PREVARICAÇÃO
TITULAR DE CARGO POLÍTICO
Sumário


1 - O dolo no crime de prevaricação de titular de cargo político, como se alcança das expressões «conscientemente» e «com intenção de» utilizadas no artº 11 da Lei 34/87 de 16/07, faz com que se conclua que o elemento subjectivo é aqui formado pela consciência de que se está a actuar contra direito, assim se actuando com o objectivo de prejudicar ou beneficiar outrem.

2 – Agir contra direito é, na sua essência, no quadro específico dos crimes praticados por titulares de cargos políticos, violar as normas legais positivas, materiais ou processuais, que vinculam quem tem de decidir.

3 - Nos casos em que sejam admissíveis várias soluções jurídicas para uma determinada questão, não existe prevaricação desde que a decisão tomada se possa incluir no âmbito do juridicamente defensável.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No processo de inquérito nº 3627/17.8T9PTM, que correu termos nos serviços foi deduzida a seguinte acusação parte do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Faro (transcrição):

Nos termos do artigo 283º do Código de Processo Penal, o Ministério Público acusa, para julgamento em Processo Comum e perante Tribunal Colectivo:
(...), Presidente da Câmara Municipal de (...), com residência na Câmara Municipal de (...), (...);
Porquanto indiciam suficientemente os autos que:
1º O arguido foi eleito Presidente da Câmara Municipal de (...) nas eleições autárquicas realizadas em 2009, tendo renovado tal mandato em 2013 e em 2017, sendo atualmente Presidente da Câmara Municipal de (...).
2º No dia 25/11/2013 foi efetuada fiscalização urbanística, pelos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...), no prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º 19, secção BH, sito na Quinta do Aviador, freguesia e concelho de (...), propriedade de (…).
3º No decurso de tal fiscalização os respectivos Serviços detectaram que ali se encontravam a executar obras de construção de uma edificação inexistindo o respectivo processo de licenciamento de obras na Câmara Municipal de (...).
4º Nessa sequência foi elaborada Participação por contraordenação.
5º O prédio rútico atrás referido localiza-se parcialmente em Reserva Agrícola Nacional.
6º A referida Participação por contraordenação foi entregue ao arguido na qualidade de Presidente da Câmara a quem competia dar o respetivo impulso processual, tendo obtido despacho do arguido no dia 04 /07/2018 determinando a “verificação minuciosa das obras ou trabalhos em infracção” e determinando a “suspensão das obras irregulares fixando um prazo de 60 dias para ser requerida a eventual legalização”.
7º Nessa sequência foi instaurado o respectivo processo camarário na Secção Administrativa da Divisão de Obras e Planeamento da Câmara Municipal de (...).
8º No dia 09-10-2018 foi enviada carta postal registada a (...) assinada pelo arguido notificando a mesma nos termos do disposto no artigo 102º-A do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação para apresentar requerimento de legalização instruído com projecto das operações urbanísticas levadas a efeito sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento.
9º No dia 03-12-2018 foi enviada carta postal registada a (...) assinada pelo arguido informando a mesma dos requisitos necessários para a apresentação de pedido para legalização da construção efectuada sem o respectivo licenciamento.
10º Até ao dia 04 de Fevereiro de 2019 não foi praticado qualquer outro acto pelo arguido ou pela Câmara Municipal de (...).
11º No dia 20/01/2014 foi efetuada fiscalização urbanística, pelos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...), no prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º 30, secção BH, sito na Bica Boa, (...), propriedade de (...).
12º No decurso de tal fiscalização os respectivos Serviços detectaram que ali se encontravam a executar obras de construção de uma edificação inexistindo o respectivo processo de licenciamento de obras na Câmara Municipal de (...).
13º Nessa sequência foi elaborada Participação por contraordenação.
14º O prédio rútico atrás referido localiza-se em Reserva Agrícola Nacional.
15º A referida Participação por contraordenação foi entregue ao arguido na qualidade de Presidente da Câmara a quem competia dar o respetivo impulso processual, tendo obtido despacho do arguido no dia 04/07/2018 determinando a “verificação minuciosa das obras ou trabalhos em infracção” e determinando a “suspensão das obras irregulares fixando um prazo de 60 dias para ser requerida a eventual legalização”.
16º Nessa sequência foi instaurado o respectivo processo camarário na Secção Administrativa da Divisão de Obras e Planeamento da Câmara Municipal de (...).
17º No dia 09-10-2018 foi enviada carta postal registada a (...) assinada pelo arguido notificando o mesmo nos termos do disposto no artigo 102º-A do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação para apresentar requerimento de legalização instruído com projecto das operações urbanísticas levadas a efeito sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento.
18º Na sequência de apresentação de requerimento por (...), por despacho do arguido datado de 30-01-2019 foi determinado que aquele procedesse à entrega
de requerimento par reposição da legalidade urbanística.
19º Até ao dia 04 de Fevereiro de 2019 não foi praticado qualquer outro acto pelo arguido ou pela Câmara Municipal de (...).
20º No dia 05/05/2014 foi efetuada fiscalização urbanística, pelos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...), no prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º 15, secção BH, sito na Quinta do Aviador, freguesia e concelho de (...), propriedade de (...).
21º No decurso de tal fiscalização os respectivos Serviços detectaram que ali se encontravam a executar obras de ampliação de uma moradia inexistindo o respectivo processo de licenciamento de obras na Câmara Municipal de (...).
22º Nessa sequência foi elaborada Participação por contraordenação.
23º O prédio rútico atrás referido localiza-se em Reserva Agrícola Nacional.
24º A referida Participação por contraordenação foi entregue ao arguido na qualidade de Presidente da Câmara a quem competia dar o respetivo impulso processual, tendo obtido despacho do arguido no dia 04/07/2018 determinando a “verificação minuciosa das obras ou trabalhos em infracção” e determinando a “suspensão das obras irregulares fixando um prazo de 60 dias para ser requerida a eventual legalização”.
25ºNessa sequência foi instaurado o respectivo processo camarário na Secção Administrativa da Divisão de Obras e Planeamento da Câmara Municipal de (...).
26º No dia 09-10-2018 foi enviada carta postal registada a (…) assinada pelo arguido notificando o mesmo nos termos do disposto no artigo 102º-A do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação para apresentar requerimento de legalização instruído com projecto das operações urbanísticas levadas a efeito sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento.
27º Até ao dia 04 de Fevereiro de 2019 não foi praticado qualquer outro acto pelo arguido ou pela Câmara Municipal de (...).
28º No dia 22/03/2016 o Fiscal Municipal (…), a exercer funções nos Serviços de fiscalização da Câmara Municipal de (...), elaborou Informação dando conta duas construções efectuadas sem o respectivo licenciamento no prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob os artigos n.º 13 e 16, secção BE, sito no Sitio do Brandão em Marmelete, concelho de (...).
29º O prédio rútico atrás referido encontra-se inscrito na Repartição de Finanças em nome de (…).
30º O prédio rústico atrás referido localiza-se em Reserva Ecológica Nacional.
31ºA referida Informação foi entregue ao arguido na qualidade de Presidente da Câmara a quem competia dar o respetivo impulso processual, tendo obtido despacho do arguido no dia 04/07/2018 determinando que se notificasse “o proprietário para legalização das construções ilegais”.
32º Nessa sequência foi instaurado o respectivo processo camarário na Secção Administrativa da Divisão de Obras e Planeamento da Câmara Municipal de (...).
33º No dia 08-10-2018 foi enviada carta postal registada a (…) assinada pelo arguido notificando o mesmo nos termos do disposto no artigo 102º-A do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação para apresentar requerimento de legalização instruído com projecto das operações urbanísticas levadas a efeito sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento.
34º Até ao dia 04 de Fevereiro de 2019 não foi praticado qualquer outro acto pelo arguido ou pela Câmara Municipal de (...).
35º No dia 14/03/2017 o Fiscal Municipal (...), a exercer funções nos Serviços de fiscalização da Câmara Municipal de (...), efectuou fiscalização urbanística ao prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo n.º 128, secção BZ, sito em cerca de Rita, freguesia de (...).
36º O prédio rútico atrás referido encontra-se inscrito na Repartição de Finanças em nome de (…).
37º No decurso de tal fiscalização o atrás identificado Fiscal Municipal identificou que ali haviam sido executadas obras de construção de uma edificação inexistindo o respectivo processo de licenciamento de obras na Câmara Municipal de (...).
38º Nessa sequência, face à ausência de licença administrativa para o efeito, o atrás identificado Fiscal Municipal elaborou a respectiva Informação em 16-03-2017.
