OBJETO DO PROCESSO
SANÇÃO DISCIPLINAR
IMPUGNAÇÃO
TEMPESTIVIDADE
LITISPENDÊNCIA
VIOLAÇÃO DA LEI
ERRO DE DIREITO
IMPARCIALIDADE
SUSPEIÇÃO
ESCUSA
CONSELHO SUPERIOR DE MAGISTRATURA
Sumário


I. Da validade e regularidade do pedido de ampliação objetiva da instância
Nos termos do artigo 171.º, n.º 1, do EMJ, a autora tem o prazo de 30 dias para impugnar o novo acto, independentemente do desvalor associado (nulidade ou anulabilidade) às invalidades apontadas e alegadas com referência ao acto punitivo.
Não o tendo feito, é intempestiva a prática de acto processual, o que obsta ao conhecimento do mérito do pedido incidental formulado (vide artigo 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA, aplicável ex vi artigos 166.º, n.º 2, 169.º e 173.º do EMJ).
-Por outro lado, a autora deduziu, em momento anterior ao pedido de ampliação objectiva da instância que foi formulado nos presentes autos, uma acção administrativa, que foi aceite, que visa a impugnação do mesmo acto visado no pedido incidental. Pelo que, não pode conhecer-se do mesmo, por verificação de litispendência quanto ao objecto desse pedido, o que constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, e que impede o conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância.
- Litispendência esta que impede ainda o Tribunal de proceder à apensação de impugnações, nos termos estabelecidos nos artigos 28.º e 61.º do CPTA.

II. Do vício de violação de lei (artigos 114.º e 147.º, n.º 10, do EMJ)
- Existe no EMJ, a previsão de uma dualidade de regimes aplicáveis em matéria de garantias de imparcialidade, consoante os sujeitos em causa: ao instrutor é aplicável o regime de garantias de imparcialidade previsto nos artigos 39.º a 47.º do CPP, enquanto que o regime aplicável aos membros do CSM é o contido na Parte III («Do procedimento administrativo»), Título I («Regime comum»), Capítulo II («Da relação jurídica procedimental»), Secção III («Das garantias de imparcialidade») do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, entretanto alterado pela Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro (artigos. 69.º a 76.º). O CSM é um órgão constitucional autónomo, nos termos dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º da CRP que tem como função a gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais, um órgão de natureza administrativa (integrando a administração não governamental ou não dependente do Governo, enquanto órgão superior da administração pública, nos termos do artigo 182.º, 2.ª parte, da CRP) e não um tribunal, um órgão que exerce a função administrativa e não a função jurisdicional.
-Atendendo á destrinça entre processo penal e procedimento administrativo, não é aplicável a este último o disposto no artigo 45.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. Na verdade, não só tal disposição legal não é aplicável, como inexiste no CPA norma de idêntico teor, que determine que os visados pelo incidente de suspeição só possam praticar actos urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência. Ao invés, dispõe-se no artigo 75.º, n.º 1, do CPA que a competência para decidir da escusa ou suspensão é deferida nos termos referidos nos números 4 a 6, do artigo 70.º, do mesmo diploma.
-O processo de averiguação é um processo especial, distinto do processo disciplinar, que se destina “a apurar a veracidade da participação, queixa ou informação, e a aferir se a conduta denunciada é suscetível de constituir infração disciplinar” e tem uma natureza sumária, sendo a sua tramitação mais simples e célere, caracterizando-se por uma certa maleabilidade e visando a recolha de todos os elementos relevantes, num prazo de 30 dias. O procedimento de averiguação pode terminar através de uma das seguintes formas: i) proposta de arquivamento; ii) proposta de instauração do processo disciplinar; ou iii) proposta de mera aplicação de sanção de advertência não registada. Neste tipo de processo não há nem acusação, nem subsequente defesa: concluída a instrução, o inquiridor elabora relatório, que remete imediatamente (sem auscultação prévia do magistrado eventualmente visado, que nem sequer tem ainda a qualidade de arguido) à entidade que mandou instaurar o procedimento, para que esta, se assim entender, instaure os processos disciplinares a que haja lugar.
A aplicabilidade de disposições genéricas do procedimento disciplinar comum tem de ser efectuada no processo de averiguação, como a própria lei exige, com as devidas adaptações (artigo 133.º do EMJ), não esquecendo as especificidades deste tipo de procedimento.

Texto Integral


Processo n.º 14/21.7YFLSB

Autora: Juíza …., … AA
Entidade demandada: Conselho Superior da Magistratura (CSM)

Acordam na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

1. A Sra. Juíza … AA veio intentar a presente acção administrativa contra o Conselho Superior da Magistratura (CSM), ambos identificados e com os demais sinais nos autos, visando a impugnação: i) da deliberação tomada pelo Conselho Plenário do CSM a ….2021; e ii) do subsequente despacho do Exmo. Presidente do CSM de ….2021.
Alega, para tanto e, em síntese, o seguinte:

- Segundo uma correcta leitura do preceituado nos artigos 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa (CRP), 109.º, n.º 4, 117.º, n.º 4, e 123.º-B, todos do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), a entidade demandada não poderia pronunciar-se sobre a proposta vertida pelo Exmo. Conselheiro Instrutor antes de a mesma ter sido submetida por este à audiência e defesa da autora e antes de esta dar a sua eventual “anuência” para a aplicação da sanção de repreensão não registada;

- Na sequência do requerimento da autora, rejeitando a aplicação da sanção, a entidade demandada, na sua deliberação de ….2020, entendeu que, face à recusa da aceitação da sanção deviam os autos prosseguir, com a dedução de acusação. Isto é, apesar de já se ter pronunciado, ante a recusa da autora, a entidade demandada “recuou e ordenou a instauração de procedimento disciplinar, constituindo o processo de averiguações a respetiva fase instrutória”;

- É, pois, convicção da autora que, “tendo sido todos – factos e elementos de prova – objeto de pronúncia do Venerando Conselho Superior da Magistratura, entendendo maioritariamente o Ilustre Colégio haver merecimento para a aplicação à Autora da sanção de advertência não registada […] em caso de improcedência do incidente – o que, como acima se referiu, sucedeu, viriam, como foram, uma vez mais a ser chamados à apreciação daquilo que já haviam apreciado”;

- Com aquela intervenção, os membros do Conselho Plenário do CSM “condenaram, sob condição, a Autora”.

- Foi violado o artigo 43.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (CPP), porquanto, deduzido o pedido de escusa, deve o juiz requerido ser ouvido, só podendo praticar actos urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência;

- Estava não só o Presidente do CSM, mas também os demais Vogais da entidade demandada visados no requerimento de escusa, porque também eram visados pelos mesmos factos pelos quais era visado o Exmo. Presidente do CSM e tinham, assim, um interesse directo e pessoal na questão sobre a qual deliberaram, o que os colocava numa nova situação de recusa, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CPP;

- “Em qualquer caso, está em causa a ofensa quer do princípio geral da imparcialidade, vertido no artigo 266.º, n.º 2, da CRP, quer a garantia do processo equitativo, vertida quer no artigo 20.º da CRP quer no artigo 6.º da CDEH”;

- Os actos impugnados (em particular a deliberação da entidade demandada) padecem ainda do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, na interpretação e aplicação do disposto nos artigos 114.º e 147.º, n.º 10, do EMJ, na sua actual redação.

Concluiu pedindo que “deve a presente ação ser julgada procedente, declarando-se que a deliberação do Venerando CSM de …-2021 e o despacho do Exmo. Presidente do CSM de …-2021, são ilegais e inválidos, sendo declarados nulos ou anulados com as legais consequências”.

(Juntou 9 documentos).
2. A entidade demandada contestou a acção, pugnando pela improcedência da pretensão da autora.
Juntou o processo administrativo (na acepção dos artigos 1.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo e 84.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante designado abreviadamente por PA).
3. No seu Parecer, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto entendeu que a presente acção deve ser “julgada como parcialmente procedente, decretando-se a anulação da deliberação do CSM de …-2021 e consequentemente, a invalidade do despacho do senhor Presidente do CSM de …-2021”.         
4. Sobre este Parecer pronunciou-se a entidade demandada, manifestando a sua discordância.
5. Foi proferido despacho pela Relatora a dispensar a realização de audiência prévia, sendo oportunamente notificado às partes, que nada disseram ou requereram a esse respeito.
6. Na pendência dos autos, a 15.10.2021, mais veio a autora deduzir pedido de ampliação objectiva da instância visando a impugnação da deliberação da entidade demandada de 06.07.2021, notificada por ofício de ….2021, que deliberou aplicar à demandante a sanção de repreensão não registada.
7. Foi observado o disposto no artigo 63.º, n.º 4, do CPTA, tendo a entidade demandada tido oportunidade de se pronunciar acerca do incidente, mais tendo sido oferecida a oportunidade à autora para se pronunciar quanto à intenção do Tribunal em indeferir a antedita ampliação, por verificação da caducidade do direito de acção, tendo a demandante exercido tal faculdade, manifestando a sua discordância.
8. Cumpre apreciar e decidir.                           


II. Saneamento

1. O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território - artigo 170.º, n.º 1, do EMJ[1].
2. A petição inicial não é inepta.
3. O processo é o próprio e é válido (cf. artigos 46.º ss. do CPTA, ex vi artigo 169.º do EMJ).
4. As partes têm capacidade e personalidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.

5. Da validade e regularidade do pedido de ampliação objetiva da instância

5.1. Como se disse supra em I.6., na pendência dos presentes autos, veio a autora dar conta de que, no termo do procedimento administrativo disciplinar instaurado pela entidade demandada, foi praticado, posteriormente aos actos impugnados nos presentes autos, uma decisão punitiva, pretendendo a demandante, em suma, exercer a faculdade oferecida pelo artigo 63.º, n.º 1, do CPTA, requerendo a ampliação objectiva da instância à impugnação dessa decisão punitiva também nos presentes autos.
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 4, do artigo 63.º, do CPTA, não sem que antes se suscitasse ex officio: a verificação de vicissitude processualmente relevante que obsta à admissibilidade de tal pretensão, e que se prende com a intempestividade da dedução de tal pretensão.
Observado contraditório, cumpre apreciar e decidir da validade e regularidade da instância deste pedido incidental, para posteriormente decidir de mérito, o pedido formulado na petição inicial quanto ao objecto da acção.
5.2. Para tanto, deixam-se desde já fixadas as seguintes ocorrências processualmente relevantes para a decisão do incidente:
A) A presente acção foi instaurada a ….2021.
B) A ….2021, a entidade demandada proferiu deliberação que, no âmbito do procedimento disciplinar instaurado à autora em que foram praticados os actos impugnados originariamente nos presentes autos, decidiu aplicar à aqui demandante e aí arguida a sanção de repreensão não registada.
C) A deliberação referida em B) foi notificada à autora através do ofício remetido sob o registo postal ….., expedido a ….2021.
D) A ….2021, a autora deduziu nos presentes autos, , o pedido de ampliação objectiva da instância à deliberação referida em B).
E) A ….2021, a autora já instaurara junto deste Supremo Tribunal, acção administrativa de impugnação da deliberação referida em B), que corre termos na Secção de Contencioso sob o n.º …/…...

5.3. Alinhadas as ocorrências processualmente relevantes, emergem três constatações, duas das quais já suscitadas pela Relatora aquando do primeiro contacto após dedução do pedido incidental.
5.4. O primeiro ponto que ressalta do pedido incidental é o de que se constata, tal como prefigurado e suscitado ex officio, a verificação de vicissitude processualmente relevante que obsta à admissibilidade de tal pretensão, que se prende com a intempestividade da dedução da mesma.
Na verdade, em anotação ao artigo 63.º do CPTA, esclarecem os tratadistas que “[…] a modificação objetiva da instância prevista no presente artigo, na parte em que implique a ampliação do objeto do processo à impugnação de novos atos administrativos entretanto praticados na pendência do processo, está sujeita aos prazos de impugnação […] pelo que, também quanto aos pedidos que venham a ser deduzidos na pendência do processo impugnatório, é exigível que não se encontre precludido o respetivo direito de ação” [2]– (sublinhados nossos). Ou, mais assertivamente até, “a ampliação do objeto da instância só pode ser pedida no prazo dentro do qual o ato cuja impugnação vai acrescer agora à principal pode ser impugnado autonomamente”[3].
No instrumento processual produzido a instâncias do Tribunal, em exercício de pronúncia quanto à suscitada intempestividade de acto processual, a autora parece pretender sustentar que estava em tempo, porque o desvalor associado à invalidade apontada no acto impugnado é a nulidade. A tese da autora estriba-se na distinção efectuada, a propósito dos prazos de impugnação, no artigo 58.º, n.º 1, do CPTA - preceito que, como é sabido, distingue os prazos de impugnação, não só conforme o desvalor jurídico associado à invalidade impugnada, como também consoante a entidade a que seja devido o impulso processual impugnatório. Assim, quanto àquela primeira distinção, o artigo 58.º, n.º 1, do CPTA estabelece que as acções podem ser instauradas a todo o tempo, sem efeito preclusivo do decurso de qualquer prazo de caducidade do direito de acção, quando o desvalor associado à invalidade apontada seja o da nulidade, sujeitando, porém, as acções em que se impetre a anulação de um acto administrativo a um prazo de caducidade. Neste último caso, o prazo varia consoante o autor seja o próprio lesado (três meses) ou o Ministério Público (um ano).
No entanto, não lhe assiste razão.
Com efeito, importa fazer notar que, nos termos do disposto no artigo 166.º, n.º 2, do EMJ, “[à]s impugnações de natureza jurisdicional e aos meios de reação jurisdicional contra a omissão ilegal de atos administrativos são aplicáveis, com as necessárias adaptações e sem prejuízo do disposto neste Estatuto, as normas contidas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos” (sublinhados nossos).
Ora, entre essas adaptações inclui-se, não só a competência para conhecimento e decisão (secção de contencioso do STJ, em pleno – artigo 170.º), como também o prazo de impugnação, subordinado a um preceito específico no EMJ (artigo 171.º), que, como norma especial, prevalece sobre o que a este respeito dispõe o CPTA.
Como tal, o prazo de que dispunha a autora para impugnar o novo acto impugnado era de apenas 30 dias (cf. artigo 171.º, n.º 1, do EMJ), independentemente do desvalor associado (nulidade ou anulabilidade) às invalidades apontadas e alegadas pela autora com referência ao acto punitivo.
E nem se refira que esta interpretação poderia aqui comprimir de forma intolerável o direito à tutela jurisdicional efectiva ou o acesso à justiça, por duas ordens de razão que se enunciam sucintamente de seguida.
Por um lado, como apontam os autores atrás citados, mesmo no âmbito do CPTA divisam-se situações em que os prazos de exercício do direito de acção são encurtados, face à previsão do artigo 58.º, do CPTA, e em que se prescinde mesmo da distinção consoante o desvalor jurídico associado ao acto impugnado. Ou seja, casos há em que o prazo de impugnação, de 30 dias, é aplicável independentemente de o acto ser nulo ou anulável.
Neste sentido, tem-se asseverado que, face à previsão de prazos especiais únicos de 30 dias de impugnação, tais prazos prevalecem sobre a regra geral enunciada no referido artigo 58.º, n.º 1, do CPTA. Assim referem os tratadistas, em anotação a preceitos do CPTA que preveem tais prazos especiais (artigos 99.º, n.º 1, e 101.º), que, “tratando-se de um prazo único, o prazo […] deve ser aplicado independentemente do vício que afete o ato e da qualidade em que intervém o demandante [e que tais preceitos], ao fixar em o prazo de um mês, sobrepõem-se a qualquer das regras do n.º 1 do artigo 58.º, não se podendo distinguir entre a impugnação de atos nulos e de atos anuláveis, ou entre impugnação promovida pelo MP, no exercício da ação pública, e a impugnação a cargo de quaisquer outros interessados” [4]. E, mais adiante: “Tratando-se de uma norma especial, o regime […] prevalece sobre os artigos 58.º, n.º 1, e 69.º, que estabelecem os prazos gerais aplicáveis, respetivamente, à impugnação de atos administrativos e à condenação à prática de atos devidos. […] Não estabelecendo […] qualquer dessas distinções, visto que fixa um prazo único de um mês, entende-se que esse prazo é aplicável em relação à impugnação de quaisquer atos, quer pelo MP, quer pelos demais interessados, e independentemente do fundamento ao abrigo do qual seja requerida a providência judiciária, ou seja, de ser arguida a anulabilidade ou nulidade do eventual ato em causa”[5].
Mais asseveram os autores citados: “Vários argumentos apontam […] hoje no sentido de se dever entender que o prazo de um mês também se aplica às situações de ato nulo. // Desde logo, a circunstância de [o legislador – de 2015, no caso da revisão do CPTA, e de 2019, no caso do EMJ, acrescentamos nós] não ter consagrado nesta sede um regime diferenciado para atos nulos […]”[6]. Esta constatação torna-se tanto mais premente, quanto nos damos conta de que a fixação do prazo especial no artigo 171.º, n.º 1, do EMJ não é acompanhada de remissão para disposições, gerais ou especiais, dos artigos 58.º e ss. do CPTA.
Mais: “O argumento resultante da inaptidão intrínseca do ato nulo para a produção de efeitos jurídicos, segundo o regime de direito substantivo, é, por outro lado, posto em causa por um dado normativo da maior relevância, que hoje resulta do artigo 162.º do CPA, que, ao definir o regime da nulidade dos atos administrativos, estabelece, no seu n.º 2, que a nulidade só é invocável a todo o tempo “salvo disposição legal em contrário”. Na verdade, a introdução no CPA desta ressalva mais não é do que a expressão do reconhecimento da existência, no nosso ordenamento jurídico, de previsões normativas que sujeitam a prazo a arguição da nulidade de atos administrativos”[7] (sublinhados nossos).
Por outro lado, o próprio Tribunal Constitucional já teve amplas oportunidades para deixar estabelecido que: i) o legislador dispõe ampla liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe, designadamente, ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente protegidos relevantes, incluindo o de todas as partes (e não apenas do autor) e, em conformidade, disciplinar o âmbito do processo, a legitimidade e os prazos, não sendo, por isso, incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes (Acórdão n.º 46/05); ii) o estabelecimento legal de prazos processuais, seja de caducidade para o exercício de direito de acção, seja para a interposição de recurso, prossegue os interesses da certeza e da segurança jurídicas, não violando, em si mesmo, o direito de acesso aos tribunais e não constituindo, uma restrição de um direito fundamental, mas tão somente, um condicionamento do exercício desse direito (cf. Acórdãos n.ºs 148/87, 140/94, 473/97, 70/00, 404/00, 247/02, 185/04 e 250/08); e iii) a generalidade de prazos processuais consagrados nas leis de processo respeitam a exigência constitucional (cf., entre outros, Acórdãos n.ºs 571/01, 588/00, 222/00 e 347/02).
Neste conspecto, importa tomar em linha de consideração que: i) a deliberação impugnada a que se reporta o pedido de ampliação objetiva foi praticada a ….2021; ii) a mesma deliberação foi notificada através do ofício remetido sob o registo postal RD...PT, expedido a ….2021; iii) o pedido de ampliação objectiva apenas foi formulado a ….2021; e iv) o prazo de que dispunha a autora para impugnar o novo acto impugnado era de apenas 30 dias (cf. artigo 171.º, n.º 1, do EMJ), tendo terminado a 30.09.2021.
Constata-se, por isso mesmo, a intempestividade de prática de acto processual, que constitui vicissitude que obsta ao conhecimento do mérito do pedido incidental ora formulado (vide artigo 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA, aqui aplicável ex vi artigos 166.º, n.º 2, 169.º e 173.º do EMJ).


