PROCESSO PENAL
REFORMA DA SENTENÇA
Sumário


Sendo o CPP omisso no que se refere à afirmação do esgotamento do poder jurisdicional do juiz após a prolação da decisão, ponto em que por isso se recorre à regra enunciada no nº 1 do artº 613º do CPC, não o é no que se refere à tipificação e regulação dos casos em que a decisão pode ser modificada.
Não existindo por isso lacuna nesse ponto, não há aí espaço para aplicação subsidiária das normas do processo civil. Nomeadamente, não tem lugar no processo penal a figura da reforma de sentença.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Notificado do Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Évora em 26 de outubro de 2021, veio (…) apresentar requerimento com o seguinte teor:

“ Tendo recebido o Acórdão de 2021/10/26, de acordo com o nº1 do artº 31º do Regulamento das Custas Processuais requerer a Reforma da conta do proc.4193/18.2T9PTM-A.E1 pelos seguintes factos:

“C,P.Penal

Artº 45º, nº7

Se o tribunal recusar o requerimento do arguido, do assistente ou das partes civis por manifestamente infundado, condena o requerente ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC.”

Na decisão do Acórdão de 2021/10/26 lê-se,

“ Pelo exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- julgar improcedente o pedido de recusa da Srª. Juíza (…) para intervir no processo comum (Tribunal Singular) nº 4193/18.2T9PTM que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz 2, porque manifestamente infundado.

- Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s - art.45º, nº7, do C.P.P.”

No final da página 12 do Acórdão lê-se:

“ No âmbito do incidente de recusa não se pode sindicar a atividade jurisdicional do juiz cuja recusa se pretende, ou seja, não interessa apurar se as decisões em causa, são ou não justas, equilibradas e proporcionais e se são ou não conformes ao direito, atividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Na suspeição apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objetiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz visado, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça.”

O Tribunal que apreciou o Requerimento de recusa da Juíza (...), é da opinião que um juiz poderá decidir com os fundamentos que entender, incluindo os bizarros sem qualquer relação com a realidade, não constituindo fundamento para Recusar o juiz em ulterior processo. Por outras palavras,, num caso extremo em que o juiz esteja demenciado ou simplesmente de má-fé não é fundamento de Requerimento de recusa, afirmações irracionais que possa ter apresentado em outro processo para fundamentar decisões nomeadamente injustas que prejudicaram o requerente.

O mecanismo de recurso pode não corrigir a parcialidade de juiz de 1ª instância, e muito menos em ulteriores processos, pelo que existe o artº 43º do CPP que se destina a garantir que os fundamentos justifiquem as decisões dos juízes garantindo a imparcialidade dos mesmos.

Pelo que se conclui que os fundamentos absurdos, irracionais, sem qualquer relação com a realidade e com a justiça, das decisões dos juízes são efetivamente fundamento para Requerer a Recusa de um juiz.

Concluindo-se do texto dos 2 últimos parágrafos e do Requerimento de recusa da Juíza (...), que o Acórdão referente ao mesmo não poderia ter decidido “ julgar improcedente o pedido de recusa da Srª. Juíza (…) para intervir no processo comum (Tribunal Singular) nº 4193/18.2T9PTM (…) porque manifestamente infundado.” (sublinhado meu)

Não se aplicando em consequência o nº7 do artº45º do CPP.

Por último, em virtude de os restantes fundamentos que não permitem a um juiz exercer a sua função num processo penal constituírem impedimentos, se as afirmações que fundamentam as decisões dos juízes não pudessem ser fundamento para Requerer a recusa dos mesmos, então, o artº 43º do CPP seria inexequível porque qualquer Requerimento de recusa de juiz seria recusado por manifestamente infundado.

Do supra exposto concluiu-se que a atribuição ao Assistente do pagamento de 6UC pela aplicação do nº7 do artº 45º do CPP, é ilegal; requerendo-se assim a reforma da conta.”


