ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
QUEIXA
PROCESSO RESPEITANTE A MAGISTRADO
FALSIDADE
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
DOLO
FALSIFICAÇÃO OU CONTRAFAÇÃO DE DOCUMENTO
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
Sumário


I - Do art. 399.º do CPP resulta claro que só é possível recorrer de decisões judiciais, isto é, de decisões proferidas por um tribunal. As decisões proferidas por magistrados do MP são, naturalmente, sindicáveis; porém, não por via de recurso, antes pelos meios próprios de intervenção hierárquica legalmente previstos.
II - Sendo o requerimento de abertura da instrução totalmente omisso quanto ao elemento subjectivo dos crimes imputados aos denunciados, não tem condições para prosseguir, sendo certo que – como decorre do AUJ n.º 7/2005, de 12-05-2005, DR I, série-A, n.º 212, de 04-11-2005 – «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido», entendimento já julgado conforme à CRP pelo acórdão TC 389/2005, de 14-07-2005, reafirmado nos acórdãos do mesmo tribunal n.º 636/2011, de 20-12-2011 e 175/2013, de 20-03-2013.

Texto Integral

            Acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça:


I. Em ... de Fevereiro de 2020, AA apresentou na Procuradoria Geral Regional do ..... um requerimento onde, afirmando ter a qualidade de executado no processo 2189/14......., a correr termos no Juízo de Execução, do Tribunal Judicial da Comarca do ....., remeteu àquele processo um requerimento, em 5/11/2019, contendo queixa crime e no qual solicitou a transmissão da mesma àquela Procuradoria Geral Regional, nos termos do disposto nos arts 245º e 265º, nº 1, do CPP e que, em 13/01/2020, remeteu àqueles autos novo requerimento com queixa crime. Constatando que tais requerimentos não haviam sido deferidos, anexou cópia dos mesmos e requereu a instauração de inquérito contra:

1. BB, Juíza Desembargadora;

2. CC, Juíza de Direito;

3. DD, Juíza de Direito;

4. EE, Juiz de Direito;

5. FF, Juíza de Direito;

6. GG, Juíza de Direito; e

7. HH, Juíza de Direito.

 Em ... de Março de 2020, o participante foi admitido a intervir nos autos como assistente.

  Em … de Abril de 2021 foi proferido despacho de arquivamento do inquérito.

 E em … de Maio de 2021, o assistente requereu a abertura de instrução, pretensão que foi desatendida por despacho proferido em 4 de Junho de 2021, onde se decidiu rejeitar o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente, condenando-se o mesmo nas custas do processo.

 Em …/6/2021 o assistente arguiu “a irregularidade do processo consistente na omissão de atos prévios à decisão sobre a admissibilidade da instrução” e a ”falsidade do teor do despacho de 04-06-2021, nos termos do artigo 372º, nºs 2 e 3, do Código Civil”.

Em … de Julho de 2021 foi proferido despacho desatendendo a arguida irregularidade processual e indeferindo liminarmente o incidente de falsidade.

  Em … de Julho de 2021, o assistente interpôs recurso, pedindo que seja ordenada a abertura da instrução e extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1ª - A omissão de atos prévios à decisão sobre a admissibilidade da instrução constitui irregularidade do processo nos termos do artigo 123°, n° 1, do CPP, determinante da invalidade do despacho recorrido.

2ª - A falsidade do teor do despacho recorrido também é determinante da sua invalidade.

3ª - Por força do disposto no artigo 379°, n° 2, do CPP, a invalidade/nulidade do despacho recorrido pode/deve ser suprida no Tribunal recorrido: a pronúncia deste é obrigatória, sendo inconstitucional a sua interpretação com sentido facultativo, por infringir o estatuído nos artigos 202°, n° 2, e 203° da Constituição.

4ª - Caso não seja cumprido o disposto no artigo 379°, n° 2, do CPP, terá de ser ordenada a baixa do processo para que a omissão seja cumprida.

5ª - A falsidade arguida por requerimento de 16-06-2021, cujo teor foi acima reproduzido (cf. Parte V, n°s 1 a 16), consubstancia nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea c), na sua dupla vertente, do CPP.

6ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 278°, n° 1, e 286°, n° 1, do CPP, ao dizer, no seu n° 5, que o "mecanismo próprio" para arguir os vícios "dos despachos prolatados pelo Ministério Público no decurso do inquérito" é a reclamação "perante a autoridade judiciária que preside ao inquérito": a reclamação só é possível quando o Assistente não tenha optado por requerer abertura de instrução por haver verificado que seria ato inútil, proibido por lei, reclamar no âmbito do Inquérito.

7ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 242°, n° 1, alínea b), e 286°, n° 1, do CPP, ao dizer, no seu n° 5, que "não é a instrução a sede própria para apreciar denúncias de alegados crimes a quem conduziu o pretérito inquérito, nem se trata de questão prévia ou prejudicial que impeça a presente decisão": os factos invocados no requerimento de abertura de instrução para efeito do disposto nos artigos 286°, n° 1, e 287°, n° 2, do CPP, relativos à conduta das titulares do Inquérito, têm de ser apreciados pelo Juiz de Instrução por força do disposto no artigo 242°, n° 1, alínea b), do CPP, 202°, n° 2, e 205°, n° 2, da Constituição.

8ª - O despacho recorrido viola o disposto no artigo 286°, n° 1, do CPP, ao abonar-se, no seu n° 6, no entendimento do autor do despacho de arquivamento, para fazer a comprovação judicial da sua validade: tal procedimento faz do objeto, sujeito, convertendo o julgado em julgador, tal violação consubstancia, também, nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea c), do CPP.

9ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 608°, n° 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 4° do CPP, ao dizer, no seu n° 6, que "está em causa um conjunto de discordâncias no que se reporta a decisões proferidas em processos, cujo mecanismo de reacção é processual': é patente nos autos, e encontra-se assinalado no requerimento de abertura de instrução (cf. parte II, n° 3), que constitui fundamento da queixa e da instrução a recusa de decisão sobre requerimentos apresentados no proc. n° 2189/14......., há mais de 6 (SEIS) ANOS; é a obstrução ao funcionamento dos mecanismos de reação processual, que justifica a queixa e a acusação por prática de ilícito do artigo 369°, n°s.1 e 2, do Código Penal! Tal violação consubstancia, também, nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea c), do CPP.

10ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 97°, n° 5, e 288°, n° 4, do CPP, ao decidir, no seu n° 6: "não existindo qualquer ilícito criminal"; tal violação consubstancia, também, nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea c), do CPP.

11ª- O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 286°, n° 1, e 287°, n°s 1 e 2, do CPP, ao dizer, no seu n° 7, que só quando o Assistente entende que, perante os elementos de prova recolhidos no inquérito, a decisão do Ministério Público deve ser de acusação, pode requer abertura de instrução.

12ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 288°, n° 4, e 290°, n°s 1 e 2, do CPP, ao dizer, no seu n° 7, que o juiz de instrução circunscreve a sua competência a "uma actividade de controlo externo da decisão de arquivamento pelo Ministério Público".

13ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 286°, n° 1, 287°, n° 2, 288°, n° 1, e 290°, n°s 1 e 2, do CPP, ao dizer, no seu n° 7, "que o assistente critica a ausência de investigação ou, se quisermos, falta de diligências de investigação suficientes, pelo que, também por este prisma, a instrução não é legalmente admissível"; tal violação consubstancia, também, nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea c), do CPP, por negação dos factos reais constantes do requerimento de abertura de instrução.

14ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 286°, n° 1, 287°, n°s 1, alínea b), 2 e 3, 288°, n° 4, e 290°, n°s 1 e 2, do CPP, e 20°, n° 1, e 202°, n° 2, da Constituição, ao dizer, no seu n° 8, que "a alegada ausência de investigação relativamente às pessoas denunciadas, referida pelo assistente, é, igualmente, um motivo de inadmissibilidade da instrução".

15ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 262°, n° 1, 286°, n° 1, 287°, n°s 1, alínea b), 2 e 3, 288°, n° 4, 290°, n°s 1 e 2, do CPP, e 20°, n° 1, e 202°, n° 2, da Constituição, ao dizer, no seu n° 8, que «a instrução não é admissível quando a autoridade que preside à fase de investigação, que é sempre o Ministério Público (art. 262°, n° 1, do CPP), não tenha dirigido "concretas diligências de investigação" aos denunciados».

16ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 283°, n° 3, alínea b), 287°, n° 2, 288°, n° 4, e 290°, n°s 1 e 2, do CPP, ao dizer, no seu n° 9, que "a narração dos factos exigida é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo".

17ª - O despacho recorrido viola o disposto no artigo 287°, n° 2, do CPP, ao dizer, no seu n° 11, que a lei "impõe uma narrativa factual e enquadramento jurídico nos mesmos termos da acusação" pelo Ministério Público: do disposto no artigo 283° do CPP, o artigo 287°, n° 2, do CPP, só manda aplicar o disposto nas alíneas b) e c) do n° 3, daquele; há diferenças substanciais entre uma e outra: desde logo a da sanção para a inobservância dos respetivos requisitos.

18ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 287°, n° 3, 288°, n° 4, e 290°, n°s 1 e 2, do CPP, e 202°, n° 2, da Constituição, ao dizer, no seu n° 18, que "o juiz de instrução, ao analisar o requerimento de abertura de instrução, está impedido de apreciar a suficiência ou insuficiência dos indícios dos factos narrados, podendo/devendo apenas indagar se tais factos constituem crime".