5.5. De todo o modo, sempre se refira, adicionalmente e a latere, que a idêntica conclusão chegaríamos por via diversa: é que, constata-se agora, além do que já se deixou estabelecido, a autora não se limitou a deduzir pedido de ampliação objectiva da instância nos presentes autos; também instaurara, na semana anterior, nova acção administrativa, visando a impugnação do mesmo acto, objecto do pedido incidental ora apreciado, que foi admitida e está a correr termos na secção de contencioso sob o n.º …/.......
Ora, sendo certo que o artigo 63.º, do CPTA oferece ao particular a faculdade de ampliar o objecto dos autos ao acto que venha a ser praticado no âmbito do mesmo procedimento administrativo no qual foram praticados os actos originariamente impugnados, não é menos verdade que o faz atribuindo ao lesado uma mera faculdade, que o autor ou requerente exerce ou não, como preferir, e sem quaisquer consequências desvantajosas quanto à impugnação do novo acto, visto que tem sempre a possibilidade de optar por uma impugnação autónoma quanto a esse novo acto.
No entanto, e isso é que importa reter, as opções são exclusivas e reciprocamente excludentes.
Dito por outras palavras: face à notícia da prática do novo acto, a autora podia optar ou pela ampliação objectiva da instância nestes autos; ou então podia optar por deduzir nova acção administrativa de impugnação. O que não poderia fazer era lançar mão, concomitante e simultaneamente, de ambas as possibilidades, sem impulso processual para apensação de acções, sob pena de verificação de situação de litispendência.
Ora, como sabemos, a litispendência pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (cf. n.ºs 1 e 2 do artigo 580.º, do CPC, aqui aplicável por força da remissão operada pelo artigo 1.º, do CPTA). O fundamento da litispendência repousa em razões de segurança e certeza jurídicas, bem como na consideração de que o prestígio dos tribunais “[…] seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente […]”[8].
Neste âmbito, o que se pretende é evitar, não apenas que o tribunal decida sobre o mesmo objecto, duas vezes de maneira diferente, como também que decida sobre esse mesmo objecto, duas vezes de maneira idêntica.
Assim, tendo sido instaurada, em momento anterior à dedução do pedido de ampliação objectiva da instância que foi formulado nos presentes autos, uma acção administrativa que visa a impugnação do mesmo acto visado no pedido incidental, sempre estaria vedado o conhecimento do referido pedido incidental, por verificação de litispendência quanto ao objecto desse pedido [artigo 577.º, alínea i)], com os efeitos estabelecidos no artigo 576.º, n.º 2, do CPC, constituindo, pois, uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que impede o conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância - cf. artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea i), todos do CPC.
E, nem se refira que poderia aqui ser equacionada a hipótese de apensação de impugnações, nos termos estabelecidos nos artigos 28.º e 61.º do CPTA, por dois motivos distintos que ora se enunciam.
Em 1.º lugar, decorre do artigo 28.º do CPTA, sob a epígrafe “apensação de processos”, que quando “[…] sejam separadamente propostas ações que, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade previstos para a coligação e a cumulação de pedidos, possam ser reunidas num único, deve ser ordenada a apensação delas, ainda que se encontrem pendentes em tribunais diferentes, a não ser que o estado do processo ou outra razão torne especialmente inconveniente a apensação […]” (n.º 1), sendo que os “[…] processos são apensados ao que tiver sido intentado em primeiro lugar, considerando-se como tal o de numeração inferior, salvo se os pedidos forem dependentes uns dos outros, caso em que a apensação é feita na ordem da dependência […]” (n.º 2). Mais resulta do mesmo artigo 28.º que a “[…] apensação pode ser requerida ao tribunal perante o qual se encontre pendente o processo a que os outros tenham de ser apensados e, quando se trate de processos que estejam pendentes perante o mesmo juiz, deve ser por este oficiosamente determinado, ouvidas as partes […]” (n.º 3) (sublinhados nossos).
Ora, numa interpretação sistemática do n.º 1, do artigo 28.º, do CPTA, cotejando-o com outros preceitos igualmente atendíveis, como o sejam o n.º 3 do mesmo artigo e o artigo 267.º do CPC, resulta com mediana clareza que a intenção do legislador é que apenas se deverá considerar como dever oficioso do relator promover a apensação de acções quando ambas se encontrem atribuídas ao mesmo magistrado; caso contrário, a apensação ficará dependente do pertinente impulso processual de qualquer das partes.
Em qualquer caso, mesmo que seja deferida ou ordenada oficiosamente a apensação, nunca poderá a mesma ser consumada sem prévia auscultação das posições das partes.
Neste conspecto, atento o teor do regime que decorre do citado artigo 28.º do CPTA e que deixamos enunciados supra, verificando-se que o aludido proc. n.º …/….. não está na titularidade da mesma juíza relatora - o que permitiria (recte: imporia) a apensação, independentemente de impulso processual das partes, nos termos do n.º 3, do artigo 28.º do CPTA -  e sem que até ao momento nenhuma das partes (nem autora, nem entidade demandada) tivesse apresentado nos presentes autos qualquer impulso processual a requerer a aludida apensação de impugnações, nada havia, pois, a promover ou ordenar.
Em 2.º lugar, em rigor, julgamos verificada a previsão da parte final do n.º 1, do citado artigo 28.º do CPTA, ou seja, julgamos que existem motivos que tornam especialmente inconveniente a apensação: é que nos presentes autos já se dispensara a realização de audiência prévia e o processo está preparado para decisão, como se constata. Ao invés, no proc. n.º …/...... o processo apenas conheceu a dedução de contestação da entidade demandada, estando a aguardar a pronúncia do Ministério Público, ao que se poderá seguir a dedução de réplica da autora e eventual produção de prova.
Em suma: sempre estaria o Tribunal impedido de conhecer do pedido incidental por verificação de situação de litispendência, atenta a instauração pela autora de outra acção administrativa, em momento anterior à dedução do pedido de ampliação objectiva da instância nestes autos, com o mesmo objecto desse pedido incidental, e sem que se verifique a possibilidade de apensação de impugnações.

5.6. Face ao exposto, e concluindo a apreciação da admissibilidade de conhecimento do pedido de ampliação objetiva da instância, importa:

a) absolver a entidade demandada da instância quanto ao pedido incidental, por verificação de intempestividade do pedido e por verificação de litispendência, atenta a dedução, em momento anterior, de nova acção com o mesmo objeto, sem que se verifique a apensação de acções;

b) condenar a autora em custas no pedido incidental, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, nos termos dos artigos 7.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais (tabela II) e 189.º, n.º 2, do CPTA.
Isso mesmo se determinará a final, no segmento dispositivo da presente decisão.


III. Do Objecto da causa.
Apreciado e decidido o pedido de ampliação objectiva da instância, delimitemos a nossa apreciação ao objecto do litígio.
São as seguintes as questões a decidir nos presentes autos:
a. Saber se os actos impugnados violam as garantias subjectivas de imparcialidade, nomeadamente, o artigo 43.º, n.º 1, do CPP, bem como o princípio geral da imparcialidade, vertido no artigo 266.º, n.º 2 da CRP, e a garantia do processo equitativo, vertida quer no artigo 20.º da CRP, quer no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
b. Apurar se a deliberação da entidade demandada padece do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, na interpretação e aplicação do disposto nos artigos 114.º e 147.º, n.º 10, do EMJ, na sua actual redação.

IV.   Da factualidade apurada
Tendo em atenção a posição das partes expressas nos seus articulados e o acervo documental junto aos autos, incluindo o PA, está provada, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos e de acordo com as várias soluções de direito plausíveis, a seguinte matéria de facto, a qual se passa a enunciar (de acordo com a sua ordem lógica, e, dentro desta, também cronológica) subordinada aos seguintes números:
1) Foi instaurado contra a ora autora um processo de averiguações no CSM, ao qual foi dado o número …..03/AV.
2) No termo da instrução do procedimento referido em 1), foi a ….2020 expedida notificação à autora e ao seu mandatário, contendo o ofício n.º ….., ref.ª …../AV/….03, com a mesma data, mais contendo cópia do extrato da deliberação do CSM de ….2020, referente ao ponto 1.2.1. e, ainda, relatório final dos autos número …..03/AV (folhas 159 a 170).
3) Do extrato da deliberação de …-2020, referida em 2), constava o seguinte:
Apreciada a proposta formulada pelo Exmo. Senhor Inspetor Judicial Extraordinário, Juiz Conselheira Dr. Souto de Moura, nos autos de averiguação em que é visada a Exma. Senhora Juíza … Dra. AA, foi deliberado por maioria […] concordar com a mesma, que aqui se dá por integralmente reproduzida e, em conformidade, considera adequado este Conselho aplicar à Exma. Senhora Juíza …, Dra. AA, a sanção de “advertência não registada” independentemente de processo, devendo notificar-se a mesma para se pronunciar sobre a sua aceitação, nos termos do n.º 4, do art.º 109.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
4) A deliberação referida em 2) e 3) foi votada favoravelmente pelos seguintes membros da entidade demandada:
a. Conselheiro, Dr. Joaquim Piçarra – Presidente;
b. Conselheiro, Dr. José Lameira – Vice-Presidente;
c. Professor Doutor Cardoso da Costa;
d. Desembargador, Dr. Jorge Raposo;
e. Dra. Susana Ferrão;
f. Dr. José Manuel Correia;
g. Dra. Lara Martins;
h. Dra. Sofia Silva;
i. Professor Doutor Fernando Licínio Lopes Martins;
j. Professora Doutora Inês Vieira da Silva Ferreira Leite;
k. Dr. António José Barradas Leitão;
l. Dra. Telma Solange Silva Carvalho.
5) Na deliberação referida em 2) e 3):
a. Votou vencido o senhor Desembargador, Dr. Leonel Serôdio;
b. Absteve-se o senhor Professor Doutor António Alberto Vieira Cura.
6) A ….2020, a autora apresentou junto da entidade demandada um requerimento, declarando, a final, “[…] não se conformar nem aceitar a nenhum título a aplicação da sanção de advertência não registada”, requerendo a respetiva anulação.
7) A ….2020, a entidade demandada adoptou deliberação no termo do procedimento referido em 1), pela qual “[…] foi deliberado por maioria instaurar processo disciplinar à Exma. Sra. Juíza …Dra. AA, tendo em conta a posição assumida por esta e as garantias de defesa da mesma, constituindo os presentes autos de averiguação a parte instrutória do mesmo”.
8) A deliberação referida em 7), que instaurou o processo disciplinar que foi autuado nos serviços da entidade demandada sob o n.º “…../AV/…03”, foi votada favoravelmente pelos seguintes membros da entidade demandada:
a. Conselheiro, Dr. José Lameira – Vice-Presidente;
b. Dr. José Manuel Correia;
c. Dra. Lara Martins;
d. Dra. Sofia Silva;
e. Dra. Susana Ferrão;
f. Professora Doutora Inês Vieira da Silva Ferreira Leite;
g. Dra. Telma Solange Silva Carvalho;
h. Professor Doutor Fernando Licínio Lopes Martins;
i. Dr. António José Barradas Leitão.
9) Na deliberação referida em 7) votaram vencidos:
a. Conselheiro, Dr. Joaquim Piçarra – Presidente;
b. Professor Doutor Cardoso da Costa;
c. Desembargador, Dr. Jorge Raposo;
d. Desembargador Dr. Leonel Serôdio.
10) Através do ofício n.º …2/JAM, de ….2020, a autora foi notificada da acusação contra si deduzida.
11) A ….2020 a autora apresentou defesa contra a acusação referida em 10).
12) Nessa mesma data, a ora autora deduziu incidente de recusa contra os seguintes membros da entidade demandada:
a. Conselheiro, Dr. Joaquim Piçarra – Presidente;
b. Conselheiro, Dr. José Lameira – Vice-Presidente;
c. Professor Doutor Cardoso da Costa;
d. Desembargador, Dr. Jorge Raposo;
e. Dra. Susana Ferrão;
f. Dr. José Manuel Correia;
g. Dra. Lara Martins;
h. Dra. Sofia Silva;
i. Professor Doutor Fernando Licínio Lopes Martins;
j. Professora Doutora Inês Vieira da Silva Ferreira Leite;
k. Dr. António José Barradas Leitão.
l. Dra. Telma Solange Silva Carvalho;
m. Desembargador Dr. Leonel Serôdio.
13) A 23.03.2021 a entidade demandada proferiu deliberação com o seguinte teor:

Proc. n.º ……/AV…..03
Incidente de recusa
Requerente: Juíza … AA
Relator: António Alberto Vieira Cura

Delibera o Plenário do Conselho Superior da Magistratura, sob a Presidência do Vice-presidente

I. RELATÓRIO
Em requerimento subscrito pelo seu Ilustre Mandatário, Dr. PP – que não se encontra datado, mas foi enviado em anexo ao e-mail de … de 2020, 12:24 –, e dirigido ao «Exmo. Senhor Conselheiro Presidente do Conselho Superior de Magistratura» («sic»), a Senhora Juíza … AA veio, «ao abrigo do disposto no artigo 114.º do EMJ e 43.º do CPP, deduzir incidente de recusa dos seguintes Senhores Conselheiros:
1. Conselheiro António Joaquim Piçarra;
2. (…);
3. (…);
4. (…);
5. (…);
6. (…);
7. (…);
8. (…);
9. (…);
10. (…);
11. (…);
12. (…);
13. (…);».
A Senhora Juíza … AA, em termos introdutórios, salienta que «são razões de legalidade objetiva (…) que motivam o presente incidente de recusa» (n.º 3.), faz diversas e doutas considerações sobre o acolhimento do «princípio do processo equitativo» no «artigo 20.º da CRP» e «no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (n.º 4.), cuja interpretação conduziu ao reconhecimento da aplicação desse princípio ao procedimento disciplinar por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (n.º 5.), acrescentando que nada justifica uma «interpretação restritiva» do mencionado princípio (citando um douto acórdão proferido por Tribunal da Relação de Lisboa a respeito deste – n.º 6.), e afirma que o incidente de recusa por si deduzido se situa na «senda da ‘justeza’ e da preservação da aparência da justiça» (n.º 7.).