39º A referida Informação foi entregue ao arguido na qualidade de Presidente da Câmara a quem competia dar o respetivo impulso processual, tendo obtido despacho do arguido no dia 04/07/2018 determinando que se notificasse “o proprietário para legalização das construções ilegais”.
40º Nessa sequência foi instaurado o respectivo processo camarário na Secção Administrativa da Divisão de Obras e Planeamento da Câmara Municipal de (...).
41º No dia 08-10-2018 foram enviadas cartas postais registadas a (…) assinadas pelo arguido notificando o mesmo nos termos do disposto no artigo 102º-A do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação para apresentar requerimento de legalização instruído com projecto das operações urbanísticas levadas a efeito sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento.
42º No dia 07-09-2018 (...) apresentou na Câmara Municipal de (...) pedido de informação prévia para legalização da construção atrás identificada.
43º No dia 12-11-2018 foi enviada carta postal registada a (...) assinada pelo arguido notificando o mesmo de que lhe foi concedida a prorrogação do prazo para entrega dos elementos necessários à instrução do pedido de informação prévia que terminaria em 27-11-2018.
44º O prédio rútico atrás referido localiza-se parcialmente em Reserva Agrícola Nacional.
45º Até ao dia 04 de Fevereiro de 2019 não foi praticado qualquer outro acto pelo arguido ou pela Câmara Municipal de (...).
46º As Informações e Participações dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...) foram entregues directamente ao arguido a quem competia emitir despacho para o respectivo impulso processual.
47º Pese embora a data de elaboração das três participações por contraordenação e Informações mencionadas nos artigos 4º, 13º, 22º, 28º e 38º da presente acusação (25-11-2013, 20-01-2014, 05-05-2014, 22-03-2016, 14-03-2017) o arguido apenas despachou as mesmas em 04-07-2018 determinado no que concerne às Participações a “verificação minuciosa das obras ou trabalhos em infracção” e “suspensão das obras irregulares fixando um prazo de 60 dias para ser requerida a eventual legalização” e no que concerne às Informações a notificação do “proprietário para legalização das construções ilegais”.
48º Nos dias 08-10-2018 e 09-10-2018, no âmbito dos respectivos processos camarários, todos os proprietários foram apenas notificados para apresentar requerimento de legalização das operações urbanísticas levadas a efeito sem os necessários atos administrativos de controlo prévio para eventual licenciamento.
49º O arguido sabia que todas as edificações acima identificadas, e que estavam a ser levadas a cabo aquando da elaboração das referidas Informações e Participações, encontravam-se localizadas em Reserva Agrícola Nacional e, uma delas, em Reserva Ecológica Nacional.
50º No exercício das suas funções o arguido estava subordinado à Constituição e à lei, estando assim vinculado a observar escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos actos por si praticados ou pelos órgãos a que pertence e salvaguardar os interesses públicos do Estado e da respectiva autarquia. [art. 266º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa; 4º da Lei n.º 29/87 de 30 de Junho]
51º Independentemente do procedimento tendente à legalização das obras que se iniciou, bem sabia o arguido que de acordo com o disposto no Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional, no Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional e no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação lhe estava legalmente atribuída a competência para determinar no âmbito dos respectivos processos camarários decisão administrativa de embargo das referidas obras de edificação, bem como determinar a instauração dos respectivos procedimentos contraordenacionais, o que não fez. [arts. 36º, 37º, 38 e 39º do DL n.º 166/2008, de 22 de Agosto; 39º, 40º, 41º e 44º do DL nº 73/2009, de 31 de Março; 98º e 102º-B do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro]
52º O arguido bem sabia que ao conduzir os respectivos processos administrativos da forma supra descrita, e em consequência da sua conduta omissiva, prejudicava os interesses públicos e beneficiava os proprietários das edificações fiscalizadas, permitindo-lhes terminar e manter as construções urbanísticas em violação das disposições legais aplicáveis e sem o apuramento de responsabilidade contraordenacional.
53º O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Assim agindo, constituiu-se o arguido (...) autor material, na forma consumada, de 5 (cinco) crimes de prevaricação p. e p. pelos artigos 3º n. º1 al. i), 5º, 11º e 29º al. f) da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, em concurso aparente com 5 (cinco) crimes de abuso de poderes p. e p. pelos artigos 3º n.º 1 al. i); 5º, 26º e 29º al. f) da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.

Tendo sido pelo arguido requerida a abertura da instrução e realizada a mesma, foi proferido despacho de não pronúncia nos seguintes termos (transcrição):

Decisão Instrutória
I. Relatório.
1. O Ministério Público acusou o arguido (...) pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de 5 (cinco) crimes de prevaricação, ps. e ps. pelos artigos 3.º, n.º 1, al. i), 5.º, 11.º e 29.º, al. f) da Lei 34/87, de 16/07, em concurso aparente com 5 (cinco) crimes de abuso de poderes, ps. e ps. pelos artigos 3.º, n.º 1, al. i), 5.º, 26.º e 29.º, al. f) da Lei 34/87, de 16/07.
2. Reagiu o arguido por meio do requerimento de abertura da instrução que consta a fls. 339 e s. onde pugna pela prolação de um despacho de não pronúncia. Nessa sequência, a instrução foi declarada aberta, o arguido prestou declarações, foram inquiridas duas testemunhas e realizou-se o debate instrutório.
*
II. Saneamento.
Não existem nulidades ou questões prévias que obstem à apreciação da causa.
*
III. Das finalidades da instrução.
A instrução, quando requerida pelo sujeito processual arguido, como é o caso, visa a obtenção de um controlo negativo sobre a decisão de acusar, controlo corporizado no despacho de não pronúncia, com a inerente consequência da não submissão da causa a julgamento, cf. artigos 286.º, n.º 1 e 287.º, n.º 1, al. a) e 2, ambos do Código de Processo Penal
*
IV. Discussão. Relevância e consequências.
1.Da noção operatória indiciação suficiente.
Como é sabido a dedução da acusação pública não tem legalmente por fim apenas, ou só, a mera submissão de uma pessoa a julgamento, mas antes, e por sobre tudo, a aplicação, a essa pessoa, de uma pena ou medida de segurança, cf. artigo 283.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, para o que será necessário – mas só para este efeito – a passagem pelo areópago do julgamento.
O que demanda a verificação, neste momento, de um lastro probatório (validamente adquirido) relativo a um acontecimento histórico concreto penalmente relevante, lastro que, avaliada a sua força e aptidão para renovação em audiência de julgamento sem perda da carga incriminatória, permita vencer as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual penal (artigo 32.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), e por aí, a elaboração com ele e por causa dele, neste momento interlocutório, de um juízo de probabilidade muito elevada de condenação (Cf. «O conceito de indícios suficientes no processo penal português», Jorge Noronha e Silveira, in «Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», Coord. Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 155 e s., máxime, fls. 160-172. Na jurisprudência, cf., entre muitos, o Acórdão da Relação de Évora de 13/05/2014, Relator João Gomes de Sousa, acessível em www.gde.mj.pt.)
É este o entendimento que sufragamos, sem desdouro algum por outros, na medida em que nos parece ser aquele que melhor dá corpo à leitura do artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal em conformidade com a Lei Fundamental.
De facto, como há muito se anuncia, a submissão a julgamento de uma pessoa nunca é um «acto axiologicamente neutro», inócuo ou inofensivo.
E será com este horizonte em pano de fundo que se irá trabalhar a factualidade descrita na acusação.
2.Da avaliação da indiciação e seu grau relativamente aos factos vertidos na acusação. Considero o facto vertido no artigo 1.º suficientemente indiciado com base nas declarações prestadas na instrução.
Relativamente às alegações que se narram nos artigos 2.º a 5.º do libelo as mesmas estão suficientemente indiciadas com base no do teor do Apenso 2 onde, além do mais, consta a participação conjugado com cópia da certidão a fls. 17 e s. dos autos.
No que concerne ao artigo 6.º não se indicia que a participação tenha sido entregue ao arguido no sentido de, pelo menos, o arguido a ter recebido, isto é, que tivesse ocorrido uma efectiva recepção por banda do arguido, uma entrega directa, como resulta da alegação.
O procedimento era este:
A participação levantada pelo fiscal era incorporada em pasta própria para o efeito, a qual, por sua vez era depositada no gabinete jurídico.
Nunca ocorreu qualquer entrega em mão ao arguido.
Entrada a participação no gabinete jurídico competia ao jurista analisá-la, dar-lhe seguimento e, eventualmente, levá-la ao arguido para despacho.
Era esta a orgânica interna dos serviços.
