AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
NOTIFICAÇÃO DE ARGUIDO PRESO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário


I – Apurando-se, aquando das diligências tendentes à notificação da sentença ao arguido, que o mesmo já se encontrava preso na data em que foi expedida a carta destinada a dar-lhe conhecimento do despacho que recebeu a acusação e designou data e hora para a realização da audiência de julgamento, carta essa depositada na morada por ele indicada aquando da prestação do TIR, não pode considerar-se o arguido regularmente notificado da data designada para julgamento, concluindo-se, sem mais, que teve conhecimento do teor da notificação.
II - Em matéria de notificações, o legislador teve em consideração a situação especial daquele que se encontra preso, determinando o artigo 114.º, n.º 1, do C.P.P. que «a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao diretor do estabelecimento prisional respetivo e efetuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado».
III - Estando em causa uma norma especial que afasta necessariamente a aplicação da norma geral constante do artigo 113.º, não tendo o arguido sido notificado nos referidos termos e comparecido na audiência de julgamento, não pode deixar de concluir-se que, ao ter sido julgado na ausência, se verifica a nulidade insanável, prevista no citado artigo 119.º, n.º 1, al. c) do C. P. P.
IV - A obrigação de não mudar de residência, nem dela se ausentar por mais de cinco dias, sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado, prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 196.º do C. P. P., tem como pressuposto que a alteração de residência resulte de um ato voluntário do arguido.
V – O que não sucede com o arguido preso em que a sua ausência da morada constante do TIR decorre da situação de reclusão imposta pelo Estado.
VI - Neste circunstancialismo, afigura-se excessivo fazer impender sobre o arguido a obrigação de comunicar aos processos que tiver pendentes a sua atual situação prisional, atentas as limitações em que se encontra decorrentes da sua situação de reclusão.

Texto Integral


Acordam em conferência os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.
Nos presentes autos de processo abreviado, com data de 30/6/2021, foi proferido um despacho, de acordo com o qual, na sequência de promoção anterior do Ministério Público e para cujo respetivo teor se remeteu, o arguido foi considerado regularmente notificado da data designada para a audiência de julgamento, determinando-se, em conformidade, a notificação ao mesmo da sentença proferida através do estabelecimento prisional.

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, admitido por despacho de fls. 177, proferido em 6/9/2021, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«A. Por via do presente recurso, pretende-se colocar em crise o despacho proferido a dia 30.06.2021, não notificado até presente data ao Arguido e sua Defensora, do qual tomaram conhecimento presentemente e de forma unilateral, por meio de consulta do histórico do processo na plataforma Citius, e o qual assenta no teor do referido Despacho, nos termos do qual, se determina a regular notificação do arguido para a morada constante do TIR.
B. Nos presentes autos foi realizada audiência de discussão e julgamento a dia 17 de junho de 2021, sendo que a audiência de julgamento iniciou-se e completou-se na ausência do arguido, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º do CPP.
C. Realizada a respetiva audiência de julgamento e proferida a sentença que condenou o arguido pela prática do crime que vinha acusado, foi determinada a notificação da sentença a este último.
D. Em prol da impossibilidade de notificação do arguido da sentença proferida, foi feita a respetiva busca pela consulta online de recluso, nos termos do qual foi possível verificar que o arguido se encontrava á data da audiência de discussão e julgamento detido no estabelecimento prisional de braga,
E. Carreada essa informação aos autos, foi proferido despacho determinando que, tendo a notificação do arguido sido remetida para a morada dos autos, se considerava o mesmo regulamente.
F. Com efeito, a regular notificação exigida pelo nº 1 do artº 333º do CPP, pressupõe a observância das formalidades contempladas no nº 3 do artº 113 do CPP, tendo além do mais em conta a residência declarada pelo arguido aquando da prestação do TIR.
G. In casu, encontrando-se o arguido preso, no âmbito de outro processo, como foi possível averiguar, impunha-se a notificação do recorrente, nos termos do artº 114º, nº 1, do CPP, e, não tendo o arguido sido notificado de harmonia com o citado preceito legal, não pode ter-se por regularmente notificado para julgamento, tendo assim, sido cometida a nulidade prevista na alínea c) do artº 119º, do CPP.
H. O que invalidou o direito do Arguido de comparecer na audiência de discussão e julgamento, de prestar declarações se assim fosse a sua vontade, de assistir à produção de prova.
I. Pelo que, considerando que, à data da audiência de discussão e julgamento o Arguido encontrava-se impedido de comparecer de forma espontânea por se encontrar detido no Estabelecimento Prisional de Braga, à ordem de outro processo, não tendo este sido notificado da data de julgamento, nem determinada a deslocação do Arguido ao tribunal para comparecer na audiência de discussão de julgamento, não pode ter-se por regularmente notificado para julgamento, tendo assim, sido cometida a nulidade prevista na alínea c) do artº 119º, do CPP.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO DESPACHO PROFERIDO, NOS TERMOS DO QUAL VALIDA COMO REGULAR A NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO PARA COMPARECER EM AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO, SENDO SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DETERMINE A ANULAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO E CONSEQUENTE SENTENÇA PROFERIDA, DETERMINANDO A REPETIÇÃO DA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO DE JULGAMENTO, E DETERMINADO A NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL DE BRAGA, QUE DEVERÁ GARANTIR A SUA PRESENÇA. FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA».