É socorrendo-se do douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 143/2004 (de que foi Relatora a Senhora Conselheira Maria Fernanda Palma) que a ora recusante (n.º 8) alude à finalidade do «instituto da recusa do juiz», tal como «resulta do artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal», qual seja a de «impedir a intervenção de um juiz no processo quando tal intervenção suscitar ‘o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade’». E, prosseguindo na citação, acrescenta: – «O valor constitucional que o instituto jurídico de recusa serve é, inequivocamente, o da garantia de imparcialidade do juiz. Tal garantia ancora-se, desde logo, na garantia de acesso ao direito, consagrada, genericamente, no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e, mais concretamente no direito a um processo equitativo, configurado como garantia de defesa no sentido do artigo 32.º, n.º 1. Radica também implicitamente, na própria definição constitucional da função jurisdicional: ‘a administração da Justiça em nome do povo’ (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição)» (sublinhado da recusante).

Passando a referir diretamente as normas legais que disciplinam a recusa do juiz, a Senhora Juíza … impetrante sustenta que «as normas do artigo 43.º do CPP constituem, em si mesmas, uma refração do princípio do processo equitativo, e não podem, por isso, ser objeto de interpretação restritiva» (n.º 9.); e que, «por outro lado» tal «princípio tem um alcance mais lato, abrangendo, na sua aplicação, todas as situações que, tangendo a objetividade do decisor, não sejam alcançáveis pela interpretação daquelas normas per se» (n.º 10.).

Na parte do requerimento que se segue, a Senhora Juíza … impetrante centra-se no estatuído pelo n.º 2 do art. 43.º do Código de Processo Penal, segundo o qual «pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º» (n.º 28., com sublinhado da ora requerente), para fundamentar a recusa do Senhor Presidente do Conselho Superior da Magistratura, Conselheiro António Joaquim Piçarra (sobre a qual aqui se delibera), sustentando, em síntese, que:
– De acordo com a «correta leitura do preceituado nos artigos 32.º, n.º 10 da CRP; 109.º, n.º 4, 117.º, n.º 4 e 123.º-B, todos do EMJ», o Conselho Superior da Magistratura não podia «pronunciar-se sobre a proposta vertida pelo Exmo. Conselheiro Instrutor antes de a mesma ter sido submetida por este à audiência e defesa da Impetrante e antes de esta dar o seu eventual consentimento para a aplicação da sanção de repreensão não registada» (n.º 12.);
– Contudo, assim não foi, uma vez que, «como resulta da ata da reunião do Conselho Superior de Magistratura de … de 2020, pronunciaram-se sobre a proposta então formulada pelo Exmo. Conselheiro Instrutor», os «Senhores Conselheiros» que menciona (n.º 13.) – entre eles o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra, que aqui está em causa –, dos quais «votaram favoravelmente a proposta» os «Senhores Conselheiros» indicados no n.º 14. – apenas interessando aqui o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra –, enquanto o «Senhor Conselheiro» referido no n.º 15. «votou contra a proposta» e o «Senhor Conselheiro» mencionado no n.º 16. «absteve-se»;
– Uma vez rejeitada «a aplicação da sanção» pela Senhora Juíza … ora impetrante, o Conselho Superior de Magistratura, na sua deliberação de … de 2020, entendeu que, (…), deviam os autos prosseguir, com a dedução de acusação» (n.º 17.) , na qual vieram a ser descritos os «factos que constavam do relatório do Exmo. Conselheiro Instrutor» (n.º 18.), não sendo nela incluído «mais nenhum facto que ali não estivesse contido» (n.º 19.), e que «mais nenhum ato de instrução foi praticado» (n.º 20., com sublinhado da ora requerente);
– Todos os «factos recenseados na acusação» e todas as «provas que supostamente os suportam, são os que estavam os autos aquando da redação do relatório do Exmo. Conselheiro Instrutor» (n.º 21.) e haviam sido «considerados no aludido relatório, como fundamento para aplicação da pena de repreensão não registada sob condição» (n.º 22.), além de que foram «todos – factos e elementos de prova – objeto de pronúncia do Venerando Conselho Superior de Magistratura, entendendo maioritariamente o Ilustre Colégio haver merecimento para a aplicação à Impetrante da sanção de repreensão não registada» (n.º 23.);
– Apesar de nem «todos os Senhores Conselheiros» que «pelo presente incidente se pretende sejam recusados» terem perfilhado esse entendimento (n.º 24.), «quer os Senhores Conselheiros que votaram favoravelmente» – nos quais se inclui o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra, que aqui está em causa –, «quer o Senhor Conselheiro que votou contra, formaram, de forma livre e esclarecida, a sua vontade individual, contribuindo o voto de cada um para a formação da vontade imputada ao colégio» (n.º 25.);
– Se o incidente de recusa improceder, prossegue a Senhora Juíza … AA, os Senhores Conselheiros do CSM que pretende ver recusados – um dos quais é o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra, que aqui está em causa – «serão uma vez mais chamados à apreciação daquilo que já apreciaram» (n.º 26.), «tendo todos e cada um dos Senhores Conselheiros que expressaram o respetivo sentido de voto a sua convicção já formada e declarada», porque «já intervieram em fase constitutiva do mesmo» (n.º 27.);
– Aplicando-se, como propugna a Senhora Juíza … impetrante (n.º 28.), o disposto no art. 43.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a intervenção dos Senhores Conselheiros que pretende ver recusados – apenas relevando aqui o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra – ter-se-ia verificado em «em fases anteriores do mesmo processo», no «julgamento dos factos e razões de direito, dos mesmos factos e razões de direito que ora se acham vertidos em forma de acusação» (n.º 29.), pelo que, a não proceder o incidente de recusa, seriam de novo chamados a pronunciar-se sobre aquilo sobre que já se pronunciaram» (n.º 30.);
– Em suma, sustenta a Senhora Juíza … ora recusante, «trata-se, enfim, de uma situação que, independentemente da seriedade pessoal e profissional de todos e cada um dos Senhores Conselheiros aqui visados» – apenas estando aqui em causa o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra –, «afronta objetivamente a aparência da boa e reta justiça e, por consequência, a imagem que o Povo, em nome de quem ela é feita, dela faz, pois que ninguém acredita que quem já se pronunciou mantenha numa segunda pronuncia a mesma liberdade decisória inicial» (n.º 36.); e, fazendo apelo, uma vez mais, à jurisprudência (antiga) do Tribunal Constitucional (que cita jurisprudência, ainda mais antiga, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) sobre a imparcialidade dos juízes, subjetiva e objetiva (n.º 37.), conclui que «nem a causa da Justiça, nem o prestígio desse Venerando Conselho ficariam servidos nessa situação, pelo que o facto de os Senhores Conselheiros referidos, tendo já julgado os mesmos factos e aplicado uma sanção sob condição, não podem, agora, proceder ao julgamento final da Impetrante» (n.º 38.).

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO

1. A Senhora Juíza … AA lança mão do incidente de recusa, previsto no art. 43.º do Código de Processo Penal (CPP). Mas não existe qualquer fundamento legal para a sua aplicação ao caso dos autos.
Essa aplicação apenas poderia verificar-se se o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), na versão resultante da Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto (que republicou no seu Anexo III a nova redação do EMJ), o determinasse, o que não acontece. Com efeito, a norma do estatuto que invoca, a do art. 114.º, apenas manda aplicar «ao procedimento disciplinar, com as necessárias adaptações, o regime de impedimentos, suspeições, recusas e escusas estabelecido para o processo penal» quanto ao instrutor, como resulta da epígrafe do artigo e da sua inserção sistemática entre os preceitos que disciplinam a instrução do procedimento disciplinar comum – é o primeiro artigo referente à instrução e consagra o regime aplicável aos impedimentos, recusas e escusas de quem a realiza (o instrutor, nomeado pela Secção de Assuntos Inspetivos e Disciplinares do Conselho Permanente ou pelo Plenário do CSM, consoante se trate de procedimento disciplinar instaurado a um magistrado judicial que seja Juiz de Direito ou a um Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça/Juiz Desembargador de Tribunal da Relação, nos termos do disposto nos arts. 152.º-B, n.º 1, al. b), e 151.º, al. a), conjugado com o art. 149.º, n.º 1, al. a), do EMJ – «in casu» um Inspetor Judicial nomeado nos termos do estatuído pelo art. 162.º, n.º 5, do EMJ), como resulta do disposto nos arts. 161.º, al. c), e 162.º, n.º 5, do EMJ e decorre, ainda, dos arts. 111.º, n.os 2 a 4, 113.º, n.º 1, 115.º, n.os 2 e 3, 116.º, n.os 1 e 2, 117.º, n.os 1, 3 e 4, 119.º, n.º 2, 120.º e 120.º-A, n.os 2 e 4 (negrito do Relator).
Essa remissão não vale, pois, em relação aos membros do Conselho Superior da Magistratura (e, por conseguinte, ao Senhor Conselheiro Presidente, único que aqui está em causa), órgão ao qual compete «exercer a ação disciplinar» e, portanto, proferir a decisão no procedimento disciplinar (art. 149.º, n.º 1, al. a), do EMJ). Quanto a eles (incluindo o Senhor Conselheiro Presidente, que aqui está em causa) há uma norma expressa do EMJ que determina a sua sujeição ao regime das garantias de imparcialidade previstas no Código do Procedimento Administrativo (CPA), a norma do n.º 10 do art. 147.º: – «Aos membros do Conselho Superior da Magistratura aplica-se o regime relativo às garantias de imparcialidade previsto no Código do Procedimento Administrativo» (negrito do Relator).
O regime aplicável aos membros do Conselho Superior da Magistratura, neles incluído o seu Presidente, cuja conduta aqui se aprecia, é, pois, o contido na Parte III («Do procedimento administrativo»), Título I («Regime comum»), Capítulo II («Da relação jurídica procedimental»), Secção III («Das garantias de imparcialidade») do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, entretanto alterado pela Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro (arts. 69.º a 76.º). E bem se compreende que seja essa a solução legal, uma vez que o Conselho Superior da Magistratura é um «órgão constitucional autónomo» (arts. 217.º, n.º 1, e 218.º da Constituição da República Portuguesa – C.Rep.) que «tem como função a gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais”, um órgão de natureza administrativa (integrando a administração «não governamental» ou não dependente do Governo, enquanto «órgão superior da administração pública» – art. 182.º, 2.ª parte, da C.Rep.) e não um tribunal, um órgão que exerce a função administrativa e não a função jurisdicional (negrito do Relator) .

2. Embora não seja este o regime invocado pela Senhora Juíza … AA – o que, prima facie, deveria conduzir ao seu indeferimento –, a circunstância de o requerimento de «recusa» ter sido dirigido ao Conselho Superior da Magistratura no âmbito de um processo disciplinar (resultante da conversão de um prévio procedimento de averiguação)  impõe que se pondere a admissibilidade legal da apreciação do mesmo à luz das normas do CPA que disciplinam a escusa e a suspeição – as contidas nos arts. 73.º, 74.º, 75.º e 76.º, n.º 4 (esta última só para a hipótese de «falta ou decisão negativa sobre a dedução da suspeição»), aplicáveis «ex vi» do art. 147.º, n.º 10, do EMJ, considerando em especial os fundamentos do pedido de escusa e da dedução de suspeição previstos no art. 73.º, n.os 1 e 2 (limitando-se este a mandar aplicar o n.º 1 ao fundamento da dedução de suspeição) –, por ser o respetivo regime aquele que corresponde, no procedimento administrativo (seja ele comum ou especial) , ao das «recusas e escusas» no processo penal (cujo fundamento se encontra no art. 43.º do CPP, invocado pela Senhora Juíza … ora requerente). Ainda que com uma terminologia diferente, o que se prevê no art. 43.º, n.º 1, do CPP é uma suspeição («A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade»).

Apesar de subsistirem dúvidas a esse respeito, a resposta afirmativa parece resultar de o art. 83.º-E do EMJ determinar a aplicação subsidiária do CPA  (com primazia sobre o Código Penal, o Código de Processo Penal e os princípios gerais do direito sancionatório), «com as devidas adaptações», «[e]m tudo o que se não mostre expressamente previsto neste Estatuto em matéria disciplinar»; e de esta referência ao que não se ache previsto em «matéria disciplinar» dever ser interpretada no sentido de regulação normativa do procedimento disciplinar. Ora, não havendo norma do EMJ que preveja a possibilidade de convolação ou conversão de um requerimento de recusa formulado ao abrigo do disposto no art. 43.º do CPP em requerimento de dedução de suspeição nos termos do art. 73.º, n.º 2, do CPA (com o fundamento previsto no n.º 1), e sendo o procedimento disciplinar um procedimento administrativo especial, de carácter sancionatório, parece-nos que se aplicam subsidiariamente as normas dos arts. 102.º, n.º 1, al. c), e 108.º, n.º 2, do CPA.
A primeira, embora exija que do «requerimento inicial dos interessados» conste «[a]exposição dos factos em que se baseia o pedido», em relação aos «respetivos fundamentos de direito» faz depender idêntica exigência de tal ser «possível ao requerente». E a segunda estatui que «devem os órgãos e agentes administrativos procurar suprir oficiosamente as deficiências dos requerimentos, de modo a evitar que os interessados sofram prejuízos por virtude de simples irregularidades ou de mera imperfeição na formulação dos seus pedidos».

Assim sendo, apreciemos o requerimento da Senhora Juíza … AA como requerimento de dedução da suspeição do membro do CSM que aqui está em causa, o Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra.
Por força do n.º 2 do art. 73.º do CPA, o fundamento da suspeição é o que o n.º 1 estabelece para o pedido de escusa. O teor deste artigo é o seguinte:
«1 - Os titulares de órgãos da Administração Pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos devem pedir dispensa de intervir no procedimento ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão e, designadamente:
a) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, nele tenha interesse parente ou afim em linha reta ou até ao terceiro grau da linha colateral, ou tutelado ou curatelado dele, do seu cônjuge ou de pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges;
b) Quando o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, ou algum parente ou afim na linha reta, for credor ou devedor de pessoa singular ou coletiva com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
c) Quando tenha havido lugar ao recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento, pelo titular do órgão ou agente, seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim na linha reta;
d) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente, ou o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
e) Quando penda em juízo ação em que sejam parte o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum, de um lado, e, do outro, o interessado, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum.
2 - Com fundamento semelhante, pode qualquer interessado na relação jurídica procedimental deduzir suspeição quanto a titulares de órgãos da Administração Pública, respetivos agentes ou outras entidades no exercício de poderes públicos que intervenham no procedimento, ato ou contrato».

     O n.º 1 começa por enunciar o fundamento de escusa e (por força do n.º 2) de suspeição mediante uma cláusula geral: a ocorrência de uma «circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade» da «conduta ou decisão» dos «titulares de órgãos da Administração Pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos». E nas suas cinco alíneas consagra, a título exemplificativo («designadamente») situações objetivas em que se concretiza a cláusula geral do corpo do referido número, as quais justificam a «concessão da escusa ou do bem fundado da suspeição». Assim, pelo facto de uma situação não se reconduzir a qualquer das alíneas do n.º 1 não fica excluída a suspeição do órgão ou agente, podendo esta verificar-se desde que ocorra qualquer outra situação objetiva pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da isenção ou da retidão da sua conduta.