Tanto o referiu quer o arguido, quer a testemunha (…) (declarações na instrução) que a este propósito – o da entrega das participações – acabou por dizer que tiveram um período muito grande sem juristas, que os processos seguiam do seu gabinete para o gabinete jurídico e tudo o que seguiu para este gabinete «ficou lá parado», pois cabia ao jurista analisar o processo e fazer uma informação ao Sr. Presidente.
Acresce que do depoimento de (…), que exercia as funções de fiscal, também não consta que as participações fossem entregues directamente ao Presidente (cf. fls. 29 e s.).
Pelo exposto não se indiciam com suficiência os incisos:
«foi entregue ao arguido» vertido neste artigo 6.º e nos artigos 15.º, 24.º, 31.º e 39.º da acusação;
«foram entregues directamente ao arguido» no artigo 46.ºda acusação.
No mais a factualidade descrita no artigo 6.º está suficientemente indiciada, cf. fls. 26-26.ºv. do apenso 2.
Os artigos 7.º a 9.º estão suficientemente indiciados com base na análise do apenso 2.
O artigo 10.º é algo incompleto pois adianta-se uma data – 4/02/2019 – que corresponde à data da extracção das certidões também juntas aos autos, mas depois não se diz se, a partir de tal data, foi, ou não, algo realizado. Enfim, aceita-se o facto.
Os artigos 11.º a 17.º estão suficientemente indiciados (com excepção do inciso «foi entregue ao arguido») com base na análise do apenso 3.
No artigo 18.º omitiu-se que o requerimento de (...) foi apresentado em 15/11/2018, cf. fls. 13 do apenso 3.
O artigo 19.º não se indicia pois houve despacho do arguido em 21/11/2018, cf. fls. 13 do apenso 3.
Os artigos 20.º a 26º estão suficientemente indiciados (com excepção do inciso «foi entregue ao arguido») com base na análise do apenso 1 (1º volume, fls. 1-7).
O artigo 27.º não se indicia pois houve despacho do arguido em 30/01/2019, cf. fls. 2 do referido apenso 1.
Os artigos 28.º a 33º estão suficientemente indiciados (com excepção do inciso «foi entregue ao arguido») com base na análise do apenso 5.
O artigo 34.º não se indicia pois houve despacho do arguido em 30/01/2019, cf. fls. 2 do referido apenso 5.
No artigo 35.º está errada a data da actuação do fiscal pois a correcta é 16/03/2017, cf. fls. 22 do apenso 4.º. No mais, o facto está suficientemente indiciado com base na análise do referido apenso.
Os artigos 36.º a 40.º estão suficientemente indiciados (com excepção do inciso «foi entregue ao arguido») com base na análise do apenso 4.
Porém, a acusação omitiu a prolação de dois despachos pelo arguido datados de 10/09/2018 e de 18/09/2018, cf. fls. 15 e 14 do apenso 4 que antecedem as cartas a que se alude no artigo 41.º, como se verifica da análise ao apenso 4.
O que significa que tais despachos e seu teor devem considerar-se suficientemente indiciados e passar a integrar o teor do artigo 41.º.
No artigo 42.º a data indicada está errada. A apresentação do pedido de informação ocorreu em 10/09/2018, cf. fls. 15 do apenso 4.
O facto considera-se suficientemente indiciado com a aludida correcção.
O artigo 43.º firma-se pela análise de fls. 3 do apenso 4.
O artigo 44.º está suficientemente indiciado com base no apenso 4, fls. 12.
O artigo 45.º não se indicia pois ocorreu despacho do arguido em 30/01/2019, cf. fls. 2 do apenso 4.
O artigo 46.º indicia-se apenas assim:
«As Informações e Participações dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...) eram colocadas as pastas próprias depositadas no gabinete jurídico para análise e prestação de informação pelo jurista ao arguido a quem, nessa sequência, competia emitir despacho para o respectivo impulso processual».
Não se indicia que as «Informações e Participações dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...) foram entregues directamente ao arguido».
Tanto é decorrência da análise acima realizada ao artigo 6.º.
O artigo 47.º está firmado pela análise dos apensos 1 a 5.
O artigo 48.º está firmado pela análise dos apensos 1 a 5.
O artigo 49.º está indiciado, mas com a seguinte ressalva: o conhecimento do arguido não foi coevo com a realização das edificações, nem com qualquer das datas correspondentes ao levantamento das participações ou das informações.
Foi posterior. Mas não deixou o arguido de referir, nas declarações que prestou na instrução, que no concelho os terrenos ou estão incluídos na RAN, ou na REN, que é sempre assim.
O artigo 50.º está suficientemente indiciado.
Relativamente aos artigos 51.º a 53.º da acusação é necessário determo-nos um pouco mais e procedermos a uma análise conjunta.
Apartando águas.
Quanto ao embargo das obras:
É certo que o arguido sabia que podia embargar as obras, até mesmo ordenar a respectiva demolição.
No entanto, optou por outra via, qual seja, a de interpelar os munícipes com vista à regularização da situação, de tentar perceber qual a atitude das pessoas, se estas fariam a demolição ou, se houvesse a possibilidade de legalizar, se as iriam legalizar (cf. declarações do arguido na instrução).
É certo que apenas o fez tardiamente, quiçá, após a sua constituição e interrogatório como arguido ou após a solicitação de documentação por parte dos investigadores.
Todavia, se recordarmos que as participações tinham ficado no gabinete jurídico, que nenhum jurista havia para lhes dar seguimento, a situação muda de figura.
Doutra banda, também podemos dizer, caso aquele interrogatório (ou a aludida solicitação de documentos) fosse o «catalisador», que na sua sequência os processos foram movimentados. No entanto, ao contrário do que transparece do artigo 51.º do libelo, o embargo não é o passo primeiro e não se pode desvalorizar o procedimento tendente à legalização das obras.
Perdoou-se-nos a incursão pelo terreno do direito.
Relativamente às medidas de tutela da legalidade urbanística previstas no artigo 102.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, importa atentar que as mesmas são variadas e que inexiste qualquer grau de precedência.
O n.º 2 do referido artigo diz assim:
«As medidas a que se refere o número anterior podem consistir:
a) No embargo de obras ou de trabalhos de remodelação de terrenos;
b) Na suspensão administrativa da eficácia de ato de controlo prévio;
c) Na determinação da realização de trabalhos de correção ou alteração, sempre que possível;
d) Na legalização das operações urbanísticas;
e) Na determinação da demolição total ou parcial de obras;
f) Na reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos;
g) Na determinação da cessação da utilização de edifícios ou suas frações autónomas».
Uma panóplia de medidas de que se pode lançar mão quando estejam em causa operações urbanísticas realizadas sem actos administrativos de controlo prévio.
A opção por uma delas terá sempre, na sua génese, alguma discricionariedade até em função dos contornos concretos da situação.
Que fez o arguido?
Interpelou os particulares para não prosseguirem as obras (quando era o caso) e suscitarem os procedimentos de legalização e, se tanto não chegasse a bom porto, haveria ugar à demolição (que foi precisamente o que sucedeu no que concerne à situação de Pedro José, cf. artigos 35.º e s. do libelo).
O que configura uma das possibilidades previstas na própria lei.
Em suma: não se pode sustentar, sem mais, que a opção pelo desenvolvimento de diligências tendentes à legalização (ou à aferição da sua possibilidade) empreendidas pelo arguido na direcção dos cinco munícipes (ou nos cinco casos relatados) mereça a censura decorrente do direito penal.
Quanto à instauração dos processos de contra-ordenação:
Disse o arguido que nunca foi seu propósito não instaurar os procedimentos, mas sim resolver as situações a bem sem chegar aí.
O que implica a seguinte proposição: podiam ter sido instaurados procedimentos por existirem os seus pressupostos, mas tanto não aconteceu até, pelo menos, ao dia 04/02/2019.
Porém, cumpre, digamos, relativizar o sentido da alegação vertida no artigo 51.º do libelo.
A circunstância de a dado momento se verificar qualquer infracção que podia dar azo à abertura do procedimento contraordenacional nesse mesmo momento, não impede que tal abertura se possa concretizar em momento temporal posterior (como até veio a suceder, como disse o arguido na instrução, onde referiu que foram abertos processos de contraordenação relativamente aos cinco casos referidos na acusação).
Não existe qualquer norma de onde decorra uma espécie de caducidade. O limite à instauração do procedimento contraordenacional será, quando muito, fixado pelo decurso do prazo de prescrição do procedimento.
E a este respeito a acusação é inteiramente omissa.
Avançamos.
No artigo 52º da acusação diz-se que «O arguido bem sabia que ao conduzir os respectivos processos administrativos da forma supra descrita, e em consequência da sua conduta omissiva, prejudicava os interesses públicos e beneficiava os proprietários das edificações fiscalizadas, permitindo-lhes terminar e manter as construções urbanísticas em violação das disposições legais aplicáveis e sem o apuramento de responsabilidade contraordenacional».