19ª - O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 287°, n° 3, e 311°, n°s 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP, e 10°, n° 2, do Código Civil, ao dizer, no seu n° 19, que a instrução pode ser rejeitada por aplicação do disposto no segundo: inexiste caso omisso a exigir integração de lacuna da lei; à regulamentação da instrução repugna a regulamentação da fase de julgamento.

20ª - O despacho recorrido viola o estatuído no artigo 204° da Constituição, por fazer aplicação da norma do artigo 287°, n° 3, com sentido que infringe as garantias consignadas nos seus artigos 20°, n° 1, e 202°, n° 2».


Respondeu a Exmª Procuradora-Geral Ajunta titular do inquérito, pugnando pelo não provimento do recurso:

«1 - O assistente AA, notificado do despacho que indeferiu o seu requerimento de abertura de instrução apresentou a 17/06/2021 requerimento em que arguiu a irregularidade do processo e a falsidade daquele despacho.

Sobre esse despacho recaiu o despacho de 5/07/2021 que indeferiu integralmente o requerido.

Notificado desse despacho, o assistente veio interpor o presente recurso.

2 - Alega que a invalidade e falsidade suscitadas no seu requerimento de 17/06/2021 consubstanciam a nulidade do art. 379º, nº 1, al. c) e nº 2, do CPP e renova a argumentação apresentada naquele requerimento.

Afirma, também, que o despacho que indeferiu o requerimento de abertura de instrução viola o disposto nos arts 278º, nº 1, 242º, nº 1 e 286º, nº 1, do CPP.

Termina requerendo que seja ordenada a abertura da instrução.

3 - Mas, ao contrário do que alega, o despacho recorrido não padece de qualquer irregularidade ou nulidade, designadamente as invocadas, como transparece do despacho que se pronunciou sobre a respectiva arguição e cujos fundamentos o recorrente não questiona, limitando-se, antes, a reafirmar a existência de tais vícios.

4 - Acompanhamos as considerações que subjazem à decisão recorrida e também ao despacho que indeferiu o requerimento de arguição de nulidades.

Com efeito, o despacho que indeferiu o requerimento de abertura da instrução analisou as questões suscitadas e fundamentou de forma clara e exaustiva as ilações retiradas sobre a improcedência da argumentação do assistente.

E concluiu no sentido da rejeição daquele requerimento, nos seguintes termos:

“Rejeição quer se entenda que a fase instrutória é inútil e, como tal, legalmente inadmissível, porque os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à pronúncia do arguido [cf. Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, 26-02-2020, Proc. n.º 17/17.6YGLSB - 3.ª Secção], quer por estarmos perante uma lacuna legal, que deverá ser preenchida por recurso à analogia, aplicando-se o art. 311, n.ºs 2, a), e 3, b), do CPP, devendo consequentemente o requerimento de abertura de instrução ser rejeitado por ser manifestamente infundado [cf Ac. STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 19-06-2019, Proc. n.º 51/17.6TRPRT.S1 - 3.ª Secção”

5 - O nº 2, do art. 287, do CPP, estabelece que o requerimento de abertura de instrução «não está sujeito a formalidades especiais», mas tem de conter as razões de facto e de direito relativamente à discordância da «acusação ou não acusação» e no caso do requerimento do assistente também tem de observar o disposto nas alíneas b) e c), do nº 3, do art. 283, do CPP. Ou seja, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar o tempo e a motivação da sua prática…» e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Estruturalmente, o requerimento do assistente deverá conter numa 1ª parte as razões porque discorda da decisão do Mº Pº de não acusar e numa 2ª parte uma verdadeira acusação, em obediência ao disposto no citado nº 2, do art 287, uma vez que é o requerimento de abertura da instrução que delimita o objecto da instrução, “o thema probandum”.

A jurisprudência é pacifica neste sentido, de que são exemplo os arestos citados na decisão recorrida, e a não observância desse ónus determina a rejeição da abertura da fase da instrução.

6 - O requerimento apresentado pelo assistente não observa estes requisitos, como se realça e demonstra na decisão recorrida.

Aí se salienta que “o que se verifica, é que a narrativa acaba por consistir numa amálgama de factos, expostos de uma forma confusa, sem indicar, em grandes partes do discurso argumentativo, que concreta ação ou omissão imputa aos denunciados”. (…) “Ora, a “narração” imposta por lei implica que se descrevam factos que constituam um crime, ou seja, que permitam concluir que se preenche o tipo objetivo e subjetivo, bem como, os elementos de culpa e punibilidade.”

E, como se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 19/06/2019, citado no despacho recorrido:

“VIII - A falta de cumprimento pelo requerimento de abertura da instrução do nº 3 do art. 283º do CPP constitui um vício equivalente ao da acusação formal que não cumpre esse preceito, dada a já assinalada similitude de funções entre ambos esses atos processuais.

IX - A falta de narração dos factos na acusação (formal) determina a sua nulidade e rejeição, por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311º, nºs 2, a), e 3, b), do CPP. A lei não prevê, porém, as consequências da falta de narração dos factos no requerimento de abertura de instrução. Trata-se de uma lacuna legal, que deverá ser preenchida por recurso à analogia, que não está vedada no caso, pois a analogia só está proscrita em processo penal quando dela resulta o enfraquecimento da posição ou a diminuição dos direitos do arguido, o que não sucede manifestamente na situação em análise. Há pois que aplicar à situação a mesma norma, ou seja, o citado art. 311.º, n.ºs 2, a), e 3, b), do CPP, devendo consequentemente o requerimento de abertura de instrução ser rejeitado por ser manifestamente infundado”».


II. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso:

«1 - AA, assistente nos autos, discordando do despacho proferido pelo Senhor Juiz Conselheiro, a …/06/2021, que rejeitou o seu pedido de abertura de instrução, do mesmo interpôs o presente recurso.

Argui de novo, em linha com o requerimento apresentado, a nulidade e irregularidade daquele despacho e termina requerendo seja ordenada a abertura da instrução.

Por requerimento de …/10/2021 veio requer a ampliação do objeto do recurso interposto a um suposto acto de recusa da magistrada signatária “em reconhecer o seu impedimento de assegurar no processo a representação do Ministério Público”, invocando o disposto no art. 42, nº1, do CPP.

2 - Não se suscitam quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, devendo o mesmo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419, n.º 3, do CPP.

Questão Prévia – ampliação do objecto do recurso

O art. 399º do CPP estipula que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.

O recorrente pretende alargar o objecto do recurso a uma suposta recusa de reconhecimento de impedimento da signatária em intervir no processo, invocando o disposto no art. 42º, nº 1, do CPP.

Este normativo pressupõe a existência de um despacho que não reconheça a verificação de um impedimento suscitado, despacho judicial uma vez que apenas estes são objecto de recurso.

No caso e face à alegação do recorrente, parece estar em causa uma omissão da signatária, enquanto Magistrada do Mº Pº titular do inquérito, em se declarar impedida.

Não estamos, assim, perante qualquer despacho recorrível.

Por outro lado, o art. 54º, nº 1, do CPP estipula que as disposições do capítulo VI do Título I são correspondentemente aplicáveis aos magistrados do Mº Pº, mas com as adaptações necessárias, desde logo com as constantes dos nºs 2 e 3, relativas à definição da competência para apreciar e decidir o requerimento de impedimento.

Assim, qualquer requerimento nesse sentido terá de ser dirigido ao superior hierárquico do magistrado visado.

Desta forma, não pode a questão de impedimento agora suscitada ser apreciada no processo, como não pode ser objecto de recurso.

Do mérito

4 - A signatária foi titular dos autos na fase de inquérito e como tal continuou a assegurar a intervenção do Mº Pº na fase subsequente, tendo-se pronunciado já, em sede de resposta ao recurso interposto, sobre o seu mérito.

Foram-lhe agora distribuídos os autos de recurso.

Mantemos as considerações expressas naquela peça processual, nada se nos oferecendo acrescentar.


*


Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo assistente».


Foi cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, tendo o assistente apresentado resposta onde insiste no impedimento da Exmª Procuradora-Geral Adjunta que subscreve a resposta ao recurso, afirmando que essa resposta consubstancia "não reconhecimento de impedimento, da sua subscritora”, acrescentando que o impedimento deve ser dirigido ao superior hierárquico quando o mesmo se verifique na fase de inquérito e seja nessa fase suscitado, devendo ser apreciado pelos tribunais, quando suscitado em fase de instrução.


III. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.

  O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«1. Na sequência do despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público, o assistente AA veio requerer a abertura de instrução pelos fundamentos que aduz no requerimento de fls. 451 a 491 e que, aqui se reproduzem.

Importa, antes de mais, aferir se estão reunidos os pressupostos para declarar aberta a fase de instrução, nos termos requeridos.

2. Nos termos do art. 287, n.º 1, al. b), do CPP, e na parte que ora releva, a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. Preceitua o n.º 2 que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação. Por fim, dita o n.º 3 que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. Importa, também, ter presente o art. 286, n.º 1, do CPP, na parte que interessa à presente decisão, quando assinala que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa a julgamento.

3. No caso concreto, o requerimento de abertura de instrução foi apresentado tempestivamente, por pessoa a quem a lei atribui legitimidade para o efeito. Já não reúne, contudo, os outros predicados legais para concluir pela sua admissibilidade, como adiante evidenciaremos.

4. Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal Justiça, Relator Conselheiro Raul Borges, Proc. n.º 72/18.1TRCBR.S1 - 3.ª Secção, 19.02.2020[1], “A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.” E, conforme ali se salienta “A instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes”.

