de documentos originados ou recebidos via correio electrónico no período em causa nos autos" (cf. despacho de fls. 1380 e mandado de busca de fls. 1392 a 1395 que foi passado a 30,05.2017).

3. Esta busca (na Avenida …) veio a ser realizada no dia 02.06.2017 (cf. certidão a fls. 1400) e foi, aliás, acompanhada pelo Exmo. Dr. EE, um dos Il. Mandatários dos arguidos BB e AA (cf. fls. 1401 a 1405).

4. No gabinete do arguido BB acedeu-se ao respetivo computador através das palavas-passe que o MP considerou atinentes ao objeto da investigação no seu despacho acima referido (saco de prova da PJ, com a referência SÉRIE A 08…32 - DOC 22).

5. No gabinete do arguido AA "nada de relevante foi encontrado" (fls. 1404).

6. Na Secretaria Geral da … "foram efetuadas pesquisas informáticas pelas palavras-chaves constantes do despacho que ordena a presente busca, tendo sido encontrados ficheiros do tipo documentos datado de julho de 2006 a 2014, as quais foram gravados em suporte ótico (DVD-R), com o título «Documentos Servidor …» o qual foi acondicionado em saco de prova Série A, n.° 08…03" (fls. 1405)

7. A 30.05.2017 (fls. 1409) foi ainda passada busca na … - … Centro de Segurança Operacional, localizada na Rua … n° …, … (…), em …, sendo também visados AA, BB, CC e DD.

8. Por se ter apurado na busca que os documentos/correio electrónico antigo que se visava examinar não se encontrava armazenado na sede da …, o MP veio a ter de se deslocar para o local onde, segundo a informação aí recolhida, a … armazenava essa documentação digital em "arquivo morto", necessitando de um procedimento faseado e moroso na sua obtenção: precisamente a Rua … n° …, …, em … (cf. mandado de busca não domiciliária e apreensão de fls. 1406 a 1409).

9. Assim, cerca das 16:30h do dia 2 de junho de 2017 o MP, acompanhado pela PJ, dirigiu-se a esse local (cf. certidão de fls. 1406) e foi no … da … que o Diretor Adjunto para a Segurança da Informação da …, FF, acompanhado do II. Mandatário da … GG, após tomar conhecimento do que se visava encontrar (as caixas de correio de AA, BB, CC e DD para o período compreendido entre 2004 e 2014) se apurou que, quanto a AA e BB, "Atendendo ao volume dos dados pesquisados atingir previsivelmente 139 GB, à consequente morosidade na sua extração e gravação e ao adiantado da hora, foi concedido um prazo de cinco dias úteis para a buscada proceder à entrega desses elementos em suporte digital (em disco rígido)" (cf. fls. 1410-1411).

10. Deste modo, foi só quatro dias após as buscas que, no dia 6 de junho de 2017, a PJ recebeu das mãos do II. Mandatário da … GG (Advogado da P…, logo colega à data da mesma sociedade dos ilustres mandatários dos arguidos AA e BB) um disco rígido com o resultado das pesquisas informáticas efetuadas pela própria … nos moldes em que muito bem entendeu, e entregue voluntariamente por um advogado da … - obviamente com conhecimento, autorização e por ordem dos arguidos AA e BB, respetivamente presidente do CA e administrador da mesma), tudo como resulta do termo de recebimento de fis. 1472, onde se pode, ainda, ler que o disco rígido está selado com fita-cola na qual foi aposta a assinatura do diretor Adjunto para a Segurança da Informação da …, FF e contém o seguinte:

"1. Registo do resultado da pesquisa efectuada nas caixas de correio electrónico de BB e AA, no período compreendido entre 2004 e 2014, com base na listagem de palavras-chave constante dos autos;

2. Listagem do resultado da pesquisa efectuada no sistema de gestão documental da …, com base nas já referidas palavras-chave; tendo por referência o período compreendido entre 2004 e 2006"

11. A … (a qual era então assessorada pela sociedade de advogados P…, onde se encontravam à data os II. Mandatários dos arguidos AA e BB) podia perfeitamente ter optado por não entregar esse suporte digital, argumentando o que entendesse por bem. Mas não o fez, continuando até hoje sem se opor à utilização desses e-mails.

12. No dia 17 de junho de 2017, a acionista majoritária (C…) da … e a própria … expressaram as seguintes declarações públicas (não desmentidas até à data):

13. Por despacho de 9 de junho de 2017 (fls. 1559 - vol. 5), o MP remeteu ao Sr. JIC do TCIC todos os dados que foram extraídos em suporte digital para que procedesse - em primeira mão - ao seu exame e decisão sobre a sua eventual junção aos autos nos termos do artigo 17° da Lei n° 10912009 e art° 179° n° 3 e 188° n.ºs 1 e 4 do CPP, se existissem dados com relevo para a matéria em investigação no inquérito.

14. Por despacho de 15 de junho de 2017 (fls. 1753/54, vol. 5), e "com vista a que o JIC possa aceder ao conteúdo do correio electrónico e escolher entre as mensagens as que são relevantes para a prova", o Sr. JIC nomeou para o coadjuvar um técnico da UTI da PJ e designou o dia 26 de junho de 2017, pelas 14h00, para "a tomada de conhecimento do correio electrónico (…) quanto ao arguido AA".