Em lado algum da narração da acusação se descreve que construções estavam em causa, sua natureza, tipologia, dimensões, uso, etc., nem que construções se terminaram ou se mantiveram alegadamente em consequência da conduta omissiva do arguido.
Não é a mesma coisa concluir um telheiro para alfaias, cercar um curral para animais ou edificar uma vivenda, ou um prédio, ou um empreendimento turístico.
Sem embargo.
Perdoou-se-nos, uma vez mais, a impossibilidade de tratar de forma «asséptica» a «questão de facto».
A natureza da alegação convoca o habitual «círculo hermenêutico», o ir e vir facto/norma, norma facto.
E a norma inscrita no artigo 11.º da Lei 34/87, de 16/07, com a epígrafe «prevaricação», prescreve assim:
«O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos».
Se a conduta imputada é por omissão (comissão por omissão) o dolo e a intenção de prejudicar ou beneficiar alguém têm que existir (dolo) e presidir (intenção) no momento em que o agente devendo empreender determinada acção legalmente imposta (um facere), conscientemente se decide por não a levar a cabo (um non facere - omissão) contra direito.
Sob este horizonte avançamos.
Fazendo-o, cumprirá perguntar, à luz dos factos narrados na acusação, que factos foram descritos que enunciem relações existentes entre o arguido e os concretos munícipes, que revelem a respectiva tipologia ou natureza, que permitissem, como factos instrumentais, se indiciados com suficiência (e mais tarde provados) alcançar, por inferência a partir deles e à luz das regras de experiência, caso a tanto nada obstasse, a fixação do facto nuclear (facto que o arguido não admitiu e que é por natureza insusceptível de apreensão directa), qual seja, o de que o arguido, precisamente para aqueles munícipes beneficiar, conscientemente omitiu as decisões contra direito?
Vamos, apenas à guisa de ilustração do nosso pensamento, perguntar de jeito exemplificativo se os munícipes referidos na acusação, seriam:
Opinion makers” no conselho que importa «não incomodar» ou «ter na mão»?
Membros «do mesmo partido» do arguido?
Pessoas «francamente próximas» do arguido?
«Sócios» com o arguido?
«Membros» da mesma «agremiação», «associação» ou «colectividade» que o arguido integrasse?
Tanto, ou algo de similar, não se alcança na narração dos factos vertidos na acusação.
Repare-se que a má organização do serviço ou os fracos recursos humanos ao dispor, ou a dispersão da atenção para outros assuntos, ou a superveniência de factores exógenos a reclamar a priorização (por ex. os incêndios em (...) nos anos de 2014, 2015 e o grande incêndio do ano de 2018, factos notórios), ou a assunção de empreendimentos para os quais certa pessoa se acha, à partida, capaz, mas que depois não logra alcançar, também podem resultar, com as palavras da acusação, no tal «terminar ou manter as construções», sem que aqui se possa afirmar que existiu o dolo (representar que se omite conscientemente proferir decisão contra direito e querer tal omissão) e a intenção de beneficiar os referidos munícipes (intenção que terá de presidir à referida omissão).
Estas circunstâncias, – aliás algumas referidas pelo arguido, com excepção da que poderíamos dizer que convoca uma espécie «de culpa na assunção de tarefas» decorrente da concentração do serviço no próprio arguido e por vontade deste (relembre-se o depoimento de (…) na instrução relativamente à matéria dos chefes de divisão) –, não são compatíveis com a verificação do dolo e do elemento subjectivo especial da ilicitude inscrito no tipo de ilícito: «com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém».
Acresce que o dolo exigido para o preenchimento do tipo descrito no artigo 11.º da Lei 34/87, de 16/7, não pode ser o dolo eventual, pois a utilização da palavra «conscientemente» no tipo só é compatível com as duas outras modalidades de dolo (directo ou necessário) previstas no artigo 14.º, do Código Penal.
E quanto à particular intenção esta tem que presidir à omissão consciente.
A intenção de por essa forma prejudicar ou de beneficiar alguém terá que constituir o elemento «catalisador» da/para a devida acção/omissão da condução ou decisão contra direito de um processo.
Doutra banda, das inquirições testemunhais realizadas no inquérito também não descortina seja o que for com prestabilidade para firmar a aludida intenção de beneficiar os concretos munícipes referidos na acusação ou de prejudicar alguém, cf. fls. 29 e s. (…, fiscal), fls. 127 e s. (…, máxime fls. 128), fls. 132 e s. (…, máxime fls 133), fls. 139 e s. (…, máxime fls. 140), fls. 143 e s. (…, máxime fls. 144), a fls. 147 e s. ((...), máxime fls. 148), fls. 151 e s. …, máxime fls. 152), a fls. 155 e s. (…, máxime fls. 156), a fls. 158 e s. ((...), máxime fls. 159), a fls. 162 e s. (…, máxime fls. 163), a fls. 166 e s. ((...), máxime 167, onde se dá nota de reconstrução) e a fls. 172 e s. ((...), máxime a fls. 173, que já não é trabalhador na Câmara).
Nas declarações prestadas pelo arguido, a propósito dos munícipes referidos na acusação, e da questão sob apreciação também nada de distinto se retira.
Por outro lado, também não se curou de saber se existiram outras situações análogas, isto é, se os «atrasos» só ocorreram com os 5 munícipes (ou os 5 casos) identificados no libelo ou não, se tanto era habitual, ou não, pois encerrou-se o inquérito com a dedução da acusação sem que as diligências adrede em curso fossem concluídas, cf. fls. 271, 291 e 293.
Avançamos noutra direcção por meio de mais uma interrogação.
Será que a actividade de um qualquer autarca que se traduza em ser relapsa no despacho, procrastinadora nas decisões, ou tolerante, ou no limite, quiçá incompetente, deverá, sem mais, integrar a «via única» para a «cidadela penal»?
Relembra-se que os tipos de crime imputados (temos em mente o «concurso aparente» que se afirma na acusação) nem sequer são punidos a título de negligência, cf. artigo 13.º do Código Penal, e artigos 11.º e 26.º, n.º 1, estes dois da Lei 34/87, de 16/07.
Enfatiza-se que existem outras entidades e ramos do direito distintos do penal votados a fiscalizar e a censurar uma actividade que se caracterize daquela forma (princípio da intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal).
Finalmente, todas razões antecedentes são sobreponíveis, com as devidas adaptações, em relação ao outro ilícito que o Ministério Público diz verificar-se em «concurso aparente», qual seja, o crime de abuso de poderes previsto no artigo 26.º da Lei 34/87, de 16/07.
Efectivamente, este último demanda, igualmente, a par do dolo, a verificação do elemento subjectivo especial da ilicitude, no caso, «a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem».
Por tudo o até aqui exposto, não podemos considerar, sem violação ostensiva das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual, concretamente da presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reu, cf. artigo 32.º, n.º 2 da Lei Fundamental, como suficientemente indiciada a factualidade vertida nos artigos 51.º e 52.º da acusação.
A terminar, a acusação finda com o artigo 53.º onde se narra: «O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei».
Pois bem.
Se a descrição da factualidade imputada na narração ao arguido se traduz em um non facere – várias omissões – não se pode alegar, sob pena de manifesta incongruência, como aqui se faz, que o arguido agiu (portanto que teria feito qualquer coisa) e qualificar essa acção ou esse agir como tendo sido levada(o) a cabo «de forma livre, deliberada e consciente».
Dito de forma enxuta: a “fórmula” contida neste artigo 53.º da acusação não tem qualquer valia e, por isso, nunca poderá alçapremar-se ao patamar da indiciação suficiente.
Proibida, de qualquer modo, sempre estaria a sua substituição por factualidade nova apta a valer às exigências subjectivas, pois, em situação similar, já tanto se vedou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 1/2015, datado de 20/11/2015 e publicado no DR., Iª Série, de 27/01/2015.
3.Relevância.
Os factos que se indiciaram com suficiência não bastam para satisfazer as exigências objectivas e principalmente subjectivas tanto do crime de prevaricação, como do crime de abuso de poderes, que o Ministério Público sustenta estar em concurso aparente, ilícitos previstos e punidos pelos artigos 11.º e 26.º da Lei 34/87, de 16/07.
Ambos, além do mais, contêm, a par do dolo, elementos subjectivos especiais da ilicitude, ou noutra formulação, demandam a verificação do “dolo específico”, como se constata, à margem de qualquer dúvida, mediante a inclusão nos tipos de ilícito dos seguintes incisos:
«com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém» - artigo 11.º (prevaricação);
«com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem» - artigo 26.º, ambos da Lei 34/87, de 16/07.
