ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
Sumário

A consideração de um procedimento como sendo de “excecional complexidade” tem de ser ponderada, em larga medida, á luz de espaços de indeterminação, mas pressupondo, sempre, uma rigorosa análise de todos os elementos do procedimento; a integração da noção exige, assim, uma intensa e exclusiva ponderação sobre os elementos da concreta configuração processual que se traduz, no essencial, em uma avaliação prudencial sobre os factos.
A excecional complexidade constitui, assim, uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspetiva do processo, considerado não nas incidências jurídico-processuais, mas na dimensão fatual do procedimento enquanto sequência e conjunto dos atos e revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação e/ou de julgamento, dificuldades essas com tradução visível nos termos e nos tempos do procedimento.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

No âmbito da instrução 156/19.9T9STR do Juízo de Instrução Criminal de Santarém – Juiz 1, por despacho proferido no dia 23-08-2021, a Mma Juiz declarou os autos de excecional complexidade, nos termos e para os efeitos do artº 215º nº 3 do CPP.

Inconformados os arguidos SMBM e BGC recorreram, tendo concluído a motivação do seguinte modo:

«1. SMBM e BGC arguidos no processo à margem melhor identificado, recorrem do despacho com a ref. 87563610 – Despacho que decretou a especial complexidade dos presentes autos.

2. Recorrem os recorrentes por entenderem que o presente processo está longe de ser um processo especialmente complexo, difícil ou de diferente de qualquer outro processo corriqueiro de tráfico de droga, sendo que da decisão recorrida também não resulta qualquer fundamento para que seja decretada a especial complexidade dos presentes autos.

3. No caso dos presentes autos não se verifica nenhuma «maior dificuldade» do procedimento nem estamos perante um processo anormalmente complexo.

4. Estamos perante mais um processo de tráfico de estupefacientes, do mais corriqueiro que há, de venda directa ao toxicodependente, a partir de casa, sem quaisquer meios sofisticados ou de difícil investigação, ou com recurso a meios avançados de tecnologia.

5. Nos presentes autos temos 12 arguidos, com uma actuação delituosa (segundo o MP) na mesma região (…), 36 testemunhas e 15 volumes, nada de especial, invulgar ou complexo em processo de tráfico de droga do art. 21º do DL 15/93 de 22 de janeiro, como é o caso.

6. O que aconteceu foi que o MP andou adormecido durante a fase de inquérito e agora “aqui D`el Rei” que os prazos máximos da prisão preventiva podem ser ultrapassados e estes não podem ser ultrapassados de forma alguma, venha de lá então a especial complexidade num processo que nada tem de complexo.

7. Ou seja, o que se pretende, agora, em exclusivo é a prorrogação dos prazos previstos, designadamente, no artigo 287º, como permite o artigo 107º, nº 6, ambos do CPP.

8. No entanto, não é esse o fundamento da declaração de excecional complexidade, uma vez que não é a aproximação do termo do prazo máximo de prisão preventiva que determina que um procedimento seja mais ou menos complexo e, consequentemente, que pode fazer concluir pela sua excecional complexidade.

9 De contrário, estava encontrada a forma de todos os prazos de prisão preventiva previstos no n.º 2, do artigo 215.º, do CPP, sempre que necessário - o mesmo é dizer, sempre que se aproximasse o seu termo -, serem alargados para os prazos máximos previstos no n.º 3, do referido preceito legal.

10. Bastaria constatar a aproximação do termo desse prazo, para se declarar a excecional complexidade do procedimento e assim se conseguir o alargamento desse mesmo prazo em vários meses ou, como no caso dos presentes autos, por mais de um ano (art. 215.º, n.º 3, do CPP).

11. É por demais evidente que não foi essa a intenção do legislador.

12. O procedimento só pode ser declarado de excecional complexidade em função da sua anormal, extraordinária e, por isso, excecional dificuldade, superior ao que é usual, devido a dificuldades acrescidas face ao que diariamente sucede, e não em função da maior ou menor aproximação do termo de um qualquer prazo, nomeadamente de duração máxima de prisão preventiva.

13 O presente processo nada tem de extraordinário, de complexo, de anormal ou de procedimental ou processualmente mais difícil, complicado ou complexo que o comum em processos desta natureza, bem pelo contrário.