5. Ora, desde logo extravasa o âmbito e finalidade da instrução a arguição de eventuais invalidades e falsidades atinentes aos despachos prolatados pelo Ministério Público no decurso do inquérito, bem como a imputação de alegados crimes ao Magistrado que dirigiu o inquérito neste Supremo Tribunal de Justiça. No primeiro caso, porque o mecanismo próprio é a arguição de tais vícios perante a autoridade judiciária que preside ao inquérito. Respaldo do princípio do acusatório. Como, a este propósito, se refere no Ac. STJ, Relator Conselheiro Pires da Graça, Proc. n.º 17/17.6YGLSB - 3.ª Secção, 26-02-2020[2], “As nulidades da acusação ou do arquivamento devem ser, desde logo, arguidas diante do magistrado do Ministério Público titular do inquérito, com reclamação para o respectivo superior hierárquico”. Na segunda situação, porque não é a instrução a sede própria para apreciar denúncias de alegados crimes a quem conduziu o pretérito inquérito, nem se trata de questão prévia ou prejudicial que impeça a presente decisão.

6. Acresce que, o insurgimento do assistente não é somente em relação ao despacho de arquivamento. Do requerimento emana um conjunto de críticas à atuação do Ministério Público, nomeadamente por défice de investigação. Respigando as palavras por aquele utilizadas: “considerando que as titulares do Inquérito recusaram investigar a factualidade denunciada em 05-11-2019 e 13-01-2020, melhor explicitada no requerimento de 09-06-2020”. E, na verdade, apesar do despacho final do Ministério Público se aludir ao arquivamento por falta de indícios, emerge que, perante o acervo documental existente nos autos, se entendeu que parte da factualidade denunciada está abrangida por outros inquéritos e, de todo modo, está em causa um conjunto de discordâncias no que se reporta a decisões proferidas em processos, cujo mecanismo de reação é processual, não existindo qualquer ilícito criminal.

7. Ora, a instrução não é uma segunda investigação, um segundo inquérito, para investigar e praticar diligências de prova que o assistente entende que deveriam ter sido praticados na fase de inquérito. “O assistente ou entende que, perante os elementos de prova recolhidos no inquérito, a decisão do MP deve ser de acusação e não de arquivamento ou considera que as diligências realizadas não são suficientes. Só no primeiro caso pode requerer a abertura de instrução. Colocando-se na última posição, como no caso, o assistente só tem um caminho a seguir: o previsto no art. 278.º, n.ºs 1 e 2, requerendo ao superior hierárquico do titular do inquérito que determine o prosseguimento das investigações.” [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Manuel Braz, 28-05-2014, Proc. n.º 13/13.2YGLSB.S1 - 5.ª Secção[3]. No mesmo sentido, Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário ao Código de Processo Penal, Tomo III, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 1194 e 1195]. O juiz de instrução circunscreve a sua competência a “uma actividade de controlo externo da decisão de arquivamento pelo Ministério Público”, não lhe cabe uma “função de investigação acusatória pura, mas uma actividade jurisdicional vinculativa, orientada no sentido de comprovar ou infirmar algo sobre o qual foi proferida a decisão de acusação ou de arquivamento”, nomeadamente, “Não incumbe ao juiz de instrução “repetir” ou “completar” o inquérito, pela realização de diligências que omitidas nessa fase processual, se consideram essenciais para a descoberta da verdade material” [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, Proc. n.º 17/17.6YGLSB -3.ª Secção, 26-02-2020[4]].

Também, no mesmo sentido, o recente Ac. do STJ de 15-04-2021, Relator: Conselheiro João Guerra, proferido no Proc n.º 404/18.2PAESP.S2 - 5.ª secção (ainda inédito), expressamente refere que «Não cabe no âmbito e finalidade da instrução realizar a “investigação” mas, tão só, sindicar a decisão do Ministério Público que, no caso, proferiu despacho de arquivamento. (…) Alega o assistente não terem sido realizadas diligências que, a seu ver, resultariam na colheita de prova das imputações que faz aos arguidos. Ora, perante este entendimento divergente do Ministério Público, que arquivou o inquérito contra os denunciados, não os constituindo “sequer” arguidos, sempre poderia o assistente, nos termos do art. 278º do CPP, vir requerer a intervenção hierárquica ao imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que proferiu o despacho de arquivamento, para que determinasse a formulação de acusação contra aqueles ou, para que determinasse o prosseguimento das investigações. E, neste caso, indicar as provas ignoradas (…) Também, neste sentido, se diz no anterior Acórdão proferido nestes autos, “Diversamente, porém, considerando o assistente que não são suficientes para decidir pela dedução ou não da acusação, deveria, então, requerer ao superior hierárquico do Ministério Público titular do inquérito que determine o prosseguimento da investigação”. Aliás, tal como refere P. Pinto de Albuquerque, citado nesse Acórdão, “Tratando-se de crime público ou semi-público, o assistente deve reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do inquérito quando os elementos de prova existentes no inquérito são insuficientes para ele requerer a abertura da instrução” em Comentário ao Código de Processo Penal, Editora Universidade Católica - 4ª edição, pág. 749”. (…) Deste modo, face à alegada omissão de diligências “adicionais no sentido de apurar a veracidade de tais queixas gravíssimas” e “porque foram ignoradas provas fulcrais”, caberia ao assistente ter requerido a intervenção hierárquica, nos termos do artº. 278º, do CPP. Como refere P. Pinto de Albuquerque, na obra supra citada, “o CPP prevê a intervenção hierárquica para o caso de omissão ou insuficiência de prova no inquérito e a instrução para o caso de erro na valoração da prova já existente no inquérito”.».

Ora, é patente, como se referiu, que o assistente critica a ausência de investigação ou, se quisermos, falta de diligências de investigação suficientes, pelo que, também por este prisma, a instrução não é legalmente admissível.

8. Aliás, a alegada ausência de investigação relativamente às pessoas denunciadas, referida pelo assistente, é, igualmente, um motivo de inadmissibilidade da instrução. Ressalta do Ac. STJ, Rel. Nuno Gomes da Silva, Proc. n.º 232/17.2TRPRT - 5.ª Secção, 09-05-2019 que “O requerimento de abertura de instrução, se deduzido pelo assistente, tem de visar a  comprovação judicial sobre a decisão de não submeter a julgamento o denunciado que haja sido objecto de investigação não podendo ser requerida instrução para obter pronúncia de pessoas que não foram visadas no inquérito. Num tal caso, a instrução é inadmissível.” Ora, as pessoas que o assistente pretende pronunciar foram denunciadas, mas não foram visadas.

Durante a fase processual de inquérito, “há que referir, a constituição de arguido não é automática. Tal só deverá acontecer “correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime” – art. 58.º, nº.1 do CPP. A qualidade de arguido é assumida, no entanto, em caso de dedução de acusação ou de abertura da instrução” [cf Ac. STJ de 15-04-2021, Proc. n.º 404/18.2PAESP.S2]

Ou seja, as pessoas denunciadas não foram investigadas, já que nem sequer foram consideradas suspeitas. Isto porque se entendeu que as denúncias e o acervo documental junto não permitiam essa conclusão. E como resulta do explanado por Pedro Soares de Albergaria, Op. Cit., p. 1202, a instrução não é admissível quando a autoridade que preside à fase de investigação, que é sempre o Ministério Público (art. 262, n.º 1, do CPP), não tenha dirigido “concretas diligências de investigação” aos denunciados.

9. Mas, também o requerimento de abertura de instrução não reúne as exigências impostas pela parte final n.º 2 do art. 287 do CPP, segundo o qual é “aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º”, ou seja, tem que conter “ b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;” e a “c) A indicação das disposições legais aplicáveis;” Assim, “o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (arts. 286, n.ºs 1 e 2, 287, n.º 1, al. b), 283, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art. 287, 288, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).” [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Raúl Borges, 19-02-2020, Proc. n.º 72/18.1TRCBR.S1 - 3.ª Secção].

Ou, dito de outro modo, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (ou de uma medida de segurança), referindo os elementos objetivos e subjetivos do(s) crime(s) imputado(s), constitui uma exigência legal para o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, porquanto, de harmonia com a estrutura acusatória do processo penal, é este requerimento que delimita o thema probandum e fixa o objeto do processo de molde a permitir a organização da defesa. Ou seja: a narração dos factos exigida é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo.

Assim, «o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente consiste numa acusação alternativa que vai, consequentemente, ser sujeita a comprovação judicial, devendo dele constar todos os requisitos referidos nos arts. 287, nº. 2 e 283, nº. 3, do CPP» [cf Ac. do STJ, Relator: Conselheiro João Guerra, 15-04-2020, Proc. n.º 404/18.2PAESP.S2 – 5.ª Secção].

10. Para além da delimitação da temática factual do objeto da fase de instrução, também é crucial para garantir o contraditório. Conforme se afirma no Ac. STJ, Relator: Conselheiro Sénio Alves, 13-01-2021, Proc. n.º 8/19.2TRGMR.S2 - 3.ª Secção[5] “É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas als. b) e c) do n.º 3 do art. 283º do CPP (ex vi do art. 287.º, n.º 2 do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.”

11. Como se referiu, o requerimento de abertura de instrução do assistente, por ser peça estrutural para delimitar o objeto do processo e exercício do contraditório, deve corresponder aos requisitos de uma acusação. Na verdade, a lei não impõe qualquer formalidade para o assistente expor os motivos da discordância em relação ao arquivamento, mas já impõe uma narrativa factual e enquadramento jurídico nos mesmos termos da acusação. Em suma, tem que enunciar claramente os factos e o Direito pelo qual entende que os denunciados/suspeitos/arguidos devem ser submetidos a julgamento.