Prejudicar ou beneficiar alguém, não é tipicamente o mesmo que prejudicar ou beneficiar o Estado, o Estado/Administração ou o Estado/Nação/Colectividade, mas sim pessoa concreta; Obter benefício ilegítimo para terceiro, não envolve o Estado, o Estado-Administração ou o Estado/Nação/Colectividade como terceiro beneficiado em termos típicos, mas sim pessoa concreta;
Causar um prejuízo a outrem, não envolve o Estado em qualquer das vertentes referidas como corporizador do elemento típico outrem, mas antes pessoa concreta.
Quando foi precisamente esse o propósito do legislador, isto é, o de convocar o Estado, ele assinalou-o de forma expressa como o fez, por ex., nos crimes de falsificação (artigos 256.º a 259.º do CP), de uso de documento de identificação ou de viagem alheio (artigo 261.º do CP), de contrafacção de selos, cunhos, marcas ou chancelas (artigo 269.º, n.º 3 do CP), de infidelidade diplomática (artigo 319.º do CP), de sabotagem (artigo 329.º do CP), ou de concussão (artigo 378.º do CP), entre outros.
4. Consequências.
Aqui chegados, obtém-se um controlo negativo sobre a decisão de acusar que, por isso, não se comprova, e em consequência será lavrado despacho de não pronúncia, nos termos do artigo 308.º, n.º 1, parte final do Código de Processo Penal.
*
V. Decisão.
Pelo exposto, decido NÃO PRONUNCIAR o arguido (...) pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de 5 (cinco) crimes de prevaricação, ps. e ps. pelos artigos 3.º, n.º 1, al. i), 5.º, 11.º e 29.º, al. f) da Lei 34/87, de 16/07, em concurso aparente com 5 (cinco) crimes de abuso de poderes, ps. e ps. pelos artigos 3.º, n.º 1, al. i), 5.º, 26.º e 29.º, al. f) da Lei 34/87, de 16/07, que lhe foram imputados na acusação pública.
Sem custas.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

1. O presente recurso tem como objeto a decisão de não pronúncia proferida em 15-06-2021, com a que decidiu não pronunciar o arguido (...), da acusação pública contra si proferida e que lhe imputava a prática, em autoria material e na forma consumada de 5 (cinco) crimes de prevaricação, previstos e punidos pelo artigo 3.º, n.º1, alínea i), 5.º, 11.º e 29.º, alínea f) da Lei 34/87, de 16/07, em concurso aparente com 5 (cinco) crimes de abuso de poderes, previstos e punidos pelo artigo 3.º, n.º1, alínea i), 5.º, 26.º e 29.º, alínea f) da Lei 34/87, de 16/07.
2. Com a sua interposição, são as seguintes as questões a decidir:
A. Da impugnação da matéria de facto:
A.1) Pontos de factos sob os números 6.º, 11.º a 17.º, 20.º a 26.º, 28.º a 33.º, 36.º a 40.º e 46.º
O Mmo. Juiz de Instrução Criminal a quo, na decisão de não pronúncia recorrida, julgou não indiciadas quanto aos pontos de facto 6.º, 11.º a 17.º, 20.º a 26.º, 28.º a 33.º e 36.º a 40.º constantes da acusação, a expressão “foi entregue ao arguido” e a expressão “foram entregues diretamente ao arguido” contida no ponto 46.º da acusação.
Discordamos de tal segmento decisório, desde logo, porque se extrai do depoimento da testemunha (…), prestado em fase de inquérito, mas não sopesado na fase de instrução, exatamente o contrário do sentido de decisão do Mmo. Juiz a quo.
A testemunha (…), referiu perentoriamente que até 2013 as participações passavam por ela, porém, desde 2013 que as participações eram entregues diretamente ao arguido. Assim, vejam-se as passagens a 02:41, 05:24, 10:28, 10:40 e 11:04 do seu registo áudio de inquirição.
O que, sopesado com as declarações do próprio arguido, a minutos 17:12 do seu registo áudio de inquirição, infirma totalmente a conclusão a que chegou o Mmo. Juiz a quo.
Pelo exposto, entendemos que, nesta parte, padece a douta sentença do vício ora alegado, pelo que, com base nos fundamentos invocados, salvo melhor opinião, devem os parágrafos 6.º, 11.º a 17.º, 20 a 26.º, 28.º a 33.º, 36.º a 40.º e 46.º da acusação, ser mantidos na sua redação originária, com a inclusão das expressões “foi entregue ao arguido” e “foram entregues diretamente ao arguido” e considerados indiciados.
A.2) Da alteração não substancial de factos que o Mmo. Juiz a quo deveria ter conhecido – quanto aos factos 19.º 27.º, 34.º e 35.º;
Todos estes pontos da acusação sob os números 19.º, 27.º, 34.º e 45.º, têm a mesma redação, designadamente “Até ao dia 04 de fevereiro de 2019 não foi praticado qualquer outro ato pelo arguido ou pela Câmara Municipal de (...)”.
Os mesmos padecem de lapso de escrita quanto à data de 04 de fevereiro de 2019, devendo ler-se 04 de julho de 2018.
Pelo que se se impõe sejam tais pontos da acusação sob os números 19.º, 27.º, 34.º e 45.º julgados indiciados e, assim, constantes da matéria de factos indiciariamente verificada, após a competente comunicação de alteração não substancial de factos, nos termos do vertido no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
*
A.3) Da decisão quanto ao ponto 35.º da acusação como não indiciado quando deveria ter sido julgado indiciado
Aqui padece de lapso de raciocínio o Mmo. Juiz a quo, pois que a data indicada, de 14-03-2017, refere-se à data da fiscalização e está correta e não à data da entrada na Câmara da participação, essa sim em 16-03-2017.
Mas, ainda que assim não fosse, em detrimento de se ter como não indiciada, sempre se impunha a alteração não substancial dos factos e a sua consequente indiciação.
Pelo que, nesta parte, impõe-se a revogação da decisão de não pronúncia na parte em que considera não indiciado o ponto 35.º atenta a data ali indicada estar correta, bem como a sua indiciação, o que consubstancia manifesto erro na apreciação da prova (fls. 22 do apenso 4) por parte do Mmo. Juiz a quo, ou, se assim se não entender, pelo menos, a verificação da omissão de comunicação de alteração não substancial de factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
Relativamente à factualidade dos pontos 51.º a 53.º da acusação, que o Mmo. Juiz a quo conclui “cumpre, digamos, relativizar o sentido da alegação vertida no artigo 51.º do libelo
As obras em causa encontram-se inseridas em áreas de reserva ecológica, tendo aplicação não o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, designadamente no artigo 102.º do RJUE (DL n.º 555/99, de 16 de dezembro), mas antes o Regime Jurídico da REN (DL n.º 166/2008, de 22 de agosto) o qual estabelece no seu artigo 20.º:
“Regime
1 - Nas áreas incluídas na REN são interditos os usos e as ações de iniciativa pública ou privada que se traduzam em:
a) Operações de loteamento;
b) Obras de urbanização, construção e ampliação; …”
Tais obras eram insuscetíveis de legalização.
Quanto à atuação tardia do arguido, que na própria decisão de não pronúncia se reconhece ter sido despoletada apenas após a solicitação de documentação por parte dos investigadores, e eventual discricionariedade do arguido, note-se o seguinte: Estando em causa contraordenações tem aplicação o DL n.º 433/82, de 27 de outubro, que no seu artigo 43.º estabelece que processo de contraordenação está sujeito ao princípio da legalidade.
Ora não só o princípio da legalidade não admite qualquer discricionariedade, por parte da entidade competente para a instauração do processo contraordenacional, no caso a Câmara Municipal, como o RJREN - DL n.º 166/2008, de 22 de agosto nos seus art.º 36.º, n.º 2 e 38.º, atribui tais competências, de fiscalização e instrução do processo contraordenacional, não só à Câmara Municipal mas também às comissões de coordenação e desenvolvimento regional, à Agência Portuguesa do Ambiente, I. P., bem como a outras entidades competentes em razão da matéria ou da área de jurisdição, ora tal discricionariedade só poderia ser hipoteticamente concebida, caso tal competência fosse exclusiva da Câmara Municipal, o que não se verifica e apenas dentro de um ordenamento jurídico onde não existisse o princípio da legalidade.
Assim é nosso entendimento que nenhum reparo merecem os mencionados factos dos pontos 51.º a 53.º da acusação.
B. Da matéria de Direito: a (in)existência de dolo:
Entende, nesta parte, o Mmo. Juiz a quo, que o arguido não agiu com dolo e, nesta medida, sem dolo, inexistem os elementos típicos subjetivos do ilícito imputado.