     A solução do nosso direito inspira-se na do direito alemão (que muito influenciou o CPA de 1991, como era referido no n.º 2 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 442/91, que o aprovou, influência que se manteve no CPA em vigor), mais concretamente no § 21, n.º 1, da Lei alemã do Procedimento Administrativo (Verwaltungsverfahrensgesetz – VwVfG) , que, sob a epígrafe «Suspeita de parcialidade» («Besorgnis der Befangenheit»), consagra igualmente uma cláusula geral, determinando o dever de abstenção de intervir no procedimento, por parte de quem nele estiver incumbido de atuar por conta da autoridade pública, «quando exista um motivo que seja adequado a justificar desconfiança em relação ao exercício imparcial da função administrativa, ou quando a subsistência de um tal motivo for alegada por um interessado» .
     Segundo a doutrina alemã, no âmbito de aplicação do § 21 da VwVfG «não se trata de saber se o funcionário em causa, no exercício da sua atividade, é realmente parcial ou se se deixa conduzir por outras considerações, estranhas a esse exercício»; «a norma pretende, antes, evitar um desempenho de funções que, pela aparência, não seja neutral» . O motivo adequado a fundamentar a desconfiança relativamente à imparcialidade não está presente apenas quando haja receio de que o agente não tenha condições subjetivas para «exercer imparcialmente a sua função», mas também se verifica se, «de acordo com considerações objetivas e razoáveis de pelo menos um interessado, parece ser justificada uma desconfiança em relação ao exercício imparcial da função».
    
     E assim é, também, entre nós, de acordo com o estatuído pelo art. 73.º do CPA, uma vez que (com a aplicação à suspeição da cláusula geral do n.º 1, «ex vi» do n.º 2), para «qualquer interessado» poder «deduzir suspeição quanto a titulares de órgãos da Administração Pública, respetivos agentes ou outras entidades no exercício de poderes públicos que intervenham no procedimento, ato ou contrato», se exige que a circunstância determinante do pedido seja de tal ordem que se torne razoável duvidar «seriamente» da imparcialidade. Como se salienta no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 4/2015, «o juízo não respeita tanto às condições subjetivas do agente, mas mais aos requisitos objetivos de confiança por parte da opinião pública».
     A exigência de que a circunstância na qual se funda a dedução da suspeição seja de molde a que se duvide «com razoabilidade» da imparcialidade do órgão ou agente parece implicar ainda não ser bastante que a dúvida exista no espírito (porventura, particularmente sensível) do interessado que deduz a suspeição, devendo, antes, ser apreciada objetivamente; por isso, a dúvida em causa tem de ser a que «uma pessoa normal» possa ter «sobre a imparcialidade da atuação de um agente da Administração», na prossecução do interesse público  – ainda que essa pessoa normal (o «homem médio») não seja o «puro cidadão comum», mas o modelo de pessoa que resulta das circunstâncias sociais, culturais e profissionais do requerente da suspeição . E, além disso, não é suficiente uma dúvida simples, tem de se estar perante uma «dúvida séria» a respeito da isenção do órgão ou agente.
    
     Aplicando, com as devidas adaptações, o art. 73.º, n.º 1, do CPA (quanto à suspeição, por remissão do n.º 2) ao membro do Conselho Superior da Magistratura cuja imparcialidade aqui se aprecia, «ex vi» do art. 83.º-E do EMJ, conclui-se que o interessado pode deduzir suspeição dele, nessa condição, «quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão», o que ocorre, a título exemplificativo nas situações previstas nas cinco alíneas desse número e em quaisquer outras que se reconduzam à mencionada cláusula geral, entendida nos termos expostos.
     Não tendo sido alegada pela Senhora Juíza .. AA, nem se verificando, qualquer das circunstâncias previstas as referidas alíneas, a apreciação fica circunscrita ao eventual preenchimento da cláusula geral. Os factos alegados pela requerente, relevantes para este efeito, são os seguintes:
 –  O Conselho Superior da Magistratura não podia «pronunciar-se sobre a proposta vertida pelo Exmo. Conselheiro Instrutor antes de a mesma ter sido submetida por este à audiência e defesa da Impetrante e antes de esta dar o seu eventual consentimento para a aplicação da sanção de repreensão não registada» (n.º 12.);
– Contudo, assim não foi, uma vez que, «como resulta da ata da reunião do Conselho Superior de Magistratura de 8 de setembro de 2020, pronunciaram-se sobre a proposta então formulada pelo Exmo. Conselheiro Instrutor», os «Senhores Conselheiros» que menciona (n.º 13.) – apenas interessando aqui o Senhor Conselheiro Presidente –, dos quais «votaram favoravelmente a proposta» os «Senhores Conselheiros» indicados no n.º 14. – assumindo relevância, neste âmbito, unicamente, o Senhor Conselheiro António Joaquim Piçarra –, enquanto o «Senhor Conselheiro» referido no n.º 15. «votou contra a proposta» e o «Senhor Conselheiro» mencionado no n.º 16. «absteve-se»;
– Uma vez rejeitada «a aplicação da sanção» pela Senhora Juíza … ora impetrante, o Conselho Superior de Magistratura, na sua deliberação de 6 de outubro de 2020, entendeu que, (…), deviam os autos prosseguir, com a dedução de acusação» (n.º 17.) , na qual vieram a ser descritos os «factos que constavam do relatório do Exmo. Conselheiro Instrutor» (n.º 18.), não sendo nela incluído «mais nenhum facto que ali não estivesse contido» (n.º 19.), e que «mais nenhum ato de instrução foi praticado» (n.º 20., com sublinhado da ora requerente);
– Todos os «factos recenseados na acusação» e todas as «provas que supostamente os suportam, são os que estavam os autos aquando da redação do relatório do Exmo. Conselheiro Instrutor» (n.º 21.) e haviam sido «considerados no aludido relatório, como fundamento para aplicação da pena de repreensão não registada sob condição» (n.º 22.), além de que foram «todos – factos e elementos de prova – objeto de pronúncia do Venerando Conselho Superior de Magistratura, entendendo maioritariamente o Ilustre Colégio haver merecimento para a aplicação à Impetrante da sanção de repreensão não registada» (n.º 23.);
– Apesar de nem «todos os Senhores Conselheiros» que «pelo presente incidente se pretende sejam recusados» terem perfilhado esse entendimento (n.º 24.), «quer os Senhores Conselheiros que votaram favoravelmente» – apenas relevando aqui o Senhor Conselheiro Presidente –, «quer o Senhor Conselheiro que votou contra, formaram, de forma livre e esclarecida, a sua vontade individual, contribuindo o voto de cada um para a formação da vontade imputada ao colégio» (n.º 25.);
– Se o incidente de recusa improceder, prossegue a Senhora Juíza … AA, os Senhores Conselheiros do CSM que pretende ver recusados – «in casu» o Senhor Conselheiro Presidente – «serão uma vez mais chamados à apreciação daquilo que já apreciaram» (n.º 26.), «tendo todos e cada um dos Senhores Conselheiros que expressaram o respetivo sentido de voto a sua convicção já formada e declarada» – e, por conseguinte, também o Senhor Conselheiro Presidente, que aqui está em causa –, porque «já intervieram em fase constitutiva do mesmo» (n.º 27.);
– A intervenção dos Senhores Conselheiros que pretende ver recusados – apenas interessando aqui o Senhor Conselheiro Presidente – ter-se-ia verificado em «em fases anteriores do mesmo processo», no «julgamento dos factos e razões de direito, dos mesmos factos e razões de direito que ora se acham vertidos em forma de acusação» (n.º 29.), pelo que, a não proceder o incidente de recusa, seriam de novo chamados a pronunciar-se sobre aquilo sobre que já se pronunciaram» (n.º 30.);
– «Trata-se, enfim, de uma situação que, independentemente da seriedade pessoal e profissional de todos e cada um dos Senhores Conselheiros aqui visados» – em concreto, o Senhor Conselheiro António Joaquim Piçarra –, «afronta objetivamente a aparência da boa e reta justiça e, por consequência, a imagem que o Povo, em nome de quem ela é feita, dela faz, pois que ninguém acredita que quem já se pronunciou mantenha numa segunda pronuncia a mesma liberdade decisória inicial» (n.º 36.); e, fazendo apelo, uma vez mais, à jurisprudência (antiga) do Tribunal Constitucional (que cita jurisprudência, ainda mais antiga, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) sobre a imparcialidade dos juízes, subjetiva e objetiva (n.º 37.), conclui que «nem a causa da Justiça, nem o prestígio desse Venerando Conselho ficariam servidos nessa situação, pelo que o facto de os Senhores Conselheiros referidos» – apenas interessando aqui o Senhor Conselheiro Presidente –, «tendo já julgado os mesmos factos e aplicado uma sanção sob condição, não podem, agora, proceder ao julgamento final da Impetrante» (n.º 38.).

O que está em causa é, pois, saber se, «com razoabilidade», pode considerar-se existente «dúvida séria sobre a imparcialidade» do Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra, cuja suspeição se admite vir deduzida pela Senhora … ora impetrante (ainda que através da invocação formal da «recusa») para participar na decisão do procedimento disciplinar em que ela é visada, por ele ter votado a proposta apresentada na reunião do Plenário realizada no dia … de 2020 – no sentido de ser «aplicada a sanção de ‘advertência não registada’ independentemente de processo, devendo notificar-se a mesma para se pronunciar sobre a sua aceitação, nos termos do n.º 4 do art. 109.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais»  – e por a acusação lavrada nos autos pelo Senhor Instrutor – na sequência da deliberação de conversão do procedimento de averiguação em procedimento disciplinar, ficando aquele a constituir a parte instrutória deste, tomada na reunião do Plenário de … de 2020  – não ter incluído «mais nenhum facto» (além dos que constavam do Relatório elaborado no termo do procedimento de averiguação) e de não ter sido praticado «mais nenhum ato de instrução».
A Senhora Juíza … ora requerente entende que «os Senhores Conselheiros que votaram favoravelmente» – neles incluído o Senhor Conselheiro Presidente, que aqui está em causa –, e também o Senhor Conselheiro que votou contra – cuja imparcialidade não se aprecia aqui –, formaram, de forma livre e esclarecida, a sua vontade individual, contribuindo o voto de cada um para a formação da vontade imputada ao colégio» (n.º 25.), embora nos pareça não ser assim, na medida em que, «em rigor» (sobretudo no caso de «votação nominal»), o que dá «origem a uma posição coletiva ou colegial, considerada a posição do órgão», que «é formalizada numa deliberação», não é a posição individual de todos os membros do órgão, mas (tratando-se de uma «colegialidade imperfeita») a «da maioria dos membros» que o integram .
Relativamente ao Senhor Conselheiro Presidente, António Joaquim Piçarra, cuja «recusa» foi requerida ou, como se está a admitir agora, cuja suspeição foi deduzida pela Senhora Juíza … AA, o requerimento improcede.
Na verdade, o que o Plenário do CSM fez – com o voto favorável do Senhor Conselheiro António Joaquim Piçarra, que aqui está em causa –, ao concordar com a aplicação da sanção de «advertência não sujeita a registo, independentemente de processo», proposta pelo Senhor Instrutor, não foi mais do que aplicar o disposto no art. 123.º-B do EMJ , que remete para o n.º 4 do art. 109.º do mesmo estatuto, verificado que estava o pressuposto de que depende esse poder que a lei lhe confere: ter sido a visada ouvida e ter tido a possibilidade de defesa. Com efeito, a Senhora Juíza … AA foi ouvida «em declarações presenciais», pelo Senhor Inspetor Judicial Extraordinário, estando «devidamente acompanhada do seu ilustre advogado» (cfr. fls. 1-2 do Relatório final elaborado no Proc. n.º …./AV/003); e voltou a defender-se quando foi notificada para declarar se aceitava.
E se os factos vertidos na acusação são os que já constavam do relatório do processo de averiguação e nenhum outro ato instrutório foi praticado depois da conversão do procedimento de averiguação em procedimento disciplinar, por deliberação tomada na reunião do Plenário do CSM de … de 2020, não se vislumbra de que modo pode considerar-se comprometida a imparcialidade do Senhor Conselheiro Presidente para participar na decisão do procedimento disciplinar,  atendendo a que isso resultou do exercício da faculdade prevista no art. 126.º, n.º 1, do EMJ , com vista à prossecução do interesse público, pelo qual o CSM e cada um dos seus membros pautam a sua atuação: – «Se apurar a existência de infração, o Conselho Superior da Magistratura pode deliberar que o processo de inquérito ou de sindicância, em que o magistrado judicial tenha sido ouvido, constitua a parte instrutória do processo disciplinar». Esse é o procedimento invariavelmente seguido pelo CSM sempre que num processo de averiguação se apuram indícios de que poderá ter sido cometida uma infração disciplinar; não se tratou, em especial, de um procedimento tendente a coartar as garantias de defesa da ora impetrante, como, aliás, resulta do teor da deliberação, ao aludir-se à instauração do procedimento disciplinar à Senhora Juíza … «tendo em conta a posição assumida por esta e as garantias de defesa da mesma».
Acresce que não foi o CSM que procedeu à averiguação no Proc. n.º …AV/003, nem foi este órgão que deduziu a acusação. Quem o fez foi o Senhor Inspetor Judicial Extraordinário nomeado, nos termos legais, para esse efeito.
III. DELIBERAÇÃO

Em face do exposto, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura, presidido pelo Senhor Vice-Presidente, estando ausente o Senhor Presidente, delibera, nos termos do disposto no art. 70.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por remissão do art. 75.º, n.º 1, «ex vi» do art. 147.º, n.º 10, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, considerar improcedente o incidente de recusa do Senhor Conselheiro Presidente do Conselho Superior da Magistratura, Senhor Conselheiro António Joaquim Piçarra, por não lhe ser legalmente aplicável o regime da recusa contido no art. 43.º do Código de Processo Penal e porque, mesmo admitindo que a requerente haja pretendido deduzir suspeição relativamente ao Senhor Presidente do CSM, nos termos do art. 73.º do CPA, as razões invocadas em relação a ele não constituem motivo para que se «possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão».
14) A deliberação referida em 13) foi votada favoravelmente pelos seguintes membros da entidade demandada:
a. Conselheiro Dr. José Sousa Lameira (que presidiu ao CSM);
b. Professor Doutor António Alberto Vieira Cunha (autor do projeto de deliberação);
c. Desembargador, Dr. Leonel Serôdio;
d. Dra. Susana Ferrão;
e. Dr. José Manuel Correia;
f. Professora Doutora Inês Ferreira Leite;
g. Dr. António José Barradas Leitão;
h. Desembargador, Dr. Jorge Raposo;
i. Professor Doutor Fernando Licínio Lopes Martins;
j. Dra. Telma Solange Silva Carvalho;
k. Dra. Sofia Silva;
l. Professor Doutor Cardoso da Costa;
m. Conselheira Dra. Graça Amaral;
n. Dr. André Filipe Oliveira de Miranda;
o. Dr. Vítor Manuel Pereira de Faria.
15) Através de ofício datado de ….2021 a autora foi notificada da deliberação referida em 13).
16) A ….2021 o Sr. Presidente do CSM proferiu despacho com o seguinte teor:

Proc. n.º …../AV/…03
Incidente de recusa/suspeição
Requerente: Juíza AA
                                                   
I. RELATÓRIO
A Senhora Juíza AA veio, «ao abrigo do disposto no artigo 114.º do EMJ e 43.º do CPP, deduzir incidente de recusa dos seguintes Senhores Vogais do Conselho Superior da Magistratura:
1. Juiz Conselheiro José António Sousa Lameira, Vice-Presidente do Órgão;
2. Prof. Dr. José Manuel Moreira Cardoso da Costa;
3. Juiz Desembargador Jorge Manuel Ortins de Simões Raposo;
4. Juíza de Direito Susana Isabel Santos Pinto Ferrão Costa Cabral;
5. Juiz de Direito José Manuel Correia;
6. Juíza de Direito Lara Cristina Mendes Martins;
7. Juíza de Direito Sofia Alexandra Parreirinha Martins da Silva;
8. Prof. Dr. Fernando Licínio Lopes Martins;
9. Prof. Dra. Inês Vieira da Silva Ferreira;
10. Dr. António José Barradas Leitão;
11. Dra. Telma Solange Silva Carvalho;
12. Juiz Desembargador Leonel Gentil Marado Serôdio;».