Assim sendo,

12. O que resulta do requerimento do assistente é que a sua narrativa consiste em reproduzir anteriores requerimentos que, por sua vez, correspondem a requerimentos apresentados num processo civil [seja de natureza declarativa - Proc n.º 5682/04...., seja de natureza executiva – Proc n.º 2189/14.......], e onde se descrevem, em síntese, diversos atos ali praticados e se reproduzem as discordâncias que já tinham sido ali invocadas.

13. De todo modo, o que se verifica, é que a narrativa acaba por consistir numa amálgama de factos, expostos de uma forma confusa, sem indicar, em grandes partes do discurso argumentativo, que concreta ação ou omissão imputa aos denunciados. Em traços gerais, e do que se interpreta da peça processual, estará em causa, em suma, a existência de peças e certidões, alegadamente falsas, e alegadas recusas no proferimento de decisões sobre as referidas peças e certidões (alegadamente falsas), e que, tais condutas corresponderiam aos crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256 do CP e de denegação e prevaricação p. e p. pelo art. 369 do CP.

Assim, face ao teor do despacho de arquivamento e fazendo um esforço de interpretação do requerimento de abertura de instrução, constata-se que o assistente imputa a prática do crime de falsificação de documento p. e p. nos termos do disposto no art. 256, n.ºs 1, al. e), 2, 3 e 4, do Código Penal a vários intervenientes. À Juíza Desembargadora BB, em suma, por ter subscrito a sentença datada de 13/12/2013 do processo declarativo n.º 5682/04.... e por (alegadamente) da mesma fazer constar factos falsos.

Também imputa o crime de falsificação de documento às oficiais de justiça II e JJ, em suma, pela emissão de certidão(ões) da sentença proferida no Proc. n.º 5682/04.....

Imputa ainda o crime de falsificação de documento, à Juíza CC, em suma, por ser a Magistrada titular do processo de execução 2189/14....... e ter solicitado/usado a certidão da sentença (proferida no processo declarativo 5682/04....) e à Juíza DD, em suma, por ser a Magistrada do processo declarativo referido (5682/04) e ter determinado a emissão de certidão(ões).

Por sua vez, o assistente imputa ainda o crime de denegação de justiça a vários juízes: às Juízas Drs. BB e DD, em suma, por recusa de decisão/pronúncia sobre a alegada falsidade da certidão(ões) (da sentença) que foi denunciada através de vários requerimentos no processo declarativo. E também imputa o crime de denegação de justiça aos Juízes EE; FF, GG e HH, em suma, por recusa de decisão/pronúncia no processo de execução, quanto à denunciada falsidade da certidão(ões) extraída do processo declarativo.

14. Ora, a “narração” imposta por lei implica que se descrevam factos que constituam um crime, ou seja, que permitam concluir que se preenche o tipo objetivo e subjetivo, bem como, os elementos de culpa e punibilidade.

O crime de falsificação de documento, e consequentemente os elementos objectivo e subjetivo do mesmo, estão previstos no art. 256 do CP, que dispõe que:

1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

 c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 - A tentativa é punível.

3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

4 - Se os factos referidos nos n.os 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos. O crime de falsificação de documento

Por sua vez, o crime de “Denegação de justiça e prevaricação”, e em consequência o elemento objetivo e subjetivo do tipo, está previsto no art. 369 do CP, que dispõe que:

1 - O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos.

3 - Se, no caso do n.º 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

4 - Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei.

5 - No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa. Crime de denegação de justiça art. 369, nºs 1 e 2, do Código Penal.

15. Sucede que, para além da descrição factual consistir em reprodução de requerimentos, e não ser clara nos concretos factos que imputa a cada um dos denunciados [o que adensa a neblina principalmente quando a sua denúncia incide sobre diversas pessoas, nem sequer se percecionando em determinados momentos, se acusa factos a título de autoria, coautoria, autorias paralelas, cumplicidade, etc.], também não é possível afirmar que os factos narrados preenchem o tipo objetivo dos crimes que o assistente chama à colação.

Na verdade, da narrativa não emerge que em relação aos atos processuais em causa, e certidões que invoca, os denunciados tenham feito constar algo que não correspondia à realidade do processo ou, se quisermos, à análise e interpretação que fizeram da lei e do rito processual. Não são indicados quais os factos que correspondem à realidade (isto é, que sejam verdadeiros), em contraponto com aqueles que alegadamente não correspondem à realidade do processo (isto é, que sejam falsos) e foram praticados. E, muito menos, que, tenha existido prática de atos contra o Direito. A forma de reagir a uma sentença é interpondo recurso da mesma, arguindo eventuais nulidades de que a mesma padeça (mormente, e para o que ora interessa, quanto ao alegado vício na citação). Não resulta, sequer, que tenha existido qualquer decisão que tenha retirado validade e eficácia à sentença proferida no Proc. n.º 5682/04.....

16. Aliás, como bem se refere no despacho de arquivamento pela Magistrada do Ministério Público, “A discordância e a sindicância do mérito das decisões judiciais deve ser exercida nos termos da lei processual, no caso, através dos procedimentos processuais previstos no Código de Processo Civil e não através da apresentação de queixa crime.” Ou seja, o que efectivamente resulta é que o assistente pretende sindicar, censurar e apresentar a sua discordância em relação a actos processuais (quer sejam acções ou omissões), com as quais não se conformou nos processos civis (Proc n.º 2189/14....... e Proc n.º 5682/04....) que chama à colação. Mas, para isso, a lei confere mecanismos processuais de reacção. Nulidades, irregularidades, pedidos de rectificação, de reforma, incidentes de falsidade, recursos, etc. O que não se pode, é pretender equivaler decisões e atuações de funcionários e/ou Juízes que divergem da posição do assistente, como consubstanciando denegações de justiça ou falsificações. O que, aliás, o STJ, tem assinalado nos seus arestos. Como se escreve, por exemplo, no ac. STJ, Rel. Raúl Borges, 19-02-2020, Proc. n.º 72/18.1TRCBR.S1 - 3.ª Secção: “XXVII – O puro atraso processual, desgarrado de outros elementos, podendo acarretar responsabilidade disciplinar, não reveste dignidade penal, sendo insuficiente, só por si, para tipificar o crime de denegação de justiça. XXVIII – Nem todo o acto desconforme às regras processuais pode ser visto como contra direito, na acepção pretendida pelo n.º 1 do art. 369.º do CP, pois então qualquer nulidade processual seria tipificada como crime.” E no ac. STJ, Pires da Graça, 26-02-2020, Proc. n.º 17/17.6YGLSB - 3.ª Secção: “XVII - Não é a mera divergência do decidido que pode fundamentar a imputação de que quem decidiu o fez conscientemente — dolo genérico — contra legem, e muito menos com o propósito — dolo específico — de lesar alguém, ou seja, com animus nocendi. XVIII - Num Estado de Direito Democrático, a divergência no plano jurídico — seja ela quanto ao iter processual ou no tocante ao direito substantivo —, na solução do caso, colhe acolhimento pela via do recurso e não pela via gravosa da imputação do crime». XIX- Inexistindo declaração judicial transitada em julgado de declaração de falsidade das decisões, estas, transitadas em julgado, mantêm-se juridicamente válidas e exequíveis.”

17. De todo modo, o assistente não narra o dolo, nem os elementos subjetivos específicos, nem tampouco a factualidade atinente ao pressuposto da culpa, facticidade essencial para permitir a subsunção nos crimes que imputa.

O assistente não narrou factos que permitam imputar às denunciadas qualquer intenção de causar prejuízo ao próprio ou a terceiro ou ao Estado, ou que as mesmas atuaram com o intuito de obterem para as próprias ou para outra pessoa, benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime (elemento subjetivo específico).

Em nenhum momento, o assistente narra factos que permitam imputar um comportamento doloso à denunciada Juíza BB, subscritora da sentença – mormente que sabia e tinha consciência que a sentença era falsa, por ter feito constar factos que sabia que não correspondiam à verdade, e que agiu com intenção de causar prejuízo ao próprio assistente ou a terceiro ou que tenha agido com o intuito de obter, para a própria ou para outra pessoa, benefício ilegítimo ou que tenha atuado com o intuito de cometimento de outro crime.

Também não foi imputado nenhum facto relativo ao (alegado) comportamento doloso das oficiais de justiça II e JJ, que emitiram certidão(ões) da referida sentença proferida no Proc. declarativo n.º 5682/04 e qual foi a intenção das mesmas nesta atuação. Mormente não foi imputado qualquer facto que as mesmas sabiam que estavam a usar uma sentença falsa e que as mesmas cientes ou conformando-se como tal, atuaram com o intuito de prejudicar o assistente, um terceiro ou o Estado, ou pretenderam obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, ou que agiram com o intuito de cometimento de outro crime.

O mesmo se diga quanto às Juízas CC e DD, pois nenhum facto é narrado no sentido que as mesmas sabiam que estavam a utilizar uma sentença falsa e que cientes ou conformando-se com tal, atuaram com intenção de causar prejuízo ao assistente ou a terceira pessoa ou ao Estado, ou com o intuito de obter para as próprias ou para terceiro, um benefício ilegítimo, ou que agiram com o intuito de cometimento de outro crime.

