DECLARAÇÃO CONFESSÓRIA EXTRAJUDICIAL
REPRESENTAÇÃO
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
VALOR PROBATÓRIO
PREÇO
Sumário


I) A declaração inserida no contrato de compra e venda, em que se declara já ter sido pago o preço, prestada pelo procurador, em nome do representado (vendedor) e em seu próprio nome (como comprador), que realizou negócio consigo próprio, não pode ser considerada como confessória do pagamento do preço, pelo manifesto conflito de interesses existente, pois, o procurador emite declaração em seu próprio beneficio e que é desfavorável ao representado.
II) Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo artigo 262.º do Código Civil como o acto pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes representativos. Trata-se, portanto, de acto unilateral, por intermédio do qual, é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus), em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos.
III) A relação pessoal de fidúcia do representado no representante, implicada na outorga de poderes representativos, na particular situação do autocontrato, requer uma empenhada e eficaz defesa dos interesses prosseguidos, devendo o representante agir com imparcialidade, probidade e moralidade, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, que confiou na sua honesta actuação.
IV) A expressão “pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes”, constante do teor da procuração que está subjacente ao negócio consigo próprio, deve ser interpretada no sentido em que o faria um declaratário normal, isto é, de “um preço equilibrado e justo”, o preço real de mercado, que garante a lealdade de comportamento que o representante deve assumir, para poder, de boa fé, gerir a conflitualidade dos interesses em presença, de forma a estabelecer o necessário equilíbrio, sob pena de uma alienação por um valor desfasado da realidade ser um índice objectivo e seguro do abuso da representação.
V) Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado.
VI) A R., ao declarar vender a si própria o prédio dos autos, por valor bastante inferior ao seu valor de mercado, o que não era do seu desconhecimento, atenta a tipologia e localização do imóvel, desrespeitou a relação de fidúcia depositada em si pelo representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, ou seja, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários, actuando em abuso de representação, o que gera a ineficácia do negócio em relação ao representado. (sumário do relator)

Texto Integral



Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F…, representada pelo Cabeça-de-Casal C…, D…, V… e Ca…, intentaram acção comum, contra D…re, pedindo:
a) Ser a Ré condenada a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade;
b) Ser decretada a nulidade parcial da procuração em causa nos autos, na parte em que foi declarado pelo outorgante F… conferir à Ré poderes para Prometer “comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis” e, bem assim, na parte em que declarou “para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º1 do artigo 261 do Código Civil”, por indeterminabilidade do objecto, nos termos do artigo 280º do Cód. Civil e, por via disso, ser declarado ineficaz relativamente à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de F… o contrato de compra e venda celebrado por documento particular autenticado, no dia 29 de Julho de 2019, supra descrito e identificado em 9º, 10º e 11º desta petição e, consequentemente, anulado o respectivo registo de aquisição a favor da Ré;
c) Subsidiariamente, ser declarada a ineficácia relativamente à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de F… do negócio que a Ré celebrou consigo mesma, correspondente à compra e venda mencionada na alínea anterior, por ter sido celebrado com abuso dos poderes de representação, nos termos dos arts. 268º e 269º do Código Civil;
d) Subsidiariamente, ser declarado que o contrato de compra e venda dos autos foi simulado, por se ter tratado de uma transmissão gratuita e, por conseguinte, ser declarada a sua nulidade, quer por simulação, quer por falta de poderes de representação da Ré para tal transmissão gratuita;
e) Ser reconhecido à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F… o direito de propriedade sobre o prédio urbano destinado a habitação, situado na Rua Serpa Pinto, …, Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, da freguesia de Alvor;
f) Ser ordenado o cancelamento de toda e qualquer inscrição de aquisição do prédio urbano identificado na alínea anterior a favor da Ré, nomeadamente, a inscrição AP. 998 de 2019/07/31;
g) Ser declarado o cancelamento de quaisquer outras inscrições registrais que incidam sobre o prédio urbano supra identificado, anteriores ao registo da presente acção;
h) Subsidiariamente, ser a Ré condenada a pagar à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F… a quantia de €:130.000,00 (cento e trinta mil euros), acrescida dos juros vencidos, à taxa legal, vencidos desde o dia 29-07-2019, no montante de €:826,30 (oitocentos e vinte e seis euros e trinta cêntimos) e vincendos, à taxa legal, até ao integral e efectivo pagamento, a liquidar a final;
i) Ser a Ré condenada a pagar/reembolsar, a titulo de enriquecimento sem causa, à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F…, a quantia de €:42.735,95 (quarenta e dois mil setecentos e trinta e cinco euros e noventa e cinco cêntimos), acrescida de juros até à data do seu integral e efectivo reembolso, correspondente às quantias depositadas nas instituições bancárias, unicamente em nome do falecido, à data de 12-06-2019 no caso do BPI e à data de 13-06-2019, no caso do Banco Santander Totta, acrescida de juros, à taxa legal, até ao integral e efectivo pagamento, a liquidar em execução de sentença; e
j) Ser a Ré condenada a pagar/reembolsar, a titulo de enriquecimento sem causa, à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F…, a quantia correspondente às rendas que forem sendo pagas pela inquilina, relativas ao 1º andar do prédio urbano dos autos, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma delas até ao integral e efectivo pagamento, cujos valores devem ser liquidados em execução de sentença.
k) Ser a Ré, ainda, condenada nas custas do processo, incluindo as de parte.

2. Para tanto, alegaram, em síntese, que o falecido Fernando emitiu procuração a favor da R., atribuindo-lhe um conjunto de poderes, entre os quais os de vender imóveis, pelo preço e condições que entendesse, no uso da qual a R. vendeu o dito imóvel a si própria por um valor inferior ao de mercado; que a ré sabia que não tinha legitimidade para vender o imóvel, por ser indeterminado e totalmente vago o conteúdo da procuração, e que a mesma jamais pagou o preço de compra referido na escritura; que o acto praticado estava fora dos poderes atribuídos à ré enquanto representante do falecido, constituindo ademais um negócio consigo mesmo, e lesante dos interesses do representado, sendo ineficaz quanto à sua herança; e que tal implicaria igualmente a obrigação de devolução à herança das quantias de renda abusivamente recebidas da inquilina do 1º andar do imóvel.
Para o caso de assim não se entender, concluem que deveria a ré ser condenada a pagar-lhes a quantia correspondente ao preço da venda, de € 130.000.
No respeitante às contas bancárias, consideraram ter sido abusivo o levantamento de quantias da conta do falecido, sendo certo que todo o dinheiro existente nessas contas lhe pertencia, devendo a R. repor o dinheiro de que se apropriou.

3. A R. contestou, alegando ser legal o negócio efectuado no uso de procuração legal e legitimamente outorgada pelo falecido, de acordo com o interesse deste e por um valor de mercado apropriado e superior ao valor patrimonial do imóvel vendido, tendo pago o preço e os impostos devidos.
Quanto às contas bancárias, alegou que o falecido a autorizou-a a movimentar as contas, tendo-as movimentado para acudir a despesas deste no uso dessa autorização (e não com base em poderes emergentes da procuração).

4. Realizou-se a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a prova pericial, com vista à avaliação do imóvel em causa, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, na qual se decidiu:
«… julga-se a presente acção parcialmente procedente e condena-se a R. a pagar aos AA. a quantia de € 130.000, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da compra e venda, 29 de Julho de 2019, até integral pagamento.»

5. Inconformados com a sentença recorreram ambas as partes.
5.1. A R. pretende a revogação da sentença, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª A sentença recorrida condenou a R/Recorrente a pagar aos AA/Recorridos a quantia de € 130.000,00 acrescida de juros à taxa legal, desde a data da compra e venda, 29 de Julho de 2019, até integral pagamento.
2.ª Entendeu o tribunal “a quo” dar como não provado, o pagamento do preço da transacção do imóvel, pela R/Recorrente.
3.ª Considerou o Tribunal “a quo”, que o documento particular denominado “Contrato de Compra e Venda”, somente certifica / atesta / assegura que no acto houve a transmissão do imóvel e que foi declarado, ter sido efectuado o pagamento.
4.ª Considerou o tribunal “a quo” que não se pode dar como provado que o preço foi, efectivamente, pago.
5.ª Que cabia ao comprador, a prova do pagamento do preço, como facto extintivo da sua obrigação, artigo 342º, n.º 2 do CC.
6.ª Entende, a R/Recorrente que a prova do pagamento do preço da transacção do imóvel foi produzida.
7.ª É verdade que, os documentos autênticos são revestidos de força probatória, fazendo prova plena, dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
8.ª Também é verdade que, a força probatória não abrange os factos correspondentes a declarações dos outorgantes.
9.ª Mas se é o vendedor que afirma, perante o notário, qual o montante do preço estipulado e afirma já o ter recebido, a declaração de já ter recebido o preço, implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável e beneficia a R/Recorrente.
10.ª A declaração de já ter recebido o preço, é qualificada como confissão.
11.ª Tratando-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feito pela parte contrária, admissível pela sua própria essência que goza de força probatória plena, contra o confitente.
12.ª Portanto, os documentos autênticos, fazem prova plena da declaração de ter sido recebido pelo vendedor, o preço acordado.
13.ª A confissão extrajudicial podia ser destruída pela prova do contrário.
14.ª Cabia os AA/Recorridos o ónus da prova de que o preço não tinha sido pago, demonstrando a falsidade do documento autêntico ou fazer a prova da falta ou vício da vontade que inquinaram a declaração “confessória”.
15.ª No entanto, os AA/Recorridos não fizeram essa prova.
16.ª Impõe-se a alteração da matéria de facto, dando-se como provado o pagamento do preço da transacção do imóvel.
17.ª Deve, em consequência, ser o presente recurso de Apelação julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida, a qual deve ser substituída por Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, em que declare dar-se provado, o pagamento do preço da transacção do imóvel, pela R/Recorrente.