3.
A Exma Procuradora da República na primeira instância veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Alegou, para o efeito, que:
“(…)
À data da referida audiência, desconhecia-se nos autos que o arguido se encontrava preso no EP de Braga à ordem de outro processo.
Na verdade, o arguido foi notificado do despacho que recebeu a acusação e designou dia para a audiência de julgamento na morada do TIR por si prestado. Assim, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, al. c), n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Penal, a aludida notificação feita ao arguido foi regular. Veja-se que foi, no início da audiência de julgamento, proferido despacho no qual se considerou o arguido regularmente notificado.
De acordo com o artigo 196.º, n.º 2 e n.º 3, al. c) e d), do Código de Processo Penal, o arguido indicou a morada nos autos para onde queria ser notificado e foi advertido de que as posteriores notificações seriam feitas para a morada indicada, excepto se o mesmo comunicasse outra.
Ora, o arguido não comunicou aos autos, como podia e devia, o facto de ter sido preso, sendo que a condição de reclusão não é por si só impeditiva de o mesmo comunicar aos processos que sabe ter pendentes tal situação.
Com efeito, ocorreu, por facto imputável ao arguido, o incumprimento previsto na al. d), do citado preceito legal, o que legitimou a realização da audiência de julgamento na sua ausência, nos termos do artigo 333.º, do CPP.
Ademais, o conhecimento de que o arguido, à data da realização do julgamento, se encontrava preso no EP adveio aos autos em momento posterior à realização do mesmo, isto é, nas diligências empreendidas tendentes à notificação pessoal da sentença proferida.
Nesta sequência, o despacho recorrido não merece censura ao ter determinado a notificação do arguido mediante requisição da sentença proferida, dado que já se tinha considerado que o arguido foi regularmente notificado da data da realização da audiência de julgamento.
(…)».
5.
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6.
Foi cumprido o disposto no art. 417º,nº2, do C.P.P., não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.

7.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº3, al.c), do diploma citado.

Cumpre decidir

II. Fundamentação

Definindo-se o recurso pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir passa apenas por saber se o arguido foi regularmente notificado do despacho que designou o dia para a realização da audiência de julgamento.
Alegando que a sua notificação da data designada para a audiência de julgamento não foi válida e regular, pretende o recorrente a anulação da audiência de julgamento e da sentença proferida, com a consequente designação de nova data para a sua realização e a sua notificação através do Estabelecimento Prisional, a fim de poder garantir a sua presença na mesma.
Em causa está assim saber se tendo a audiência de julgamento sido realizada na ausência do arguido, que não compareceu à mesma, impõe-se ou não a sua anulação, o que pressupõe resolvida a questão supra enunciada, ou seja, a de saber se a notificação ao arguido do despacho que designou a audiência de julgamento pode ser considerada válida e regular após o conhecimento de que a essa data se encontrava preso preventivamente à ordem de outro processo, como foi considerado no despacho recorrido
Para a apreciação da presente questão importa ter presente as seguintes disposições legais.

Artigo 61º (Direitos e deveres processuais)

1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:
a) Estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito;
(...)
6 - Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:
a) Comparecer perante o juiz, o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado;
(...).