Nesse dia e hora (fls. 1931 a 1934 - vol. 6), o Sr. JIC determinou pesquisa aos e-mails com base nas palavras-chave de fls. 1370 e, de seguida e face "à grande quantidade de mensagens para visualizar na caixa de correio electrónico AA@....ptpst, pelo Mmo. JIC foi determinada a triagem à referida caixa de correio electrónico através das seguintes palavras-chave que se mencionam: e…, HH, c…, d…, d…., c… e s…." (destaque nosso)

16. No dia 26/06/2017, na presença dos II. Mandatários do arguido AA e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que tal diligência não deve ser sujeita a contraditório imediato, apenas de eventual recurso posterior), o anterior Mmo. JIC II determinou a junção de DVD com alguns (poucos) e-mails do arguido AA (fls. 1931 a 1933 -vol. 6). (realidade que a Mma. JIC JJ ignorou no despacho doutamente reparado)

17. No dia 13/09/2017, o Sr. JIC II proferiu o seguinte despacho (fls. 2589 -vol. 9): Fls. 2502: Atenta a dimensão do requerimento solicite suporte informático do mesmo. Para tomada de conhecimento do correio electrónico relativo ao arguido BB (fls. 2582), designo o dia 10-10 pelas 14.00h.

Solicite a comparência do sr. Técnico informático para me coadjuvar na tarefa em causa.

Notifique o arguido para, querendo, estar presente.

Comunique ao M° P° para igualmente, querendo, estar presente.

18. No dia 10/10/2017, na presença do II. Mandatário do arguido BB e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório imediato, apenas de eventual posterior), o anterior JIC II determinou a junção aos autos de DVD com 250 ficheiros de e-mails do arguido BB fls. 2866 a 2869 - vol. 9). (realidade que a Sra.JIC JJ ignorou no despacho doutamente reparado)

Nesse auto, ficou ainda a constar o seguinte (fls. 2868 - vol. 9):

Consigna-se que, relativamente ao endereço electrónico BB-10@....pt não foi possível aceder ao conteúdo do ficheiro de e-mail, datado de 12-02-2014, com o título "Telefonema Dr. HH",

19. Por determinação do Sr. JIC II, o suporte original foi depositado no cofre do TGIC

20. Nem os arguidos nem a … requereram, nesse momento ou posteriormente, a restituição do suporte digital do qual foram seleccionados tais e-mails,

21. Mesmo que o fizessem, inexistia fundamento para tal, pois a investigação é dinâmica e, como ocorreu in casu, aquilo que não se mostrou pertinente ou relevante para a prova em determinado momento é susceptível de o ser mais tarde, sem que a pesquisa por novas ou pelas mesmas palavras-chave configure o desrespeito por anterior selecção, como aliás o Sr. JIC II chegou a fazer (cfr. adiante se refere).

23. A este propósito, cumpre relembrar que, no âmbito destes autos, foi já proferido a 13/07/2019 pelo TR… douto acórdão (ap. B-L.1) que confirmou a validade da transferência de e-mails, entre outros elementos de prova, dos processos 324/14.0… e 122/13.8… para o presente.

24. Tal obviamente significa que esses e-mails ali ainda se encontravam após a seleção dos relevantes para a prova nesses autos.

25. Por maioria de razão, é válida a manutenção nos presentes autos do suporte digital com e-mails entregues voluntariamente pela …, no âmbito destes autos, até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo aos mesmos, não só para enquadrar devidamente os que foram seleccionados como permitir (além de novas pesquisas no inquérito), no âmbito de eventuais instrução e/ou julgamento, a análise pelos respectivos tribunais de todo esse acervo probatório (além dos arguidos naturalmente).

26. No dia 09/11/2017, o arguido AA em resposta a recurso do Ministério Público declarou que tinha entregue voluntariamente os seus e-mails (fls. 3023 -vol. 10): 92, Ora, se assim é quando a entrega é, digamos, coerciva, não pode ser pelo simples facto de, no presente caso, o Arguido AA ter entregado voluntariamente um certo arsenal de mensagens de correio eletrónico que a solução se deve alterar - isto sob pena de se tratar mais desfavoravelmente um arguido que colabora com a justiça, do que aquele que se mantém passivo em face dela (!),

27. Os próprios arguidos AA e BB vieram no dia 13/11/2017 (fls. 3042 - vol. 101 e precisamente por aceitarem a validade daquela diligência, juntar aos autos aquele e-mail (fls. 3044 a 3046 - vol. 10) a cujo conteúdo não foi possível aceder pelo Mmo. JIC II.

28. A fls. 3231 (n.° 3) - vol. 10, no dia 15/12/2017 os arguidos AA e BB assumiram ter sido os próprios a ordenar a entrega dos seus e-mails: (destaque nosso) " (...) foram os mesmos quem, desde cedo, prestou aberta colaboração com a presente investigação, nomeadamente através da entrega voluntária do conteúdo das suas caixas de correio eletrónico."

29. No dia 23/03/2018, o Ministério Público promoveu o seguinte (fls. 3957 - vol. 13): Pelo exposto, por se afigurar bastante provável que o reitor da … tenha usado um e-mail pessoal para tais conversações/negociações, e de modo a conhecer o mais possível o circunstancialismo da troca da aludida, ou de outra, correspondência entre o arguido AA e o reitor da …, v.g. o relativo à omissão na segunda missiva do nome do arguido HH, promove-se que o Mmo. JIC determine:

(i) a realização de pesquisa nos e-mails juntos aos autos pela … através do recurso à palavra-chave C…., e,

(ii) a junção aos autos daqueles que se mostrarem relevantes para a prova, seguramente a maioria ou mesmo a totalidade considerando o novo critério de pesquisa ora indicado.

30. No dia 13104/2018, na presença da Il. Mandatária do arguido AA e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório imediato, apenas de eventual recurso posterior), o anterior Sr. JIC II determinou, pela segunda vez, a junção aos autos de DVD com mais e-mails do arguido AA (fls. 4178 a 4181- vol. 13): (mais uma realidade que a Sra. JIC JJ ignorou novamente no despacho doutamente reparado).