5.2. Os AA. pretendem a revogação da sentença e a condenação da R., nos termos e com os fundamentos que indicam nas seguintes conclusões:
1.ª Os 2º, 3º e 4º Autores pediram, entre outros, pediram a condenação da Ré a reconhecê-los como únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade, não tendo a Ré oferecido qualquer contestação a este pedido e aceitou, inclusivamente, que a acção apenas quanto a este deveria proceder.
2.ª Esta matéria resultou provada nos autos, conforme se retira do ponto 2 da factualidade provada patente na douta Sentença recorrida.
3.ª Contudo, a douta Sentença dos autos não se pronunciou sobre esta questão, incorrendo, s.m.o., em vício de nulidade por omissão de pronúncia, tal como dispõe o artigo 615º, n.º1 al. d) do CPC, suscitando-se esta questão, nos termos e para os efeitos previstos no art.º617, n.º1 e n.º2 do CPC, devendo a sentença ser reformada no sentido de ser a Ré condenada a reconhecer os 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de Fernando Custódio Alexandre, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade.
4.ª O falecido F… outorgou a favor da Ré procuração, conferindo-lhe, entre outros, os concretos seguintes poderes, expressos na alínea f) do ponto 6 dos factos provados:
“f) Prometer comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis;”
5.ª Atento o teor da procuração, pela leitura do seu texto, constata-se que, neste concreto ponto, o seu objecto é impossível de apurar. A sua redacção é vaga e indeterminada, não sendo possível determinar sobre que imóvel incidiam os concretos poderes em causa, designadamente, sobre que imóvel estaria a Ré habilitada a celebrar a sua venda.
6.ª Não é pelo simples facto de o “procurador” ser titular de apenas um bem imóvel, no momento em que outorgou a procuração, para que tal seja suficiente no sentido de se concluir ser esse o seu objecto determinável. Até porque, entretanto, após a emissão da procuração, poderia ter adquirido outro, quiçá através dos próprios poderes de representação que previamente havia conferido, e que em concreto o foram à Ré (poderes para “prometer comprar e comprar”).
7.ª Tal como alerta ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, (in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 90) enquanto negócio jurídico, a procuração está sujeita aos requisitos enunciados no art.º 280.º do C.C. e às proibições estabelecidas nos artigos seguintes, defendendo dever ser considerada “suficientemente determinada uma procuração geral para administrar”, mas já “uma procuração para alienar o que o procurador entenda cairia na indeterminação”, devendo, por isso, considerar-se nula, por indeterminabilidade do seu objecto, nos termos do n.º 1 daquele art.º 280.º.
8.ª Veja-se, neste sentido, o quanto foi decidido no Ac. TRG de 10-05-2018, de proferido no Processo n.º 2637/16.7T8VCT.G1 e disponível em www.dgsi.pt.
9.ª Por outro lado, não pode deixar decair na indeterminabilidade a procuração sub judice no que toca aos poderes transcritos na al. g) do ponto 6 da factualidade provada, nomeadamente:
“g) Para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261 do Código Civil”
10.ª Afigura-se, aqui também, que não é determinável qual o concreto negócio que o falecido, representado, consentiu que a Ré, representante, celebrasse consigo mesma.
11.ª O negócio consigo mesmo carece de uma autorização, não só expressa como também específica. Não se basta com uma autorização geral, atentos os riscos que o negócio consigo mesmo envolve, não podendo deixar de ser específica e inequívoca, sendo o negócio anulável, nos termos do art.º 261º, n.º 1 do Cód. Civil, caso o representado não tenha especificadamente consentido na sua celebração.
12.ª Os poderes conferidos à Ré para o negócio consigo mesma, supra transcritos, são nulos, por indeterminabilidade do seu objecto, ao abrigo do disposto no artigo 280º do Cód. Civil e, nessa parte, parcialmente nula a procuração em causa, e consequentemente, deve, ser declarado ineficaz relativamente aos Autores o contrato de compra e venda celebrado por documento particular autenticado, no dia 29 de Julho de 2019 sub judice.
13.ª Caso não fosse de atender aos vícios invocados em relação à procuração em causa nos autos, ainda assim, não pode deixar de concluir-se que a compra e venda celebrada pela Ré consigo mesma, com base na procuração dos autos, não pode deixar de ser ineficaz relativamente aos Autores, neste caso, por força do conflito de interesses decorrente do manifesto abuso dos respectivos poderes de representação.
14.ª Tendo-se tratado de uma aquisição onerosa, o conflito de interesses por parte da Ré, procuradora, era inegável, sendo que tal só não ocorreria se o preço estivesse tabelado ou se a mesma tivesse poderes para vender por um certo preço – pois que só assim, estando o conteúdo do contrato pré-determinado, o representado não poderia ser prejudicado pelo facto de o representante concluir o contrato consigo mesmo.
15.ª A Ré ao declarar vender a si própria o prédio dos autos, pelo valor de €:130.000,00 desrespeitou a relação de fidúcia depositada em si pelo representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários.
16.ª Não pode deixar de se ter presente toda a factualidade que, a respeito deste imóvel, resultou provada (cfr. ponto 13 dos factos provados na douta sentença) e, bem assim, o teor da perícia levada a cabo nos autos, para determinação do valor do imóvel, e da avaliação que sobre este foi feita pela imobiliária Engel & Volkers.
17.ª O prédio urbano, situa-se na vila de Alvor, localidade pitoresca e muito procurada como destino turístico. Trata-se de uma moradia geminada, composta por dois pisos, que constituem unidades de utilização independente, ambas destinadas a habitação. O R/C é composto por 3 divisões, copa-cozinha, casa de banho, hall e despensa e o 1º andar, com 3 divisões, copa-cozinha, hall e marquise, com a área total de 168 m2. Fica localizado perto do centro da vila de Alvor e com vista para a ria de Alvor. Trata-se de um imóvel com inegável valor económico.
18.ª Tal como resulta do teor da perícia – cfr. considerações finais – “o valor venal unitário teve em conta o tipo de imóvel, o seu uso definido, o seu estado de conservação e localização”; nestas refere-se, ainda, que “o valor demarcado (VPT) estimado é coerente com os obtidos na prospecção de mercado efectuada”. Concluiu-se, na perícia dos autos, que o valor venal do edifício, era de: (PVT (r/chão e 1º andar: 95.000€ + 88.000€) = €:183.000,00 – cfr. pág. 13 do Relatório Pericial dos autos. Note-se, também, recorrendo apenas ao método comparativo de mercado, que a perícia nos indica que o valor do edifício ascenderia à quantia de €:198.000,00 [95.000€ (r/chão) + 103.000€ (1º andar)] – cfr. págs. 10, 11 e 12 do Relatório Pericial. Para além disso, o prédio urbano em causa foi igualmente avaliado, a pedido dos Autores, pela empresa imobiliária Engel & Volkers, em €:285.000,00 – cfr. ponto 13 da matéria de facto provada.
19.ª Tal como se considerou no douto Ac. do STJ, de 16-11-1998, BMJ n.º 381, 640, «a expressão “pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes”, constante do teor do aludido instrumento de procuração, deveria ter sido interpretada pela ré com o significado que lhe teria atribuído um declaratário normal, isto é, de “um preço equilibrado e justo”, porquanto ninguém, de boa-fé, pode entender como conveniente uma venda ao desbarato.»
20.ª Ainda sobre este aspecto jurídico da causa, e tal como a sentença recorrida se lhe refere, veja-se, no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 07.06.2011 (rel. HELDER ROQUE) onde se diz: “A expressão “pelo preço, condições e cláusulas que achar por convenientes”, constante do teor da procuração que está subjacente ao negócio consigo próprio, deve ser interpretada no sentido em que o faria um declaratário normal, isto é, de “um preço equilibrado e justo”, o preço real de mercado que garante a lealdade de comportamento que o representante deve assumir, para poder, de boa-fé, gerir a conflitualidade dos interesses em presença, de forma a estabelecer o necessário equilíbrio, sob pena de uma alienação por um valor desfasado da realidade ser um índice objectivo e seguro do abuso da representação”.
21.ª Ao representante, porque o representado nele confia sobre a defesa dos seus interesses pessoais, não pode ser dispensada uma actuação segundo as regras da boa-fé – art. 762º, nº1, do Código Civil – reforçada, mais a mais se, por via da procuração com poderes para vender a si mesma – clara situação de auto-contrato – estava implicada uma forte relação de confiança, como nos parece ser o caso, e que tornava a actuação da Ré ainda mais exigente sobre o prisma da imparcialidade.
22.ª Ora é claro e inequívoco que a Ré representante – ainda que se pudesse admitir ter actuado dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados – utilizou, conscientemente, esses poderes, em sentido, substancialmente, contrário ao seu fim ou às indicações do representado.
23.ª Portanto, os recorrentes não podem concordar com a douta fundamentação vertida na sentença recorrida, designadamente, quando “(…) não se considera que o preço da venda, podendo ter sido mais elevado, seja desajustado à realidade do valor do imóvel (…)”, tendo simplesmente em conta o seu valor patrimonial tributário, apurado em 2018, abstraindo-se do seu comprovado e substancialmente superior valor de mercado e entendendo que a Ré não estava obrigada a indagar a esse respeito. Está em causa, pelo menos, a uma diferença de €:53.000,00. Provavelmente, vender-se-ia por um valor ainda superior…
24.ª Menos ainda se concorda e compreende ter o Tribunal a quo, relativamente à Ré, considerado “(…) que a sua conduta foi cautelosa, posto que um preço de venda maior teria indiscutivelmente efeitos em matéria fiscal. (…)”. O verdadeiro interesse e incontestável do representado, como bem se compreende, encontra-se indissociável e directamente relacionado à maior quantia possível que possa ser colectada e liquidada a nível fiscal, na justa medida em que quanto mais alto for o imposto, mais alto terá sido o preço da venda, assim como o lucro.
25.ª Quem se aproveitou da venda do edifício por um preço substancialmente inferior ao real foi, obviamente, a Ré, que o comprou. Não só pela quantia francamente inferior a que se obrigou a pagar, como também pela menor quantia associada à prévia liquidação do IMT e do IS relativos ao contrato de compra e venda, o que só vem reforçar a ideia de que a Ré acautelou o seu interesse acima dos do seu representado. Descurou o representado e com isso tirou proveito.
26.ª O negócio consigo mesmo sub judice, celebrado pela Ré, com base em poderes de representação, exorbitou de forma consciente os interesses do seu representado, dado o desnível verificado entre o valor real e de mercado do prédio e o preço pelo qual foi alienado, índice objectivo e seguro do abuso da representação, sendo tal negócio ineficaz em relação ao representado nos termos dos arts. 268º e 269º do Código Civil e, por conseguinte, ineficaz em relação aos Autores, seus únicos e universais herdeiros e representantes da sua Herança ilíquida e indivisa.
27.ª Se por hipótese, que não se concede, não obtivesse provimento qualquer dos argumentos recursivos anteriormente expostos, sempre se dirá que bem andou a sentença, ao decidir pela condenação da Ré pagar à Autora Herança a quantia de €:130.000,00 (cento e trinta mil euros), correspondente ao preço declarado no contrato de compra e venda em causa, que não logrou provar ter pago, acrescido dos juros legais, vencidos desde o dia 29-07-2019, à taxa legal, até ao integral e efectivo pagamento, conforme foi peticionado, a título subsidiário.
28.ª Sendo dado provimento, conforme se espera, à presente apelação, deixa de existir qualquer causa que legitime a Ré no recebimento das rendas referentes ao 1º andar do imóvel em causa nos autos, cuja renda ascende à quantia mensal de €:184,79.
29.ª Assim, inválida, para os concretos efeitos, a procuração outorgada à Ré, com a qual esta celebrou o negócio consigo mesma dos autos e, independentemente disso, sempre ineficaz o contrato de compra e venda dos autos em relação aos AA, não existe qualquer causa que legitime a Ré a fazer suas as rendas que forem sendo pagas pela inquilina, enquanto se mantiver válido tal arrendamento.
30.ª Pelo que, neste conspecto, nos termos do disposto no art.º. 473º do Código Civil, está a Ré obrigada a restituí-las, por enriquecimento sem causa, acrescidas de juros, contados desde o vencimento de cada uma delas até ao integral e efectivo pagamento, cujos valores devem ser liquidados em execução de sentença.
31.ª No que se refere à questão relacionada com as contas bancárias, provou-se que até ao mês de Junho de 2019, o falecido era titular (único) de duas contas bancárias por si constituídas, há mais de vinte anos, nomeadamente, cabalmente identificadas nos autos, em duas instituições bancárias. Em 13 de Junho de 2019, numa conta do BPI dispunha de findos no valor de €:34.124,03 e noutra, no Santander Totta, era titular do valor global de € 8.611,92 – cfr. ponto 14, 18 e 19 dos factos provados.
32.ª Os valores existentes naquelas contas pertenciam exclusivamente ao falecido, sendo resultantes das suas poupanças e pensão de reforma – cfr. ponto 15 dos factos provados.
33.ª A Recorrida não logrou provar, nem tão pouco o alegou, que o dinheiro lhe fora doado. Tão pouco se provou que a Ré passasse a ser proprietária desses valores pelo facto de a ter passado a ser titular nas contas bancárias em causa.
34.ª Provou-se, apenas que desde o momento em que passou a também ser delas titular, a Ré podia movimentá-las.
35.ª Isto nada significa quanto à propriedade desses valores. Apenas que a Ré, aproveitando-se do facto de ser titular das contas, concretizou diversas transferências de valores, num curto período de tempo, para a sua própria conta bancária.
36.ª Também não se provou qual foi a causa que determinou a sua autorização para movimentar o dinheiro. Logo, também não se provou que o dinheiro lhe tivesse sido doado. Provou-se, isso sim, que o dinheiro era do Autor da Herança.
37.ª A mera titularidade da conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo até porventura a um terceiro, não havendo, assim, que confundir a titularidade da dita conta com a propriedade dos valores/importâncias nela depositadas. Nas relações internas, desconhecendo-se o acordo ou a relação jurídica de que resultou a sua abertura, há que presumir, nos termos dos art.ºs 512º e 516º do Cód. Civil, que Recorrente e Recorrida participam no crédito em partes iguais.
38.ª Portanto, ainda que fosse de presumir uma situação de contitularidade, jamais se encontra qualquer causa justificativa da apropriação praticamente total dos valores a seu favor.
39.ª A presunção de comparticipação em partes iguais da titularidade do crédito pode ser ilidida, mediante em prova em contrário. Assim decidiu a Relação do Porto, por acórdão de 14.01.98 (CJ, I, p. 183), segundo o qual, "não se confunde a titularidade das contas com a propriedade das quantias depositadas, pelo que a presunção estabelecida no artigo 516º do Código Civil é ilidível, podendo provar-se que tais quantias pertencem a um só, ou a alguns, dos titulares, ou que as quotas destes são diferentes, ou até que pertencem a um terceiro".
40.ª Aos depósitos bancários são aplicáveis os princípios da solidariedade activa estatuídos nos artigos 513º e 516º do Código Civil, que estabelecem, em síntese, a presunção de comparticipação em partes iguais no crédito - ou seja, presume-se, enquanto se não fizer prova em contrário, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta (cfr. Ac. STJ, 17,06.99, CJSTJ, II, p. 152).
41.ª A Ré, ainda que fosse titular da conta e, por isso, a pudesse movimentar, não tem qualquer causa justificativa que lhe permita fazer suas as quantias que movimentou a seu favor, nem mantê-la na sua posse, pelo que nos termos do disposto no art.º. 473º do Código Civil, está obrigada a restituí-la, por enriquecimento sem causa.
42.ª Tal enriquecimento traduz-se num valor de €:36.672,10, correspondente à diferença existente nas contas bancárias do falecido, após as movimentações, sem qualquer causa justificativa, efectuadas pela Ré, conforme demonstram os autos. Fê-lo porque era titular da conta, não proprietária dos valores em causa. Enriqueceu, portanto, sem causa justificativa à custa do proprietário dessas quantias.
43.ª Se assim não fosse entendido, quando muito, sempre se concluiria que, atenta a presunção da propriedade desses fundos, a favor do falecido e da Ré, sempre deve esta restituir metade do referido valor com que se locupletou, sem qualquer causa justificativa.
44.ª A douta sentença recorrida violou os arts. 261º, n.º 1, 268º, 269º, 280º, 473º, 513º, 516º, 762º, n.º 1, do Código Civil e os arts. 608º, n.º 2 e 615º, n.º 1 al. d) ambos do CPC