Também quanto ao crime de denegação de justiça o assistente imputa aos denunciados a recusa de decisão (sobre os requerimentos da alegada falsidade da certidão); porém, não imputa factos de que os mesmos atuaram conscientes e bem sabendo que se impunha uma decisão, e que atuaram com intenção de não a decidir. Ou seja, não é suficiente imputar factos que permitem a constatação de «não decisão», também é necessário imputar factos que permitam imputar a conduta a título de dolo, ou seja, é necessário narrar factos de que quem não decidiu tenha consciência de que, ciente de estar a desviar-se dos seus deveres funcionais, toma a decisão de «não decidir», violando o ordenamento jurídico, o que não foi narrado.

Conforme se referiu no acórdão deste STJ de 12-07-2012 no Proc. n.º 4/11.8TRLSB.S1[6] “Face à exigência típica decorrente da expressão 'conscientemente', só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme do STJ. O dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica”. E no mesmo sentido, veja-se Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2020 no processo 91/18.8TRPRT.S1, Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos[7].

18. Pelo que, sendo a narração de factos insuficiente, por não conter os pressupostos da responsabilidade criminal, deve o requerimento de abertura de instrução ser rejeitado, não havendo aqui lugar a qualquer convite ao assistente para o aperfeiçoar, face ao teor do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no DR, I Série-A, n.º 212, de 04-13 11-2005. “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Quanto à rejeição (liminar) do requerimento de abertura de instrução, chamamos à colação o Acórdão do STJ de 11-03-2021, Relatora: Conselheira Margarida Blasco, proferido no Proc. n.º 65/17.6PASTS.P1-A.S1 - 5.ª Secção[8], quando claramente assume que “O juiz de instrução apenas pode indagar se os factos descritos na acusação (quer deduzida pelo Ministério Público, quer pelo assistente) constituem crime. (…). Se o juiz concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à pronúncia do arguido e bem assim à eventual aplicação de uma sanção, após o respectivo julgamento, terá de considerar-se que a fase instrutória é inútil e, como tal, legalmente inadmissível. Aliás, recorde-se que esta opção legislativa (que afastou a jurisprudência fixada no AFJ do STJ n.º 4/93) não tem só, nem principalmente, razões de celeridade processual, radicando antes na própria natureza acusatória do processo penal, ao evitar uma pronúncia do juiz, antes do julgamento, em que se procederá à produção exaustiva da prova, sobre a suficiência da prova indiciária dos factos. E, se essas razões são válidas para a acusação, e também para o RAI, dado o paralelismo entre os dois actos processuais. Donde resulta que, por força dos nºs. 2 e 3, do artigo 311.º, aplicável analogicamente, o juiz de instrução, ao analisar o requerimento para abertura da instrução, está impedido de apreciar a suficiência ou insuficiência dos indícios dos factos nele narrados, podendo/devendo apenas indagar se tais factos constituem crime.”

19. Rejeição quer se entenda que a fase instrutória é inútil e, como tal, legalmente inadmissível, porque os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à pronúncia do arguido [cf. Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, 26-02-2020, Proc. n.º 17/17.6YGLSB - 3.ª Secção], quer por estarmos perante uma lacuna legal, que deverá ser preenchida por recurso à analogia, aplicando-se o art. 311, n.ºs 2, a), e 3, b), do CPP, devendo consequentemente o requerimento de abertura de instrução ser rejeitado por ser manifestamente infundado [cf Ac. STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 19-06-2019, Proc. n.º 51/17.6TRPRT.S1 - 3.ª Secção[9]].

20.Nestes termos e pelas razões aduzidas, decide-se:

a) rejeitar o requerimento para abertura da instrução formulado pelo Assistente AA;

b) condenar o Assistente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal».


    IV. Posto isto:

1. Questão prévia suscitada pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal:

  Em …/10/2021, o assistente apresentou um requerimento em que, afirmando-se “notificado do ato da IMPEDIDA LL, de …-10-2021, em que ela não reconhece o seu impedimento, dele recorre ao abrigo do disposto no artigo 42º, nº 1, do CPP”.

  Alega o recorrente que o impedimento se encontra suscitado nos autos “por via de:

1) Requerimento de …-04-2021 apresentado ao abrigo do disposto nos artigos 123°, n° 1, do CPP, e 372°. n°s 2 e 3. do Código Civil, tendo por objeto o ato/documento de …-04-2021 designado de despacho de arquivamento”;

2) Requerimento de …-04-2021 com documento destinado a provar o dolo dos factos imputados à denunciada HH, e para reforço da prova da invalidade do dito ato/documento de …-04-2021;

3) Despacho da destinatária de tais requerimentos de …-04-2021;

4) Denúncia e queixa-crime contra as titulares do Inquérito, feita no requerimento de abertura de instrução, de …-04-2021, por recusa em investigar os factos que são objeto do Inquérito, nos termos das suas partes 1 e II - cujo teor aqui dá por reproduzido - que consubstanciam QUESTÃO PRÉVIA/PREJUDICIAL;

5) Requerimento de 16-06-2021 dirigido ao Exmo Juiz Conselheiro de Instrução, apresentado ao abrigo do disposto nos artigos 123°, n° 1, do CPP, e 451°, n°s 2 e 3, do CPC;

6) Requerimento de Recurso de …-07-2021, em que reitera o teor da denúncia e queixa-crime apresentada contra as Titulares do Inquérito, em que reproduz o teor dos n°s 1 a 16 da parte II do seu requerimento de …-06-2021 (cf. parte V do de …-07-2021), e argui a invalidade do despacho recorrido por violação do disposto no artigo 242°, n° 1, alínea b), e 286°, n° 1, do CPP (cf. parte VII), tal como nas suas conclusões, designadamente nas 5ª, 6ª e 7ªa.

II — Os factos imputados às Titulares do Inquérito, de recusa de investigar os factos que constituem objeto do Inquérito, têm de ser apreciados no recurso, e elas têm de ser ouvidas sobre tais imputações.

Pelo que, aplica-se-lhes o disposto no artigo 39°, n°1, alínea d), do CPP.

III — O ato da Titular do Inquérito, de …-10-2021, é de recusa em reconhecer o seu impedimento de assegurar no processo a representação do Ministério Público.

Pelo que, o Assistente dele recorre ao abrigo do disposto no artigo 42°, n° 1, do CPP.

O presente recurso constitui ampliação do objeto do recurso interposto por requerimento de …-07-2021”.


Nos termos do invocado artº 42º, nº 1 do CPP, “O despacho em que o juiz se considerar impedido é irrecorrível. Do despacho em que ele não reconhecer impedimento que lhe tenha sido oposto cabe recurso para o tribunal imediatamente superior”.

Ora, por força do artº 399º do CPP, “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

Deste dispositivo resulta claro que só é possível recorrer de decisões judiciais, isto é, de decisões proferidas por um tribunal. As decisões proferidas por magistrados do MºPº são, naturalmente, sindicáveis; porém, não por via de recurso, antes pelos meios próprios de intervenção hierárquica legalmente previstos.

  Como elucidativamente decorre da Decisão Sumária nº 208/2003, de 15/9/2003, do Tribunal Constitucional[10], posição retomada, entre outros, no acórdão do mesmo Tribunal nº 397/2004, de 2/6/2004 [11], «Os “recursos”, na acepção comum de “recursos jurisdicionais” – que é a utilizada quer no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), quer no artigo 399.º do Código de Processo Penal (CPP) –, consubstanciam, por natureza, a impugnação perante um tribunal (superior) de anterior decisão de outro tribunal (inferior), diversamente do que ocorre com o “recurso contencioso” (impugnação perante um tribunal de um acto da Administração) ou com o “recurso administrativo” (impugnação perante um órgão administrativo de um acto de outro órgão administrativo subalterno ou tutelado). Como refere ARMINDO RIBEIRO MENDES (Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1994, pág. 19), recursos, naquela acepção comum, são “os meios processuais destinados a submeter a uma nova apreciação jurisdicional certas decisões proferidas pelos tribunais”. Quando o citado artigo 399.º proclama que “é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei” está a referirse às três formas de “actos decisórios dos juízes” cuja utilização o artigo 97.º, n.º 1, do mesmo Código descreve do seguinte jeito: “a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior; c) Acórdãos, quando se tratar de decisão de um tribunal colegial”» (subl. do original).

  Ora, o recorrente pretende recorrer (ampliar o recurso) de uma suposta decisão de recusa de impedimento, da autoria da Exmª Procuradora-Geral Adjunta que presidiu ao inquérito.

É verdade que, nos termos do disposto 54º, nº 1 do CPP, as disposições do capítulo VI do título I são correspondentemente aplicáveis aos magistrados do Ministério Público. Mas nesse mesmo preceito se salvaguarda que tal aplicação será feita, “com as adaptações necessárias, nomeadamente as constantes dos números seguintes”.

  E, nos termos do nº 2 do mesmo artº 54º do CPP, “A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao superior hierárquico do magistrado em causa e por aquele apreciados e definitivamente decididos, sem obediência a formalismo especial” (subl. nossos).

  Não existe fundamento legal que sustente a afirmação do recorrente no sentido de que este normativo apenas tem aplicação quando o impedimento se verifica e é suscitado em fase de inquérito, devendo ser apreciado pelos tribunais se suscitado e verificado em fase de instrução.

  Certo é sempre, contudo e como se disse, que das decisões proferidas por magistrados do Ministério Público não cabe recurso jurisdicional, razão pela qual se indefere a pretendida ampliação do recurso.