Em seguida, pelo Sr. JIC foi proferido o seguinte: DESPACHO

Proceda-se de imediato à gravação de um novo suporte autónomo, devendo conter as duas mensagens e respectivos anexos, relacionadas com o memorando de entendimento entre a … e a Universidade de …, resultantes da presente diligência, devendo ser inscrito no suporte o NUIPC, a identificação "AA 2", bem como a data da diligência, ordenando-se, desde já, a sua junção aos autos por estarem relacionados com o objecto da investigação.

Deposite em cofre deste TCIC o suporte original Blu-ray, contido no saco prova M2 A08…48, conforme decidido anteriormente.

Oportunamente, remeta ao DCIAP o suporte magnético autónomo que contêm unicamente os ficheiros cujos conteúdos poderão vir a revelar-se imprescindíveis para a prova a produzir nos autos.

Notifique.

31. Os arguidos novamente não se opuseram a tal, ou seja, a que se voltasse a pesquisar por uma nova palavra-chave os e-mails do arguido AA, tendo inclusive sido representados pelos seus II. Mandatários nessa diligência judicial.

32. Os e-mails contidos nesse segundo DVD vieram a ser impressos e juntos pelo Ministério Público aos autos a 19/04/2018 (fls. 4187 a 4189 e 4191 a 4225 -vol. 13).

33. No dia 08/05/2018, o Tribunal da Relação de … deu provimento a recurso do Ministério Público, determinado a análise de todos os e-mails entregues pela … e pelo arguido AA, referindo no seu douto acórdão expressamente, entre o mais, que "o correio electrónico constante do endereço AAdp.pt.pst” foi "de resto, voluntariamente fornecido" (sublinhado nosso):

Encontra-se em investigação nos presentes autos a eventual prática de crimes de corrupção passiva (art. 373°, C.Penal); corrupção activa com agravação (arts. 374° e 374.º-A, C. Penal) e participação económica em negócio (art. 377.° C. Penal). Assim, no âmbito do inquérito, o MP determinou a realização de buscas não domiciliárias, designadamente, na sede da …, com apreensão de correspondência electrónica, entre outros, do arguido AA. Tal veio a ser efectuado, tendo sido apreendido o correio electrónico constante do endereço AA©….pt.pst, de resto, voluntariamente fornecido. De entre a correspondência apreendida, o MP, determinou que fossem pesquisados os e-mails que correspondessem às palavras-chave enunciadas a fls. 1370.

34. Nesse acórdão, o Tribunal da Relação de … pronunciou-se ainda sobre os termos em que devia decorrer a diligência judicial de selecção de e-mails (o que obviamente pressupõe que nada mais havia a discutir sobre a validade e utilização dos e-mails, tornando assim na verdade irrelevante ou desnecessário o consentimento dos arguidos, pois uma coisa é a obtenção dessa prova e outra a assistência à análise e selecção dos mesmos):

O que, a nosso ver, forma caso julgado quanto à validade da apreensão e utilização desses mesmos e-mails como prova.

Impõem-se apenas dois considerandos finais:

O primeiro prende-se com a assistência das partes no acto de abertura e conhecimento do teor das comunicações. Ora, neste particular, nada haja a debater ou a sujeitar a contraditório, nada obrigando à presença dos sujeitos processuais, o certo é que nada obsta ao contrário, pelo que a presença do MP e dos arguidos afectados em tal em nada contende com a validade do acto, antes contribuindo para a transparência do mesmo, embora sem consequências processuais.

35. Chegados a este ponto temos objectivamente de concluir que quer os arguidos AA e BB, quer a …, quer o Tribunal da Relação de … e mesmo os anteriores JIC e o próprio MP todos sempre agiram no pressuposto expresso (e não numa mera assunção tácita) de que foi vontade dos arguidos entregaremos e-mails colaborando processualmente e publicitando (nomeadamente na Comunicação Social) esse facto.

47. No dia 15/11/2018, a Mma. JIC KK determinou a junção de mais de quatro mil e quinhentos e-mails do arguido AA (seleccionando um por um de um universo maior), em cumprimento do citado douto acórdão do Tribunal da Relação de … de 08/05/2018, relatado pelo Exmo. Desembargador LL e também subscrito pela Exma. Desembargadora MM, que a Mma. JIC JJ, salvo o devido respeito, que é muito, também parece ter olvidado.

48. No dia 28/11/2018, o arguido AA apresentou o requerimento de fls. 7060 a 7084 - vol. 22 (cujo teor se dá aqui reproduzido por economia processual).

49. No dia 20/12/2018 (fls. 7369179 - vol. 23), o Ministério Público respondeu a esse requerimento referindo por exemplo o seguinte:

"Há já cerca de ano e meio, no dia 26 de junho de 2017, na presença dos Il. Mandatário do arguido AA e sem o Ministério Público (por entender que tal diligência não deve ser sujeita a contraditório), o anterior Mmo. JiC II determinou a junção de OVO com alguns (poucos) e-mails do arguido AA (fis. 1931 a 1933 - vol. 6).

Há já cerca de um ano e dois meses, no dia 10 de outubro de 2017, na presença do Il. Mandatário do arguido BB e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório), o anterior Mmo. JIC II determinou a junção aos autos de DVD com 250 ficheiros de e-mails do arguido BB (fls. 2866 a 2869 - vol. 9).

“Há já cerca de oito meses, no dia 13 de abril de 2018, na presença da Il. Mandatária do arguido AA e sem o Ministério Público (por entender, o MP, que a diligência não deve ser sujeita a contraditório), o anterior Mmo. JIC II determinou a junção aos autos de DVD com mais e-mails do arguido AA (fis. 4178 a 4181-vol. 13), os quais vieram a ser impressos e juntos pelo Ministério Público aos autos, a 19 do abril de 2018 (fls. 4187 a 4189 e 4191 a 4225 -vol. 13).