Nestes termos e nos demais de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada, sendo proferido Acórdão que:
a) Condene a Ré a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade;
b) Decrete a nulidade parcial da procuração em causa nos autos, na parte em que foi declarado pelo outorgante F… conferir à Ré poderes para Prometer “comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis” e, bem assim, na parte em que declarou “para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º1 do artigo 261 do Código Civil”, por indeterminabilidade do objecto, nos termos do artigo 280º do Cód. Civil e, por via disso, ser declarado ineficaz relativamente à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de F… o contrato de compra e venda celebrado por documento particular autenticado, no dia 29 de Julho de 2019 e, consequentemente, anulado o respectivo registo de aquisição a favor da Ré;
c) Subsidiariamente, declare a ineficácia relativamente à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de F… do negócio que a Ré celebrou consigo mesma, correspondente à compra e venda mencionada na alínea anterior, por ter sido celebrado com abuso dos poderes de representação, nos termos dos arts. 268º e 269º do Código Civil;
d) Reconheça à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F… o direito de propriedade sobre o prédio urbano destinado a habitação, situado na Rua Serpa Pinto, n.º …, Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, da freguesia de Alvor e, por via disso, ordenado o cancelamento de toda e qualquer inscrição de aquisição do prédio urbano identificado na alínea anterior a favor da Ré;
e) Condene a Ré a pagar/reembolsar, a titulo de enriquecimento sem causa, à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F…, a quantia de €:36.672,10
f) Condene a Ré a pagar/reembolsar, a titulo de enriquecimento sem causa, à Autora Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F…, a quantia correspondente às rendas que forem sendo pagas pela inquilina, relativas ao 1º andar do prédio urbano dos autos, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma delas até ao integral e efectivo pagamento, cujos valores devem ser liquidados em execução de sentença
g) Condene a Ré, ainda, nas custas do processo, incluindo as de parte.

6. Os AA. responderam ao recurso da R., pugnando pela improcedência do mesmo e requereram a ampliação do objecto do recurso, pedindo que seja “julgado provado o não pagamento do preço por parte da Ré”.

7. Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
O Mmo. Juiz a quo, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 617º do Código de Processo Civil, apreciou a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, invocada pelos AA. no recurso, e, suprindo-a, decidiu: “condenar a Ré a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade”.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
A) Do recurso da R.
(i) Da alteração da matéria de facto quanto ao pagamento do preço e consequências na decisão de direito;
B) Do recurso dos AA.
(ii) Da nulidade da sentença;
(iii) Da nulidade parcial da procuração em causa nos autos, com referência à venda do imóvel, por indeterminabilidade do seu objecto;
(iv) Da ineficácia do negócio de compra e venda, efectuado no uso da dita procuração, por abuso dos poderes de representação;
(v) Da restituição das rendas recebidas pela R.; e
(vi) Da restituição dos valores levantados e/ou transferidos das contas bancárias identificadas nos autos.
C) Da ampliação do recurso quanto à matéria de facto, pedida pelos AA. nas contra-alegações apresentadas em resposta ao recurso da R..
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 30 de Julho de 2019, na freguesia e concelho de Portimão, faleceu F…, no estado de solteiro, maior, natural da freguesia de Alvor concelho de Portimão, onde tinha a última residência habitual na Rua Serpa Pinto, número … (resposta ao artº 1º da p.i.).
2. O Falecido deixou testamento, outorgado em 22 de Abril de 2019, no Cartório Notarial da Dra. Isabel Loureiro, sito na Avenida Afonso Henriques, Edifício “a Fábrica”, Bloco C, Rés-do-chão, Loja H, em Portimão, iniciado a folhas vinte e oito, do livro de testamentos públicos e escrituras de revogação número Dez – T, pelo qual declarou:
- “Que institui seus únicos e universais herdeiros, em comum e partes iguais:
- D…, divorciada, NIF 209762250, residente nos….
- V…
-C…
A Ré era sua cunhada por via do casamento com um irmão do falecido (resposta aos artºs 4º da p.i. e 4º da contestação).
3. O Falecido era dono do prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua Serpa Pinto, …, Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, da freguesia de Alvor, por o haver adquirido, por compra, em 1976, a Fr…, G…, J…, Jo… e Ma…, aquisição essa que se encontrava registada a seu favor através da Inscrição AP.6 de 1976/06/03 (resposta ao artº 5º da p.i.).
4. Prédio esse onde sempre manteve o seu domicílio e residência, designadamente, no piso correspondente ao R/C, apesar de, nos últimos tempos, devido à sua idade avançada e debilidade física e estado de saúde, ter passado a residir na Santa Casa da Misericórdia de Alvor (resposta ao artº 6º da p.i.).
5. No dia 7 de Junho de 2019, o falecido F… declarou, por escrito e sob o título de Procuração:
“(…) que constitui sua bastante procuradora, De… (…) a quem confere os necessários poderes para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os seus bens, assinando tudo o que for necessário aos aludidos fins e desse modo:
a. Dar ou tomar de arrendamento, ceder ou tomar a exploração de quaisquer prédios de qualquer natureza, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas, prestações, montantes e condições que entender convenientes, pagar ou receber rendas ou prestações, passar e assinar recibos, renovar, revogar, prorrogar, denunciar ou rescindir os respectivos contratos;
b. Receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ao outorgante, por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações; depositar e levantar capitais em bancos, instituições bancárias, casas bancárias e outros estabelecimentos de crédito, assinando recibos ou cheques;
c. Usar, desistir ou renunciar do direito de preferência que assista ao outorgante em qualquer acto ou contrato;
d. Representá-lo junto de quaisquer Entidades Públicas, Privadas ou Administrativas, designadamente, nas Conservatórias do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel, IMT, Cartórios Notariais, Câmaras Municipais, Serviços de Segurança Social e da Caixa de Previdência, Serviços on-line do Balcão do Empreendedor, Serviços Municipalizados, Governo Civil, Telecomunicações, Empresas de Distribuição e Comercialização de Energia ou outra, Estações de Correios, Companhias de Seguros, Bancos e nos Serviços de Finanças liquidar impostos ou contribuições, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo título de anulação e as suas correspondentes importâncias, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los;
e. Apresentar relações de bens ou mapas de inquilinos, podendo ainda prestar quaisquer declarações complementares;
f. Prometer comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis;
g. Para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º 1 do artigo 261 do Código Civil;
h. Fazer ou aceitar confissões de dívida, pelos montantes, ao juro, condições, obrigações e garantias que entender mais convenientes;
i. Fazer ou aceitar cessões de crédito e dá-lo por notificado naquelas em que ele representado seja interessado, aceitar e endossar letras representativas de operações bancárias ou de empréstimos de capitais entre particulares; distratar contratos de mútuo, recebendo os capitais mutuados e deles prestar as correspondentes quitações, podendo autorizar o cancelamento, total ou parcial de quaisquer inscrições hipotecárias que hajam sido feitas a favor dele outorgante;
j. Com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extrajudiciais, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações;
k. Para prestar declarações de cabeça de casal, apresentar relação de bens com a indicação dos respectivos valores, efectuar pedidos de adjudicação de bens, responder a qualquer reclamação deduzida contra a relação de bens, representá-lo na conferência preparatória e na conferência de interessados e, de um modo geral, para o representar em todas as fases subsequentes do processo de inventário;
l. Receber citações e quaisquer necessárias notificações, aceitar doações puras, condicionais ou onerosas, com ou sem encargos;
m. Proceder a quaisquer actos de registo predial ou de propriedade automóvel, provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos, fazendo declarações complementares se necessário;
n. Representá-lo em juízo, usando para o efeito, de todos os poderes forenses em direito permitidos, incluindo os poderes especiais para desistir, transigir ou confessar.”, constituindo tal documento o junto à p.i. sob o nº 4, aqui se dando por reproduzido o seu teor (resposta aos artºs 7º, 13º, 18º, 19º, 20º, 33º, 40º, 46º e 59º da p.i. e 6º e 28º da contestação).
6. Sobre o documento intitulado de “Procuração” supra referido incidiu termo de autenticação, lavrado na referida data de 7 de Junho de 2019 no Cartório Notarial a cargo da Notária Maria Joana Nobre Semedo Tenazinha, situado na Rua D. Carlos I, Edifício Arade, número cinquenta-D, em Portimão, perante a colaboradora do referido Cartório Cristiana de Jesus Nunes da Conceição, autorizada para o efeito pela referida Notária (resposta ao artº 8º da p.i.).
7. Através de documento particular, denominado “Contrato de Compra e Venda”, outorgado em 29 de Julho de 2019, a Ré declarou que:
“(…) em nome do seu representado F…, vende a si própria, pelo preço de CENTO E TRINTA MIL EUROS, já recebidos, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua Serpa Pinto, …, concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, inscrito a favor do vendedor, pela inscrição de aquisição AP. seis de três de Junho de mil novecentos e setenta e seis, à data da inscrição encontrava-se omisso na matriz, actualmente inscrito sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de €:129 757,60.” (resposta aos artºs 9º e 50º da p.i. e 7º e 8º da contestação).
8. Nesse documento particular, declarou ainda a Ré: “(…) nas qualidades em que outorga, que o preço foi integralmente pago, em várias prestações, antes da entrada em vigor da Lei n.º 89/2017, de 21 de Agosto, em datas que não sabe precisar (…)” (resposta aos artºs 10º e 50º da p.i.).
9. Sobre o documento mencionado supra, intitulado “Contrato de Compra e Venda”, incidiu termo de autenticação, lavrado na referida data de 29 de Julho de 2019, perante Isabel Maria Vieira Calado Constantino da Guia, licenciada em solicitadoria, com a cédula profissional n.º 5976, com Balcão Único de Solicitador, situado na Rua dos Pescadores, Edifício Colina Branca, Lote C, loja 115, 8400-512 Carvoeiro-Lagoa (resposta ao artº 11º da p.i.).
10. Com base no título de aquisição supra mencionado, foi requerido o registo do prédio urbano em causa no nome da Ré, por compra ao falecido F…, através da AP. 998 de 2019/07/31, registo esse que foi elaborado como provisório por dúvidas, nos termos do art.º 70º do Código do Registo Predial, por despacho proferido pelo Conservador de Registos e, nomeadamente, pelo facto de não se mostrar cumprida a obrigação de especificar a forma de pagamento do preço imposta pelo art.º47º, n.º5 e 6 da Lei n.º89/2017, de 21 de Agosto (resposta ao artº 12º da p.i.).
11. O falecido, à data da outorga da procuração à Ré, tinha 82 anos de idade, era solteiro e sem descendentes (resposta ao artº 14º da p.i.).
12. O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, da freguesia de Alvor trata-se de uma moradia geminada, composta por R/C com 3 divisões, copa-cozinha, casa de banho, hall e despensa e 1º andar, com 3 divisões, copa-cozinha, hall e marquise, com a área total de 168 m2, perto do centro da vila de Alvor e com vista para a ria de Alvor, encontrando-se inscrito na matriz predial sob o artigo … com o valor patrimonial tributário de € 129.757,60, apurado em 2018, tendo sido, entretanto, avaliado, por perícia efectuada nos presentes autos, em € 183.000 e ainda pela empresa imobiliária Engel Wolkers, a pedido dos AA., em € 285.000 (resposta aos artºs 16º a 20º da p.i. e 10º da contestação). [redacção com rectificação do lapso de escrita abaixo determinado]
13. Até ao pretérito mês de Junho de 2019, o falecido era titular (único) de duas contas bancárias por si constituídas, há mais de vinte anos, nomeadamente, a conta de depósitos à ordem no Banco BPI n.º … e a conta de depósitos à ordem no Banco Santander Totta n.º … (resposta aos artºs 25º a 27º e 97º da p.i.).
14. Os valores existentes naquelas contas pertenciam exclusivamente ao falecido, sendo resultantes das suas poupanças e pensão de reforma (resposta aos artºs 28º e 32º da p.i.).
15. Desde meados do mês de Junho de 2019, nomeadamente, a partir do dia 13, em relação à conta do BPI, e a partir do dia 14, relativamente à conta do Banco Santander Totta, a Ré passou a ser titular das mencionadas contas bancárias que, assim, passaram a ter movimentação solidária (resposta aos artºs 29º e 97º da p.i.).
16. O falecido F…, deslocou-se junto das entidades bancárias referidas, requerendo que a sua cunhada, ora Ré, passasse a ser titular das suas contas bancárias, por forma a que a Ré as pudesse movimentar isoladamente (resposta aos artºs 15º e 16º da contestação).
17. Na conta do BPI, à data de 12 de Junho de 2019, o falecido era titular do valor global de € 34.124,03 (trinta e quatro mil cento e vinte e quatro euros e três cêntimos), correspondente a:
- Um depósito à ordem, com o saldo disponível no valor de € 15.185,03 (quinze mil cento e oitenta e cinco euros e três cêntimos); e
- Um depósito a prazo, no valor de € 18.939,00 (dezoito mil novecentos e trinta e nove euros) (resposta aos artºs 30º e 97º da p.i.).
18. Na conta do Banco Santander Totta, à data de 13 de Junho de 2019, o falecido era titular do valor global de € 8.611,92 (oito mil seiscentos e onze euros e noventa e dois cêntimos), assim discriminados:
- Um depósito à ordem, com o saldo disponível de € 4.216,13 (quatro mil duzentos e dezasseis euros e treze cêntimos);
- Um depósito denominado “Super Aforro”, no valor de € 3.159,36 (três mil cento e cinquenta e nove euros e trinta e seis cêntimos); e
- Um depósito denominado “Plano Programado”, no valor de € 1.236,43 (mil duzentos e trinta e seis euros e quarenta e três cêntimos) (resposta aos artºs 31º e 97º da p.i.).
19. Em relação à conta titulada no BPI, Nos dias 13, 19 e 28 de Junho e nos dia 4, 23 e 29 de Julho de 2019, procedeu a ré a vários levantamentos em ATM que totalizaram a quantia de € 1.110,00; no dia 1 de Julho fez uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do montante de € 1.003,24; no dia 4 de Julho de 2019, deu instruções no Banco para a mobilização do depósito a prazo, no montante de € 18.839,00 e, nesse mesmo dia, ordenou uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do valor de € 27.686,03, ficando o saldo da conta bancária do falecido reduzido à quantia de € 5.000,24 (resposta aos artºs 34º, 35º e 97º da p.i.).
20. No que diz respeito à conta existente no Banco Santander Totta, no dia 4 de Julho de 2019, a Ré deu instruções ao banco para a mobilização total do depósito “Super Aforro”, no valor de € 3.159,36 e do depósito “Plano Programado”, no valor de € 1.236,43, e, nesse mesmo dia, ordenou uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do valor de €:8.000,00, ficando, nessa data, o saldo da conta bancária do falecido reduzido à quantia de € 937,41 (resposta aos artºs 34º, 36º e 97º da p.i.).
21. A 30 de Julho de 2019, data do óbito de F…, as contas bancárias apresentavam os seguintes saldos:
- No Banco BPI, a quantia de € 4.696,36 (quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e seis cêntimos);
- E, no Banco Santander Totta, a quantia de € 1.367,49 (mil trezentos e sessenta e sete euros e quarenta e nove cêntimos) (resposta aos artºs 34º, 37º e 97º da p.i.).
22. O imóvel em causa nos autos, sito na Rua Serpa Pinto …encontra-se parcialmente arrendado, no primeiro andar, para fins habitacionais, a J…, pagando esta a renda mensal de €:184,79 (cento e oitenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos) (resposta aos artºs 38º e 101º da p.i. e 27º e 37º da contestação).
23. A Ré, com o Contrato de Compra e Venda junto do mencionado prédio, liquidou os impostos devidos (resposta aos artºs 12º e 32º da contestação).
24. A Ré, quando efectuou os movimentos bancários nas contas do falecido, fê-lo por ser titular das contas bancárias, podendo, desta forma movimentá-las, e não invocou os poderes que lhe foram conferidos na procuração outorgada a 07/06/2019 (resposta aos artºs 18º, 19º e 34º da contestação).
*
A.2. E considerou não provada a matéria dos artºs 15º, 21º, 22º, 24º, 69º, 94º, 98º e 99º da p.i. e 17º, 20º e 35º da contestação.
[E consignou-se na sentença: “Não se respondeu à matéria dos artºs 39º, 41º a 49º, 51º a 68º, 70º a 93º, 95º, 96º, 100º, 102º e 103º da p.i. e 1º a 3º, 5º, 11º, 13º, 14º, 22º a 27º, 29º a 31º, 33º e 36º da contestação, por se considerar o respectivo teor conclusivo.”]
*
B) – O Direito
1. Na apreciação dos recursos importa começar por abordar as questões colocadas por ambas as partes em função da ordem lógica do seu conhecimento, pelo que se apreciará, primeiro, a questão da nulidade da sentença, seguida do pedido de alteração da matéria de facto, e, por fim, as questões que se reportam à subsunção jurídica da factualidade apurada e da decisão de mérito propriamente dita.
Assim:
2. Começam os AA. por invocar a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, alegando que a sentença não se pronunciou sobre o pedido que formularam sob a alínea a) da petição inicial, consistente no reconhecimento da sua qualidade de “únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade”.
Porém, tal nulidade, que efectivamente se verificava na sentença, foi suprida, por despacho de fls. 206, aquando da admissão dos recursos, acrescentando-se ao dispositivo que se decide: “condenar a Ré a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que estes os instituiu nessa qualidade”.
Deste modo, em face do disposto no n.º 1 e 2 do artigo 617º do Código de Processo Civil, este despacho considerar-se como complemento e parte integrante da sentença proferida, pelo que, nada tendo sido oposto, julga-se suprida a invocada nulidade da sentença.