   2. No demais:

Afirma o recorrente que por requerimento de …/06/2021, arguiu “irregularidade do processo ao abrigo do disposto no artigo 123°, n° 1, do CPP, por omissão de atos prévios à decisão sobre a admissibilidade da instrução, determinante da invalidade do despacho” recorrido; bem assim, que no mesmo requerimento arguiu a falsidade do despacho recorrido, “ao abrigo do disposto no artigo 451°, n°s 2 e 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4° do CPP, e tendo em conta o disposto no artigo 372°, n°s 2 e 3, do Código Civil”. Dizendo que “não conhece decisão sobre tal requerimento”, dá o mesmo “por reproduzido o seu teor, para que seja apreciado nesta sede”.

  Contudo, sobre tal requerimento recaiu o despacho proferido em … de Julho de 2021, o qual lhe foi notificado por expediente enviado em …./7/2021.

  Aí se decidiu:

«1. Por requerimento de … .06.2021, vem o assistente arguir a irregularidade do processo, nos termos do art. 123 do CPP, «consistente na omissão de atos prévios à decisão sobre a admissibilidade da instrução». Mais concretamente, vem invocar «que tais omissões respeitam à denúncia de factos imputados às titulares do inquérito, subsumíveis ao artigo 369°, n°s 1 e 2, do Código Penal, para efeito do disposto nos artigos 242°, n° 1, alínea b), 245° e 265°, n° 1, do CPP.»

Não se verifica a apontada irregularidade.

Remetido o processo à distribuição para instrução, é competência do Juiz de Instrução decidir da abertura da instrução ou da sua rejeição.

Foi o que sucedeu, inexistindo qualquer questão prévia ou suspensiva com respaldo na lei que obstasse a essa decisão.

Importa ainda referir que, no despacho de …-06-2021, foi tomada expressa pronúncia sobre a referida questão da denúncia dos alegados crimes cometidos pelos magistrados, titulares do Inquérito, e foi expressamente referido que tal questão não se tratava de questão prévia ou prejudicial que impedisse a decisão a proferir, conforme resulta do seguinte trecho da decisão (de …-06-2021): «Ora, desde logo extravasa o âmbito e finalidade da instrução a arguição de invalidades e falsidades atinentes aos despachos prolatados pelo Ministério Público no decurso do inquérito, bem como, a imputação de alegados crimes ao Magistrado que dirigiu o inquérito neste Supremo Tribunal de Justiça. No primeiro caso porque o mecanismo próprio é a arguição de tais vícios perante a autoridade judiciária que preside ao inquérito. Respaldo do princípio do acusatório. Como, a este propósito, se refere no ac. STJ, Rel. Pires da Graça, Proc. n.º 17/17.6YGLSB - 3.ª Secção, 26-02-2020[12], “As nulidades da acusação ou do arquivamento devem ser, desde logo, arguidas diante do magistrado do Ministério Público titular inquérito, com reclamação para o respectivo superior hierárquico”. Na segunda situação porque não é a instrução a sede própria para apreciar denúncias de alegados crimes a quem conduziu o pretérito inquérito, nem se trata de questão prévia ou prejudicial que impede a presente decisão.»

Acresce que foi o Ministério Público que determinou a distribuição ao Juiz de instrução do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente, pelo que o mesmo já tinha conhecimento das denúncias dos crimes (constantes do teor do requerimento de abertura de instrução), e consequentemente não se impunha dar cumprimento ao disposto nos arts. 242, n.° 1, alínea b), 245 e 265, n.° 1, do CPP.

Pelo exposto, inexiste qualquer irregularidade processual.

2. Vem ainda o Assistente, no mesmo requerimento, ao abrigo do disposto no artigo 451, n.°s 2 e 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.° do CPP, arguir incidente de falsidade do teor do despacho de …-06-2021, considerando que as conclusões nele extraídas não têm correspondência com a realidade processual.

Analisando o teor do requerimento, tudo parece indicar que o pretendido pelo assistente é atacar o teor do despacho de rejeição do Requerimento de abertura de instrução, não se conformando com o mesmo.

O despacho prolatado é um ato jurídico, proferido no exercício da função jurisdicional de juiz de instrução.

O mesmo encontra-se devidamente fundamentado.

O facto de o requerente dele discordar não significa, como é óbvio, que o ato seja falso.

O meio próprio/adequado para atacar aquele despacho, é a via recursória e não o incidente de falsidade de ato judicial, pelo que, face ao alegado no caso concreto, indefere-se, liminarmente, o incidente de falsidade, por inadmissibilidade legal (meio impróprio).

Conforme defendem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, (artigos 381.º a 675.º), Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pág. 461 “A falsidade do acto judicial consiste na desconformidade entre algo que no processo é atestado e aquilo que realmente se passou (falsidade ideológica) ou na alteração do conteúdo de uma peça processual (falsidade material). A falsidade ideológica pressupõe o poder funcional de atestação, por magistrado ou funcionário judicial, de actos processuais (ex: prática das formalidades constitutivas da citação; actos praticados em audiência; declarações ditadas para a acta, etc.). Quanto à falsidade material pode incidir, não só sobre documento que contenha uma atestação, mas também sobre qualquer outra peça do processo referente a acto praticado pelas partes (articulado; alegação; requerimento ou resposta), pelos magistrados (decisão sobre matéria de facto; sentença; despacho) ou por funcionário judicial.”

Assim, verifica-se que, quanto aos despachos decisórios proferidos por magistrados, só se poderá incorrer em relação aos mesmos em falsidade material, ou seja, se ter procedido a alteração do conteúdo dos mesmos.

Se atentarmos no requerimento de incidente de falsidade apresentado pelo Assistente, em momento algum é assumido que o despacho de …. .06.2021 foi objeto de alteração no seu conteúdo. Na interpretação do Assistente, as afirmações e conclusões expressas na decisão não têm correspondência com a realidade. Porém, este enquadramento nada tem a ver com a falsidade (material), que consiste no incidente de falsidade quando reportado a ato judicial - despacho decisório (artigo 451, n.º 2, do CPC). As várias interpretações possíveis dos intervenientes processuais relativamente a um ato decisório de um magistrado judicial são defendidas em sede de recurso e não apreciadas em sede de incidente de falsidade. Um magistrado, quando profere um ato decisório, tem consciência que, à partida, o mesmo poderá ser sindicado por tribunal superior e, nessa sequência, ser mantido, alterado, ou revogado. E, ao ser alterada ou revogada a decisão, de maneira alguma se pode afirmar que o seu conteúdo era falso. Poderá é, quiçá, em alguns casos, eventualmente ocorrer erro de julgamento. Por isso mesmo existem recursos. Mas isto se diz traçando o quadro geral do problema, e não como qualquer concessão in casu.

Atenta a factualidade invocada no requerimento e os fundamentos ali expressos, concluiu-se que os mesmos não se integram na causa de pedir e pedido do incidente de falsidade de um despacho judicial.

Pelo exposto, indefere-se liminarmente o incidente de falsidade, previsto no artigo 451, n.ºs 2 e 3 do CPC ex vi art. 4.º, do CPP, apresentado pelo Assistente, por inadmissibilidade legal (meio impróprio).

Em suma, improcede in totum o requerido.

Não se condena em custas, atenta a simplicidade da decisão.

Notifique».


  Não existe, assim e manifestamente, qualquer omissão de pronúncia.

E dado que tais questões foram colocadas à apreciação deste Supremo Tribunal apenas para a eventualidade de o requerimento formulado em …/6/2021 não ter sido apreciado pelo Mº Juiz de Instrução (ponto IV das motivações de recurso), não cremos que o recorrente pretenda aqui a sua reapreciação: na verdade, o mesmo não interpõe recurso da decisão proferida sobre o mesmo (que, aliás, diz desconhecer); diversamente, suscita as referidas questões para a hipótese, não verificada, de as mesmas não terem sido objecto de conhecimento pelo Exmº Juiz de Instrução.

 Admitindo-se, porém, que o recorrente pretenda reeditar, nesta instância recursiva, as alegadas irregularidades e falsidade do despacho recorrido, restar-nos-á dizer que as mesmas se não verificam, pelas razões detalhadamente expostas no despacho proferido em …/7/2021, que aqui subscrevemos e damos por integralmente reproduzidas, não se nos afigurando necessário qualquer comentário ou argumento adicional.


    3. Posto isto:

  “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – nº 1 do artº 286º do CPP.

  E, nos termos do nº 2 do artº 287º do mesmo diploma, o requerimento de abertura da instrução (RAI) “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º. (…)”.

     Este acréscimo de exigência legal constante da parte final do preceito referido foi, como se sabe, introduzido pela L. 59/98, de 25/8.

“O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução” – artº 287º, nº 3 do CPP.

  No caso em apreço, o recorrente formulou um requerimento para abertura de instrução onde questiona a validade do despacho de arquivamento proferido pela Exmª Magistrada do MºPº em 6/4/2021, considerando que o mesmo atesta “falsamente” determinados factos e omite deliberadamente outros, questiona a legalidade da actuação das magistradas titulares do inquérito, imputa ao MºPº défice de investigação e reproduz o teor de requerimentos que formulou no Juízo de execução do ... e no inquérito.

  Ora, como afirma Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 749, «Tratando-se de crime público ou semi-público, o assistente deve reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento do inquérito quando os elementos de prova existentes no inquérito são insuficientes para ele requerer a abertura de instrução quanto a estes crimes (certíssimo, acórdão do TRP de 23.01.2002, in CJ, XXVII, 1, 229, e acórdão do TRL de 9.2.2000, in CJ, XXV, 1, 153). Ao invés, o assistente deve requerer a abertura da instrução quando se indicia a prática de um crime público ou semi-público com os elementos de prova existentes no inquérito, mas o MºPº não tenha deduzido a correspondente acusação. Portanto, o CPP prevê a intervenção hierárquica para o caso de omissão ou insuficiência de prova no inquérito e a instrução para o caso de erro na valoração da prova já existente no inquérito» (negrito no original).