14. Aliás, estamos na fase da instrução, nada mais há a investigar… o que há a consultar, na fase em que nos encontramos (fase da instrução) e nas fases futuras (julgamento e recurso) é o típico neste tipo de processo, RVES, as interceções telefónicas (que deixou de ser extraordinário e passou a ser regra geral no tráfico de droga), autos de apreensão e prova pericial que mais não é do que os exames perícias à droga apreendida. Nada disto necessita de grande ciência, tempo para além do normal ou algo de complexo para ser analisado.

15. Diz a decisão recorrida que apesar de estarmos perante e a venda de droga directa ao consumidor, justifica-se a especial complexidade porque temos 12 arguidos, 2 dos quais em prisão preventiva, e que houve a necessidade na investigação de discernir os diferentes papeis de cada um deles na prática do crime, mormente com recurso a vigilância à distância e a intercepções telefónicas.

16. Não podemos concordar: Como diz a decisão recorrida (e bem) houve a necessidade na investigação de discernir os diferentes papeis de cada um dos arguidos na prática do crime. Houve, não há mais, porque a investigação já encerrou e foi proferido despacho de acusação sem que o MP tivesse tido qualquer necessidade de promover a especial complexidade dos autos para discernir qual o papel de cada um dos arguidos no ilício em causa. Tal tarefa não foi qualificada pelo MP como complexa. Em sede de instrução – fase em que nos encontramos – essa necessidade não existe, pois, o papel de cada um dos arguidos na tal actividade de tráfico encontra-se totalmente investigada e descrita na respectiva acusação com a indicação dos respectivos elementos de prova que, indiciariamente, o demonstram.

17. Depois, diz a decisão recorrida que os presentes autos contam com 12 arguidos, 2 em prisão preventiva, 36 testemunhas, 15 volumes e mais de 4.000 folhas, intercepções telefónicas, relatórios de vigilância, autos de apreensão, prova pericial e prova documental descrita na acusação.

18. Dizemos nós: Nada de especial ou complexo, portanto, tendo em conta precisamente o número de arguidos e o facto de estarmos perante um tráfico do art. 21º do DL 15/93 de 22 de janeiro.

19. Para além de que se compulsarmos os autos verificamos que muitos dos 15 volumes e das muitas e muitas folhas das tais 4.000 não têm qualquer interesse na fase da instrução ou de julgamento, pois referem-se a recursos interpostos, acelerações processuais e outras questões definitivamente transitadas e decididas.

20. Depois, toda a restante prova a ser analisada nada tem de especial complexo ou de difícil que exija um maior cuidado ou de um maior tempo para a sua análise.

21. Note-se, ainda, que em fase de instrução – fase em que nos encontramos e na qual foi declarada a especial complexidade, não prova instrutória a ser produzida (nem muito nem pouca) tendo sido agendado apenas data para o debate instrutório o qual já foi realizado. Portanto, na fase de instrução nada de complexo ou moroso há a realizar.

22 Diz a decisão recorrida que os arguidos de facto não careceram de mais de 20 dias para requererem a abertura de instrução, mas que ao Tribunal importará analisar toda a prova produzida não só na fase de instrução como, sobretudo, na fase de julgamento, são previsíveis as dificuldades de gestão processual derivadas do número acrescido de intervenientes processuais (designadamente arguidos e defensores).

23 Ora, o que importa aqui é saber se na fase da instrução – porque é nesta fase em que nos encontramos e em que a especial complexidade foi declarada - existem fundamentos para que a especial complexidade seja declarada e não na fase de julgamento.

24. Em fase de julgamento, se o Tribunal Colectivo a quem for distribuído os presentes autos o entender poderá e deverá declarar, então, a especial complexidade. Não é o Juiz de instrução que, em sede de instrução, tem o poder/dever de declarar a especial complexidade dos autos por entender que em julgamento poderá haver “dificuldades de gestão processual”.

25. Para além disso, as dificuldades de gestão processual, pelo que percebemos, as dificuldades em o Tribunal arranjar meios – sala - para que todos os sujeitos processuais (arguidos e defensores) caibam e estejam garantidas as regras de segurança e afastamento tendo em conta a pandemia em que nos encontramos (foi isto que percebemos da decisão recorrida) não é fundamento para ser declarada a especial complexidade dos presentes autos. Essa dificuldade não resulta deste processo, mas das condições do Tribunal em julgar ou não aquele processo nas condições que o deve fazer, é uma dificuldade por parte do Tribunal e não do processo em si.