3. No que se reporta à alteração da matéria de facto, pretende a R. que se dê como provado que efectuou o pagamento do preço mencionado na escritura de compra e venda, por declaração confessória extrajudicial exarada no documento que titula a venda, como conta dos pontos 8 e 9 dos factos provados.
Não questiona a R. que, em face das regras atinentes ao ónus da prova (cf. artigo 342º, n.º 2, do Código Civil), lhe compete a prova do facto extintivo da obrigação correspondente ao pagamento do preço devido pela aquisição do imóvel, como se entendeu na sentença.
E também concorda que a declaração constante do documento de venda, em como o preço foi recebido, não tem força probatória plena, pois não abrange os factos correspondentes às declarações dos outorgantes (cf. artigos 371º, n.º 1, e 377º do Código Civil). O que diz é que sendo tal declaração emitida pelo vendedor, sendo-lhe desfavorável, constitui uma declaração confessória.
Ou seja, a R., embora reconheça que a força probatória não abrange os factos correspondentes a declarações dos outorgantes, entende que, por ter sido declarado nesse documento autêntico – por si própria, como compradora e na qualidade de representante do vendedor – que já havia sido recebido o preço, esta sua declaração tem a virtude de implicar o reconhecimento de um facto que é desfavorável (ao vendedor) e que beneficia a R/Recorrente, uma vez que se trata de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita pela parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, n.º 1 e 4 e 358º, n.º 1 e 2 do Cód. Civil.
De facto, sendo a confissão “… o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe e desfavorável e favorece a parte contrária” (cf. artigo 352º do Código Civil, a declaração de recebimento do preço enquadra-se nesta definição legal.
E, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 358º do Código Civil, “[a] confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.”
A este propósito, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/07/2014 (proc. n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: “A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, o que o art.º 352.º do CC qualifica de confissão. Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feito à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço) – cf.- art.º s 355.º, n.º 1 e 4 e 358.º, n.º 2, do CC.”
E, tal como nos documentos autênticos, fixada a força probatória formal dos documentos particulares, segue-se a determinação da sua força probatória material, resultando do artigo 376º, n.º 1 e 2 do Código Civil, que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações dele constantes se consideram provadas, na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão.
Porém, no caso, a declaração respeitante ao pagamento do preço inserida no documento que titula a venda, como resulta dos factos provados, foi emitida pela R. na qualidade em que outorgava, ou seja, como adquirente e em representação do vendedor, pelo que não pode ser considerada como confessória, pelo manifesto conflito de interesses existente, pois o procurador emite declaração em seu próprio beneficio.
De facto, em face do conflito de interesses existente entre o interesse do vendedor no recebimento do preço e o interesse contrário da compradora em ver reconhecido o pagamento, para que se tivesse tal declaração como confessória, necessário seria que a mesma fosse acompanhada da especificação do efectivo modo como foi efectuado esse pagamento, o que não sucedeu, pois do documento de venda apenas consta a este respeito que “… o preço foi pago, em várias prestações, antes da entrada em vigor da Lei n.º 89/2017, de 31 de Agosto, em datas que não sabe precisar” [No caso o registo de aquisição foi efectuado “provisório por dúvidas, nos termos do artigo 70º do Código de Registo Predial, por se entender que “não se ter mostrada mostrava cumprida a obrigação de especificar a forma de pagamento do preço imposta pelo art.º 47, n.ºs 5 e 6 da Lei n.º 89/2017 (21 de Agosto)” – cf. certidão do registo predial e despacho de qualificação, de fls. 24 e 33.]
Por isso, concordamos com o decidido na sentença, no sentido de que o declarado no documento de compra e venda apenas atesta que, no acto, houve a transmissão do imóvel e que foi declarado ter sido efectuado o pagamento do preço, mas não que o preço tenha sido efectivamente pago.
Deste modo, e não tendo a R., adquirente do imóvel, provado que efectivamente efectuou o pagamento do preço, demonstrando o modo como efectuou esse pagamento, não pode este facto ser dado como provado.
Assim, improcede o recurso da R. quanto à pretendida alteração da matéria de facto, não se dando como provado o pagamento do preço.