A Requerente salienta, em termos introdutórios, que «são razões de legalidade objetiva (…) que motivam o presente incidente de recusa» (n.º 3.), faz diversas e doutas considerações sobre o acolhimento do «princípio do processo equitativo» no «artigo 20.º da CRP» e «no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (n.º 4.), cuja interpretação conduziu ao reconhecimento da aplicação desse princípio ao procedimento disciplinar por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (n.º 5.), acrescentando que nada justifica uma «interpretação restritiva» do mencionado princípio (citando um douto acórdão proferido por Tribunal da Relação de Lisboa a respeito deste – n.º 6.), e afirma que o incidente de recusa por si deduzido se situa na «senda da ‘justeza’ e da preservação da aparência da justiça» (n.º 7.).
De seguida (n.º 8), a Recusante, socorrendo-se do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 143/2004 (de que foi Relatora a Senhora Conselheira Maria Fernanda Palma),  alude à finalidade do «instituto da recusa do juiz», tal como «resulta do artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal», qual seja a de «impedir a intervenção de um juiz no processo quando tal intervenção suscitar ‘o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade’». E, prosseguindo na citação, acrescenta: – «O valor constitucional que o instituto jurídico de recusa serve é, inequivocamente, o da garantia de imparcialidade do juiz. Tal garantia ancora-se, desde logo, na garantia de acesso ao direito, consagrada, genericamente, no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e, mais concretamente no direito a um processo equitativo, configurado como garantia de defesa no sentido do artigo 32.º, n.º 1. Radica também implicitamente, na própria definição constitucional da função jurisdicional: ‘a administração da Justiça em nome do povo’ (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição)» (sublinhado da Recusante).
Passando a referir diretamente as normas legais que disciplinam a recusa do juiz, a Recusante sustenta que «as normas do artigo 43.º do CPP constituem, em si mesmas, uma refração do princípio do processo equitativo, e não podem, por isso, ser objeto de interpretação restritiva» (n.º 9.); e que, «por outro lado» tal «princípio tem um alcance mais lato, abrangendo, na sua aplicação, todas as situações que, tangendo a objectividade do decisor, não sejam alcançáveis pela interpretação daquelas normas per se» (n.º 10.).
Na parte do requerimento que se segue, a Recusante centra-se no estatuído no n.º 2 do art. 43.º do Código de Processo Penal, segundo o qual «pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º» (n.º 28., com sublinhado da Recusante), para fundamentar a recusa dos 12 (doze) membros do Conselho Superior da Magistratura identificados no introito (sem incluir aqui o agora decisor), sustentando, em síntese, que:
– De acordo com a «correta leitura do preceituado nos artigos 32.º, n.º 10 da CRP; 109.º, n.º 4, 117.º, n.º 4 e 123.º-B, todos do EMJ», o Conselho Superior da Magistratura não podia «pronunciar-se sobre a proposta vertida pelo Exmo. Conselheiro Instrutor antes de a mesma ter sido submetida por este à audiência e defesa da Impetrante e antes de esta dar o seu eventual consentimento para a aplicação da sanção de repreensão não registada» (n.º 12.);
– Contudo, assim não foi, pois rejeitada «a aplicação da sanção» pela Recusante, o Conselho Superior de Magistratura, na sua deliberação de … de 2020, entendeu que, (…), deviam os autos prosseguir, com a dedução de acusação» (n.º 17.) , na qual vieram a ser descritos os «factos que constavam do relatório do Exmo. Conselheiro Instrutor» (n.º 18.), não sendo nela incluído «mais nenhum facto que ali não estivesse contido» (n.º 19.), e que «mais nenhum acto de instrução foi praticado» (n.º 20., com sublinhado da Recusante);
– Todos os «factos recenseados na acusação» e todas as «provas que supostamente os suportam, são os que estavam os autos aquando da redacção do relatório do Exmo. Conselheiro Instrutor» (n.º 21.) e haviam sido «considerados no aludido relatório, como fundamento para aplicação da pena de repreensão não registada sob condição» (n.º 22.), além de que foram «todos – factos e elementos de prova – objecto de pronúncia do Conselho Superior de Magistratura, entendendo maioritariamente o Ilustre Colégio haver merecimento para a aplicação à Impetrante da sanção de repreensão não registada» (n.º 23.);
– Se o incidente de recusa improceder, os Senhores Vogais do CSM que pretende ver recusados «serão uma vez mais chamados à apreciação daquilo que já apreciaram» (n.º 26.), sendo que todos expressaram o respectivo sentido de voto, tendo a sua convicção já formada e declarada», porque «já intervieram em fase constitutiva do mesmo» (n.º 27.);
– Em suma, sustenta que «trata-se, enfim, de uma situação que, independentemente da seriedade pessoal e profissional de todos e cada um dos aqui visados, afronta objetivamente a aparência da boa e reta justiça e, por consequência, a imagem que o Povo, em nome de quem ela é feita, dela faz, pois que ninguém acredita que quem já se pronunciou mantenha numa segunda pronuncia a mesma liberdade decisória inicial» (n.º 36.); e, fazendo apelo, uma vez mais, à jurisprudência (antiga) do Tribunal Constitucional (que cita jurisprudência, ainda mais antiga, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) sobre a imparcialidade dos juízes, subjectiva e objectiva (n.º 37.), conclui que «nem a causa da Justiça, nem o prestígio do CSM ficariam servidos nessa situação».

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO
1. A Senhora Juíza … Requerente lança mão do incidente de recusa, previsto no art. 43.º do Código de Processo Penal (CPP). Mas não existe qualquer fundamento legal para a sua aplicação ao caso. Essa aplicação apenas poderia verificar-se se o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), na versão resultante da Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto (que republicou no seu Anexo III a nova redacção do EMJ), o determinasse, o que não acontece.
Com efeito, a norma do estatuto que invoca, a do art. 114.º, apenas manda aplicar «ao procedimento disciplinar, com as necessárias adaptações, o regime de impedimentos, suspeições, recusas e escusas estabelecido para o processo penal» quanto ao instrutor, como resulta da epígrafe do artigo e da sua inserção sistemática entre os preceitos que disciplinam a instrução do procedimento disciplinar comum – é o primeiro artigo referente à instrução e consagra o regime aplicável aos impedimentos, recusas e escusas de quem a realiza (o instrutor, nomeado pelo CSM).
No entanto, essa remissão não vale, ao invés do que sustenta a Recusante, em relação aos membros do Conselho Superior da Magistratura, órgão ao qual compete «exercer a ação disciplinar» e, portanto, proferir a decisão no procedimento disciplinar (art. 149.º, n.º 1, al. a), do EMJ). Quanto a eles há uma norma expressa do EMJ que determina a sua sujeição ao regime das garantias de imparcialidade previstas no Código do Procedimento Administrativo (CPA), precisamente o n.º 10 do art. 147.º: – «Aos membros do Conselho Superior da Magistratura aplica-se o regime relativo às garantias de imparcialidade previsto no Código do Procedimento Administrativo».
Deste modo, o regime aplicável aos membros do Conselho Superior da Magistratura – a todos eles – é o contido na Parte III («Do procedimento administrativo»), Título I («Regime comum»), Capítulo II («Da relação jurídica procedimental»), Secção III («Das garantias de imparcialidade») do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, entretanto alterado pela Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro (arts. 69.º a 76.º). E bem se compreende que seja essa a solução legal, uma vez que o Conselho Superior da Magistratura é um «órgão constitucional autónomo» (arts. 217.º, n.º 1, e 218.º da Constituição da República Portuguesa) que «tem como função a gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais» , um órgão de natureza administrativa  (integrando a administração «não governamental» ou não dependente do Governo, enquanto «órgão superior da administração pública» – art. 182.º, 2.ª parte, da CRP) e não um tribunal, um órgão que exerce a função administrativa e não a função jurisdicional.
 
2. Embora não seja este o regime invocado pela Recusante – o que, prima facie, deveria conduzir ao seu indeferimento –, a circunstância de o requerimento de «recusa» ter sido dirigido ao Conselho Superior da Magistratura no âmbito de um processo disciplinar (resultante da conversão de um prévio procedimento de averiguação) impõe que se pondere a admissibilidade legal da apreciação do mesmo à luz das normas do CPA que disciplinam a escusa e a suspeição – as contidas nos arts. 73.º, 74.º, 75.º e 76.º, n.º 4 (esta última só para a hipótese de «falta ou decisão negativa sobre a dedução da suspeição»), aplicáveis «ex vi» do art. 147.º, n.º 10, do EMJ, considerando em especial os fundamentos do pedido de escusa e da dedução de suspeição previstos no art. 73.º, n.os 1 e 2 (limitando-se este a mandar aplicar o n.º 1 ao fundamento da dedução de suspeição) –, por ser o respetivo regime aquele que corresponde, no procedimento administrativo (seja ele comum ou especial) , ao das «recusas e escusas» no processo penal (cujo fundamento se encontra no art. 43.º do CPP, invocado pela Recusante.
Convém acentuar que não havendo norma do EMJ que preveja a possibilidade de convolação ou conversão de um requerimento de recusa formulado ao abrigo do disposto no art. 43.º do CPP em requerimento de dedução de suspeição nos termos do art. 73.º, n.º 2, do CPA (com o fundamento previsto no n.º 1), e sendo o procedimento disciplinar um procedimento administrativo especial, de carácter sancionatório, considero que se aplicam subsidiariamente as normas dos arts. 102.º, n.º 1, al. c), e 108.º, n.º 2, do CPA.
A primeira, embora exija que do «requerimento inicial dos interessados» conste «[a]exposição dos factos em que se baseia o pedido», em relação aos «respetivos fundamentos de direito» faz depender idêntica exigência de tal ser «possível ao requerente». E a segunda estatui que «devem os órgãos e agentes administrativos procurar suprir oficiosamente as deficiências dos requerimentos, de modo a evitar que os interessados sofram prejuízos por virtude de simples irregularidades ou de mera imperfeição na formulação dos seus pedidos».

Assim sendo, há que apreciar o requerimento apresentado pela Senhora Juíza … AA como dedução da suspeição dos membros do CSM que identifica no seu início (com exclusão do Presidente, matéria da competência do Plenário).
Por força do n.º 2 do art. 73.º do CPA, o fundamento da suspeição é o que o n.º 1 estabelece para o pedido de escusa. O teor deste artigo é o seguinte:
«1 - Os titulares de órgãos da Administração Pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos devem pedir dispensa de intervir no procedimento ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão e, designadamente:
a) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, nele tenha interesse parente ou afim em linha reta ou até ao terceiro grau da linha colateral, ou tutelado ou curatelado dele, do seu cônjuge ou de pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges;
b) Quando o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, ou algum parente ou afim na linha reta, for credor ou devedor de pessoa singular ou coletiva com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
c) Quando tenha havido lugar ao recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento, pelo titular do órgão ou agente, seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim na linha reta;
d) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente, ou o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
e) Quando penda em juízo ação em que sejam parte o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum, de um lado, e, do outro, o interessado, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum.
2 - Com fundamento semelhante, pode qualquer interessado na relação jurídica procedimental deduzir suspeição quanto a titulares de órgãos da Administração Pública, respetivos agentes ou outras entidades no exercício de poderes públicos que intervenham no procedimento, ato ou contrato».
     O n.º 1 começa por enunciar o fundamento de escusa e (por força do n.º 2) de suspeição mediante uma cláusula geral: a ocorrência de uma «circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade» da «conduta ou decisão» dos «titulares de órgãos da Administração Pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos». E nas suas cinco alíneas consagra, a título exemplificativo («designadamente») situações objetivas em que se concretiza a cláusula geral do corpo do referido número, as quais justificam a «concessão da escusa ou do bem fundado da suspeição». Assim, pelo facto de uma situação não se reconduzir a qualquer das alíneas do n.º 1 não fica excluída a suspeição do órgão ou agente, podendo esta verificar-se desde que ocorra qualquer outra situação objetiva pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da isenção ou da retidão da sua conduta.

     A solução do nosso direito inspira-se na do direito alemão (que muito influenciou o CPA de 1991, como era referido no n.º 2 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 442/91, que o aprovou, influência que se manteve no CPA em vigor), mais concretamente no § 21, n.º 1, da Lei alemã do Procedimento Administrativo (Verwaltungsverfahrensgesetz – VwVfG) , que, sob a epígrafe «Suspeita de parcialidade» («Besorgnis der Befangenheit»), consagra igualmente uma cláusula geral, determinando o dever de abstenção de intervir no procedimento, por parte de quem nele estiver incumbido de actuar por conta da autoridade pública, «quando exista um motivo que seja adequado a justificar desconfiança em relação ao exercício imparcial da função administrativa, ou quando a subsistência de um tal motivo for alegada por um interessado» .
     Segundo a doutrina alemã, no âmbito de aplicação do § 21 da VwVfG «não se trata de saber se o funcionário em causa, no exercício da sua actividade, é realmente parcial ou se se deixa conduzir por outras considerações, estranhas a esse exercício»; «a norma pretende, antes, evitar um desempenho de funções que, pela aparência, não seja neutral». O motivo adequado a fundamentar a desconfiança relativamente à imparcialidade não está presente apenas quando haja receio de que o agente não tenha condições subjectivas para «exercer imparcialmente a sua função», mas também se verifica se, «de acordo com considerações objectivas e razoáveis de pelo menos um interessado, parece ser justificada uma desconfiança em relação ao exercício imparcial da função».
     E assim é, também, entre nós, de acordo com o estatuído pelo art. 73.º do CPA, uma vez que (com a aplicação à suspeição da cláusula geral do n.º 1, «ex vi» do n.º 2), para «qualquer interessado» poder «deduzir suspeição quanto a titulares de órgãos da Administração Pública, respetivos agentes ou outras entidades no exercício de poderes públicos que intervenham no procedimento, ato ou contrato», se exige que a circunstância determinante do pedido seja de tal ordem que se torne razoável duvidar «seriamente» da imparcialidade. Como se salienta no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 4/2015, «o  juízo não respeita tanto às condições subjetivas do agente, mas mais aos requisitos objetivos de confiança por parte da opinião pública».
     A exigência de que a circunstância na qual se funda a dedução da suspeição seja de molde a que se duvide «com razoabilidade» da imparcialidade do órgão ou agente parece implicar ainda não ser bastante que a dúvida exista no espírito (porventura, particularmente sensível) do interessado que deduz a suspeição, devendo, antes, ser apreciada objetivamente; por isso, a dúvida em causa tem de ser a que «uma pessoa normal» possa ter «sobre a imparcialidade da atuação de um agente da Administração», na prossecução do interesse público  – ainda que essa pessoa normal (o «homem médio») não seja o «puro cidadão comum», mas o modelo de pessoa que resulta das circunstâncias sociais, culturais e profissionais do requerente da suspeição. E, além disso, não é suficiente uma dúvida simples, tem de se estar perante uma «dúvida séria» a respeito da isenção do órgão ou agente.
    