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Deste requerimento foi dado conhecimento à Exmª Mandatária do Assistente, que nada disse.

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Notificado do requerimento, o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

“ Notificado do douto acórdão proferido nos presentes autos, o recorrente (…) veio juntar requerimento, no qual pretende a “reforma da conta do processo 4193/18.2T9PTM-A.E1.”

No requerimento que elaborou o requerente manifesta-se contra o Acórdão proferido por este Tribunal da Relação, não só pelo teor da sua fundamentação/decisão, mas essencialmente contra a condenação na “taxa de justiça em 6 UC’s – art.45º, nº7, do C.P.P.”

Acontece que a conta ainda não foi elaborada pelo que o requerimento/reclamação nesse pormenor é manifestamente inoportuno.

Mas se o seu objectivo é o de recorrer da decisão, especificamente da condenação na taxa de justiça de 6 UC’s, não há dúvida que, também neste aspecto, o requerimento carece de justificação legal, não sendo por isso de atender (cfr. artigo 45º nº6 do CPP).

Não obstante a ineficácia do requerimento, sempre se dirá que este Tribunal da Relação, além de reexaminar toda a matéria, ponderou, conheceu e decidiu a questão fulcral colocada com relevância para a decisão de mérito e esclareceu ainda porque não foram atendidos os argumentos do recorrente. Não o fazendo apenas perante meras suposições, conjecturas, opiniões, determinados raciocínios ou pontos de vista, nem andou à deriva equacionando todas as hipóteses possíveis de virem a acontecer.

Aliás, do teor do requerimento ressalta que a discordância com a douta decisão assenta principalmente no facto de não ter sido dado seguimento à pretensão de recusa da magistrada Judicial.

O certo, porém, é que o douto Acórdão não padece de quaisquer vícios, nulidades ou meras irregularidades, nem se vislumbra qualquer violação de normas legais/constitucionais.

Assim, nada havendo a apontar à condenação na mencionada taxa de justiça até porque o foi pelo mínimo legal, pr. o indeferimento do requerido.”


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Realizada nova conferência, cumpre decidir.

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O requerimento foi pelo assistente (…) remetido aos autos por e-mail.

Decidiu-se no Acórdão do TRE de 16-09-2008, CJ, 2008, T4, pág.271: “I. A recusa de juiz deve, em geral, ser deduzida pelo defensor do arguido, tendo em conta que a matéria a apreciar assume natureza técnica.

II. Desde que o defensor seja devidamente notificado do teor do requerimento apresentado pessoalmente pelo arguido e não expresse reserva e/ou discordância relativamente ao mesmo, não há fundamento para não se conhecer da questão.”

Ora, tal entendimento, aplicável ao caso sub judice com as necessárias adaptações, é por nós sufragado, pelo que tendo sido dado conhecimento do requerido pelo Assistente à Exma Mandatária do mesmo, que não expressou reserva e/ou discordância relativamente ao requerido, não há fundamento para não se conhecer do requerido, sendo que também não obsta a tal conhecimento a circunstância de o requerimento ter sido remetido aos autos por e. mail, porquanto em processo penal é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27.12, e entendemos não ser aplicável às partes, por si, o regime estabelecido na Portaria n.º 642/2004, de 16.06.

E, não obstante o requerimento ter sido formalmente designado pelo requerente como “Reforma da conta”, a verdade é que inexiste qualquer conta elaborada e, atento o conteúdo do requerimento, o mesmo configura a discordância do requerente quanto à fundamentação da decisão, nomeadamente quanto à condenação na “taxa de justiça em 6 UC’s – art.45º, nº7, do C.P.P.”, sendo esta a perspetiva em que será apreciado.

Vejamos

Nos termos do nº 1 do artº 613º do CPC, norma aplicável ao processo penal por força do artº 4º do CPP, «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».

O juiz pode, porém, introduzir-lhe modificações, em função da verificação de anomalias especificamente previstas.