Não é despiciendo o facto de o arguido conhecer os infratores, o arguido começa por dizer que não os conhece, porém, acaba por o admitir, após ser questionado pelo Mmo. Juiz:
Aos minutos 4:33 das suas declarações o arguido começa por dizer: “Como se diz nos autos estas pessoas não me conhecem ou eu não as conheço, ou não tenho qualquer relação com elas, portanto nunca houve aqui o interesse de beneficiar seja quem for, muito menos de prejudicar seja quem for”.
Todavia, aos o Mmo. Juiz aos minutos 17.00, Pergunta: “(...) (uma das infratoras autuada) conhece esta pessoa?”
Arguido: “Sim.”
Mmo Juiz: “Mas conheceu por causa do processo de contraordenação ou já a conhecia?”
Arguido: Minutos 18.00: “Não, conheço de ser uma senhora (hesitação) uma cidadã de (...), mas não tenho relação de proximidade.”
Mmo Juiz: “E este …?”
Arguido: Minutos 18.14: “Muito mal, não vive em (...) há muitos anos, por acaso regressou para lá, mas não conheço muito bem.”
Mmo. Juiz: Minutos 18.37: “E este Senhor …?”
Arguido: “Conheço esse Senhor conheço até é, (hesitação) até é meu primo.”
Mmo Juiz: Minutos 19.26: “E estes aqui, (...)?”
Arguido: “Conheço de vista. O (…) foi funcionário da Câmara.”
O arguido nas suas declarações, aos minutos 24:50, demonstra claramente a consciência da sua conduta omissiva ao referir, em resposta à questão colocada pelo Mmo. Juiz a quo, quanto à justificação do arguido para o decurso de tão longo período de tempo sem dar impulso processual aos processos contraordenacionais: Aos minutos 25:00 responde o arguido: “Pensei, sempre pensei obviamente fazer o processo de contraordenação, mas queria começar pela outra parte que era a da regularização da situação e tentar perceber como é que as pessoas, qual a atitude das pessoas, para poder a partir de aí também fazer o processo de contraordenação.”
E continua aos minutos 25:20: “Uma vez que estamos a falar de pequenas obras de escassa relevância urbanística”.
Mmo. Juiz questiona aos minutos 25:28: “Mas o problema é que isso se insere lá nas tais reservas ecológicas e o diabo a quatro, não é!”.
Arguido aos minutos 25:40: “Pois o concelho de (...) é todo e depois é assim, nós queremos fixar pessoas no nosso território, temos que de alguma maneira tentar enquadrar isto numa forma legal, porque eu entendo que se estes territórios qualquer dia nestes sítios só vivem lá animais.”
O que demonstra, até, que não só o arguido tinha conhecimento das participações como, aliás, as desvalorizou dizendo aos minutos 25:20 das suas declarações: “estamos a falar de pequenas obras de escassa relevância urbanística, concluindo: “Pois o concelho de (...) é todo e depois é assim, nós queremos fixar pessoas no nosso território, temos que de alguma maneira tentar enquadrar isto numa forma legal, porque eu entendo que se estes territórios qualquer dia nestes sítios só vivem lá animais.”, de onde resulta, pois, que pretendeu o arguido efetivamente procurar forma de beneficiar quem naquelas participações se apresentava como arguido, os munícipes.
Pelo que, entende o Ministério Público que dúvidas inexistem de que estão integralmente demonstrados todos os elementos do dolo, seja na sua componente intelectual, volitiva ou mesmo intencional.
*
3. Em face do que, impõe-se a revogação da decisão de não pronúncia e a sua substituição por decisão que determine a pronúncia do arguido (...) nos precisos termos formulados na acusação pública, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada de 5 (cinco) crimes de prevaricação, previstos e punidos pelo artigo 3.º, n.º1, alínea i), 5.º, 11.º e 29.º, alínea f) da Lei 34/87, de 16/07, em concurso aparente com 5 (cinco) crimes de abuso de poderes, previstos e punidos pelo artigo 3.º, n.º1, alínea i), 5.º, 26.º e 29.º, alínea f) da Lei 34/87, de 16/07, nos precisos termos formulados na acusação proferida, com a mera ressalva decorrente das alterações não substanciais de factos supra indicadas, referentes ao lapso do ano de 2019 para o ano de 2018.

C – Resposta ao Recurso

O arguido respondeu ao recurso deduzindo as seguintes conclusões (transcrição):

A. O arguido de modo próprio acautelou, assim que teve conhecimento dos factos, que a Lei fosse escrupulosamente cumprida, a sua conduta não merece qualquer juízo de censura legal maior do que a que o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal já fez, sendo que o fim último de um processo de instrução é, tal como vem retratado no douto despacho, aferir se a conduta do arguido deverá ser merecedora de um julgamento e se existem no processo indícios suficientes que possam levar a uma condenação.
B. Como nos ensinam na Faculdade a mesma (condenação) tem um propósito ou fim, que o arguido aprenda, altere a sua conduta e se torne um cidadão cumpridor.
C. Dos factos apurados em sede de inquérito e que aparentemente até suscitaram um pedido de alteração não substancial dos factos por parte do Ministério Publico (em sede de debate instrutório), não encontramos qualquer facto digno ou merecedor de uma censura punitiva, não se adivinhando, em função do que já foi dado como assente, e dos testemunhos apurados, que o arguido venha a ser condenado.
D. Não encontramos em todo o processo, inquérito e instrução, um único depoimento, direto ou indireto que refira que alguém entregou ou viu entregar a participação ao arguido.
E. Após inúmeros meses de inquérito, inquirições de testemunhas na Polícia Judiciária e em sede de audiência ninguém depós de forma que se concluísse que alguém entregou ou viu entregar alguma participação ao arguido;
F. Todos os depoimentos vão no sentido de eu todas as participações ou iam para a pasta ou para o gabinete jurídico (quando havia juristas no Município).
G. Ficou demonstrado que os infratores já regularizaram as operações urbanísticas que efetuaram e que os procedimentos foram efetuados de acordo com a Lei, garantindo o cabal cumprimento do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
H. Nenhum dos infratores beneficiou de qualquer situação ou fez qualquer obra contraria à Lei, nem o erário público foi lesado.
I. Ficou demonstrado que o RJREN merece mais estudo por parte do recorrente, nomeadamente no que toca às operações permitidas e que em toda a peça em momento algum se questiona o que são obras de escassa relevância urbanística, situação que muito se estranha, pois na génese de todo o processo estão obras que pela sua natureza e dimensão estão, na maior parte dos casos, classificadas como tal, não fora as mesmas inserirem-se em espaço REN ou RAN, o que neste processo muito se confundiu mas sem qualquer relevância pois os regimes são muito parecidos, sendo que a RAN permite as ampliações de edificações destinadas a uso habitacional até 300m2 e a REN apenas até aos 250m2, mas para o caso nada releva.
J. O arguido concluiu agora o último dos 3 mandatos que a Lei permite, estando agendada a tomada de posse do novo executivo para o dia 9 de outubro de 2021;
K. Com o fim do mandato do arguido termina as suas funções como autarca no Concelho de (...), deixando de exercer as funções de Presidente de Câmara, neste ou em qualquer outro Concelho, pelo que a possibilidade de cometer os crimes por que foi indiciado e não pronunciado é nula, ficando desde logo acutelada a impossibilidade da continuação da prática que infrações do género.
L. Motivo pelo qual, em função de tudo o atrás exposto e em função do que foi apurado em sede de inquérito e instrução, deverá manter-se a decisão proferida no douto despacho de 15 de junho de 2021, improcedendo in totum o Recurso apresentado pelo Digníssimo Sr. Procurador do Ministério Publico, fazendo-se assim justiça.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa analisar de existe, ou não, fundamentos factivos e jurídicos para pronunciar o arguido pelos crimes de prevaricação pelos quais foi acusado.

B – Apreciação

Definidas a questão a tratar, importa apreciar da bondade do recurso.

B.1. Preenchimento do crime de prevaricação

Começa o recorrente por impugnar, em concreto, a factualidade indiciada pelo tribunal recorrido, no que toca aos Artsº 6, 15, 24, 31, 39 e 46 do libelo acusatório, na parte em que não considera os incisos “foi entregue ao arguido” e “foram entregues directamente ao arguido”, já que, no seu entender, foi feita prova que as participações e informações em causa foram entregues ao arguido.