     Aplicando, com as devidas adaptações, o art. 73.º, n.º 1, do CPA (quanto à suspeição, por remissão do n.º 2) aos acima identificados membros do Conselho Superior da Magistratura, «ex vi» do art. 83.º-E do EMJ, conclui-se que o interessado pode deduzir suspeição de qualquer deles, nessa condição, «quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão», o que ocorre, a título exemplificativo nas situações previstas nas cinco alíneas desse número e em quaisquer outras que se reconduzam à mencionada cláusula geral, entendida nos termos expostos.
     Não tendo sido alegada pela Senhora Juíza … Requerente, nem se verificando, qualquer das circunstâncias previstas nas referidas alíneas, a apreciação fica circunscrita ao eventual preenchimento da cláusula geral. Assim, o que está em causa é saber se, «com razoabilidade», pode considerar-se existente «dúvida séria sobre a imparcialidade» dos atrás identificados membros do CSM para decidirem o procedimento disciplinar em que ela é visada, por eles terem votado (nem todos a favor) a proposta apresentada na reunião do Plenário realizada no dia … de 2020 – no sentido de ser «aplicada a sanção de ‘advertência não registada’ independentemente de processo, devendo notificar-se a mesma para se pronunciar sobre a sua aceitação, nos termos do n.º 4 do art. 109.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais»  – e por a acusação lavrada nos autos pelo Senhor Instrutor – na sequência da deliberação de conversão do procedimento de averiguação em procedimento disciplinar, ficando aquele a constituir a parte instrutória deste, tomada na reunião do Plenário de … de 2020  – não ter incluído «mais nenhum facto» (além dos que constavam do Relatório elaborado no termo do procedimento de averiguação) e de não ter sido praticado «mais nenhum ato de instrução».
Apesar de a Requerente entender que tanto os Vogais que votaram favoravelmente como o que votou contra, formaram, de forma livre e esclarecida, a sua vontade individual, contribuindo o voto de cada um para a formação da vontade imputada ao colégio» (n.º 25.), impõe-se dizer que não é bem assim, na medida em que, «em rigor» (sobretudo no caso de «votação nominal»), o que dá «origem a uma posição coletiva ou colegial, considerada a posição do órgão», que «é formalizada numa deliberação», não é a posição individual de todos os membros do órgão, mas (tratando-se de uma «colegialidade imperfeita») a «da maioria dos membros» que o integram . Logo por este motivo, é de excluir a existência de qualquer dúvida sobre a imparcialidade do Senhor Juiz Desembargador Leonel Gentil Marado Serôdico (e tanto mais quanto o n.º 1 do art. 73.º exige que «se possa com razoabilidade duvidar seriamente» da imparcialidade), porquanto votou contra a proposta de aplicação à Requerente da «sanção de advertência não registada independentemente de processo» (como consta da ata da reunião de … de 2020).
E também improcede relativamente a todos os restantes membros do CSM antes identificados.
Na verdade, o que estes fizeram, ao concordar com a aplicação da sanção de «advertência não sujeita a registo, independentemente de processo», proposta pelo Senhor Instrutor, não foi mais do que aplicar o disposto no art. 123.º-B do EMJ, que remete para o n.º 4 do art. 109.º do mesmo estatuto. E a circunstância de os factos vertidos na acusação serem os que já constavam do relatório do processo de averiguação e nenhum outro ato instrutório foi praticado depois da conversão do procedimento de averiguação em procedimento disciplinar, por deliberação tomada na reunião do Plenário do CSM de … de 2020, não descortino de que modo ou em que medida é que pode considerar-se comprometida a imparcialidade de qualquer um desses membros do CSM para decidirem no processo disciplinar. Aliás, a sua anterior intervenção consistiu no exercício da faculdade prevista no art. 126.º, n.º 1, do EMJ, com vista à prossecução do interesse público, pelo qual o CSM e todos os seus membros pautam a sua atuação: – «Se apurar a existência de infração, o Conselho Superior da Magistratura pode deliberar que o processo de inquérito ou de sindicância, em que o magistrado judicial tenha sido ouvido, constitua a parte instrutória do processo disciplinar». Esse é o procedimento invariavelmente seguido pelo CSM sempre que num processo de averiguação se apuram indícios de que poderá ter sido cometida uma infração disciplinar; não se tratou, em especial, de um procedimento tendente a coartar as garantias de defesa da Requerente, como evidencia o teor da deliberação, ao aludir-se à instauração do procedimento disciplinar à Senhora Juíza …. «tendo em conta a posição assumida por esta e as garantias de defesa da mesma».
Acresce que quem procedeu à averiguação no Proc. n.º …/AV/…03 e deduziu a acusação foi o Senhor Instrutor e não qualquer dos identificados Membros do CSM.
Em suma, inexistem razões ou factos suscetíveis de poderem constituir motivo para que se «possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão», o que me leva a afastar a suspeição.
    
III. DECISÃO
Em face do exposto, considero improcedente o incidente de recusa/suspeição dos identificados Membros do Conselho Superior da Magistratura. 
17) O despacho referido em 16) foi notificado à autora.
18) A ….2021 realizou-se a audiência pública e de julgamento da ora autora, com a presença de todos os senhores membros da entidade demandada indicados no requerimento referido em 12).



V. Da Apreciação crítica da factualidade apurada e sua subsunção ao Direito aplicável
1. Do vício de violação de lei (artigos 114.º e 147.º, n.º 10, do EMJ)
Alega a autora que os actos impugnados padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, na interpretação e aplicação dos artigos 114.º e 147.º, n.º 10, do EMJ, posto que negaram a apreciação do incidente procedimental de recusa dos membros da entidade demandada suscitado pela demandante não ao abrigo do artigo 43.º do CPP, nos termos requeridos pela autora, mas sim à luz de preceitos do CPA. O que decorreu do entendimento de que a referência na epigrafe ao “instrutor” devia limitar o literal da norma, entendendo-se que apenas ao instrutor do processo disciplinar é aplicável o regime de impedimentos, suspeições, recusas e escusas do CPP; e que, ao invés, por aplicação do artigo 147.º, n.º 10, do EMJ, aos membros do Conselho Superior da Magistratura aplica-se o regime do CPA, preceituado nos artigos 69.º a 76.º e, especificamente, o artigo 73.º
Para a autora, esta interpretação labora em erro. Assim é porque a redacção do artigo 147.º, n.º 10, do EMJ foi introduzida pela Lei 67/2019, de 27/08, que procedeu à 18.ª alteração do EMJ. Na redação vigente até então, não só tal norma não existia, como a norma que hoje consta do artigo 114.º, constava do artigo 112.º e tinha a seguinte redação: “É aplicável ao processo disciplinar, com as necessárias adaptações, o regime de impedimentos e suspeições em processo penal a respetiva epígrafe «Impedimentos e suspeições””. Daqui resultava que aos membros do CSM era aplicável o regime de impedimentos e suspeições do CPP quando interviessem em sede de procedimento disciplinar e o regime de impedimentos e suspeições do CPA, quando interviessem nos demais procedimentos administrativos para os quais o CSM é competente, designadamente, em matéria de concursos, por via do disposto no artigo 2.º, n.º 5 deste diploma.
Aduz ainda a autora que a solução não é, aliás, virgem no Direito Português: o Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, consagra esse mesmo sistema, na medida em que sujeita os titulares dos órgãos disciplinares ao regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no CPP (artigo 147.º) aos quais, quando intervenham noutros procedimentos que não o disciplinar, é aplicável o regime de impedimentos e suspeições do CPA, nos termos do artigo 2.º, n.º 5, do mesmo diploma.
Assim, conclui a demandante, a interpretação restritiva do artigo 114.º do EMJ, feita tendo em atenção a referência constante da epigrafe ou usada como elemento interpretativo, desconsidera que a norma jurídica é composta por previsão e estatuição, e a epígrafe dos artigos não configura nem a previsão nem a estatuição  não é norma jurídica: logo, valorizar a indicação da epígrafe enquanto elemento determinante da restrição da interpretação da norma o seu sentido, quer literal, quer lógico, significa reconhecer-lhe uma natureza (de norma jurídica) que não é a sua. Aliás, sendo o procedimento disciplinar um procedimento de natureza sancionatória, cuja estrutura e garantias são claramente inspiradas no processo penal, e tendo os membros do CSM funções de decisão, faz mais sentido atribuir-lhes o regime de impedimentos e recusas do CPP, aplicável aos juízes, do que do CPA. Ao mesmo tempo, “faz menos sentido gravar-se um órgão ad hoc, sem poderes constitutivos, como é o instrutor, com um regime de impedimentos e recusas moldado para quem tem funções de decisão”. De onde, em suma e segundo a autora, a tese defendida em sustento de tal, viola o disposto no artigo 114.º do EMJ e aplica incorretamente o n.º 10, do artigo 147.º do mesmo diploma.
Os actos impugnados apreciaram a questão, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos. Recuperemos aqui o excurso aí efectuado a este respeito:


1. A Senhora Juíza … Requerente lança mão do incidente de recusa, previsto no art. 43.º do Código de Processo Penal (CPP). Mas não existe qualquer fundamento legal para a sua aplicação ao caso. Essa aplicação apenas poderia verificar-se se o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), na versão resultante da Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto (que republicou no seu Anexo III a nova redação do EMJ), o determinasse, o que não acontece.
Com efeito, a norma do estatuto que invoca, a do art. 114.º, apenas manda aplicar «ao procedimento disciplinar, com as necessárias adaptações, o regime de impedimentos, suspeições, recusas e escusas estabelecido para o processo penal» quanto ao instrutor, como resulta da epígrafe do artigo e da sua inserção sistemática entre os preceitos que disciplinam a instrução do procedimento disciplinar comum – é o primeiro artigo referente à instrução e consagra o regime aplicável aos impedimentos, recusas e escusas de quem a realiza (o instrutor, nomeado pelo CSM).
No entanto, essa remissão não vale, ao invés do que sustenta a Recusante, em relação aos membros do Conselho Superior da Magistratura, órgão ao qual compete «exercer a ação disciplinar» e, portanto, proferir a decisão no procedimento disciplinar (art. 149.º, n.º 1, al. a), do EMJ). Quanto a eles há uma norma expressa do EMJ que determina a sua sujeição ao regime das garantias de imparcialidade previstas no Código do Procedimento Administrativo (CPA), precisamente o n.º 10 do art. 147.º: – «Aos membros do Conselho Superior da Magistratura aplica-se o regime relativo às garantias de imparcialidade previsto no Código do Procedimento Administrativo».
Deste modo, o regime aplicável aos membros do Conselho Superior da Magistratura – a todos eles – é o contido na Parte III («Do procedimento administrativo»), Título I («Regime comum»), Capítulo II («Da relação jurídica procedimental»), Secção III («Das garantias de imparcialidade») do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, entretanto alterado pela Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro (arts. 69.º a 76.º). E bem se compreende que seja essa a solução legal, uma vez que o Conselho Superior da Magistratura é um «órgão constitucional autónomo» (arts. 217.º, n.º 1, e 218.º da Constituição da República Portuguesa) que «tem como função a gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais», um órgão de natureza administrativa (integrando a administração «não governamental» ou não dependente do Governo, enquanto «órgão superior da administração pública» – art. 182.º, 2.ª parte, da CRP) e não um tribunal, um órgão que exerce a função administrativa e não a função jurisdicional.
 
Não vislumbramos qualquer motivo para dissentir dos actos impugnados neste ponto, não assistindo razão à autora.
Por um lado, contrariamente ao aduzido pela demandante, a interpretação acolhida nos actos impugnados não se cingiu ao elemento literal da epígrafe do artigo 114.º do EMJ: estribou-se nos subsídios hermenêuticos literal e sistemático.
Na verdade, a interpretação acolhida nos actos impugnados não só encontra respaldo num preceito com um enunciado gramatical claro, preciso e inequívoco em si mesmo, subordinado ademais a uma epígrafe destituída de qualquer ambiguidade (“Impedimentos, suspeições, recusas e escusas do instrutor”), como também num dispositivo cuja própria inserção sistemática no EMJ, a anteceder a disciplina jurídica da fase de instrução do procedimento disciplinar, milita em sentido abertamente favorável à asserção da entidade demandada.
Além disso, como esclarece a doutrina da especialidade, “são inegáveis as virtualidades que decorrem da prática, cada vez mais consolidada, de atribuir a cada organização articulada de normas uma epígrafe. A formulação de título para cada artigo, tal como a designação para cada segmento da organização sistemática de um ato normativo, permite, como foi referido, a identificação sumária do que consta do texto normativo que lhe corresponde, facilitando ainda, de forma inequívoca, a deteção dos enunciados das normas […]”[9].
Por outro lado, e ainda com reporte aos mesmos subsídios hermenêuticos literal e sistemático, o entendimento é ademais corroborado por outro preceito do mesmo EMJ, a respeito dos membros do CSM. Com efeito, estabelece o artigo 147.º, n.º 10, do EMJ, de forma igualmente assertiva e inelutável, que “[a]os membros do Conselho Superior da Magistratura aplica-se o regime relativo às garantias de imparcialidade previsto no Código do Procedimento Administrativo”.
E, nem se diga que obsta a tal entendimento a argumentação expendida pela demandante, tentando desvalorizar o sentido do teor expresso dos artigos 114.º e 147.º, n.º 10, do EMJ. Como é sabido, em matéria de interpretação da lei não pode jamais olvidar-se o princípio basilar plasmado no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, segundo o qual “[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Por outro lado, ainda, e recorrendo ao subsídio histórico, dir-se-á que a perspectiva diacrónica do EMJ expendida pela autora não abona em nada a tese da demandante, antes a infirma. De facto, a nova redacção do EMJ resultante da Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto, ao afastar a solução do artigo 114.º da que anteriormente decorria do artigo 112.º, assume deliberada e intencionalmente uma opção legislativa de, se não ruptura, ao menos evolução e clarificação do regime.
Por último, em favor da orientação acolhida nos actos impugnados concorre a própria natureza jurídica de órgão administrativo (e não jurisdicional) do CSM, nos termos lapidarmente enunciados nos actos impugnados. Trata-se de um “órgão constitucional autónomo” (artigos 217.º, n.º 1, e 218.º da CRP) que “tem como função a gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais”, um órgão de natureza administrativa (integrando a administração “não governamental” ou não dependente do Governo, enquanto “órgão superior da administração pública” - artigo 182.º, 2.ª parte, da CRP) e não um tribunal. Isto é: a entidade demandada é inequivocamente um órgão que exerce a função administrativa e não a função jurisdicional - e, mesmo que se lhe reconheça o exercício da ação disciplinar e, portanto, de proferir a decisão final no procedimento disciplinar (artigo 149.º, n.º 1, al. a), do EMJ), após apreciação do relatório do instrutor, certo é que tal não descaracteriza aquela sua natureza administrativa, sendo também manifesto que o CSM nem sequer tem de acolher a proposta do instrutor.
Aliás, o procedimento disciplinar é, em si mesmo, um procedimento administrativo, ainda que de cariz sancionatório. Em termos procedimentais, no procedimento disciplinar está em causa uma sucessão de actos administrativos, encadeados, e que culminam com uma decisão, proferida pelo CSM, relativa ao cumprimento de deveres estatutários e de interesse público, proferida no âmbito de uma relação jurídica de natureza pública. E a decisão punitiva adoptada no devir daquele procedimento tem uma imanente natureza deliberativa administrativa: é imputada a um acto unitário, composto das várias manifestações de vontade dos membros do colégio deliberativo, ou pelo menos, das que se orientam em determinado sentido. Trata-se, pois, de um acto complexo de carácter colegial, praticado no âmbito de um procedimento eminente e estruturalmente deliberativo de natureza administrativa, atentando na definição de procedimento administrativo consagrada no artigo 1.º, n.º 1, do CPA, segundo o qual “entende-se por procedimento administrativo a sucessão ordenada de atos e formalidades relativos à formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da Administração Pública” - o que corrobora a orientação acolhida nos actos impugnados a este respeito.
Ora, o procedimento disciplinar é regulado através de um regime jurídico específico, assumindo por isso a natureza de procedimento administrativo especial. Isso mesmo foi já decidido por este Supremo Tribunal - vide, nomeadamente, entre outros, os Acs. proferidos pela Secção de Contencioso do STJ a 24.10.2019 (proc. n.º 18/19.0YFLSB) e a 20.04.2020 (proc. n.º 10/19.4YFLSB).
Sendo certo que, nos termos do disposto no n.º 5, do artigo 2.º do CPA, “as disposições do presente Código, designadamente as garantias nele reconhecidas aos particulares, aplicam-se subsidiariamente aos procedimentos administrativos especiais”.
Por este motivo, considerando também questões de coerência, não faria qualquer sentido prever uma duplicação de regimes aplicáveis aos membros do CSM em matéria de garantias de imparcialidades, aplicando o CPP caso os membros decidissem em matéria disciplinar e, aplicando o CPA quando os membros decidissem em qualquer outra matéria.
Em suma, resulta, pois, claro e expresso no EMJ a previsão de uma dualidade de regimes aplicáveis em matéria de garantias de imparcialidade, consoante os sujeitos em causa: ao instrutor é aplicável o regime de garantias de imparcialidade previsto nos artigos 39.º a 47.º do CPP; ao invés, o regime aplicável aos membros do Conselho Superior da Magistratura – a todos eles – é o contido na Parte III (“Do procedimento administrativo”), Título I (“Regime comum”), Capítulo II (“Da relação jurídica procedimental”), Secção III (“Das garantias de imparcialidade”) do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, entretanto alterado pela Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro (artigos 69.º a 76.º).
Por tudo o exposto, improcede, a pretensão da autora com este fundamento.