26. Para além de que o Tribunal de … não tem, ou não tem tido, dificuldades de gestão processual em processos, esses sim de grande dimensão e complexidade, como o caso de … e dispõe de meios, nomeadamente a sala grande do Palácio da Justiça II com capacidade para mais de 21 pessoas e a mega sala sita na antiga … que foi cedida ao Ministério da Justiça e onde se realizou, inclusivamente, o debate instrutório dos presentes autos.

27. A decisão recorrida não aponta nenhum outro fundamento para que tenha declarado a especial complexidade.

28. Face ao exposto e atendendo a que os fundamentos elencados na decisão recorrida não demonstram, de todo, a especial complexidade dos autos alicerçada no facto de os mesmos nada terem de complexo ou especial atendendo ao tipo de ilícito em causa, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare que os presentes autos nada têm de especial complexidade, com as necessárias consequências.

Normas Violadas:

artigos 215º, nºs 3 e 4, do CPP,

artigos 32º, nºs 1 e 2, e 28º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.

Por todo o exposto, deve ser julgado procedente o presente recurso, e em consequência, deve ser revogado o Despacho do JIC que declarou o presente processo de especial complexidade e dessa revogação se extraindo as legais consequências».

O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:

«Não assiste razão aos arguidos recorrentes, devendo manter-se a decisão recorrida nos seus exatos termos.

Porquanto.

1.No dia 19 de Maio de 2021, o MP proferiu despacho de encerramento de inquérito, tendo acusado os arguidos pela prática, em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22-1 com pena de prisão de 4 a 12 anos.

II-Dois dos arguidos dos presentes autos encontram-se sujeitos a medida de coação de prisão preventiva aplicada em sede de interrogatórios judiciais realizados respetivamente, em 19-11-2020 e em 17-12-2020 a saber os arguidos BSG e BGC.

III-Por despacho judicial de 23 de Agosto de 2021 foi determinada a especial complexidade do processo. Notificados dessa decisão, vêm os arguidos SMBM e BGC pugnar pelo indeferimento do pedido de especial complexidade alegando, em suma, que a lei não se basta com a complexidade do processo e exige uma anormal complexidade, seja pela dificuldade de investigação, seja pelo conjunto alargado de diligências de prova e pela sua excepcional dificuldade de realização e conjugação, o que será ditado nomeadamente pelo elevado número de arguidos e/ou ofendidos e/ou do carácter altamente organizado do crime.

IV- Mais disseram que o tráfico de estupefacientes alvo de investigação nos autos nada tinha de sofisticado ou invulgar, sendo “do mais corriqueiro que há” dentro do tipo legal de crime por se consumar mediante venda directa a toxicodependentes numa mesma região.

V- Finalmente, acrescentaram que já foi proferida acusação e nada mais há a investigar.

VI- Porque o limite máximo da pena aplicável é superior a 8 anos de prisão, e porque o art. 1º, m), do C. Processo Penal considera "criminalidade altamente organizada" as condutas integradoras de crimes de associação criminosa, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, o crime pelo qual os arguidos se encontram indiciado é subsumível à previsão do nº 2, do art. 215º, do C. Processo Penal, existindo assim a possibilidade de alargamento do praxo máximo de prisão preventiva para os limites previstos no nº 3, do art. 215º, do C. Processo Penal depende apenas de o procedimento se revelar de excepcional complexidade.

VII- O CPPenal não define o conceito de excepcional complexidade, limitando-se a título meramente exemplificativo, a indicar duas circunstâncias capazes de o corporizarem: o número [elevado] de arguidos ou de ofendidos e; o carácter altamente organizado do crime.

VIII- Quer pela moldura penal abstracta, quer porque se trata de crime integrado no conceito de criminalidade altamente organizada, o respectivo procedimento cai na alçada do nº 3, do art. 215º, do C. Processo Penal.

IX- Ao que acresce que nos termos do art. 215.º, n.º 4 do CPPenal, a excepcional complexidade pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente, ou seja a excepcional complexidade pode ser declarada em qualquer fase do processo, designadamente em instrução.

X- Existem nos autos elementos objectivos cuja conjugação aponta, decisivamente, para a excepcional complexidade do processo e, que passa não só pelo elevado número de arguidos, 2 dos quais em prisão preventiva mas também pelo volume de intercepções telefónicas, sem olvidar que os autos são já compostos por 15 volumes, consideramos que foram e continuam a ser grandes as dificuldades nos autos importando analisar toda a prova produzida em sede de inquérito.

XI- Não ocorreu a violação de qualquer preceito legal.

XII-O despacho recorrido não violou o art. 215.º, n.º 3, do CPPenal, pelo que se deverá manter a decisão recorrida nos seus exactos termos, negando-se consequentemente provimento ao recurso interposto pelos recorrentes»..