Artigo 113º (Regras gerais sobre notificações)
10 - As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado; neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.

Artigo 196º (Termo de identidade e residência)
1 – (…)
2 - Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do nº 1, do artigo 113º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
3 - Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento:
a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no nº 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333º.
4 – (...)

Artigo 332º (Presença do arguido)
1 – É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos nos nºs 1 e 2, do art.333º e nºs 1 e 2 do art. 334.

Artigo 333º (Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência)
1 – Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 – Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida na s alíneas b) e c) do artigo 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efetuar no rol apresentado, a as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no nº. 6 do artigo 117º.
3 – No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do nº 2 do artigo 312.
4 – O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do nº2, do artigo 334.
5 – No caso previsto nos nos 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença.

Artigo 118º (Princípio da legalidade)
1 – A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.
2 – Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular.
3 – (...)

Artigo 119º (Nulidades insanáveis)
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.

Artigo 122º (Efeitos da declaração de nulidade):
1 – As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 – A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 – Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

Exposto o quadro legal aplicável e revertendo ao caso concreto, importa ter presente o que de relevante consta do processo:

Vejamos então.

- Em 3 de março de 2021, o arguido prestou Termo de Identidade e Residência, nele tendo mencionado como sua residência a «Rua …”, residência essa a indicada para receber notificações.
- Nessa altura, e em conformidade com o n.º 3 do artigo 196.º do Código de Processo Penal, o arguido tomou conhecimento:
«a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado.
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada, exceto se este comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada aos serviços onde os autos se encontrarem a correr nesse momento.
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legítima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º.
e) De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com extinção da pena.»
- Por despacho de 5 de maio de 2021 foi designado o dia 17 de junho de 2021, pelas 09h30, para a realização de audiência de discussão e julgamento e, em caso de adiamento, o dia 24 de junho de 2021, pelas 09h30. (Fls. 72).
- Em 18 de maio de 2021 foi expedida ao arguido carta de notificação por via postal simples com prova de depósito, para a «Rua … (Fls.119), tendo o Distribuidor Postal declarado que no dia 21/5/2021, «depositou no recetáculo postal domiciliário da morada acima descrita a notificação a ele referente.» (Fls. 122).
- Em 17 de junho de 2021 foi iniciada a realização da audiência de discussão e julgamento, tendo sido consignada a falta do arguido e proferido o seguinte despacho:
«Atendendo que o arguido se encontra regularmente notificado para a presente audiência, e não compareceu à mesma, vai o mesmo condenado em multa, que se fixa no mínimo legal.
Uma vez que a sua presença não é essencial desde o início da audiência de julgamento, o Tribunal irá dar lugar à mesma». (Fls.125/126).
- Realizada a audiência de julgamento, foi de imediato proferida a sentença, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º,nº1, do C.Penal, na pena de 60(sessenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00.
- No mesmo dia 17/6/2021 foi solicitado à autoridade policial competente a notificação da sentença ao arguido, vindo aquela a informar que não foi possível proceder ao cumprimento do mandado para notificação, em virtude de o arguido se encontrar detido no E.P. de Braga (Fls. 165/167).
- Na sequência do expediente remetido aos autos pela autoridade policial, veio o tribunal a ter conhecimento que o arguido se encontrava em prisão preventiva à ordem do processo 8/91.2GABCL - Juízo de Instrução Criminal de Braga - desde 8/4/2021.
- O arguido veio a ser notificado da sentença no Estabelecimento Prisional, em 2/7/2021 (Fls.170).
- O arguido encontra-se ininterruptamente preso desde o dia 8/4/2021 à ordem do identificado processo, de acordo com informação solicitada por este Tribunal da Relação em 7 /12/2021.
Ora, no que respeita à fase da audiência de julgamento, resulta da lei processual penal a regra geral da obrigatoriedade da presença do arguido, nos termos do citado artigo 332.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, só podendo o julgamento decorrer na sua ausência nos casos previsto nos artigos 333.º, n.ºs 1 e 2 e 334.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma.
Todavia, mesmo nestes casos, a possibilidade da realização da audiência na ausência do arguido está sempre dependente da sua prévia e regular notificação para comparecer e da advertência da possibilidade de a audiência se realizar na sua ausência, mesmo que não compareça.
Tal decorre, desde logo, do direito que o arguido tem de estar presente em todos os atos processuais que lhe digam respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência.
Tudo em conformidade com o que estabelecem os artigos 61.º, n.º 1, alínea a) e 333.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, respetivamente.
Tem-se por assente que o arguido foi julgado na ausência, nos termos do citado artigo 333º, nº2, cujo figurino se entendeu como preenchido, como resulta da ata da audiência de julgamento.
E tal assim aconteceu porque o tribunal partiu do pressuposto de que o arguido estava regularmente notificado, razão pela qual deu início à audiência de julgamento.
Regularidade que assentou no facto de a carta enviada para o notificar da data designada para a realização da audiência de julgamento ter sido depositada, como foi, na morada declarada pelo arguido aquando da prestação do TIR.
E efetuada assim a notificação, a lei presume que o destinatário da carta depositada pelo serviço postal a recebeu e tomou conhecimento do respetivo conteúdo, pese embora tal presunção seja ilidível, podendo sempre o interessado demonstrar que não tomou conhecimento do conteúdo da notificação por motivos alheios ao incumprimento dos deveres decorrentes do TIR, como se assinalou no Ac. do Tribunal Constitucional nº109/2012, DR nº72/2012, Série II, de 11/4/2012.