No dia 15 de novembro de 2018, a Mma. JIC determinou a junção ele mais alguns milhares de e-mails do arguido AA, em cumprimento de douta decisão do TR… .

Ou seja, só decorrido cerca de ano e meio da junção inicial de e-mails seus pelo anterior Mmo. JIC II (e cerca de um ano após o Acórdão que anulou as apreensões de e-mails na BCG, aliás aqui inaplicável, tal como o relativo às apreensões de e-mails na REN, proferido em março de 2018) é que o arguido AA disse alguma coisa contra tal, algo que até esta data o arguido BB não fez.

O anterior Mmo. JIC II também ordenou a junção de e-mails que, após análise do MP e pelo menos até à data, não foram impressos e juntos aos autos pelo MP mas daí nada de lesivo (sem relação com os factos em investigação) para a vida comercial da … ou para a vida pessoal do arguido AA decorreu, precisamente porque não foram impressos, permanecendo inacessíveis a terceiros, os quais assim continuarão, tal como todos aqueles que, selecionados pela Mma. JIC, o MP entenda não imprimir e juntar aos autos, por julgar não serem relevantes para efeitos de prova indiciária dos factos em investigação.

A propósito e pela sua relevância e profundidade, cumpre aqui dar conta do que recentemente RUI CARDOSO, docente do CEJ, publicou num artigo da Revista do SMMP n.° 153, Janeiro a Março de 2018 (fls. 209 a 211, destaques nossos):

"A interpretação conjugada do artigo 17.° da LCC e do artigo 179.° do CPP no sentido de aí fundar uma norma com o sentido de que é o juiz de instrução que, no inquérito, em primeiro lugar toma conhecimento das mensagens de correio electrónico ou semelhantes e que é ele que, oficiosamente, procede à selecção daquelas que são de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, para além de não se traduzir em qualquer real garantia, viola a estrutura acusatória do processo, pois essa é matéria essencial à direcção do inquérito e à definição do seu objecto, assim comprometendo a posição de imparcial juiz das liberdades.

O juiz de instrução não pode ter qualquer "influência" ou "manipulação" sobre a definição do objecto do inquérito [52],- deve ser alheio à definição da estratégia de investigação do Ministério Público e OPC, devendo actuar apenas no campo da admissibilidade legal das intervenções requeridas [53], sendo por isso sua obrigação, "uma vez verificados os pressupostos formais de procedência, deferir o requerido pelo Ministério Público[54], "não podendo, em caso algum, examinar a utilidade da medida requerida' [55] "A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público, sempre que estejam em causa actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserve ao juiz, obedece a um quadro de intervenção tipificada e provocada, pois a magistratura judicial por natureza não actua ex oficio em processos de que não é titular", devendo acentuar-se que este principio da inoficiosidade "não deriva de um preconceito histórico, mas de um modelo garantiste em que se condiciona a intervenção do único órgão com poderes em áreas fundamentais de direitos liberdades e garantias à intervenção prévia de urna outra entidade. [56].

A interpretação que criticamos coloca no juiz de instrução a competência para verdadeiramente investigar os factos noticiados e impor ao Ministério Público a utilização de concretos meios de prova: analisar cada uma das comunicações, conjugá-las entre si, relacioná-las com os demais meios de prova existentes, aferir da sua relevância para o que demais se planeia fazer, tudo elevado a uma escala que, em processos complexos, cada vez mais frequentes, não será exequível sem meios técnico-informáticos adequados.

Exigir que seja o juiz a oficiosamente seleccionar as mensagens relevantes é tão fundamentado como seria exigir que o Ministério Público apresentasse ao juiz de instrução uma lista de casas onde, em abstracto, pudessem existir objectos relacionados com um crime ou que pudessem servir de prova, ou uma lista de pessoas que, em abstracto, pudessem ter conhecimento dos factos, e ser o juiz de instrução a ordenar em quais dessas casas se fariam buscas e quais dessas pessoas seriam inquiridas como testemunhas, a realizar tais diligências e a apresentar depois ao Ministério Público os resultados que considerasse relevantes para a prova.

Tal interpretação é um regresso ao sistema que vigorou para as escutas telefónicas na versão original do CPP - que não permitia aos OPC e ao Ministério Público tomarem conhecimento do seu conteúdo antes do juiz de instrução -, que, após críticas, veio a ser modificado, primeiro na reforma de 1998 e depois na de 2007.

Por tudo o que fica exposto, nessa interpretação, o artigo 17.° da LCC conteria uma norma desconforme ao n.° 5 do artigo 32.° da CRP. Ora, nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados - artigo 204.° da Lei Fundamental.

Em consequência, deve proceder-se a uma interpretação conforme à Constituição, que é aquela que antes apresentámos."

e a pags 167-214 citado na decisão de 11 outubro 2018, no proc.º 3681/15.7JAPRT do JIC do Porto, juiz 2 :

"No CPP, o âmbito objectivo é o de correspondência em trânsito ou ainda não aberta; na LCC, todas as mensagens de correio electrónico ou semelhantes, nos termos supra expostos, não havendo verdadeiramente regime aberto-lido e fechado-não lido". (...) No que respeita aos procedimentos, no CPP os OPC transmitem a correspondência intacta ao juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência e é este que procede á abertura e primeiro toma conhecimento do seu conteúdo; na LCC, durante o inquérito, o Ministério Público, depois de tomar conhecimento do seu conteúdo, deve apresentar ao juiz suporte com as mensagens de correio electrónico ou semelhantes cautelarmente apreendidas (ou melhor, os dados informáticos que as constituem), juntamente com requerimento fundamentado para apreensão daquelas que considere de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, após o que o juiz apreciará, tomando conhecimento do seu conteúdo, e decidirá autorizar ou não autorizar a apreensão formal. (...) Se fosse intenção do legislador aplicar integralmente o regime de apreensão da correspondência do CPP, bastar-lhe-ia ter dito que "à apreensão de mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante é aplicável o regime de apreensão de correspondência previsto no CPP". Não o fez. (...) Exigir o prévio conhecimento pelo juiz significaria, na prática, impedir a apreensão desses dados, o que constituiria uma interpretação contra a CCiber e o âmbito de apreensão de dados que Portugal, como Estado-parte, deve assegurar na sua legislação." (...) Nessa interpretação, o artigo 17.° da LCC conteria uma norma desconforme ao n.º 5 do artigo 32.° da CRP".