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer dizendo que, estamos perante um crime de tráfico de estupefacientes imputado a doze arguidos em co-autoria, que ocorreu numa área geográfica restrita (…), que teve início em princípios de 2019 até 18 de Novembro de 2020. O modus operandi é simples. As diligências realizadas consistiram essencialmente em vigilâncias externas, interceção e gravação de conversações telefónicas e audição dos consumidores. Não houve necessidade de recorrer a mecanismos de cooperação judiciária internacional e das 36 testemunhas arroladas na acusação, oito pertencem ao órgão de polícia criminal que efetuou a investigação e as restantes 28 são consumidores locais de estupefacientes. Salienta ainda o fato de que, a acusação e a pronúncia foram proferidas dentro dos prazos normais de seis e de dez meses, respetivamente previstos no artº 215º nº 1 al. a) e b) e nº 2 do CPPenal.

Perante estes elementos conclui que não existem razões que justifiquem a excecional complexidade dos autos, pelo que deve ser dado provimento ao recurso.

Observou-se o disposto no art. 417º nº 2 do C. P. Penal, mas os arguidos não responderam.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II –Fundamentação

O teor do despacho recorrido datado de 23-08-2021 é o seguinte:

Da declaração de especial complexidade:

Como vimos, os arguidos pugnaram pela não declaração de especial complexidade do processo.

Em abono desse entendimento, e em síntese, disseram que para tanto a lei não se basta com a complexidade do processo e exige uma anormal complexidade, seja pela dificuldade de investigação, seja pelo conjunto alargado de diligências de prova e pela sua excepcional dificuldade de realização e conjugação, o que será ditado nomeadamente pelo elevado número de arguidos e/ou ofendidos e/ou do carácter altamente organizado do crime.

Mais disseram que o tráfico de estupefacientes alvo de investigação nos autos nada tinha de sofisticado ou invulgar, sendo “do mais corriqueiro que há” dentro do tipo legal de crime por se consumar mediante venda directa a toxicodependentes numa mesma região.

Finalmente, acrescentaram que já foi proferida acusação e nada mais há a investigar.

Decidindo.

Nos termos do art.º 215.º, n.º 3 do CPP, os prazos de duração máxima da prisão preventiva são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, “quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.”

Resulta da análise da norma citada que a lei não define o conceito de especial complexidade e se limita a indicar, a título meramente exemplificativo, duas circunstâncias capazes de o corporizarem: o número de arguidos ou de ofendidos ou o carácter altamente organizado do crime.1

Sem embargo de o tipo de crime imputado aos arguidos indiciar a especial complexidade (art.º 215.º, n.º 3 e al. m) do art.º 1.º do CPP), é inquestionável que não é o facto de se investigar/julgar um qualquer crime de tráfico de estupefacientes que pode fundar a declaração em causa, devendo ponderar-se as dificuldades na investigação e tramitação do processo em função de outros factores como o número de arguidos, o modus operandi, o relacionamento interpessoal, etc.

Ora, no caso vertente, acompanhamos o entendimento já anteriormente expresso nos autos, no sentido de que se justifica a declaração de especial complexidade, não obstante a predominância da venda directa de produto estupefaciente a consumidores.

Com efeito, estão indiciados 12 arguidos como coautores materiais e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, sendo patente a necessidade que houve na investigação de discernir os diferentes papéis de cada um deles na prática do crime, mormente com recurso a vigilância à distância e a intercepções telefónicas.

Para além de o processo contar 12 arguidos – dois deles sujeitos a prisão preventiva -, encontram-se arroladas 36 testemunhas, o processo é composto por 15 volumes e mais de 4000 folhas, importando analisar prova por intercepções telefónicas, relatórios de vigilância, autos de apreensão, prova pericial e demais prova documental enunciada no despacho de acusação.

Se é certo que a defesa dos arguidos requerentes não careceu de prazo superior a 20 dias para analisar os autos e requerer abertura de instrução, menos certo não é que ao tribunal importará analisar toda a prova produzida e, não só na fase de instrução como, sobretudo, na fase de julgamento, são previsíveis as dificuldades de gestão processual derivadas do número acrescido de intervenientes processuais (designadamente arguidos e defensores).

Pelo exposto, nos termos dos fundamentos exarados, declaro a excecional complexidade dos presentes autos nos termos e para os efeitos do art.º 215.º, n.º 3 do CPP.