4. A matéria de facto a considerar é, por conseguinte, a fixada na sentença, sem prejuízo da rectificação que se determina ao lapso de escrita que conta do ponto 13 dos factos provados, no que se reporta ao valor do imóvel apurado na perícia efectuada nos autos, que é de € 183.000, e não de € 180.000, como ali se refere (cf. relatório pericial de fls. 103 114).

5. Como se disse, os AA., no que ao negócio de compra e venda do imóvel em causa nos autos diz respeito, pretendiam, em primeira linha, obter a declaração de nulidade parcial da procuração emitida pelo autor da herança à R., com base na qual esta realizou o negócio de compra e venda do imóvel consigo mesmo, por indeterminação do seu objecto, e, subsidiariamente por abuso de representação.
Na sentença, concluiu-se que não existia fundamento para aquela pretensão de declaração de nulidade parcial da procuração, porquanto se entendeu, em síntese, que a procuração não padecia do vício de indefinição quanto ao objecto dos bens a vender e que o preço pelo qual foi efectuada a venda, apesar de inferior ao valor real do imóvel, era superior ao valor tributário, estando o acto contido na esfera dos poderes do representante.
Nessa medida, considerou-se válida a venda e, não tendo a R. demonstrado o pagamento do preço, condenou-se a mesma no respectivo pagamento.
Os AA. discordam do decidido, reiterando a posição defendida na petição inicial.
Vejamos:

6. Em causa está um negócio de compra e venda de imóvel em que o vendedor está representado por procurador, ao qual conferiu poderes de disposição, inclusive para celebração de negócio consigo próprio, tendo o procurador adquirido para si o imóvel.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/09/2018 (proc. n.º 246/10.3TBLLE.E1.S1): «… constitui principio basilar da “autonomia privada e da autodeterminação do homem que este, em vez de agir ele próprio, possa autorizar outrem para encontrar um resultado ou negociar um efeito que deve valer juridicamente” [cfr. Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 476 e 477] e, nessa medida, as declarações negociais nem sempre são prestadas pelas próprias partes, podendo ser formuladas e manifestadas por outros que agem em vez das partes ou de uma delas.
É o que acontece na representação (artigo 258.º do Código Civil) em que há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini), o representado, e os efeitos dos negócios por aquele concluídos produzem-se, directa e imediatamente, na esfera jurídica deste (dominus negotii) [cfr., a este propósito, João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, edição da AAFDL, 1995, págs. 411 e 412, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 240, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, págs. 276 e 278, e José de Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2ª edição, págs. 240 e 241].
Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo artigo 262.º do Código Civil como o acto pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes representativos. Trata-se, portanto, de acto unilateral, por intermédio do qual, é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus), em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (artigo 262.º do Código Civil) [cfr., neste sentido, Heinrich Ewald Horster, in A parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 483 e 484, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 296, e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in A Procuração irrevogável, Almedina, págs. 98 e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, 1987, pág. 240]. A concessão desses poderes de representação não é ilimitada. Está circunscrita ao âmbito dos poderes contidos na procuração, sob pena de, sendo tais poderes extravasados, existir abuso de representação.
O procurador actua como um intermediário, situação que comporta riscos para o representado, mas que lhe traz simultaneamente vantagens, sendo estas que o motivam a fazer-se representar na conclusão de negócios jurídicos por outrem – procurador – em vez de o fazer pessoalmente. Estes riscos correm naturalmente por conta de quem se faz representar.».

7. No caso em apreço, o falecido F… outorgou a favor da R. procuração, conferindo-lhe, entre outros, os seguintes poderes:
“(…) os necessários poderes para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os seus bens, assinando tudo o que for necessário aos aludidos fins e desse modo:
a) Dar ou tomar de arrendamento, ceder ou tomar a exploração de quaisquer prédios de qualquer natureza, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas, prestações, montantes e condições que entender convenientes, pagar ou receber rendas ou prestações, passar e assinar recibos, renovar, revogar, prorrogar, denunciar ou rescindir os respectivos contratos;
b) Receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ao outorgante, por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações; depositar e levantar capitais em bancos, instituições bancárias, casas bancárias e outros estabelecimentos de crédito, assinando recibos ou cheques;
c) Usar, desistir ou renunciar do direito de preferência que assista ao outorgante em qualquer acto ou contrato;
d) Representá-lo junto de quaisquer Entidades Públicas, Privadas ou Administrativas, (…)
(…)
f) Prometer comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis;
g) Para em seu nome e representação, celebrar negócio consigo mesma, ficando desde já expressamente dado o consentimento previsto no n.º1 do artigo 261 do Código Civil;
(…)» (sublinhado nosso)

8. Entendem os AA./recorrente que, ao contrário do decidido, a procuração é parcialmente nula, na parte em que se confere ao procurador poderes para “f) Prometer comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis”, por não ser determinável o seu objecto.
Sustentam a sua pretensão na norma do n.º 1 do artigo 280º do Código Civil, onde se prevê que: «É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável».
Referem os AA., a este respeito que “o seu objecto é impossível de apurar. A sua redacção é vaga e indeterminada, não sendo possível determinar sobre que imóvel incidiam os concretos poderes em causa, designadamente, sobre que imóvel estaria a Ré habilitada a celebrar a sua venda”, e que “não é pelo simples facto de o “procurador” ser titular de apenas um bem imóvel, no momento em que outorgou a procuração, para que tal seja suficiente no sentido de se concluir ser esse o seu objecto determinável. Até porque, entretanto, após a emissão da procuração, poderia ter adquirido outro, quiçá através dos próprios poderes de representação que previamente havia conferido, e que em concreto o foram à Ré (poderes para “prometer comprar e comprar”).”
De facto, como alerta António Meneses Cordeiro, que os recorrentes citam em prol da sua pretensão (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 90) enquanto negócio jurídico, a procuração está sujeita aos requisitos enunciados no artigo 280º do Código Civil e às proibições estabelecidas nos artigos seguintes, defendendo dever ser considerada “suficientemente determinada uma procuração geral para administrar”, mas já “uma procuração para alienar o que o procurador entenda cairia na indeterminação”, devendo, por isso, considerar-se nula, por indeterminabilidade do seu objecto, nos termos do n.º 1 daquele art.º 280.º.
E referem a propósito o acórdão da Relação de Guimarães, de 10/01/2018 (proc. n.º 2637/16.7T8VCT.G1), onde se concluiu que: «VI – Uma procuração conferindo poderes para “doar, comprar, vender, ou prometer comprar e vender permutar e arrematar quaisquer bens móveis ou imóveis, no todo ou em parte, nos termos e condições que o procurador estime convenientes” é nula por indeterminabilidade do objecto, nos termos do art.º 280.º do C.C. (…)».
Ora, ainda que se entenda que a procuração deve especificar os bens para os quais são conferidos os poderes de disposição, sob pena de “indeterminabilidade”, como se considerou neste aresto, tal regra tem que ser analisada e aplicada em função do contexto em que a declaração é proferida e das circunstâncias do caso concreto.
Na verdade, sabendo-se que o declarante só possui um imóvel (e nos autos não se contesta tal facto) tem que se entender que os poderes de alienação conferidos só podem respeitar a esse imóvel, não havendo que conjecturar outras situações, nomeadamente saber se o declarante, entretanto, adquiriu outros bens, ou se o procurador os adquiriu em sua representação, porque trata-se de mera especulação argumentativa, que não espelha a realidade dos autos.
Deste modo, detendo o procurador poderes de disposição quanto a bens imóveis, embora não esteja expressamente determinado na procuração a que bens se referem em concretos esses poderes, sabendo-se que o declarante apenas detém um imóvel, tais poderes de disposição só se podem reportar ao imóvel que integra o património do declarante na data da outorga da procuração.
Em suma, embora o objecto da declaração não esteja expressamente determinado na procuração, o mesmo é determinável em função da situação patrimonial do declarante à data da declaração.
É, no entanto, verdade, que no caso se conferiu também ao procurador poderes para celebrar “negócios consigo mesmo”, cominando a lei com a anulabilidade o negócio assim celebrado, “a não ser que o e representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio excluía por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses” (cf. artigo 261º, n.º 1, do Código Civil).
Mas, tais poderes conferidos na procuração não podem deixar de se reportar ao imóvel para o qual se entende que o representado conferiu ao procurador os ditos poderes de disposição.
Deste modo, conclui-se, como na sentença, que não ocorre a causa de nulidade parcial da procuração, a que se reporta o n.º 1 do artigo 280º do Código Civil.