No processo penal, prevê-se a correção da sentença, nas situações indicadas no nº 1 do artº 380º, e o suprimento de nulidades, nos moldes previstos no artº 379º, ambos do CPP.

Assim, este diploma, sendo embora omisso no que se refere à afirmação do esgotamento do poder jurisdicional do juiz após a prolação da decisão, ponto em que por isso se recorre à regra enunciada no nº 1 do artº 613º do CPC, não o é no que se refere à tipificação e regulação dos casos em que a decisão pode ser modificada. Não existindo por isso lacuna nesse ponto, não há aí espaço para aplicação subsidiária das normas do processo civil. Nomeadamente, não tem lugar no processo penal a figura da reforma de sentença.

Foi neste sentido que decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdãos de 12/12/2013, proferido no processo nº 6138/12.4TDPRT-A.P1.S1, e de 24/04/2014, proferido no processo nº 772/11.7YRLSB.S1, ambos da 5ª secção, referidos no Acórdão do STJ proferido em 27/11/2014 no Processo nº281/07.9GELLE.E1-A.S1´(acessível em http://www.dgsi.pt/), tendo-se afirmado:

“A figura da reforma da sentença prevista no nº 2 do artigo 669º CPC (actualmente artº 616º, nº 2) não tem aplicação no processo penal.

Com efeito, o CPP prevê e regula os casos em que a sentença pode ser modificada pelo tribunal que a proferiu, suprindo nulidades nos moldes previstos no artigo 379º, nº 2, e fazendo as correcções que caibam na previsão do artigo 380º. E a previsão desses casos deve ter-se como completa, pois não se coadunaria com o modelo de legislador presumido pela regra do nº 3 do artigo 9º do Código Civil que, prevendo-se uns, não se previsse outros que se quisesse admitir. Não se pode, pois, dizer que existe lacuna a integrar com recurso às normas do processo civil. O que há é uma regulação diversa em ambos os ramos do direito processual.

A reforma da sentença com os fundamentos do nº 2 do artº 669º do CPC, envolvendo uma alteração do sentido da decisão, é mesmo afastada pela disposição da alínea b) do nº 1 do artº 380º do CPP, que não admite a correcção de erros «cuja eliminação importe modificação essencial»”.

A não admissibilidade da reforma de sentença no processo penal foi ainda decidida no acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 06/02/2014, no âmbito do processo nº 414/09.0PMAI-B.P1-A.S1., também aludido no referido Acórdão proferido em 27/11/2014 no Processo nº281/07.9GELLE.E1-A.S1.

Assim, “ proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, como estabelece o n.º 1 do artigo 613.º do CPC, aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º do CPP. No entanto, o juiz pode «introduzir-lhe modificações, em função da verificação de anomalias especificamente previstas. No processo civil, admite-se a rectificação de erros materiais, o suprimento de nulidades e a reforma da sentença, nos termos previstos nos arts. 614.º, 615.º e 616.º do CPC. No processo penal, prevê-se a correcção da sentença, nas situações indicadas no n.º 1 do art. 380.º, e o suprimento de nulidades, nos moldes previstos no art. 379.º, ambos do CPP» (cfr. o já referido Acórdão de 27/11/ de 2014, Processo n.º 281/07.9GELLE.E1-A.S1, em http://www.dgsi.pt/.)

O artigo 380.º do CPP, relativo à «Correção da sentença», aplicável aos acórdãos, por força do disposto no n.º 4 do artigo 425.º, do mesmo Código, prescreve que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando, fora dos casos de nulidade, previstos no artigo 379.º, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º, e ainda quando a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. Nem neste artigo, nem em qualquer outro se prevê a reforma da sentença, nos exatos termos em que é contemplada no processo civil, no artigo 616.º.

E a inaplicabilidade do regime processual civilista de reforma da sentença ao processo penal, em qualquer das previsões do n.º 2 do artigo 616.º (ex-669.º) do CPC é também defendida pela doutrina (cfr.Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 4.ª edição atualizada, 2011, anotações 3 e 4 ao artigo 380.º, p. 1049.)