No caso vertente, à primeira vista, mostravam-se cumpridas as formalidades para a notificação do arguido e, em consequência, deveria o mesmo ter-se como regularmente notificado, tal como foi.
Porém, aquando das diligências tendentes à notificação da sentença ao arguido, veio o tribunal a ter conhecimento de uma realidade diferente, ou seja, que o arguido ficou em prisão preventiva em 8/4/2021, situação em que já se encontrava aquando da expedição da carta destinada a dar-lhe conhecimento do despacho que recebeu a acusação e designou data e hora para a realização da audiência de julgamento, a qual veio a ser depositada em 21/5/2021, na morada por si indicada aquando da prestação do TIR.
E, deste modo, não vemos como continuar considerá-lo regularmente notificado da data designada para julgamento, como se concluiu no despacho recorrido, ainda que por remissão para a promoção do Ministério Público, mas que não lhe confere a natureza de despacho de mero expediente, entendimento perfilhado pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto pois, nessa parte, pôs em causa um direito processual do arguido.
O arguido estava preso a essa data no estabelecimento prisional e, portanto, não pode concluir-se, sem mais, que teve conhecimento do teor da notificação.
Em matéria de notificações, o legislador teve em consideração a situação especial daquele que se encontra preso, determinando o artigo 114º, nº1, do C.P.P. que “ a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao diretor do estabelecimento prisional respetivo e efetuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado”.
Dispõe também o artigo 332º, nº2, do mesmo diploma, que “o arguido que deva responder perante determinado tribunal, segundo as normas gerais da competência, e estiver preso em comarca diferente pela prática de outro crime, é requisitado à entidade que o tiver à sua ordem”.
Tudo a apontar no sentido de que a norma constante do citado artigo 114º, sob a epígrafe “Casos Especiais”, trata-se de uma norma especial que afasta necessariamente a aplicação da norma geral constante do artigo 113º.
Ora, não tendo o arguido sido notificado por funcionário, nem tendo sido requisitada a sua comparência ao estabelecimento onde se encontrava preso, parece-nos que tanto basta para que se conclua que o arguido não foi “regularmente notificado”, pressuposto exigido pelo citado artigo 333º,nº1, para o seu julgamento na ausência.
Por conseguinte, não tendo o arguido sido notificado nos termos referidos e comparecido na audiência de julgamento, não pode deixar de concluir-se que ao ter sido julgado na ausência, verifica-se a nulidade insanável prevista no citado artigo 119º, nº1, al. c).
É certo que tendo o arguido prestado TIR, o mesmo ficou obrigado a não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado, como resulta do citado artigo 196º, nº1, al.c), do C.P.P..
Mas será que o arguido estava obrigado a proceder à tal comunicação?
Cremos seguramente que não.
Tal obrigação tem como pressuposto, quanto a nós, que tal alteração de residência resulte de um ato voluntário do arguido, o que não ocorreu no caso vertente, pois o arguido mantém a residência constante do TIR, tendo a ausência desta sido “forçada”, decorrente do facto de ter sido preso preventivamente à ordem de outro processo.
Para além disso, neste circunstancialismo, parece-nos excessivo fazer impender sobre o arguido a obrigação de comunicar aos processos que tiver pendentes a sua atual situação prisional, atentas as limitações em que se encontra, decorrentes da sua situação de reclusão.
É certo que o tribunal não tinha conhecimento desta conjuntura quando enviou a notificação, mas isso em nada altera a situação, uma vez que foi o próprio Estado que, emaranhado nas teias da burocracia que ele próprio desenvolve, não criou as condições para que esse conhecimento estivesse ao alcance do Órgão Tribunal, que era a entidade competente para levar a cabo a mesma. E disso não tem o arguido culpa.
Aliás, o próprio Estado reconhece que, estando alguém preso as regras da notificação têm que sofrer alterações: é o que resulta do nº 1, do artº 114º, onde se determina que “a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao director do estabelecimento prisional respectivo e efectuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado” (Acórdão da Relação de Coimbra de 9/2/2011, proc.522/01.6TACBR, in dgsi.pt).