      2. Da violação das garantias de imparcialidade
2.1. A autora alega que, ainda que o direito a aplicar seja o que foi aplicado, a questão não muda de perspectiva, uma vez que o preceituado no artigo 73.º, do CPA também aplica os princípios constitucionais da imparcialidade e do processo equitativo, que são os que aqui estão em causa, independentemente da forma como se postem no direito ordinário. A norma do artigo 73.º, n.º 1, do CPA, prevê que a suspeição de ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão sendo que, devendo tal norma ser interpretada, segundo a própria entidade demandada, de acordo com o critério do homem médio. 
Para a autora o relatório que constitui a fundamentação da deliberação impugnada desviou-se da questão, porque não está em causa só o Sr. Presidente do CSM ter votado a deliberação; “está em causa a votação de uma deliberação que, ao condenar  sob a ilegal condição de aceitação, se assumiu como o ato constitutivo do procedimento”, tanto mais que, como flui da fundamentação, se defende que o direito de audiência e defesa da autora já fora observado quando a mesma foi ouvida em declarações. O ter-se pronunciado sem antes ter sido concedido à autora o direito de audiência e defesa, constitui, na economia do presente incidente, uma circunstância agravante.
Mais aduz a autora que, segundo uma correcta leitura do preceituado nos artigos 32.º, n.º 10, da CRP, 109.º, n.º 4, 117.º, n.º 4, e 123.º-B, todos do EMJ, a entidade demandada não poderia pronunciar-se sobre a proposta vertida pelo Exmo. Conselheiro Instrutor antes de a mesma ter sido submetida por este à audiência e defesa da autora e antes de esta dar a sua eventual “anuência” para a aplicação da sanção de repreensão não registada. Na sequência do requerimento da autora, rejeitando a aplicação da sanção, a entidade demandada, na sua deliberação de ….2020, entendeu que, face à recusa da aceitação da sanção deviam os autos prosseguir, com a dedução de acusação. Isto é, apesar de já se ter pronunciado, ante a recusa da autora, a entidade demandada “recuou e ordenou a instauração de procedimento disciplinar, constituindo o processo de averiguações a respetiva fase instrutória”. É, pois, convicção da autora que, “tendo sido todos – factos e elementos de prova – objeto de pronúncia do Venerando Conselho Superior da Magistratura, entendendo maioritariamente o Ilustre Colégio haver merecimento para a aplicação à Autora da sanção de advertência não registada […] em caso de improcedência do incidente – o que, como acima se referiu, sucedeu, viriam, como foram, uma vez mais a ser chamados à apreciação daquilo que já haviam apreciado”. Com aquela intervenção, os membros do Conselho Plenário do CSM “condenaram, sob condição, a Autora”.
A demandante mais alega que foram violados o princípio e as garantias de imparcialidade, porquanto, deduzido o pedido de escusa, deve o juiz requerido ser ouvido, só podendo praticar actos urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência. Mais: estava não só o Presidente do CSM, mas também os demais Vogais da entidade demandada visados no requerimento de escusa, porque também eram visados pelos mesmos factos pelos quais era visado o Exmo. Presidente do CSM e tinham, assim, um interesse directo e pessoal na questão sobre a qual deliberaram, o que os colocava numa nova situação de recusa.
Vejamos.

2.2. O princípio da imparcialidade, consagrado no n.º 2 do artigo 266.º da CRP, obriga a Administração, nas suas relações com os particulares, à igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos, através de um critério uniforme de prossecução do interesse público. Este princípio constitui, em conjunto com outros princípios de idêntica dignidade jus-fundamental (igualdade, legalidade, proporcionalidade, boa-fé, inter alia), a base axiológica mínima que deve nortear a actividade administrativa, independentemente da forma pela qual se manifesta. Como fim reconhecidamente prosseguido pelo legislador, é critério fundamental na interpretação da lei e, de acordo com ele, há que reconhecer-lhe no seu acolhimento no CPA (artigo 9.º) a amplitude que lhe é conferida naqueloutro preceito constitucional. O referido princípio abrange assim os órgãos da Administração e os agentes administrativos.
Tem-se em vista, em suma, evitar que os titulares dos órgãos e os agentes da Administração Pública se encontrem numa situação de possível confronto entre os seus interesses e os dos entes públicos que representam[10].
A delimitação do conceito de interesse impeditivo constante do preceito em apreço “[…] há de fazer-se em função de dois parâmetros: por um lado, trata-se de garantir a objetividade e utilidade pública da decisão administrativa em vista da (melhor) prossecução do interesse público, e por outro lado, de assegurar a imparcialidade e a transparência dessa decisão, face àqueles que nela estão interessados e face à coletividade administrativa em geral [sendo que o] interesse aqui tido em vista é, em princípio, de natureza material, mas podem também, em certas condições, ser atendíveis interesses morais […]”[11].
São fundamentalmente duas as consequências deste princípio da imparcialidade: “[…] garantias de imparcialidade no procedimento — incompatibilidades, impedimentos e suspeições - e garantias de imparcialidade na própria decisão […]”[12] . Está aqui em causa o que a doutrina designa por imparcialidade organizatório-funcional, impedindo decisões em “[…] causas próprias […]”[13].
De entre as formas de prevenir a violação do princípio da imparcialidade administrativa, contam-se as chamadas garantias especiais ou subjectivas. “São garantias especiais, porque se destinam a proteger especialmente a imparcialidade da Administração Pública, o que não significa exclusividade nessa proteção; são garantias subjetivas porque se referem diretamente aos sujeitos administrativos. São, em suma, aquelas garantias que não respeitam ao modo como se encontram repartidas as competências entre os órgãos administrativos, mas que respeitam à pessoa, titular do órgão ou agente administrativo, à sua posição institucional ou funcional e à especial relação que possa ter com o objeto do procedimento administrativo ou com os interessados nesse procedimento[14] .
Neste conspecto, a imparcialidade administrativa pode ser assegurada preventivamente através das figuras jurídicas das inelegibilidades, das incompatibilidades, dos impedimentos, das escusas e das suspeições.
O impedimento distingue-se da incompatibilidade porque esta “aparece ligada a uma ideia de impossibilidade de exercício simultâneo de dois cargos ou funções e traduz a natureza inconciliável da acumulação, na mesma pessoa, de dois estatutos profissionais ou ligados ao exercício de mais do que uma atividade pelo que o que está em causa na incompatibilidade é, pois, a garantia da imparcialidade da atuação administrativa como valor (puramente) abstrato: é a própria lei que exclui a possibilidade de acumulação […]” [15].
Ao invés, nos impedimentos, “[…] o que se passa é que o titular do órgão fica proibido de intervir em casos concretos e definidos, o que não se deve a razões abstratas de incompatibilidade entre cargos, mas à pessoa do titular e ao interesse que ele tem naquela decisão […]”[16].
Como refere alguma doutrina, este impedimento tem três consequências: i) o impedimento não carece de qualquer declaração constitutiva, funcionando automaticamente a partir do momento em que ocorrem os factos determinantes da sua verificação; ii) devido ao impedimento, o titular do órgão fica impedido de praticar qualquer acto no âmbito do procedimento em causa; e iii) por conseguinte, os actos em que tenham intervindo titulares de órgãos impedidos são ilegais e anuláveis[17].
Continuando a seguir de perto a exposição dos intérpretes do CPA, “são bem mais complexas as diferenças entre impedimentos e as suspeições. Como os primeiros, estas pressupõem a consideração da pessoa do titular do órgão - distinguindo-se por aí das incompatibilidades; só que, para a lei, a possível parcialidade da atuação do titular do órgão não é agora tão evidente e carece de um juízo de aproximação administrativa à situação concreta, que estiver em causa.» Por isso, enquanto a situação de impedimento, a existir, se traduz na mera verificação de um pressuposto legal que conduz ao impedimento (e à invalidade do ato praticado pelo impedido) -  considerando o Código que a situação de impedimento origina, em abstrato, uma perturbação no exercício da competência -, na suspeição a lei já não impõe a proibição de intervenção do titular do órgão, deixando a questão à decisão de um órgão da própria Administração, conhecedor do caráter daquele que vai agir pela administração e dos interesses que se jogam no respetivo procedimento. » Isto quer dizer que, se não se deu por um impedimento, que existia, a decisão final do procedimento nem por isso deixa de ser inválida; ao passo que se a escusa ou suspeição não forem declaradas, a decisão final, podendo ser impugnada com fundamento em parcialidade (desproporção ou desigualdade), não é, porém, imediata e diretamente ilegal, só pelo facto de ser da autoria daquela pessoa.”[18].
Dito isto, e pelo interesse manifesto de que se reveste para a economia da presente decisão, cumpre aqui reproduzir os artigos 69.º e 73.º do CPA (para realçar se as alíneas a que se reportam, quer a autora na sua petição, quer a entidade demandada nos actos impugnados, se encontram ou não preenchidas e, em caso negativo, se há outras que o possam estar), bem como outras soluções normativas aí estabelecidas com pertinência para a decisão dos presentes autos. Vejamos, pois, a redação daqueles preceitos (com sublinhados nossos):

Artigo 69.º
Casos de impedimento
1 - Salvo o disposto no n.º 2, os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, nos seguintes casos:
[…]
f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas.
2 - Excluem-se do disposto no número anterior:
a) As intervenções que se traduzam em atos de mero expediente, designadamente atos certificativos;
b) A emissão de parecer, na qualidade de membro do órgão colegial competente para a decisão final, quando tal formalidade seja requerida pelas normas aplicáveis;
c) A pronúncia do autor do ato recorrido, nos termos do n.º 2 do artigo 195.º
[…]

Artigo 70.º
Arguição e declaração do impedimento
1 - Quando se verifique causa de impedimento em relação a qualquer titular de órgão ou agente da Administração Pública, deve o mesmo comunicar desde logo o facto ao respetivo superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial, consoante os casos.
[…]
3 - Até ser proferida a decisão definitiva ou praticado o ato, qualquer interessado pode requerer a declaração do impedimento, especificando as circunstâncias de facto que constituam a sua causa.
4 - Compete ao superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial conhecer da existência do impedimento e declará-lo, ouvindo, se considerar necessário, o titular do órgão ou agente.
5 - Tratando-se do impedimento do presidente do órgão colegial, a decisão do incidente compete ao próprio órgão, sem intervenção do presidente.
[…]

  Artigo 71.º
Efeitos da arguição do impedimento
1 - O titular do órgão ou agente ou outra qualquer entidade no exercício de poderes públicos devem suspender a sua atividade no procedimento, logo que façam a comunicação a que se refere o n.º 1 do artigo anterior ou tenham conhecimento do requerimento a que se refere o n.º 3 do mesmo preceito, até à decisão do incidente, salvo determinação em contrário de quem tenha o poder de proceder à respetiva substituição.
2 - Os impedidos nos termos do artigo 69.º devem tomar todas as medidas que forem inadiáveis em caso de urgência ou de perigo, as quais carecem, todavia, de ratificação pela entidade que os substituir.

  Artigo 72.º
Efeitos da declaração do impedimento
1 - Declarado o impedimento, é o impedido imediatamente substituído no procedimento pelo respetivo suplente, salvo se houver avocação pelo órgão competente para o efeito.
2 - Tratando-se de órgão colegial, se não houver ou não puder ser designado suplente, o órgão funciona sem o membro impedido.

Artigo 73.º
Fundamento da escusa e suspeição
1 - Os titulares de órgãos da Administração Pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos devem pedir dispensa de intervir no procedimento ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão e, designadamente:
[…]
2 - Com fundamento semelhante, pode qualquer interessado na relação jurídica procedimental deduzir suspeição quanto a titulares de órgãos da Administração Pública, respetivos agentes ou outras entidades no exercício de poderes públicos que intervenham no procedimento, ato ou contrato.

Artigo 74.º
Formulação do pedido
1 - Nos casos previstos no artigo anterior, o pedido deve ser dirigido à entidade competente para dele conhecer, indicando com precisão os factos que o justifiquem.
2 - O pedido do titular do órgão ou agente só é formulado por escrito quando assim for determinado pela entidade a quem for dirigido.
3 - Quando o pedido seja formulado por interessado na relação jurídica procedimental, é sempre ouvido o titular do órgão ou o agente visado.
4 - Os pedidos devem ser formulados logo que haja conhecimento da circunstância que determina a escusa ou a suspeição.

 Artigo 75.º
Decisão sobre a escusa ou suspeição
1 - A competência para decidir da escusa ou suspeição é deferida nos termos referidos nos n.os 4 a 6 do artigo 70.º
2 - A decisão deve ser proferida no prazo de oito dias.
3 - Sendo reconhecida procedência ao pedido, é observado o disposto nos artigos 71.º e 72.º


2.3. Assim sendo e tendo como assente a aplicabilidade das garantias de imparcialidade previstas no CPA, tal como se deixou estabelecido adrede, e sendo indiscutível a clara destrinça entre o processo penal e o procedimento administrativo, não tem sustentação a tese exposta pela autora, de que os membros do CSM estariam impedidos de apreciar a suspeição suscitada a respeito do Sr. Presidente do CSM, por via da aplicação do disposto no artigo 45.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. Na verdade, não só tal disposição legal não é aplicável, como inexiste no CPA norma de idêntico teor, que determine que os visados pelo incidente de suspeição só possam praticar actos urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência.
Ao invés, dispõe-se no artigo 75.º, n.º 1, do CPA que a competência para decidir da escusa ou suspensão é deferida nos termos referidos nos números 4 a 6, do artigo 70.º: no n.º 4 do artigo 70.º, estipula-se que compete ao superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial conhecer da existência do impedimento e declará-lo, ouvindo, se considerar necessário, o titular do órgão ou agente; no n.º 5 do mesmo preceito legal estipula-se que, tratando-se do impedimento presidente do órgão colegial, a decisão do incidente compete ao próprio órgão, sem intervenção do presidente.
Dito isto, e apreciando apenas o iter procedimental, bem andou o CSM, ao tratar, em primeiro lugar, da recusa (leia-se suspeição) do senhor Presidente, dado que, se, nesta parte, o incidente fosse indeferido, como foi, ficaria o mesmo legitimado para decidir a recusa (suspeição) dos restantes membros do Conselho. E estes membros não estavam impedidos de apreciar o incidente porque não se estavam a pronunciar sobre a sua própria situação, mas apenas sobre a do Presidente e em estrita observância do regime legal aplicável.
Além disso, decorre do regime de garantias de imparcialidade do CPA que o visado apenas fica impedido de intervir no procedimento administrativo em questão, caso seja declarado o seu impedimento. Isto é, a mera invocação de suspeição não tem como efeito imediato o impedimento. Como esclarece a doutrina, “3.1 – Uma vez suscitadas ou requeridas a escusa e suspeição serão alvo de uma decisão administrativa. Justifica-se perfeitamente que não sejam aplicáveis automaticamente ex lege porque, designadamente no caso da suspeição, as razões aduzidas podem não ser válidas ou pertinentes ou a prova insatisfatória pelo que se justifica um juízo administrativo de confirmação traduzido exteriormente através de um ato administrativo. Requerimentos levianos e de má-fé, se tivessem efeitos imediatos, prejudicariam o serviço.» 3.2 – O incidente de suspeição pode ser suscitado em sede de reclamação ou recurso graciosos. A lei não impede. Claro está que a recusa administrativa de dispensa ou suspeição é passível de impugnação contenciosa.” [19].
Pelo exposto não procede a alegação da autora.
2.4. Também não assiste razão à autora quando alega que o Sr. Vogal do CSM, Prof. António Vieira Cura, “sendo autor do parecer que fundamentou a deliberação estava impedido de a votar, nos termos do artigo 69.º, n.º 1 alínea d) do CPA, na medida em que nenhuma norma legal o vinculava a, nessa qualidade, emitir tal parecer” (cf. ponto 86 da petição inicial).
O CSM funciona em plenário, constituído por todos os membros do Conselho Superior da Magistratura, a saber: o Presidente, o Vice-Presidente e os Vogais – cf. artigo 150.º, n.ºs 1 e 2 do EMJ.
Ao nível do seu funcionamento, as deliberações do Conselho Plenário são tomadas à pluralidade de votos, cabendo ao presidente, voto de qualidade e, para a validade das deliberações, exige-se a presença de, pelo menos, 12 (doze) membros (cf. artigo 156.º, n.ºs 2 e 3 do EMJ).
Em suma: o CSM toma as suas decisões de forma colegial.
Nessa medida, nos termos do disposto no artigo 25.º do CPA, para cada reunião colegial é elaborada uma ordem do dia (tabela), a qual é estabelecida pelo presidente e “deve incluir os assuntos que para esse fim lhe forem indicados por qualquer vogal, desde que sejam da competência do órgão e o pedido seja apresentado por escrito”.
A argumentação da autora parte de premissa errada, neste ponto: não está em causa, pois, um parecer; está em causa um projeto de decisão fundamentado e apresentado por escrito, por um vogal do CSM, relativamente a um dos pontos da ordem do dia/tabela, a decidir naquela sessão ordinária do Conselho Plenário.
Pelo que não procede ainda aqui a alegação da autora.