9. Questão diferente é a de saber se a R. actuou com “abuso de representação”, consubstanciada no facto de o procurador ter vendido a si próprio o imóvel em causa por preço inferior ao seu valor real.
Na sentença considerou-se que o negócio celebrado se continha dentro dos poderes concedidos pelo proprietário, e, embora se tenha entendido que não basta que sejam concedidos poderes ao representante para celebrar o negócio, sendo também necessário que se verifique que estes foram exercidos de forma justa e no interesse que seria de considerar adequado para o representado, concluiu-se não ocorrer qualquer vício no negócio, aduzindo-se que:
«… não se considera que o preço da venda, podendo ter sido mais elevado, seja desajustado à realidade do valor do imóvel. A R. vendeu o imóvel acima do respectivo valor patrimonial, valor esse apurado em 2018. Provou-se que o valor de mercado podia ser superior, mas, autorizada que estava a R. a fazer negócio consigo própria, não era para esse feito obrigada a indagar em profundidade do valor de mercado. Indagou do valor patrimonial e afigura-se nos que tal é suficiente.
Na verdade, até pode considerar-se que a sua conduta foi cautelosa, posto que um preço de venda maior teria indiscutivelmente efeitos em matéria fiscal. Como tal, Não se considera que tenha ocorrido por esta via qualquer vício do negócio.»
Os AA. discordam deste entendimento e, quanto a nós com inteira razão.
Senão vejamos:

10. Resulta da matéria de facto (cfr. ponto 8 dos factos provados) que a Ré, munida da procuração outorgada pelo falecido, em 7 de Junho de 2019, através de documento particular, denominado “Contrato de Compra e Venda”, outorgado em 29 de Julho de2019, a Ré declarou que: “(…) em nome do seu representado F…, vende a si própria, pelo preço de CENTO E TRINTA MIL EUROS, já recebidos, livre de ónus ou encargos, o prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua Serpa Pinto, …, concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, inscrito a favor do vendedor, pela inscrição de aquisição AP. … de três de Junho de mil novecentos e setenta e seis, à data da inscrição encontrava-se omisso na matriz, actualmente inscrito sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de €:129 757,60.”
Igualmente se apurou que o referido prédio “… trata-se de uma moradia geminada, composta por R/C com 3 divisões, copa-cozinha, casa de banho, hall e despensa e 1º andar, com 3 divisões, copa-cozinha, hall e marquise, com a área total de 168 m2, perto do centro da vila de Alvor e com vista para a ria de Alvor, encontrando-se inscrito na matriz predial sob o artigo … com o valor patrimonial tributário de € 129.757,60, apurado em 2018, tendo sido, entretanto, avaliado, por perícia efectuada nos presentes autos, em € 183.000 e ainda pela empresa imobiliária Engel Wolkers, a pedido dos AA., em € 285.000” (cf. ponto 13 dos factos provados).
Tendo em conta esta factualidade, não subsistem dúvidas de que a R. vendeu a si própria o imóvel por valor inferior ao seu valor real.
É certo que o proprietário, como se provou, conferiu à R. poderes para “prometer comprar e comprar, prometer vender e vender, a quem, pelo preço, cláusulas e condições que entender mais convenientes, permutar, partilhar, dividir ou hipotecar bens móveis ou imóveis ou direitos sobre os bens móveis ou imóveis” (sublinhado nosso), e para poder “celebrar negócio consigo mesma”, mas tal facto não a legitima de, no seu interesse comprar o imóvel ao preço que lhe aprouver.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 236º do Código Civil, “[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, acrescentando-se no n.º 2 deste preceito que “[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
E, como se concluiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/06/2011 (proc. n.º 346/08.0TBLSA.C1.S1): « IV - A expressão “pelo preço, condições e cláusulas que achar por convenientes”, constante do teor da procuração que está subjacente ao negócio consigo próprio, deve ser interpretada no sentido em que o faria um declaratário normal, isto é, de “um preço equilibrado e justo”, o preço real de mercado que garante a lealdade de comportamento que o representante deve assumir, para poder, de boa fé, gerir a conflitualidade dos interesses em presença, de forma a estabelecer o necessário equilíbrio, sob pena de uma alienação por um valor desfasado da realidade ser um índice objectivo e seguro do abuso da representação.»
De facto, como se diz neste aresto, que aqui acompanhamos, «… a expressão “pelo preço, condições e cláusulas que achar por convenientes”, constante do teor do aludido instrumento de procuração, deveria ter sido interpretada pela ré com o significado que lhe teria atribuído um declaratário normal, isto é, de “um preço equilibrado e justo”, porquanto ninguém, de boa fé, pode entender como “conveniente uma venda ao desbarato” [STJ, de 16-11-1988, BMJ nº 381, 640].
Apesar do silêncio da procuração em análise sobre o preço da venda, considerando a natureza sinalagmática do contrato de compra e venda e que o representante não pode ser o único intérprete dos interesses em conflito, sem que da sua actuação possam vir a resultar prejuízos para o representado [Vaz Serra, Contrato Consigo Mesmo, RLJ, Ano 91, 228 a 231], só o preço real de mercado garante a lealdade de comportamento que o representante deve assumir, para poder, de boa fé, gerir a conflitualidade dos interesses em presença, de forma a estabelecer o necessário equilíbrio entre ambos.»
De facto, como igualmente se refere neste aresto, a relação pessoal de fidúcia do representado no representante, implicada na outorga de poderes representativos, na particular situação do autocontrato, requer uma empenhada e eficaz defesa dos interesses prosseguidos, devendo o representante agir com imparcialidade, probidade e moralidade, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, que confiou na sua honesta actuação [cf. neste sentido o ali indicado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/12/2009 (proc. n.º 365/06, TBALSB.C1.S1)].
Em idêntico sentido, concluiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2013 (proc. n.º 532/2001.L1.S1), que:
«V) - Na execução do contrato, autorizado pela procuração, não estava o procurador dispensado de actuar segundo as regras da boa-fé – art. 762º, nº1, do Código Civil – mais a mais se, por via da procuração com poderes para vender a si mesmo, estava implicada uma forte relação de confiança, por via de laços familiares, o que desde logo, postulava um acrescido dever de zelar pelos interesses da representada.
VI) - O facto da procuração autorizar, muito latamente, a procuradora a alienar a fracção “pelo preço, condições e cláusulas que achasse por convenientes podendo negociar consigo mesmo”, não poderia valer como carta branca para um negócio que descurasse o interesse do representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários, observada a exigível ética negocial, postulada pela actuação de boa fé.

VII) Aquela declaração de vontade da representada deve ser entendida como o faria um declaratário normal – art. 236º, nº1, do Código Civil – colocado na posição da procuradora, ou seja, que o preço deveria ser um preço justo de harmonia com a regras da oferta e da procura no mercado imobiliário, e não uma venda por qualquer preço, nem tão pouco pelo preço que mais conviesse, apenas e tão só, aos interesses do comprador enquanto outorgante de contrato consigo mesmo.»

11. Voltando ao caso sub judice, como se viu, a R. vendeu a si própria o imóvel em causa pelo valor de € 130.000, valor este muito próximo do valor patrimonial, fixado em 2018 em € 129.757,60, mas que fica muito abaixo do valor do imóvel apurado na perícia efectuada nos autos, que foi de € 183.000.

Comparados estes valores (valor da venda e valor previsível de transacção), verifica-se que a R. adquiriu o dito imóvel por menos € 53.000 que o seu valor de mercado, sendo certo que não provou que houvesse diligenciado no sentido de apurar qual o justo valor do imóvel, o que se impunha de acordo com uma actuação conforme os interesses do representado, facto que, aliás, nem sequer alegou.

A diferença de preço apurada é assinalável, tendo em conta a dimensão dos valores em causa, correspondendo a cerca de 30% do valor de mercado do imóvel.
E nem sequer se pode invocar que a R. não sabia de tal facto, pois trata-se de um imóvel de 2 pisos, r/chão e 1º andar, com possibilidade de utilização independente, tanto o r/chão como o 1º andar constituem um apartamento de tipologia T2 [o r/chão com área bruta privativa de 71,80 m2 e área de terreno de 40, 00 m2, e o 1º andar com a área bruta de 78,00 m2, com acabamentos de nível médio e em estado de conservação satisfatório], situa-se numa zona turística bastante procurada, em Alvor, a cerca de 800 metros da praia, com acabamentos de nível médio, como se vê do relatório pericial.
Assim, conclui-se que, neste contexto, a R. utilizou os poderes de representação que lhe foram confiados, conscientemente, em sentido substancialmente contrário ao seu fim e aos interesses do representado.
De facto, ao declarar vender a si própria o prédio dos autos, pelo valor de € €130.000,00, desrespeitou a relação de fidúcia depositada em si pelo representado que, naturalmente, pretenderia que o imóvel fosse vendido pelo valor real e corrente, ou seja, pelo preço de mercado como é usual nos negócios imobiliários.
E, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, (Código Civil Anotado – Vol. I, pág. 249): “Há abuso dos poderes de representação, quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado”.
Assim, conclui-se que no negócio consigo mesmo celebrado pela R., com base em poderes de representação, esta exorbitou de forma consciente os interesses do seu representado, dado o desnível verificado entre o valor de mercado do prédio e o preço pelo qual foi alienado, índice objectivo e seguro do abuso da representação, sendo tal negócio ineficaz em relação ao representado nos termos dos artigos 268º e 269º do Código Civil e, por conseguinte, ineficaz em relação aos AA., seus únicos e universais herdeiros e representantes da sua Herança ilíquida e indivisa.
Em consequência, reconhece-se à Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de Fernando Alexandre Custódio o direito de propriedade sobre o dito imóvel, ordenando-se o cancelamento do registo de aquisição em favor da R..