Analisada a prova que se produziu, não se concorda com o alegado pelo recorrente, na medida em que, quer do depoimento da testemunhas (…) – respectivamente, arquitecta da Câmara Municipal de (...) e antiga Chefe de Divisão da mesma e fiscal do município – quer das próprias declarações do arguido, o que resulta demonstrado e está, aliás, de acordo com a normal e regular dinâmica de qualquer autarquia, é que a correspondência ou a documentação endereçada ao Presidente era colocada em pastas para ser analisada ou entregue à secretária ou ao chefe de gabinete daquele.
Nesta medida, não se indicia, como bem concluiu o tribunal a quo após descrever, acertadamente, o procedimento em causa, que as ditas participações e informação tenham sido entregues ao “arguido no sentido de, pelo menos, o arguido a ter recebido, isto é, que tivesse ocorrido uma efectiva recepção por banda do arguido, uma entrega directa, como resulta da alegação.”
Assim sendo, inexiste motivo para alterar o que ali se decidiu, nomeadamente, no que respeita ao teor do Artº 46 da acusação:
“As Informações e Participações dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de (...) eram colocadas as pastas próprias depositadas no gabinete jurídico para análise e prestação de informação pelo jurista ao arguido a quem, nessa sequência, competia emitir despacho para o respectivo impulso processual”.
No que concerne aos pontos 19, 27, 34 e 45 da acusação, constata-se que os mesmos padecem de um mero lapso material, já que, pretendendo dizer-se 04 de Fevereiro de 2019, fez-se constar 04 de Fevereiro de 2019, o que agora se corrige, sem necessidade de recorrer ao mecanismos da alteração não substancial de factos.
O mesmo sucede quanto à data do Artº 35 da acusação, na medida em que, como bem assinala o recorrente, ainda que a data entrada da participação seja a de 16/03/17, a mesma reporta-se a uma acção de fiscalização levada a cabo em 14/03/17, pelo que tal matéria terá de manter-se nos exatos termos constantes da acusação.
Todas estas questões, todavia, têm uma importância relativa e meramente instrumental em relação à matéria que é o cerne do processo e que se prende com os Artsº 51/53 da acusação.
No que toca ao primeiro dos artigos, afirma o recorrente que a argumentação do Mmº Juiz a quo incorre num equívoco de base, já que as obras em causa se encontram inseridas em áreas da reserva ecológica, sendo por isso aplicável, não o Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (D.L. 555/99 de 16/12), mas antes o Regime Jurídico de Reserva Ecológica Nacional (D.L. 166/08 de 22/08), do qual resulta que as ditas obras eram insusceptíveis de legalização.
Com o devido respeito, não se crê que esta asserção esteja correcta.
Na verdade, na panóplia de diplomas aplicáveis às situações dos autos, é juridicamente defensável a aplicação do Artº 102 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, que prevê, no seu nº2, vários procedimentos no que tende à legalização das obras, que vão, como bem refere a decisão recorrida, desde o embargo da obra até à legalização das operações urbanísticas.
Mesmo que assim não se entenda, ou seja, que não se considere aplicável o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação por estarmos na presença de quatro prédios rústicos, localizados, total ou parcialmente, na Reserva Agrícola Nacional, e um, na Reserva Ecológica Nacional, as conclusões que daí se extraem não são significativamente diferentes.
No que toca aos prédios situados na Reserva Agrícola Nacional, resulta do Artº 22 D.L. 73/09 de 21/03 (Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional), a possibilidade de serem construídas e/ou ampliadas edifícios para habitação própria ou permanente, desde que respeitem os requisitos ali exigidos, nomeadamente, quanto à área de construção destinada a uso habitacional, que não pode exceder os 300 m2.
O mesmo acontece com o Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional (D.L. 166/08, de 22/08), em que a alegada interdição de obras de urbanização, construção e ampliação, prevista no seu Artº 20, deve ser temperada com o previsto na al. g) do ponto 1 do Anexo I da Portaria 419/12 de 20/12, que expressamente admite essa possibilidade, preenchidos alguns requisitos e desde que a área de implantação não exceda os 250 m2.
Daqui se vê que, ao contrário do afirmado pelo recorrente, não há qualquer equívoco de base no raciocínio do tribunal a quo, sendo indiscutível o acerto do mesmo quando afirma:
“É certo que o arguido sabia que podia embargar as obras, até mesmo ordenar a respectiva demolição.
No entanto, optou por outra via, qual seja, a de interpelar os munícipes com vista à regularização da situação, de tentar perceber qual a atitude das pessoas, se estas fariam a demolição ou, se houvesse a possibilidade de legalizar, se as iriam legalizar (cf. declarações do arguido na instrução).
É certo que apenas o fez tardiamente, quiçá, após a sua constituição e interrogatório como arguido ou após a solicitação de documentação por parte dos investigadores.
(…)
No entanto, ao contrário do que transparece do artigo 51.º do libelo, o embargo não é o passo primeiro e não se pode desvalorizar o procedimento tendente à legalização das obras.
(…)
Que fez o arguido?
Interpelou os particulares para não prosseguirem as obras (quando era o caso) e suscitarem os procedimentos de legalização e, se tanto não chegasse a bom porto, haveria ugar à demolição (que foi precisamente o que sucedeu no que concerne à situação de Pedro José, cf. artigos 35.º e s. do libelo).
O que configura uma das possibilidades previstas na própria lei.
Em suma: não se pode sustentar, sem mais, que a opção pelo desenvolvimento de diligências tendentes à legalização (ou à aferição da sua possibilidade) empreendidas pelo arguido na direcção dos cinco munícipes (ou nos cinco casos relatados) mereça a censura decorrente do direito penal.
Quanto à instauração dos processos de contra-ordenação:
Disse o arguido que nunca foi seu propósito não instaurar os procedimentos, mas sim resolver as situações a bem sem chegar aí.
O que implica a seguinte proposição: podiam ter sido instaurados procedimentos por existirem os seus pressupostos, mas tanto não aconteceu até, pelo menos, ao dia 04/02/2019.
Porém, cumpre, digamos, relativizar o sentido da alegação vertida no artigo 51.º do libelo.
A circunstância de a dado momento se verificar qualquer infracção que podia dar azo à abertura do procedimento contraordenacional nesse mesmo momento, não impede que tal abertura se possa concretizar em momento temporal posterior (como até veio a suceder, como disse o arguido na instrução, onde referiu que foram abertos processos de contraordenação relativamente aos cinco casos referidos na acusação).
Não existe qualquer norma de onde decorra uma espécie de caducidade. O limite à instauração do procedimento contraordenacional será, quando muito, fixado pelo decurso do prazo de prescrição do procedimento.
E a este respeito a acusação é inteiramente omissa.”
Concorda-se inteiramente com o raciocínio da instância recorrida.
Como resulta do confronto das normas aplicáveis, parece claro que a opção do arguido de, num primeiro momento, tentar uma eventual legalização das edificações junto dos munícipes, sem descurar a futura instauração dos processos de contraordenação, não pode configurar a noção de decidir contra direito, definida no tipo de ilícito de prevaricação pelo qual o arguido foi acusado.
Recorde-se que o crime de prevaricação de titular de cargo político, tem a sua base de incidência penal no Artº 11 da Lei 34/87 de 16/07 (crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos) e é, antes de mais, um crime praticado por titular de cargo político no exercício das suas funções.
Diz esta norma que «O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos».
Pratica este crime aquele que, desempenhando um cargo político, nomeadamente, como o arguido, o de membro de órgão representativo de autarquia local, no exercício dessas funções e competências, actua, por acção ou omissão, em violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado (Artº 2 e 3 nº1 al. e. da aludida Lei).
Seguindo aqui de perto a doutrina explanada no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, págs. 605 e segs. - na exege feita ao Artº 369 do C. Penal que tipifica o crime de denegação de justiça e prevaricação, em cujo substrato normativo se enquadra o crime dos autos - importa dizer que o núcleo essencial do ilícito assenta na actuação do funcionário contra direito, ou seja «na violação funcional dos deveres decorrentes do cargo desempenhado».
Sendo o bem jurídico protegido pela norma a realização da justiça, este é, atenta a qualidade própria do agente, um ilícito denominado como um crime específico, (próprio) e, além disso, um crime de natureza estritamente dolosa, o mesmo é dizer, não é o mesmo punido a título de negligência.
São assim elementos objectivos do respectivo tipo de crime:
- a condução ou decisão de um determinado processo no âmbito das suas funções de funcionário;
- que a condução ou decisão desse processo se faça, de forma consciente, contra direito;
E são elementos subjectivos deste ilícito:
- que o agente tenha actuado, com a consciência que conduziu ou decidiu esse processo, contra direito;
- que assim tenha agido com a intenção de beneficiar ou prejudicar alguém.