Como também se fez constar no acórdão desse mesmo Tribunal, de 29/5/2013, proc.336/09.5PBCVL.C1, relatora Olga Maurício, in www.dgsi.pt:

“No caso, e independentemente de o arguido morar, ou não, no local que indicou no TIR, está provado que está preso desde 10/12/2010.
Isto significa que a ausência do arguido não é voluntária, não dependeu de ato de vontade do arguido. Ao invés, trata-se de uma ausência imposta pelo Estado português, aos cuidados de quem o arguido está desde aquela data.
Assim sendo, não é aceitável que se trate esta situação como se de ausência voluntária se tratasse, se onere o arguido com a obrigação de comunicação da ausência da residência e, mais, se tenha o arguido como validamente notificado, quer da acusação, quer do despacho que designou dia para julgamento.
É que estando o arguido aos cuidados do Estado desde dezembro de 2010 o razoável é que o próprio Estado que o deteve informasse os demais serviços públicos da situação daquele cidadão.
Aliás, e isto é tanto assim quanto resulta que a detenção se deveu ao sistema de justiça que, entretanto, o procurou, sem êxito, para o notificar”.
Não comungamos assim do entendimento seguido no acórdão trazido à liça pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer (Ac. da Relação de Lisboa, de 6/4/2015, processo3/03.3IELSB), antes perfilhando do adotado nos acórdãos desta Relação de Guimarães, de 18/12/2012, proferido no processo 706/08.6GAFLG.G1, relator Cruz Bucho, de 25/10/2021, proc. 505/18.7GASEI, relator Armando Azevedo, nos acórdãos da Relação de Coimbra, já citados e da Relação do Porto de 4/7/2012, proc.765/09.4PRPRT, relator Joaquim Gomes, todos disponíveis in dgsi.pt.
Aqui chegados, sem necessidade de outras considerações, não se verificando os pressupostos do julgamento na ausência, a presença do arguido era obrigatória (art.332, CPP), pelo que, ao realizar-se o julgamento sem a sua presença, foi cometida a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c), do CPP, a qual, conforme entendimento uniforme na doutrina e jurisprudência, ocorre também nos casos em que o arguido está ausente processualmente, em virtude de não lhe ter sido garantido o direito de estar presente, por não ter sido regularmente notificado da data designada para a realização da audiência de julgamento.
Tal nulidade, arguida pelo recorrente, mas que pode ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, torna inválido o ato em que se verificou, bem como os que dela dependem, o que importa a anulação do julgamento e do subsequente processado com ele relacionado, conforme disposto no citado artigo 122º, nº1.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso e, consequentemente:

- Revogar o despacho recorrido.
- Declarar nulo o julgamento efetuado na ausência do arguido, bem como todo o processado posterior que com ele está relacionado.
- Determinar que seja proferido despacho designando novas datas para a realização da audiência de julgamento, seguindo os autos os termos processuais posteriores.

Sem tributação.

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 16 de dezembro de 2021

A Juiz Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
O Juiz Desembargador Adjunto
António Teixeira