Nestes termos, nada se ordena, sendo o M.P. a autoridade judiciária competente para os actos referidos na promoção que antecede.

De todo o modo, cumpre desde já deixar bem claro que o Mmo. JIC não se furtou ao encargo de proceder ao exame da totalidade dos e-mails que resultaram da pesquisa por diversas palavras-chave, todas estritamente relacionadas com o objecto da investigação, a ponto de não hesitarmos em afirmar que todos os "e-mails" são credores de análise mais demorada pelo Ministério Público, a qual obviamente não podia, nem tinha, ser levada a cabo nos mesmos termos peio Mmo. JIC.

Enfim, anote-se que o MP - ao contrário do que por vezes já parece fazer escola, ao avesso da nossa Constituição - continua a ser o titular da investigação e ao Mm° JIC encontram-se apenas cometidas funções de juiz das liberdades. Neste contexto competindo-lhe, apenas, expurgar os e-mails materialmente fora do objecto da investigação que contundam com direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.

Nada mais.

Considerando isso e o facto dos "e-mails" que a …, e os arguidos AA e BB, entregaram voluntariamente aos autos" terem resultado de pesquisa, efectuadas pelos serviços dessa empresa, por palavras-chave também relacionadas com o objecto da investigação, não surpreende minimamente que tenha sido determinado, pelo actual Mmo. JIC, a junção aos autos da totalidade dos e-mails que lhe foram apresentados no início da diligência de 06/08/2020.

Os arguidos já vieram aos autos alegar que tais e-mails não foram devidamente analisados ou sequer visualizados omitindo, porém, que inúmeros e-mails eram repetidos ou tinham o mesmo assunto (sendo muitos meros reenvios ou respostas). Basta visualizar a gravação da diligência e abrir o suporte digital onde foram gravados os e-mails para confirmar isso.

Não era exigível ao Mmo. JIC que se demorasse mais na análise de cada um dos "e-mails" do que o tempo que despendeu, visto que incumbe ao Ministério Público correlacionar tais "e-mails" com a restante prova já carreada ou a carrear para os autos, sobretudo quando está em causa matéria excepcionalmente complexa e extensa como a da presente investigação (entre a qual procedimentos legislativo e de contratação pública no setor da energia).

Uma vez mais, os arguidos olvidam a distinção entre os momentos da apreensão e da revelação, doutamente explanada no Acórdão do Tribunal da Relação de … de 18/05/2006, (a propósito de buscas numa instituição financeira mas aqui inteiramente aplicável, não só por via de intervenção judicial como também por serem duas diligências que, por regra, envolvem a análise de um manancial de documentos):

"III - É o critério da investigação, cujo dominus é o M.P., que determina a razoabilidade das buscas e da selecção/escolha dos objectos apreendidos.

VII - Questões relacionadas com sigilo profissional - de advogado ou bancário - só se colocam quando do momento da revelação dos documentos e demais coisas apreendidas e não, no concreto momento que lhe precede e que agora está em causa, o da apreensão."

Nas buscas a IFs também em apenas algumas horas de um só dia se apreendem milhões de documentos e não é exigível, e bem, aos Juízes que presidem a essas diligências que tomem conhecimento de todas, e cada uma, das páginas de tais documentos, não sendo por isso que a apreensão respectiva é ilegal.

Tal como na diligência de 06/08/2020, compete ao Juízes numa busca a IFs verificar da relação dos documentos com o objecto da investigação e determinar a sua junção aos autos (in casu apenas num suporte digital), incumbindo ao Ministério Público seleccionar aqueles que entender necessários para o esclarecimento dos factos, desde logo para confrontar testemunhas e arguidos com os mesmos, não sendo naturalmente obrigatório que tais documentos possam depois ser indicados como prova numa eventual acusação.

Resultando os "e-mails" apresentados ao Mmo. JIC de uma pesquisa por palavras-chave directamente atinentes ao objecto da investigação (sendo que os mesmos eram já resultado de uma pesquisa e seleção feita e entregue voluntariamente pela … com base em palavras-chave relativas à investigação), competia-lhe de facto apenas verificar se existia algum que nada tivesse a ver com a mesma, o que foi exemplarmente realizado.

Aliás, tal também não surpreende porquanto em nenhum dos "e-mails" entregues voluntariamente pela … e pelos arguidos se constatou, até agora (não sendo previsível que tal se venha a verificar), a alusão a matérias do foro privado sem interesse para a descoberta da verdade (os próprios arguidos nem sequer o invocam ou assinalam), o que confirma o acerto da opção por pesquisas através de palavras-chave.”

Não foram violadas quaisquer normas legais e/ou constitucionais maxime os art.ºs 32.º e 204.° da CRP.

VII - Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelos arguidos mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.”