Como se referiu, a sentença pode ser corrigida, oficiosamente ou a requerimento, nos termos do artigo 380.º do CPP, quando, não sendo nula, não respeitar os requisitos contemplados no artigo 374.º do mesmo código, o que, no caso, não ocorre, ou quando contenha «erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial».

Pressuposto da aplicação do aludido artigo 380.º é que a decisão, tal como proferida, não sofra modificação essencial com as correções que sejam de introduzir, sendo esse o caso.

A epígrafe da norma, apelando à «correção» da sentença tem implícita a manutenção da essência da decisão, de outro modo não se trataria de correções, as quais só são admissíveis se preservarem aquela essencialidade e resultarem de algum dos vícios nela mencionados.

Como afirma Maia Gonçalves, a correção da sentença que contiver lapso, obscuridade ou ambiguidade é possível desde que não importe modificação essencial, aferindo-se esta «em relação ao que estava no pensamento do tribunal decidir, e não em relação ao que ficou escrito; por isso se incluem os erros materiais ou de escrita» ( Código de Processo Penal anotado, 17.ª edição, 2009, Almedina, Coimbra, anotação 2.ª ao artigo 380.º, p. 878.).

As correções reportam-se a elementos não essenciais do juízo decisório, devendo permanecer íntegro o conteúdo ou o mérito da decisão, apenas expurgado, não só de erros e lapsos ostensivos, bem como de elementos geradores de obscuridade, que a tornam ininteligível, ou de ambiguidade, prestando-a diferentes interpretações.

Ora, o Acórdão proferido em 26 de outubro de 2021 não incorpora qualquer lapso, porquanto se mostra claro, e sem obscuridades ou lacunas.

O Acórdão questionado assenta num discurso claro e consequente sobre a questão que lhe competia apreciar, tendo sido proferido juízo decisório com os exatos fundamentos que a sustentam não havendo qualquer erro ou lapso a relevar, muito menos manifesto, que não importe modificação essencial, como é exigido pela norma em causa.

Com efeito, atentando no Acórdão resulta manifesto que no mesmo Acórdão foi apreciada, de forma bem clara, a questão concreta suscitada, entendendo-se como tal a questão concreta a decidir e não argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas na defesa das teses em presença.

A manifesta discordância da fundamentação da decisão judicial não justifica que se pretenda a alteração dela pela instância que a proferiu.

E o que verdadeiramente acontece é que o ora requerente, por outras palavras, retoma questões já decididas.

Na verdade, o que se constata é que o requerente põe em causa a decisão proferida por este Tribunal, da qual discorda, do que não decorre, naturalmente, que, ao requerer o que rotula de “Reforma da conta” possa pretender a apreciação do mérito do Acórdão, e, consequentemente, outra apreciação da recusa. Tal extravasaria, manifestamente, o âmbito da faculdade conferida pelo art.380º do CPP, porquanto tal pretensão não encontra qualquer base que a suporte nos requisitos relativos a uma correção da decisão.

Tudo para dizer que não subsistem dúvidas de que a questão objeto da decisão, efetivamente apreciada na mesma, e só esta, foi expressamente considerada no Acórdão, de forma clara e fundamentada, fáctica e legalmente, inexistindo, pois, qualquer violação de preceitos legais e/ou constitucionais.

Assim, e pelo exposto, não havendo erro, lapso, ambiguidade ou obscuridade de que o Acórdão padeça e que importe corrigir, indefere-se o requerimento apresentado pelo Assistente.


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Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Indeferir o requerimento apresentado.

- Custas pelo requerente atento o decaimento no incidente suscitado, fixando-se em 0,5 UC a taxa de justiça (cfr. artº 7º, nº4 e Tabela II do R.C.P.).


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Évora, 16 de dezembro de 2021

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

Moreira das Neves

Assinado eletronicamente