   O recorrente, naturalmente entendendo que os autos contém já factos indiciados suficientes em ordem a sustentar uma acusação e discordando, por isso, do arquivamento determinado pela Exmª titular do inquérito, requereu a abertura da instrução.

   Ora, por força do estatuído no transcrito artº 287º, nº 2 do CPP, o RAI deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” – artº 283º, nº 3, al. b) do CPP.

Como explica o Cons. Maia Costa, “Código de Processo Penal comentado”, ª ed. revista, de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça”, 954/955, o nosso processo penal tem estrutura acusatória, sendo o objecto do processo fixado pela acusação (ou pela pronúncia, havendo instrução). “Esta vinculação temática da acusação obriga, por isso, a que ela contenha uma precisa narração dos factos, que vai delimitar o poder cognitivo do tribunal. Essa narração abrange necessariamente os factos integradores de todos os elementos típicos do crime, quer os objetivos, quer os subjetivos, e ainda todos os factos que possam relevar, como circunstâncias ‘agravantes’ ou ‘atenuantes’, para a determinação da medida da pena (…). Não é admissível a ‘presunção’ do elemento subjetivo do crime a partir dos elementos objetivos descritos na acusação. Esta tem que explicitamente descrever os factos que consubstanciam o tipo subjetivo. Assim, tratando-se de crime doloso, a acusação deve conter a referência aos factos que sustentam a imputação do dolo do tipo, ou seja: o elemento intelectual (conhecimento de todos os elementos descritivos e normativos do facto) e o elemento volitivo (vontade de realizar o facto típico), precisando a modalidade em que se exprime essa vontade (intenção direta de praticar o facto; ou previsão do resultado como consequência necessária da conduta; ou previsão do resultado como consequência possível da conduta e aceitação do resultado). A estes elementos acresce um terceiro, chamado emocional, que se consubstancia na falta de consciência ética por parte do agente, ou seja, na sua atitude de indiferença para com os valores tutelados pelo direito (tipo de culpa doloso), que igualmente deve constar da acusação” (subl. nosso).

  O mesmo autor (op. cit., 967) acrescenta, em anotação ao artº 287º do CPP:

  O RAI formulado pelo assistente “deve ainda conter a narração dos factos e a indicação das disposições legais aplicáveis, tal como se dispõe para a acusação (als. b) e c) do nº 3 do artº 283º). A falta de cumprimento desse requisito determina a rejeição do requerimento, por analogia com o disposto para a acusação, no artº 311º, nºs 2, a) e 3, b) (ver acórdão do STJ de 11.01.2017, proc. nº 236/15.0TRPRT.S1). O requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente assume formalmente a natureza de uma acusação, fixando o objeto da instrução. Podendo embora o juiz de instrução investigar autonomamente (artº 288º, nº 4), ele terá de o fazer no quadro temático definido pelo requerimento do assistente».

     Neste mesmo sentido aponta Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., 781, onde afirma que o RAI formulado pelo assistente deve conter “a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, sendo aplicável o disposto no artigo 283º, nº 3, al. b)”, acrescentando – sustentado em jurisprudência vária – que “esta narração deve ter o formato de uma verdadeira acusação”.

  Ainda no mesmo sentido vai a anotação do Cons. Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal, notas e comentários”, 2ª ed., 791/2:

«Consubstanciando, materialmente, o RAI, deduzido pelo assistente, uma autêntica acusação, tem que obedecer aos requisitos enunciados no artº 283º, nº 3 do CPP, ex vi artº 287º, nº 2.

(…) Tem, por isso, o RAI do assistente que narrar os factos (…) que, na sua óptica, constituem crime, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal (mas a solução é semelhante se o RAI do assistente omitir por completo a referência ao elemento subjectivo do crime e não indicar as disposições legais aplicáveis».

  Como, de resto, é esse o ensinamento de Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 139/140:

  «O assistente deverá indicar, no requerimento para abertura da instrução, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação do Ministério Público (art. 287º, nº 3), donde que, substancialmente, o requerimento contenha uma verdadeira acusação.

  Na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (artºs 308º e 309º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo».

  E tem sido esse, também, o entendimento uniforme da jurisprudência dos nossos tribunais superiores e, em particular, deste Supremo Tribunal de Justiça, como dá nota o Exmº Juiz Conselheiro, no despacho recorrido. A título meramente exemplificativo, assim se decidiu no acórdão deste Tribunal de 11/9/2019, Proc. 47/17.8YGLSB, rel. Cons. Maia Costa: “(…) III. -  A remissão para a disposição legal que regula a estrutura da acusação revela que o requerimento de abertura de instrução do assistente reveste a natureza jurídica de uma autêntica acusação, uma acusação em sentido material, desempenhando uma função idêntica à da acusação formal (a que é deduzida após o inquérito): a de fixação do objeto do processo, definindo vinculativamente o âmbito dos poderes de cognição do tribunal. O requerimento de abertura de instrução fixa, assim, o objeto da instrução, definindo e circunscrevendo o quadro temático em que o juiz de instrução pode agir no âmbito do seu poder de investigação autónoma, conforme resulta expressivamente do n.º 4 do art. 288º do CPP. IV. - Nem poderia ser de outra forma, atendendo à estrutura acusatória do processo penal, que impõe que o juiz investigue ou julgue (conforme atue como juiz de instrução ou como juiz de julgamento) dentro dos limites que lhe são propostos por uma acusação deduzida por um órgão diferenciado. Na instrução requerida pelo assistente, é este o sujeito processual encarregado de definir o objeto do processo. Sem uma precisa descrição fáctica da matéria imputada ao arguido no requerimento para abertura da instrução não haveria vinculação temática do juiz de instrução, nem consequentemente estariam asseguradas as garantias de defesa do arguido” (subl. nosso).

  A exigência contida no artº 287º, nº 2 do CPP (aplicação ao requerimento para abertura de instrução, formulado pelo assistente, do disposto nas als. b) e c) do nº 3 do artº 283º do mesmo diploma) foi já considerada conforme à Constituição da República, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 358/2004, de 19/5/2004, proferido no Proc. nº 807/2003[13]:

“Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.

Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?

A resposta é negativa.

Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde‑se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica‑se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito”.


   Aqui chegados:

 Lido o requerimento para abertura de instrução formulado pelo recorrente, não há como discordar daquilo que, a propósito da (não) observância do estatuído no artº 283º, nº 3, als. b) e c) do CPP, se escreve no despacho recorrido: “(…) a narrativa acaba por consistir numa amálgama de factos, expostos de uma forma confusa, sem indicar, em grandes partes do discurso argumentativo, que concreta ação ou omissão imputa aos denunciados”.

   Aparentemente, estará em causa a prática dos crimes de falsificação de documentos, p.p. pelo artº 256º, nºs 1, al. a), 2, 3 e 4 do Cod. Penal e de denegação de justiça, p.p. pelo artº 369º do mesmo diploma legal.

Ora, mais uma vez e como consta do despacho recorrido, “da narrativa não emerge que em relação aos actos processuais em causa, e certidões que invoca, os denunciados tenham feito constar algo que não correspondia à realidade do processo ou, se quisermos, à análise e interpretação que fizeram da lei e do rito processual. Não são indicados quais os factos que correspondem à realidade (isto é, que sejam verdadeiros), em contraponto com aqueles que alegadamente não correspondem à realidade do processo (isto é, que sejam falsos) e foram praticados. E, muito menos, que tenha existido prática de actos contra o Direito. A forma de reagir a uma sentença é interpondo recurso da mesma, arguindo eventuais nulidades de que a mesma padeça (…). Ou seja, o que efectivamente resulta é o que o assistente pretende sindicar, censurar e apresentar a sua discordância em relação a actos processuais (quer sejam acções ou omissões), com as quais não se conformou nos processos civis (Proc. nº 2189/14....... e Proc. nº 5682/04....) que chama à colação”.


      Mais:

  Como nos parece indiscutível, o crime de falsificação de documento é um crime intencional, na pura e exacta medida em que o agente tem de actuar “com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”[14].

   E, como bem se assinala na decisão recorrida, o assistente não só não narra o dolo, como não indica qualquer facto susceptível de imputar aos denunciados o supra mencionado elemento subjectivo específico. Como se refere em tal decisão, “Em nenhum momento, o assistente narra factos que permitam imputar um comportamento doloso à denunciada Juíza BB, subscritora da sentença – mormente que sabia e tinha consciência que a sentença era falsa, por ter feito constar factos que sabia que não correspondiam à verdade, e que agiu com intenção de causar prejuízo ao próprio assistente ou a terceiro ou que tenha agido com o intuito de obter, para a própria ou para outra pessoa, benefício ilegítimo ou que tenha atuado com o intuito de cometimento de outro crime. Também não foi imputado nenhum facto relativo ao (alegado) comportamento doloso das oficiais de justiça II e JJ, que emitiram certidão(ões) da referida sentença proferida no Proc. declarativo n.º 5682/04 e qual foi a intenção das mesmas nesta atuação. Mormente não foi imputado qualquer facto que as mesmas sabiam que estavam a usar uma sentença falsa e que as mesmas cientes ou conformando-se como tal, atuaram com o intuito de prejudicar o assistente, um terceiro ou o Estado, ou pretenderam obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, ou que agiram com o intuito de cometimento de outro crime. O mesmo se diga quanto às Juízas CC e DD, pois nenhum facto é narrado no sentido que as mesmas sabiam que estavam a utilizar uma sentença falsa e que cientes ou conformando-se com tal, atuaram com intenção de causar prejuízo ao assistente ou a terceira pessoa ou ao Estado, ou com o intuito de obter para as próprias ou para terceiro, um benefício ilegítimo, ou que agiram com o intuito de cometimento de outro crime”.