2. Fundamentação

Como se disse, os arguidos vêm interpor recurso do acórdão da Relação que confirmou um despacho do Juiz de instrução criminal, despacho esse proferido no processo na fase da investigação. Trata-se, pois, de uma decisão jurisdicional em inquérito, que se encontra confirmada pela Relação na sequência de um primeiro recurso interposto pelos mesmos arguidos. E é este acórdão que pretendem agora impugnar, dizendo fazê-lo “ao abrigo do disposto nos artigos 379.º, n.º 2, 399.º, 403.º, n.º 1, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 3, 425.º, n.º 4, 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP e no artigo 629.º, n.º 2, a. a), do CPC, ex vi art. 4.º do CPP”.

Da fundamentação e conclusões do recurso, resulta inequívoco que os recorrentes agem ao abrigo do art. 629.º, n. º 2, al. a) do CPC, norma que pretendem ver aplicada em processo penal. Na parte que agora releva, esta norma processual civil preceitua que “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (…) com fundamento (…) na ofensa de caso julgado”.

Pugnam assim os recorrentes pela aplicação da norma do processo civil por via da aplicação concomitante do art. 4.º do CPP, que, como se sabe, trata da “Integração de lacunas”, dispondo que “nos casos omissos (…) observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal (…)”.

Assim, não se apresenta controvertido que o acórdão da Relação que se visa impugnar é irrecorrível à luz do Código de Processo Penal. Ou seja, a lei processual penal não prevê, vedando mesmo, a possibilidade de nova reacção processual com vista à obtenção de um reexame da decisão por um tribunal superior, num caso como o presente.

Na verdade, o presente acórdão da Relação é já uma decisão que, em recurso, conheceu da impugnação dos arguidos do despacho de primeira instância. E a irrecorribilidade do acórdão da Relação impõe-se aqui, pois a decisão sub judice não beneficia, por nenhuma via, da possibilidade de duplo grau de recurso.

Desde logo, o art. 400.º do CPP é uma norma de excepção ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, regime-regra afirmado no art. 399.º do CPP. E da limitação do direito ao recurso consagrada na norma em causa (art. 400.º do CPP), designadamente do seu n.º 1, al. c), decorre que não é admissível recurso  “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo”. Previsão que ocorre no caso presente.

Daí que, cientes da irrecorribilidade do acórdão à luz do Código de Processo Penal, pretendam os recorrentes ver aplicada a norma do Código de Processo Civil. E, para tanto, argumentam que o acórdão recorrido “violou o caso julgado parcial formado pelo Acórdão do mesmo Tribunal da Relação de …, de 27.01.2021, anteriormente proferido nestes mesmos autos, no âmbito do apenso de recurso 184/12.5…-R.L1”.

Tratar-se-ia ali de uma decisão  sobre a entrega de outros emails, efetuada pela … numa outra data, na sequência de diligências de buscas diversas e relativamente a outras apreensões, em que, num outro apenso de recurso, teria sido decidido diferentemente sobre a legalidade de prova decorrente da apreensão de e.mails e a possibilidade da sua utilização no processo-crime.

Defendem os recorrentes que, ao decidir-se agora diversamente no que respeita à interpretação do direito aplicável,  o acórdão recorrido teria violado o caso julgado parcial que, sempre na sua alegação, se teria “formado no acórdão de 27.01.2017” relativamente à mesma questão, de apreciação sobre a legalidade de prova e a possibilidade de sua utilização no processo. O que, na sua alegação, viabilizaria agora a interposição do presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, pretensamente aplicável ex vi art. 4.º do CPP.

Aditam, por último, que ”é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança – nos quais radicam os fundamentos da autoridade do caso julgado –, assentes na noção de Estado de Direito Democrático, assim como por violação do princípio da igualdade e do direito ao recurso, a norma, eventualmente extraída do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP e do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP, ou de qualquer outra disposição legal, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, quando o fundamento do recurso é a violação do caso julgado.”

A pretensão dos recorrentes não é, porém, de atender. E não o é por duas ordens de razões, sendo a primeira logo prejudicial da segunda.

Assim, primeiramente, o acórdão recorrido é uma decisão irrecorrível. Mas, mesmo que se considerasse que a norma processual civil poderia ser aqui convocada, sempre inexistiria em concreto uma situação que, materialmente, configurasse violação de caso julgado atendível para efeitos do recurso em causa, como se deixará por fim dito.

Em processo penal e em matéria de recursos, o Código (de processo penal) prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso.  E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso num caso como o presente. Duplo grau de recurso que a Constituição, aliás, não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra já assegurado.

E a norma processual civil cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º do CPP pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos. Não ocorre seguramente ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recursos, ordinários e extraordinários.  

Logo na fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 9/2005, o Supremo Tribunal de Justiça reafirmou a autonomização dos recursos em processo penal prosseguida pelo Código de Processo Penal vigente, jurisprudência que o decurso do tempo só veio consolidar. Fê-lo ali, ao que ora interessa, nos seguintes termos:

“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspectiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, n.os 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê.

Não obstante alguma proximidade ou «analogia semântica» nos nomina de designação entre as categorias de recursos (uma «civilprocessualização» do recurso em processo penal, como refere Damião da Cunha, in Caso Julgado Parcial, 2002, a pp. 528 e 529), a similitude não se verifica, no rigor das coisas, no plano da regulamentação e no modo operativo; nem o recurso em processo penal para o Tribunal da Relação constituiu uma apelação em processo civil, como o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça constitui, mais que um recurso de revista (revision), uma espécie autónoma de revista (revista alargada) em que o poder de cognição se estende a importantes domínios atinentes ao complexo material ainda pertencente ao âmbito - alargado - da matéria de facto.”

A autonomia total do modelo e regime de recursos em processo penal, a par da regra da suficiência do processo penal consagrada no art. 7.º, n.º 1 do CPP, mantém-se até ao presente. E mantém-se com o sentido conhecido dado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sem censura de constitucionalidade, em interpretação sabida pelo legislador.