2.5. Por fim, e mais decisivamente quanto à substância da alegação de impedimento, podemos alinhar as teses contrapostas nos seguintes termos:

a) para a autora:

i) “tendo sido todos – factos e elementos de prova – objeto de pronúncia do Venerando Conselho Superior da Magistratura, entendendo maioritariamente o Ilustre Colégio haver merecimento para a aplicação à Autora da sanção de advertência não registada […] em caso de improcedência do incidente – o que, como acima se referiu, sucedeu, viriam, como foram, uma vez mais a ser chamados à apreciação daquilo que já haviam apreciado”;

ii) com aquela intervenção, os membros do Conselho Plenário do CSM “condenaram, sob condição, a autora”;

iii) o CSM não podia pronunciar-se sobre a proposta do instrutor antes da mesma ter sido submetida por este à audiência e defesa da visada e antes desta dar o seu eventual consentimento para a aplicação da sanção de advertência não registada;

b) para a entidade demandada, em contrapartida:

i) o órgão decisor, no caso, cumpriu estritamente o disposto no n.º 4, do artigo 109.º do EMJ, já que a visada foi ouvida, antes da aplicação da sanção, e teve oportunidade de apresentar a sua defesa, como apresentou;

ii) o CSM, na reunião de ….2020, mandou notificar a visada, a qual rejeitou a aplicação da sanção e, na deliberação de ….2020, entendeu que os autos deviam prosseguir com a dedução de acusação, aplicando estrita e rigorosamente o disposto no artigo 123.º-B do EMJ, uma vez que a visada tinha sido ouvida no processo de averiguação, na presença do seu advogado, e voltou a defender-se quando foi notificada para declarar se aceitava;

iii) não há motivos para que se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da conduta dos membros do CSM recusados.
Aqui reside, bem vistas as coisas, o cerne da questão a decidir.
Vejamos:
Por deliberação do CSM, de ….2020, foi determinada a realização de averiguações, nos termos do disposto nos artigos 123.º-A e 123.º-B do EMJ, na sua redação actual.
Importa sublinhar que o processo de averiguação é um processo especial, distinto do processo disciplinar, que se destina “a apurar a veracidade da participação, queixa ou informação, e a aferir se a conduta denunciada é suscetível de constituir infração disciplinar” (artigo 123.º-A, n.º 1, do EMJ) e tem uma natureza sumária, sendo a sua tramitação mais simples e célere, caracterizando-se por uma certa maleabilidade e visando a recolha de todos os elementos relevantes, num prazo de 30 dias (artigo 123.º-B, do EMJ).
O procedimento de averiguação pode terminar através de uma das seguintes formas: i) proposta de arquivamento; ii) proposta de instauração do processo disciplinar; ou iii) proposta de mera aplicação de sanção de advertência não registada, nos termos do artigo 109.º, n.º 4, do EMJ.
In casu, a ora autora foi ouvida pelo Sr. Inspetor Judicial em sede de processo de averiguações, para efeitos de recolha de todos os elementos relevantes à proposta de decisão a apresentar, e, tudo ponderado, foi elaborado Relatório Final do procedimento de averiguações a ….2020, concluindo pela proposta de aplicação de sanção de advertência não registada.
Dir-se-á que a autora foi ouvida no âmbito do processo de averiguações não (ainda) na qualidade de arguida, e sem consciência plena dos factos que lhe poderiam ser imputados e da censura disciplinar a eles subjacente.
Não obstante, sem que se possa negar pertinência às constatações antecedentes, há dois aspectos decisivos que se verificam no caso dos autos que permitem ultrapassar qualquer impasse teórico que se pudesse entender verificado e responder à questão a decidir, no sentido de negar procedência à pretensão da autora neste ponto. Esses aspectos prendem-se com a específica natureza do concreto procedimento disciplinar sub judicio e dos actos a que se reporta a autora, praticados no termo do processo de averiguações e na subsequente instauração de processo disciplinar.
Assim, seguindo aqui de perto (mas com adaptações) a exposição efetuada no Ac. desta Secção de Contencioso de 30.06.2020 (proc. n.º 62/19.7YFLSB) e começando pela última questão enunciada, relativa à natureza dos actos praticados no termo do processo de averiguações e na subsequente instauração de processo disciplinar, importa aqui frisar que a instauração de processo não equivale ou corresponde a qualquer juízo de censura disciplinar traduzido na aplicação de sanção: a decisão de instaurar procedimento disciplinar nem sequer pressupõe necessariamente a punição disciplinar. Na decisão de instauração de processo disciplinar a entidade competente para o exercício da acção disciplinar ainda se confronta somente com indícios de infracção disciplinar, que terão de ser posteriormente indagados e averiguados.
Em segundo lugar, o procedimento de averiguações não é (ainda) um processo disciplinar, sendo que só neste último é que assume relevância candente a garantia de defesa do arguido. Esclareçamos esta asserção.
As garantias constitucionalmente asseguradas pelos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP são garantias de defesa do arguido e reportam-se, no essencial, à fase de defesa e aos meios de prova requeridos pelo magistrado arguido em sede de defesa, situados sistematicamente no artigo 119.º, da Subsecção I (procedimento comum) da secção IV (procedimento disciplinar) do Capítulo VIII (regime disciplinar) do EMJ.
Todavia, o procedimento dos autos não é um procedimento disciplinar comum, mas sim especial, previsto na Subsecção II do EMJ. Recorde-se que estamos perante um processo de averiguações.
Ora, a aplicabilidade de disposições genéricas do procedimento disciplinar comum tem de ser aqui efectuada, como a própria lei exige, com as devidas adaptações (artigo 133.º do EMJ), não esquecendo as especificidades deste tipo de procedimento. Importa, nomeadamente, tomar em linha de conta a sua finalidade, tendo presente que, em rigor, não estamos propriamente perante um procedimento disciplinar, mas antes perante “[…] instrumentos que podem no futuro dar origem a processos disciplinares”[20]. Decorrentemente, há que reconhecer-lhe uma muito menor densidade procedimental e de trâmite.                                                                                                                                                                                                                                                                   
Pretendemos com isto significar que não se derrogou, no essencial, nenhuma garantia de defesa da ora autora, porque a demandante não estava, verdadeiramente e em rigor, no uso das faculdades amplas que lhe são permitidas pela fase de “defesa” consagrada no artigo 119.º, do EMJ. E isto pelo simples motivo de que, no procedimento de averiguações - que se destina, como vimos, a apurar factos determinados para posterior instauração, sendo disso caso, do competente processo disciplinar - não há nem acusação, nem subsequente defesa: concluída a instrução, o inquiridor elabora relatório, que remete imediatamente (sem auscultação prévia do magistrado eventualmente visado, que nem sequer tem ainda a qualidade de arguido) à entidade que mandou instaurar o procedimento, para que esta, se assim entender, instaure os processos disciplinares a que haja lugar.
Só depois deste passo procedimental, e mesmo que, como no caso dos autos, a entidade com competência disciplinar determine, ou a auscultação prévia da magistrada acerca da intenção de aplicação de sanação de advertência não registada (artigo 109.º, n.º 4, do EMJ), ou até a instauração de processo disciplinar, sem que sequer se observe a fase em que, em termos normais, se deveria observar a natureza secreta do processo, é que será deduzida acusação, ao que se seguirá, aí sim, a fase de defesa do arguido, que poderá então arrolar testemunhas, juntar documentos ou requerer diligências (artigo 119.º, do EMJ).
Significa isto que até esse momento apenas existe a indagação de indícios que permitam instaurar o procedimento disciplinar propriamente dito. Só depois desse momento, portanto, entraremos numa fase em que se está já a apurar verdadeira responsabilidade disciplinar com vista à determinação e aplicação de uma sanção. Só aí, por conseguinte, é que importará convocar o acervo garantístico que encontra respaldo nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP.
Naturalmente, perante a proposta apresentada pelo Sr. Inspetor Judicial, poderia o órgão decisor - Conselho Plenário - discordar da mesma e, ao invés, deliberar o arquivamento do processo ou a instauração de processo disciplinar.
De resto, foi esse o objecto da deliberação do Conselho Plenário, tomada a ….2020: apreciação e decisão acerca do relatório final do processo de averiguação e da respectiva proposta, tendo sido deliberado por maioria concordar com a mesma, de aplicação de advertência não registada, independentemente de processo, devendo notificar-se a mesma para se pronunciar sobre a sua aceitação, nos termos do n.º 4, do artigo 109.º do EMJ, segundo o qual “a sanção de advertência não sujeita a registo pode ser aplicada independentemente de processo, desde que com audiência e possibilidade de defesa do arguido”. Nessa medida, em cumprimento do disposto no referido artigo 109.º, n.º 4, foi a autora notificada de tal proposta e do relatório final do procedimento de averiguações.
Verifica-se assim, por conseguinte, que a entidade demandada observou estrita e rigorosamente o disposto no artigo 109.º, n.º 4, do EMJ, que consagra um regime que, na sua actual redação, não difere do regime precedente, constante no artigo 85.º, n.ºs, alínea a), e 4, do EMJ, na sua anterior redação – regime esse acerca do qual, aliás, já se pronunciou este Supremo Tribunal sem que se divisasse qualquer das aporias, entropias ou entorses ao processo equitativo, ao princípio in dubio pro reo ou às garantias de imparcialidade que ora aponta a autora[21].
Não se conformando com a aplicação de qualquer sanção, veio a autora apresentar abundante pronúncia e defesa.
Na sequência da apreciação da pronúncia da autora, nos termos legalmente previstos, o Conselho Plenário, por ser o órgão competente para tal [artigo 151.º, n.º 1, alínea a), e 149.º, n.º 1, alínea a), ambos do EMJ] deliberou a 06.10.2020 instaurar procedimento disciplinar, constituindo os autos de averiguação parte instrutória do mesmo. Atenta a factualidade conhecida e a posição manifestada pela autora em sede de averiguações, bem como à luz do princípio do inquisitório previsto nos artigos 116.º do EMJ e 58.º do CPA, inexistindo a necessidade de proceder a nova audição da autora (por inexistirem novos factos) ou de realizar acrescidas diligências instrutórias, passou-se à elaboração da acusação, nos termos do disposto no artigo 117.º, n.º 3, do EMJ.
Uma vez mais, cumprindo os trâmites legalmente previstos, foi a arguida, ora autora, notificada da acusação, para efeitos de apresentação de defesa (artigos 118.º e 119.º do EMJ), faculdade que exerceu e terminou, suscitando a recusa de todos os membros que integram o Conselho Plenário.
Em face do exposto, dúvidas inexistem de que foi dado integral cumprimento ao regime previsto e foi à saciedade conferido o direito de audiência, defesa e contraditório à ora autora, pelo que se conclui que, também no que respeita à tramitação do processo disciplinar, foram cumpridas todas as exigências legais e foi cumprida a audiência prévia, as garantias de defesa e o princípio do contraditório.
Quanto ao mais, importa apenas dar por reproduzido o excurso final dos actos impugnados, na parte que imediatamente antecede os respetivos segmentos decisórios, e após o enquadramento correcto da questão, não subsumindo o incidente no CPP, mas sim no CPA.

2. Destarte,
Tudo visto e ponderado, improcede in totum a pretensão da autora, pelo que importa julgar a acção improcedente e absolver a entidade demandada do pedido, o que se determinará infra, com a seguinte:


VI.  DECISÃO:
Nestes termos e com os fundamentos expostos, este Supremo Tribunal decide:

1. Absolver a entidade demandada da instância quanto ao pedido incidental, por verificação de intempestividade do pedido e por verificação de litispendência, atenta a dedução, em momento anterior, de nova acção com o mesmo objeto, sem que se verifique a apensação de acções;

E, quanto ao mais,

2. Julgar a acção totalmente improcedente,

E, nessa medida,

3. Absolver a entidade demandada do pedido.


4. Valor da ação: € 30 000,01 (cf. artigos 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, conjugado com o artigo 6.º, n.º 4, do ETAF e, por remissão deste, também no artigo 44.º, n.º 1, da LOSJ).

5. Custas pela autora (527.º, n.º 1, do CPC), fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta, de acordo com o artigo 7.º, n.º 1, e Tabela I-A, ambos do Regulamento das Custas Processuais.

Após trânsito da presente decisão, remeta o PA ao processo 24/…., a fim de aí ser apensado.

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP.

21 de Dezembro de 2021

Margarida Blasco (Relatora)

Maria Olinda Garcia, Ferreira Lopes, Fernando Samões, Catarina Serra, Conceição Gomes, Leonor Cruz Rodrigues (Adjuntos)

Maria dos Prazeres Beleza (Presidente)

____________________________________
[1] vide também Acs. do Tribunal Constitucional de 22.06.1999 (Ac. n.º 373/99, proc. n.º 90/97), 23.06.2015 (Ac. n.º 345/15, proc. n.º 1041/14) e 16.11.2020 (Ac. n.º 640/2020, proc. n.º 1040/2019)
[2] Aroso de Almeida, Mário / Fernandes Cadilha, Carlos Alberto, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, 2021, Almedina, p. 463.
[3] Esteves de Oliveira, Mário / Esteves de Oliveira, Rodrigo, Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados – parte i, 2006, Almedina, p. 403.
[4] Aroso de Almeida / Fernandes Cadilha, cit., p. 831.
[5] Idem, p. 853.
[6] Idem, p. 855.
[7] Idem, ibidem.
[8] Domingues de Andrade, Manuel de, Código do Processo Civil Anotado, vol. ii, 3.ª edição, 1993, Coimbra Editora, p. 306.
[9] Duarte, David / Pinheiro, Alexandre Sousa / Romão, Miguel Lopes / Duarte, Tiago, Legística - Perspetivas Sobre a Concepção e Redacção de Actos Normativos, Almedina, 2020, p. 222
[10] Santos Botelho, José Manuel / Pires Esteves, Américo / Cândido de Pinho, José, Código do Procedimento Administrativo Anotado e Comentado, 5.ª ed., 2002, Almedina, p. 246.
[11] Esteves de Oliveira, Mário / Costa Gonçalves, Pedro / J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, 8.ª reimpressão, 2010, p. 247.
[12] Garcia, Maria da Glória / Cortês, António, “Artigo 266.º», in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo iii, AA.VV., coordenação de Miranda, Jorge / Medeiros, Rui, Coimbra Editora, 2007, pp. 565-566.
[13] Gomes Canotilho, José Joaquim / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada. Volume ii. 4.ª edição revista, 2010, Coimbra Editora, p. 803.
[14] Melo Ribeiro, Maria Teresa de, O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, Almedina, 1996, pp. 317-318.
[15] Esteves de Oliveira et al., cit., pp. 243-244.
[16] Idem, ibdiem.
[17] Rebelo de Sousa, Marcelo / Salgado de Matos, André, Direito Administrativo Geral. Tomo i. Introdução e princípios gerais, 2004, Lisboa, Dom Quixote, p. 212.
[18] Idem, ibidem, p. 245.
[19] Cabral de Moncada, Luís, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, 2019, Lisboa, Quid Iuris, p. 290.
[20] Carvalho, Raquel, Comentário ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, p. 173.
[21] Vejam-se, entre outros, os Acs. de 26-10-2016 (proc. n.º 75/15.8YFLSB) e de 22-02-2017 (proc. n.º 17/16.3YFLSB), ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.