12. Discordam os AA. da sentença ainda, na parte em que se absolveu a R. do pedido de restituição das quantias que movimentou das contas bancárias identificadas nos autos, quantias estas que na petição quantificaram em € 42.735,95, e que, agora, no recurso indicam como sendo de € 36.672,10.
A respeito desta pretensão dos AA. apurou-se a seguinte factualidade:
14. Até ao pretérito mês de Junho de 2019, o falecido era titular (único) de duas contas bancárias por si constituídas, há mais de vinte anos, nomeadamente, a conta de depósitos à ordem no Banco BPI n.º … e a conta de depósitos à ordem no Banco Santander Totta n.º … (resposta aos artºs 25º a 27º e 97º da p.i.).
15. Os valores existentes naquelas contas pertenciam exclusivamente ao falecido, sendo resultantes das suas poupanças e pensão de reforma (resposta aos artºs 28º e 32º da p.i.).
16. Desde meados do mês de Junho de 2019, nomeadamente, a partir do dia 13, em relação à conta do BPI, e a partir do dia 14, relativamente à conta do Banco Santander Totta, a Ré passou a ser titular das mencionadas contas bancárias que, assim, passaram a ter movimentação solidária (resposta aos artºs 29º e 97º da p.i.).
17. O falecido F…, deslocou-se junto das entidades bancárias referidas, requerendo que a sua cunhada, ora Ré, passasse a ser titular das suas contas bancárias, por forma a que a Ré as pudesse movimentar isoladamente (resposta aos artºs 15º e 16º da contestação).
18. Na conta do BPI, à data de 12 de Junho de 2019, o falecido era titular do valor global de € 34.124,03 (trinta e quatro mil cento e vinte e quatro euros e três cêntimos), correspondente a:
- Um depósito à ordem, com o saldo disponível no valor de € 15.185,03 (quinze mil cento e oitenta e cinco euros e três cêntimos); e
- Um depósito a prazo, no valor de € 18.939,00 (dezoito mil novecentos e trinta e nove euros) (resposta aos artºs 30º e 97º da p.i.).
19. Na conta do Banco Santander Totta, à data de 13 de Junho de 2019, o falecido era titular do valor global de € 8.611,92 (oito mil seiscentos e onze euros e noventa e dois cêntimos), assim discriminados:
- Um depósito à ordem, com o saldo disponível de € 4.216,13 (quatro mil duzentos e dezasseis euros e treze cêntimos);
- Um depósito denominado “Super Aforro”, no valor de € 3.159,36 (três mil cento e cinquenta e nove euros e trinta e seis cêntimos); e
- Um depósito denominado “Plano Programado”, no valor de € 1.236,43 (mil duzentos e trinta e seis euros e quarenta e três cêntimos) (resposta aos artºs 31º e 97º da p.i.).
20. Em relação à conta titulada no BPI, Nos dias 13, 19 e 28 de Junho e nos dia 4, 23 e 29 de Julho de 2019, procedeu a ré a vários levantamentos em ATM que totalizaram a quantia de € 1.110,00; no dia 1 de Julho fez uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do montante de € 1.003,24; no dia 4 de Julho de 2019, deu instruções no Banco para a mobilização do depósito a prazo, no montante de € 18.839,00 e, nesse mesmo dia, ordenou uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do valor de € 27.686,03, ficando o saldo da conta bancária do falecido reduzido à quantia de € 5.000,24 (resposta aos artºs 34º, 35º e 97º da p.i.).
21. No que diz respeito à conta existente no Banco Santander Totta, no dia 4 de Julho de 2019, a Ré deu instruções ao banco para a mobilização total do depósito “Super Aforro”, no valor de € 3.159,36 e do depósito “Plano Programado”, no valor de € 1.236,43, e, nesse mesmo dia, ordenou uma transferência a débito, para a sua conta bancária, do valor de €:8.000,00, ficando, nessa data, o saldo da conta bancária do falecido reduzido à quantia de € 937,41 (resposta aos artºs 34º, 36º e 97º da p.i.).
22. A 30 de Julho de 2019, data do óbito de F…, as contas bancárias apresentavam os seguintes saldos:
- No Banco BPI, a quantia de € 4.696,36 (quatro mil seiscentos e noventa e seis euros e trinta e seis cêntimos);
- E, no Banco Santander Totta, a quantia de € 1.367,49 (mil trezentos e sessenta e sete euros e quarenta e nove cêntimos) (resposta aos artºs 34º, 37º e 97º da p.i.).
25. A Ré, quando efectuou os movimentos bancários nas contas do falecido, fê-lo por ser titular das contas bancárias, podendo, desta forma movimentá-las, e não invocou os poderes que lhe foram conferidos na procuração outorgada a 07/06/2019 (resposta aos artºs 18º, 19º e 34º da contestação).

13. Com base nestes factos, entendeu-se na sentença que:
«No que respeita às contas bancárias e aos levantamentos efectuados, entende-se ser claro, em face dos factos provados (e nem a R. o contestou verdadeiramente) que o dinheiro em causa era do falecido.
Porém, o que ocorreu foi que este autorizou a ré a movimentar esse seu dinheiro.
Em que circunstâncias tal ocorreu é coisa que não ficou inteiramente clara.
Entendemos que não será excessivo sustentar ser verdade que a ré podia ter documentado, até por cautela, algumas das despesas que será realizado em benefício do falecido (se entende que foi nesse âmbito que, pelo menos em parte, o dinheiro foi gasto). No entanto, ainda que se reitere que as contas só continham dinheiro do falecido, entendemos que não basta alegar essa circunstância e demonstrar que houve levantamentos.»
Ora, embora seja verdade que o falecido F… diligenciou no sentido de que as contas de que era titular passassem também a ser tituladas pela R, sua cunhada, tal ocorreu, para que esta as pudesse movimentar isoladamente, como resulta do ponto 17 dos factos provados, e não para que fizesse suas as quantias nelas depositadas, que se provou serem unicamente pertencentes ao falecido (cf. pontos 14 e 15 dos factos provadas), o que afasta qualquer presunção de contitularidade.
De facto, verifica-se que a R. procedeu ao levantamento das ditas contas de quantias em dinheiro, e ordenou a transferência de € 27.686.03 e de € 8.000,00, para a sua conta bancária, no período compreendido entre 13 de Junho e 29 de Julho de 2019, ou seja, até à véspera do falecimento de F…, sem que se apurasse qualquer justificação para tal, o que manifestamente evidencia que se apropriou, ilicitamente, destas quantias monetárias, subtraindo-as ao património do falecido.
Deste modo, está a R. obrigada a restituir à herança do falecido a quantia pedida de € 36.672,10, referente aos valores que levantou e transferiu para a sua conta, não com base nas regras do enriquecimento sem causa, previstas no artigo 473º do Código Civil, como invocam os AA., que tem natureza subsidiária (cf. artigo 474º do Código Civil), mas com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, pois estão verificados os pressupostos exigidos no artigo 483º do Código Civil.

14. Por fim, ainda com referência ao negócio de compra e venda, cuja ineficácia de declarou, pretendem os AA. obter a condenação da R. no pagamento das rendas vencidas e vincendas, referentes ao arrendamento do 1º andar do imóvel, no montante mensal de € 184,79, acrescidas de juros, com base nas regras do enriquecimento sem causa (cf. artigo 473º do Código Civil), dado que a R. não tem fundamento para fazer suas as ditas rendas.
Porém, para que a restituição fosse devida, seria necessário que se tivesse provado que a R. recebeu do inquilino as ditas rendas, o que, embora possa ter ocorrido, não se alcança tal conclusão em face dos factos provados.
Na verdade, a este respeito, apenas se teve como provado o que consta do ponto 23 dos factos provados: “O imóvel em causa nos autos, sito na Rua Serpa Pinto …, em Alvor, encontra-se parcialmente arrendado, no primeiro andar, para fins habitacionais, a J…, pagando esta a renda mensal de €:184,79 (cento e oitenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos)”.
Ora, não resultando apurado que a inquilina tenha efectuado o pagamento das rendas à R. e que esta as tenha recebido, não ocorre fundamento para a pretendida restituição.

15. Em face do que se decidiu quanto à ineficácia do negócio, e não tendo a R. logrado demonstrar que efectuou o pagamento do preço do negócio de compra e venda realizado, é manifesta a improcedência do recurso da R.

16. Assim, improcede a apelação da R., sendo parcialmente procedente o recurso dos AA., com a consequente revogação da sentença recorrida em conformidade com o acima decidido.
Em face da decisão dada ao pleito fica prejudicado o conhecimento da ampliação do objecto do recurso pedida pelos AA. nas contra-alegações.
Tendo decaído no recurso que interpôs a R. suportará as respectivas custas.
Quanto ao recurso dos AA., estes decaíram apenas numa pequena parte, o que se tem que ter em conta quer em relação ao recurso, quer em relação à acção, tendo-se por adequado fixar o decaimento dos AA. em 20% e o da R. em 80%.


IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação dos AA., revogando-se parcialmente a sentença recorrida, e, em consequência:
a) Declarar a ineficácia relativamente à Autora, Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de F…, do negócio que a Ré, D…, celebrou consigo mesma, de compra e venda do prédio urbano, destinado a habitação, situado na Rua Serpa Pinto, …, concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número …, da freguesia de Alvor, inscrito na matriz sob o artigo …;
b) Reconhecer à Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F… o direito de propriedade sobre o referido prédio, determinando-se o cancelamento do registo de aquisição efectuado em favor da R. (AP. 998 de 2019/07/31);
c) Condenar a R. a restituir à Herança Ilíquida e Indivisa por Óbito de F… a quantia de € 36.672,10 (trinta e seis mil seiscentos e setenta e dois euros e dez cêntimos);
d) Manter a sentença recorrida na parte em que se decidiu “condenar a Ré a reconhecer o 2º, 3º e 4º Autores como únicos e universais herdeiros de F…, por via do testamento em que este os instituiu nessa qualidade”.
Custas da apelação da R. a cargo desta e da apelação dos AA., bem como da acção, a cargo dos AA. e da R., na proporção do decaimento, que se fixa em 20% para os AA. e 80% para a R..
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Évora, 16 de Dezembro de 2021
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)