Sucede que não ocorreu qualquer alteração legislativa nesta parte, nomeadamente nas reformas operadas pelas Leis n.ºs 48/2007, de 29 de Agosto, e 20/2013, de 21 de Fevereiro, o que podia ter sido feito, se essa fosse a intenção do legislador. Tanto mais que, repete-se, é conhecida a jurisprudência consistentemente maioritária do Supremo Tribunal de Justiça a este propósito, bem como a ausência de censura por parte do Tribunal Constitucional a tal interpretação.

 Como o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo desenvolveu no parecer, com uma pertinência a justificar transcrição, “o STJ vem reafirmando, a autonomia, completude e suficiência do regime dos recursos do Código de Processo Penal, face às disposições do Código de Processo Civil. De resto, é bem conhecida a intenção do legislador do CPP87 de romper com a tradição do CPP29, isto é, com um modelo de recursos penais tributário da aplicabilidade do Código de Processo Civil, a traduzir-se, num arrastamento dos processos pela via de sistemáticos e abusivos recursos”.

Observou-se ainda com pertinência no parecer que os ora recorrentes “naturalmente não desconhecem, que por acórdão tirado em 02-06-2021 no proc. n º 184/12.5…-R. L1.S1-…Secção / Conceição Gomes, isto é, no apenso R deste mesmo processo, vulgo processo “…” (sendo este o seu apenso N) inter alia se transcreve, ao demais, o seguinte excerto, do aliás douto acórdão tirado em 27 de Janeiro de 2021 no proc.266/07.5TANV.E1. S1-3ª Secção/ Nuno Gonçalves:

“Como este mesmo Tribunal e secção – e com o mesmo relator – sustentou e aqui se repete, a autonomização dogmática e metodológica do regime dos recursos processo penal, em matéria criminal, em relação à lei adjectiva do processo civil, foi uma das preocupações do legislador do vigente CPP, informado pelo ideário de estabelecer um sistema integrado - e completo - de soluções potenciadoras da “economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, de modo a obviar “ao reconhecido pendor para o abuso dos recursos”. “Complementarmente, procurou simplificar-se todo o sistema, abolindo-se concretamente a existência, por regra, de um duplo grau de recurso” – cf. preâmbulo do CPP de 1987.

Posteriormente, retocando a arquitectura do edifício assim erigido, o legislador, – na Proposta de Lei n.º 109/X que se converteu na Lei n.º 48/2007:

- Insistiu em “restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal”.

Expressando que “para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal”.

Na doutrina, Leal Henriques e Simas Santos não podiam ser mais claros neste aspecto, entendendo que “com o Código de Processo Penal de 1987, o regime dos recursos em processo penal sofreu uma autêntica revolução que obedeceu a uma ideia concreta: ruptura praticamente total com o sistema de recursos em processo civil que lhe servia de amparo, mercê da criação de um estatuto autónomo e próprio que independentizasse, de uma vez por todas, o esquema processual até então vigente”.

“Traçou, assim, o legislador a ossatura do regime dos recursos em processo penal que, em traços grossos e breves: como alicerce, o rompimento com a subordinação da matéria ao esteio do processo civil”.

“Esta filosofia de base manteve-se nas alterações introduzidas no texto que não puseram em causa o princípio original de autonomia dos recursos penais” Também M. Maia Gonçalves entendeu que “não há qualquer lacuna do sistema legal dado o texto deste art.º 400.º, não funciona em processo penal o normativo do art.º 678º n.º 2 do CPC relativo aos recursos para o STJ baseados em ofensa do caso julgado ou das regras de competência internacional e em razão da matéria ou da hierarquia”.

Assim mesmo, no acórdão inicialmente citado – com o mesmo relator -, sustentou-se “que as excepções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em processo penal estão expressamente previstas no CPP, não existindo qualquer lacuna, nem, consequentemente, margem para convocar a aplicabilidade da norma do artigo 629. ° n.º 2, do Código de Processo Civil”.

Também citados no parecer, e no acórdão do STJ de 27-01-2021 (Rel. Nuno Gonçalves) vejam-se, entre muitos outros:

- O acórdão do STJ de 16-06-2020 (Rel. Margarida Blasco),  no sentido de não ser “convocável em recurso da matéria penal a aplicação supletiva do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC. O regime de recursos em processo penal é hoje, e, em princípio, auto-suficiente, não havendo lacuna que permita, a coberto do artigo 4.º, do CPP, que seja lançada mão do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC relativamente ao recurso em matéria penal para o STJ com base em ofensa ao caso julgado. Sendo que a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal assim tem decidido”;

- O acórdão do STJ de 06-05-2020 (Rel. Raul Borges),  no sentido de “no domínio do processo penal, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido.

(…) Não tem aplicação em processo penal a recorribilidade com base em incompetência material ou violação de caso julgado. - art.º 629.º, n. º 2, al. a), do CPC.

(…) Este Supremo Tribunal já se pronunciou no sentido de inexistência de lacuna e de não ser aplicável em processo penal o disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, como consta do sumário do acórdão de 7 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 204/13.6YUSTR.L1-A.S1, da 5.ª Secção.

No sentido de inexistência de lacuna e de não aplicação da revista excepcional em matéria penal, pronunciaram-se os acórdãos de 06-10-2016, proferido no processo n.º 535/13.5JACBR.C1.S1 - 5.ª Secção e de 4-12-2019, proferido no processo n.º 354/13.9IDAVR.P2.S1, da 3.ª Secção, in CJSTJ 2019, tomo 3, págs. 230 a 235.”;

- O acórdão do STJ de 04.12.2019 (Rel. Manuel Matos), no sentido de

“V - O artigo 432.º do CPP delimita exaustivamente os casos de recurso para o STJ, sendo que a vigente lei processual penal contempla taxativamente os recursos extraordinários previstos, quais sejam, o recurso para fixação de jurisprudência, o recurso interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigos 437.º e 446.º do CPP) e o recurso de revisão (artigo 449.º do CPP), não prevendo a revista excepcional sobre objecto penal.