  Também no que concerne ao crime de denegação de justiça, não consta do RAI formulado pelo assistente qualquer facto relativo ao elemento subjectivo da infracção.

   Dispõe-se no artº 369º, nº 1 do Cod. Penal que “O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias”.

   O termo “conscientemente” utilizado na previsão legal deixa claro que para a verificação deste tipo legal de crime é necessário que o agente aja com dolo directo ou com dolo necessário[15].

    Ora, também aqui a RAI é omisso quanto ao elemento subjectivo do crime assacado aos denunciados. Ou, para utilizar a expressão contida no Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2020, Proc. 2938/18.0T9PTM[16], “o RAI mostra-se omisso quanto aos elementos subjectivos do crime imputado à Denunciada, vale por dizer, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que reporta aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), elementos que não podem, sem mais, ser «deduzidos» dos que pertinem ao elemento objectivo, sob pena de insuportável lesão, designadamente, da garantia constitucional de defesa da Denunciada e do princípio do contraditório que lhe é inerente (artigo 32.º n.ºs 1 e 5, da Lei Fundamental)”.

   E do RAI não consta, também, que os denunciados, sabendo que o facto que praticavam (ou omitiam) preenchia um tipo legal de crime, tenham actuado com intenção de o realizar ou, ao menos, que o tenham representado como consequência necessária da sua conduta.

   Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 5/4/2017, Proc. 16/16.5TRLSB.S1, rel. Cons. Rosa Tching[17], “a prática de qualquer acto que infringe regras processuais não pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art. 369.º do CP, sendo, antes, de exigir que esse acto se traduza num desvio voluntário dos poderes funcionais que afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. (…) Se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, é omisso quanto à descrição de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores destas realidades bem como de uma atitude interna do denunciado que possa traduzir a sua intenção específica de agir, deliberada e conscientemente, contra direito, (…) assentando toda a sua argumentação, em conjeturas, meramente subjectivas e situadas apenas no nível dos processos de intenção, que, não podem valer como fundamento dos crimes imputados ao denunciado, (…) forçoso é considerar que bem andou o tribunal recorrido ao considerar que o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, não cumpria as exigências de conteúdo impostas pelo art. 287.º, n.º 2 do CPP e ao rejeitar o mesmo por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no n.º 3 deste mesmo artigo”.

 No mesmo sentido vai o Ac. STJ de 26/2/2020, Proc. 17/17.6YGLSB, rel. Cons. Pires da Graça: “(…) nem todo o acto que infringir regras processuais, pode ser considerado “contra direito”, no sentido definido no citado número 1 do artigo 369º do Código Penal. Na verdade, “agir contra direito” implica, por parte do agente, um desvio consciente, voluntário dos deveres funcionais que lhe incumbem, em termos de por em perigo a própria administração da justiça. Essencial, para efeitos do preenchimento do tipo legal base, definido no número 1 do artigo 369º do Código Penal, é, pois, que a conduta contrária ao direito tenha sido tida pelo agente de forma deliberada, consciente, de caso pensado. (…) E porque o dolo não se presume, indispensável torna-se que esse estado subjectivo se infira de factos materiais que, de forma iniludível, revelem a vontade do agente de cometer o crime e a consciência, por parte do mesmo, da proibição dessa conduta».

    Em suma, o RAI formulado nestes autos é totalmente omisso quanto ao elemento subjectivo dos crimes imputados aos denunciados.

  Em face de tal omissão, o RAI formulado nestes autos não tem condições para prosseguir, sendo certo que – como decorre do AUJ nº 7/2005, de 12/5/2005, DR I Série-A, nº 212, de 4/11/2005 – «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido», entendimento já julgado conforme à Constituição da República pelo Ac. TC 389/2005, de 14/7/2005[18], reafirmado nos acórdãos do mesmo Tribunal nº 636/2011, de 20/12/2011[19] e 175/2013, de 20/3/2013[20].

  Não é consensual, neste Supremo Tribunal de Justiça, a consequência jurídica a retirar de um RAI que não satisfaça as exigências legais contidas no artº 287º, nº 2 do CPP.

No Ac. STJ de 11/1/2017, Proc.    236/15.0TRPRT.S1, rel. Cons. Maia Costa[21], entendeu-se que:

«X - A lei não prevê, porém, as consequências da falta de narração dos factos no reque­rimento de abertura de instrução.

XI - Trata-se de uma lacuna legal, que deverá ser preenchida por recurso à analogia, que não está vedada no caso, como o AFJ 7/2005 acentua, pois a analogia só está proscrita em processo penal quando dela resulta o enfraquecimento da posição ou a diminuição dos direitos do arguido, o que não sucede manifestamente na situação em análise.

XII - Quer se enquadre a falta de narração dos factos no requerimento de abertura de instrução nos casos de "impossibilidade legal", nos termos do n.º 3 do art. 287.º do CPP, como faz a maioria da jurisprudência, quer se recorra, por analogia, ao art. 311.º, n.ºs 2, a), e 3, b), do CPP, como será em nosso entender mais correto, é incontestável que a rejeição é a consequência inevitável do incumprimento assinalado, não havendo lugar a "convite" para correção ou suprimento da omissão».

 Como se refere neste aresto, a maioria da jurisprudência deste Supremo Tribunal aponta para o enquadramento da situação referida no conceito de “inadmissibilidade legal”, contido no artº 287º, nº 2 do CPP, posição com a qual concordamos e que, por isso, subscrevemos. Assim e por exemplo, entende-se no Ac. STJ de 12/3/2009, Proc. 35/20.7TREVR.S1, Proc. 08P3168 rel. Arménio Sottomayor[22]: « (…) a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral»[23].

  Assim sendo, correcta se mostra a rejeição do RAI formulado pelo assistente, por inadmissibilidade legal da mesma.

  Rejeitado o RAI, inútil se mostra a apreciação de eventuais nulidades cometidas a montante.

Como se diz no acórdão do STJ de 20/6/2012, Proc. 8/11.0YGLSB.S2, rel. Cons. Armindo Monteiro[24], “está ao alcance do JIC sindicar, nos termos do art. 308.º, n.º 3, do CPP, as nulidades cometidas a montante da instrução, no inquérito, em ordem a alcançar a finalidade de tal fase processual, judicial, situada a meio caminho entre o inquérito e o julgamento. Mas esse conhecimento tem que ser útil, o que não sucede quando a instrução não é admitida e o arquivamento do inquérito adquiriu, por isso mesmo, foros de definitividade”. No mesmo sentido se decidiu no Ac. deste STJ de 13/1/2021, Proc. 8/19.2TRGMR.S2, com o mesmo relator do presente acórdão[25]: «Rejeitado liminarmente o RAI, prejudicado ficou o conhecimento da invocada nulidade (insuficiência do inquérito), a ter lugar em sede de decisão instrutória (artº 308º, nºs 1 e 3 do CPP). Como se decidiu no Ac. RE de 21/5/2013, relatado pelo também aqui relator, www.dgsi.pt, “não admitida a instrução, prejudicado fica o conhecimento de uma alegada nulidade por insuficiência do inquérito, a ter lugar em sede de decisão instrutória”».


V. Por tudo quanto exposto fica e em conclusão, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando o douto despacho recorrido.


Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC´s.


Lisboa, 2 de Dezembro de 2021 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)

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[1] Acessível em www.dgsi.pt.
[2] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal -Ano de 2020
[3] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal -Ano de 2014.
[4] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal -Ano de 2020.
[5] Acessível em www.dgsi.pt.
[6] Disponível em www.dgsi.pt.
[7] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal -Ano de 2020.
[8] Disponível em www.dgsi.pt.
[9] Disponível em www.dgsi.pt.
[10] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20030208.html.
[11] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040397.html.
[12] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal -Ano de 2020.
[13] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html.
[14] Neste sentido, cfr. Helena Moniz, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, II, 684 e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 3ª ed., 935.
[15] Neste sentido, cfr. Medina de Seiça, “Comentário Conimbricense…”, III, 619: “(…) exigindo a lei portuguesa que o funcionário actue “conscientemente”, as situações recondutíveis à dolosidade eventual (…) não se encontram abrangidas pela norma incriminadora, o mesmo é dizer, não são puníveis”. No mesmo sentido aponta a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores (assim e a título meramente exemplificativo, cfr. Ac. STJ de 28/10/2020, Proc. 6/19.6YGLSB, acessível em www.dgsi.pt).
[16] Acessível em www.dgsi.pt.
[17] Acessível em www.dgsi.pt.
[18] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050389.html.
[19] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110636.html.
[20] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130175.html.
[21] Acessível em www.dgsi.pt.
[22] Acessível in www.dgsi.pt.
[23] No mesmo sentido, cfr. Acs. STJ de 22/10/2020, Proc. 2938/18.0T9PTM  22/4/2021, rel. Cons. Clemente Lima, de 28/1/2021, Proc. 32/16.7TRLSB, rel. Cons. Eduardo Loreiro e  Proc. 35/20.7TREVR.S1 Rel. Cons. António Gama, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[24] Acessível em www.dgsi.pt.
[25] Acessível em www.dgsi.pt.