É precisamente esta exigência de prejudicar ou beneficiar intencionalmente que faz com que, de forma unânime, quer a doutrina, quer a jurisprudência considerem que a previsão normativa em causa só pode ser preenchida a título de dolo directo, estando dela excluídas as outra modalidades de dolo, designadamente, o dolo eventual, por o mesmo não ser compaginável com essa expressa exigência de uma actuação especificamente direccionada para o prejuízo ou benefício de terceiro (Cfr., neste sentido, entre outros, Ac. da RP de 20/10/93 in CJ, Tomo IV, 1993, pág. 261).
Naturalmente que para além deste dolo específico, a lei exige que o titular de cargo político, ao actuar contra direito, saiba que assim está a agir, ou seja e dito de outro modo, o dolo, na sua vertente intelectual, tem naturalmente de abarcar o conhecimento dos elementos normativos da acção, das normas e princípios jurídicos em toda a sua extensão, que constituem o objecto da acção típica cuja representação tem de estar presente no espírito do agente para se poder concluir que o mesmo sabia que a sua actuação era contra direito.
No fundo, o dolo deste tipo de crime, como se alcança das expressões «conscientemente» e «com intenção de» faz com que se conclua que o elemento subjectivo é aqui formado pela consciência de que se está a actuar contra direito, assim se actuando com o objectivo de prejudicar ou beneficiar outrem.
Um dolo necessariamente directo e exercido de forma específica, com animus nocendi vel beneficiandi, que se traduz, precisamente, em o agente ter consciência que está a agir contra direito e procede desse modo com a intenção de prejudicar ou beneficiar alguém (Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ de 02/03/94, CJ, Ano II, Tomo III, pág. 237 e segs.).
Por outro lado, importa definir o que é decidir contra direito.
Decidir contra direito é decidir, em primeiro lugar, contra as normas vigentes numa norma jurídica, materiais ou processuais, independentemente da sua origem.
Em segundo lugar, decidir contra direito é decidir também contra determinados princípios jurídicos, os quais, apesar de poderem não estar plasmados normativamente, fazem parte da estrutura de um determinado sistema de forma a se poder concluir que têm aplicação prática, na medida em que todo o sistema de normas está submetido a esse conjunto de princípios que as enformam.
Assim, pode-se dizer que decidir contra direito é todo o tipo de comportamento que viole essas normas ou princípios jurídicos.
Certo é que a se discute na doutrina se «a essência da prevaricação reside numa violação da verdade objectiva ou do direito objectivo; ou, antes, numa conduta tomada contra a convicção pessoal do agente sobre qual seja a verdade ou direito objectivo ; ou, por último, na lesão dos deveres funcionais do agente impostos no interesse da descoberta da verdade e do direito?» (ob. citada, págs. 612/613).
Na esteira do ali defendido, pensa-se também que «agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão … com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes.» (ob citada, pág. 615).
Agir contra direito é assim e na sua essência, no quadro específico dos crimes praticados por titulares de cargos políticos, violar as normas legais positivas, materiais ou processuais, que vinculam quem tem de decidir.
Na verdade, trata-se de uma lesão do bem jurídico praticada por alguém de dentro do aparelho do poder, alguém que pela sua actuação, torna o direito injusto.
A condução ou decisão do processo tem de ser feita ignorando ou contrariando o prescrito na lei, ou desviando-se dos deveres decorrentes do exercício da função quando se trata de decisões proferidas no âmbito de poderes discricionários.
Ora, se assim é, ter-se-á que concluir que só pode existir prevaricação, designadamente, para efeitos do Artº 11 da Lei 34/87, quando a condução ou decisão do processo se mostre, de forma, clara, objectiva, indiscutível, contrária àquelas normas princípios jurídicos.
Ou seja, só nas situações em que a norma jurídica é unívoca no âmbito da sua aplicação, é insusceptível de dúvidas na sua interpretação, é que se pode dizer que determinada decisão seja contra o direito ao não a aplicar.
Compreende-se, aliás, que assim seja.
Nos casos em que sejam admissíveis várias soluções jurídicas para uma determinada questão, não existe prevaricação desde que a decisão tomada se possa incluir no âmbito do juridicamente defensável (Cfr., neste sentido, ob citada, pág. 614).
Com efeito, nessas situações, não é possível dizer que o titular de cargo político, ao actuar como actuou, conduziu, ou decidiu processo contra direito, na medida em que a solução por si preconizada, ainda que politicamente discutível e juridicamente rebatível, é susceptível de ser defendida, também ela, em bases normativas.
Ora, se o modo de condução do processo, ou o teor da decisão do mesmo é juridicamente defensável, naturalmente que não se pode concluir que haja condução ou decisão contra direito.
O arguido não entrou no campo da ilegalidade, na medida em que as suas decisões podem ter acolhimento nos princípios que regem a actividade da Administração, não se podendo concluir que a sua actuação seja, de uma forma evidente, clara e incontroversa, claramente ilegal, até porque a própria Administração pública, na sua actividade, deve pautar-se, para alem, naturalmente, da prossecução do interesse público, pela permanente conciliação deste com os interesses privados.
Daí que não se possa de forma alguma dizer que a actuação do arguido tenha sido tomada contra direito, ou seja, de forma evidente, ilegal, seja pelo que atrás se disse em relação à variedade das normas aplicáveis e à cobertura que delas resulta em relação ao comportamento do arguido, seja ainda, pela circunstância, não despicienda de, volvidas várias diligências, terem sido instaurados os competentes processos de contraordenação às situações relatadas na acusação.
Nesta medida e independentemente de o arguido conhecer, melhor ou pior, os munícipes em causa, não se configura como possível desenhar o dolo específico do crime em causa, no sentido de prejudicar, ou beneficiar, em concreto, determinada pessoa.
Face ao que supra se escreveu no que toca aos elementos objectivos e subjectivos do crime de prevaricação, não parece poderem ser esboçados, quer a actuação, voluntária e deliberada, contra direito – neste caso, concretizada numa omissão de um dever a que estava obrigado – quer o propósito ou a intenção de assim não actuar para concreto benefício de terceiro.
Por fim, uma última nota, corroborando o já plasmado na decisão recorrida:
“Será que a actividade de um qualquer autarca que se traduza em ser relapsa no despacho, procrastinadora nas decisões, ou tolerante, ou no limite, quiçá incompetente, deverá, sem mais, integrar a «via única» para a «cidadela penal»?
Relembra-se que os tipos de crime imputados (temos em mente o «concurso aparente» que se afirma na acusação) nem sequer são punidos a título de negligência, cf. artigo 13.º do Código Penal, e artigos 11.º e 26.º, n.º 1, estes dois da Lei 34/87, de 16/07.
Enfatiza-se que existem outras entidades e ramos do direito distintos do penal votados a fiscalizar e a censurar uma actividade que se caracterize daquela forma (princípio da intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal).”
Na verdade, o crime de prevaricação foi idealizado para situações evidentes de comportamentos em que a decisão contra direito com a intenção de beneficiar terceiro se desenha com a gravidade necessária que justifique a dedução de acusação com todas as consequências dela decorrentes.
Nele não devem caber situações dúbias, matérias passíveis de diferentes entendimentos, que nos atira para bem longe da indiscutibilidade jurídica que se exige para poder concluir pela responsabilidade criminal.
A discordância dos procedimentos, o desacordo quanto às normas aplicáveis, a divergência em relação ao caminho assumido para a resolução dos problemas, sendo sadio, pode relevar, eventualmente, em sede de apreciação administrativa, mas não parece suficiente para demandar a tutela penal, que, como último ratio, somente deve ser convocada nas decisões que se tracem, indiscutível e manifestamente, contra direito.
Por tudo o que se já atrás se disse, também aqui, não é essa a realidade destes autos.
Esta ausência de censura criminal no âmbito do comportamento do arguido perante as participações e informações elaboradas às cinco situações descritas na peça acusatória, implica, necessariamente, idêntico raciocínio quanto ao crime de abuso de poder que, em concurso aparente, lhe era imputado, já que este crime está dependente do anterior, na medida em que a sua prática, tal como vem mencionada na acusação, tinha por base, naturalmente, a existência de um cenário contrário ao direito, no âmbito do qual o arguido teria actuado tecnicamente.
Ora, caindo pela base esse pressuposto da sua conduta, ter-se-á que concluir que a forma como o mesmo procedeu, no exercício das competências que lhe estavam atribuídas como Presidente da Câmara Municipal de (...), apenas poderá ser alvo de censura administrativa, mas não, de juízo criminal.
Assim sendo, ter-se de concluir que bem andou o tribunal a quo, quando concluiu não estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime imputados ao arguido, razão pela qual não o pronunciou pela respectivo cometimento.
Improcede, pois, o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
xxx
Évora, 16 de Dezembro de 2021
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
(Assinaturas digitais)