VI - Tendo o regime processual dos recursos penais sido autonomizado no Código de 1987, só em caso de lacuna do regime processual penal, que careça de integração, é lícito ao intérprete socorrer-se dos atinentes preceitos processuais civis (art. 4.º do Código de Processo Penal).

VII – No caso presente, não se nos afigura que se possa afirmar a existência de uma lacuna que careça de ser integrada. As necessidades de certeza e segurança do direito obrigam o legislador a uma «hierarquização de valores», originando a exclusão de situações que, embora alguns possam considerar carecidas de tutela, não foram realmente na hipótese contempladas. Pelo que, nesta perspectiva, o intérprete terá de presumir, em princípio, que o legislador elaborou um «sistema completo», não podendo, sem risco de subversão das regras hermenêuticas, recuperar por sua conta aquelas situações.

IX – Já relativamente à matéria penal, ao objecto penal tramitado no processo penal, observa-se a inaplicabilidade das normas processuais civis relativamente aos recursos aí interpostos e, muito em particular, aos recursos interpostos perante o STJ. Neste ponto, o regime jurídico-processual dos recursos e respectivas espécies, consagrado no CPP pauta-se pela suficiência (princípio da auto-suficiência), é taxativo, exaustivo e completo.

X - Ora, reafirmando-se, o regime processual penal português vigente não prevê a existência do recurso de revista excepcional em matéria penal, não se vislumbrando, ao invés do que o recorrente pretende, razões ou fundamentos que permitam concluir no sentido de o sistema jurídico reclamar, por via interpretativa ou integrativa, a aplicabilidade do recurso à revista excepcional para ultrapassar os efeitos decorrentes de duas decisões conformes (da 1.ª instância e da Relação) quanto ao objecto penal.”.

- O acórdão do STJ de 17.06.2015 (Rel. João Miguel) em que se notou que “O TC já afastou a prevalência do caso julgado como fundamento de recurso por referência a normas do processo civil e do processo penal, não surpreendendo nessa interpretação desconformidade constitucional, não tendo o acórdão reclamado levado a cabo interpretação tida por inconstitucional de qualquer norma do CPP”, citando-se aqui os acórdãos do Tribunal Constitucional  n.º 630/2011, de 19 de dezembro de 2011, e n.º 33/2015, de 14 de janeiro de 2015.

Como se adiantou no início, o recurso sempre soçobraria por razões de ordem material. Na verdade, mesmo que fossem admissíveis a interposição pretendida e a aplicação subsidiária da via recursiva processual civil, sempre se estaria perante uma situação que, em concreto, não conduziria à afirmação de violação de caso julgado formal, a qual  quedaria, materialmente, por justificar.

Com efeito, a decisão sub judice, que o acórdão do Tribunal da Relação confirmou, respeita a um despacho do juiz de instrução, proferido em inquérito, sobre recolha e aquisição de prova. Dessa decisão resulta um juízo sobre a legalidade da prova em causa que viabiliza a possibilidade de poder vir a ser oferecida na acusação e nas contestações, e poder vir a integrar a discussão e exame das provas em julgamento. Mas como decisão jurisdicional de inquérito que é, ela tem sempre natureza transitória, no sentido de  não poder obrigar em definitivo o tribunal de julgamento no que respeita à decisão sobre a legalidade da prova. A decisão do juiz de instrução sobre a legalidade da prova está revestida de transitoriedade, e transitório será o caso julgado formal que lhe corresponde. Vale para a fase de inquérito e instrução, mas a decisão não vincula no processo o juiz de julgamento.

O tribunal de julgamento é soberano no conhecimento e decisão sobre matéria de facto e, de acordo com o princípio da livre aplicação do direito, será sempre livre de, em seu prudente critério, decidir sobre a legalidade de todas as provas apresentadas por acusação e  defesa, não estando vinculado à decisão precedente do juiz de instrução sobre essa legalidade.

Assim, o caso julgado formal que se poderá formar a este propósito no processo (no que respeita às provas admitidas nos autos) é por natureza transitório. Vale para a fase de inquérito e instrução, mas não para a fase de julgamento, pois não vincula o juiz de julgamento.

Não pode assim considerar-se que, no sentido que releva agora aqui em recurso, esta segunda decisão do juiz de instrução sobre legalidade de provas, que pretensamente adversariaria uma outra anteriormente tomada no processo pelo mesmo juiz (mas sempre relativamente a outras provas),  é violadora de caso julgado formal, pois ela não é, por sua natureza, sequer definitiva no processo.

Em suma, também por esta razão, mesmo que processualmente o presente recurso se tornasse admissível, o que não sucede, sempre se estaria perante uma situação que, materialmente, não justificaria o acesso ao Supremo com o fundamento em violação de caso julgado

Tudo visto, ficam também por justificar as inconstitucionalidades invocadas, que os recorrentes nem apoiam em jurisprudência do Tribunal Constitucional, que nunca citam, jurisprudência que tem sido aliás em sentido oposto ao propugnado nos recursos.

Por último, consigna-se que  o facto de os recursos terem sido admitidos (na sequência de decisão da reclamação por não admissão) não vincula o Supremo Tribunal de Justiça (art. 414.º, n.º 3 do CPP).

           

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar os recursos por irrecorribilidade da decisão.

Pagarão os recorrentes, cada um deles, 5 UC de taxa de justiça e ainda a importância de 3UC, nos termos do art. 420.º, n.º 3 CPP.


Lisboa, 02.12.2021


Ana Barata Brito, relatora


José Luis Lopes da Mota, adjunto