Notifique.

III – Apreciação do recurso

O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelos recorrentes na motivação, art. 403º nº 1 e 412º nº 1 do C.P.Penal.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso a questão a decidir consiste em saber se, estão preenchidos os pressupostos para a declaração da excecional complexidade do processo.

Os recorrentes alegam que não estão preenchidos os pressupostos referidos, porquanto no presente caso estamos perante um crime normal de tráfico de estupefacientes, em que os arguidos atuam a partir de casa, sem uso de quaisquer meios sofisticados ou de difícil investigação, ou com recurso a meios avançados de tecnologia; que foram constituídos 12 arguidos com uma atuação delituosa na mesma área geográfica de … e que o processo tem 36 testemunhas e 15 volumes, o que não tem nada de especial, invulgar ou complexo num processo de tráfico de droga; e que o papel de cada um dos arguidos na atividade de tráfico já está investigada e descrita na acusação, com a indicação dos elementos de prova que indiciariamente a demonstram.

Cumpre decidir.

Dispõe o artº 215º do CPPenal:

«1- A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido.

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação,

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano de dois meses sem que tenha havido condenação em 1ª instância;

d) Um ano e seis meses, sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2. Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos ou por crime:

a) a g) (…)

3- Os prazos referidos no nº 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento, for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado.

4- A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Publico, ouvido o arguido e o assistente.

5 a 8 (…)».

Nos presentes autos estão acusados e pronunciados doze arguidos, entre os quais os dois recorrentes, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º nº 1 do DL nº 15/93, de 22-1, a que cabe a pena de 4 a 12 anos de prisão.

Estamos perante criminalidade altamente organizada, nos termos do artº 1, al. m) do CPPenal e ao crime corresponde pena de prisão superior a oito anos, logo a situação é subsumível do artº 215º nº 2 do CPPenal.

E assim nos termos do nº 3 do artº 215º, há a possibilidade legal de os prazos de prisão preventiva serem alargados desde que o procedimento se revele de excecional complexidade.

Importa delimitar o conceito de excecional complexidade.

A norma não define este conceito, limitando-se a indicar a título meramente exemplificativo, duas circunstâncias capazes de o consubstanciarem: o elevado número de arguidos ou ofendidos, ou o caracter altamente organizado do crime.

O artº 215º nº 3 do CPpenal não apresenta, pois, a noção com referências claras, restritas e objetivamente marcadas do que seja “excecional complexidade”.

Para a integração do conceito, indica o legislador, a título de exemplo ( como é função do advérbio “nomeadamente”) dois elementos: a “excecional complexidade será revelada, nomeadamente, pelo número de arguidos ou de ofendidos ou pelo carater altamente organizado do crime.

Portanto, a consideração de um procedimento como sendo de “excecional complexidade” tem de ser ponderada, em larga medida, á luz de espaços de indeterminação, mas pressupondo, sempre, uma rigorosa análise de todos os elementos do procedimento; a integração da noção exige, assim, uma intensa e exclusiva ponderação sobre os elementos da concreta configuração processual que se traduz, no essencial, em uma avaliação prudencial sobre os factos.

A excecional complexidade constitui, assim, uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspetiva do processo, considerado não nas incidências jurídico-processuais, mas na dimensão fatual do procedimento enquanto sequência e conjunto dos atos e revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação e/ou de julgamento, dificuldades essas com tradução visível nos termos e nos tempos do procedimento.

A decisão sobre a verificação da excecional complexidade não depende, pois, da aplicação da lei a fatos e da integração de elementos compostos com dimensão normativa, nem está tributária da interpretação de normas.

O juízo sobre a “excecional complexidade” assume-se, pois como juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e na avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento.

O juízo sobre a excecional complexidade constitui um juízo de razoabilidade e de justa medida na apreciação das dificuldades de procedimento, tendo em conta nomeadamente, as dificuldades de investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização dos atos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais e a intensidade de utilização dos meios.

Tecidos estes considerandos, vejamos o caso concreto.

Nos presentes autos, está em causa um crime de tráfico de estupefacientes (resina de canábis) imputado a doze arguidos em co-autoria, entre os quais os dois recorrentes, que ocorreu numa área geográfica, limitada à … e …, num período que se situa entre princípios de 2019 e 18 de Novembro de 2020.

O modus operandi dos arguidos revela-se simples, já que se traduz na venda direta de produto estupefaciente aos consumidores, sem quaisquer meios sofisticados, ou com recurso a meios avançados de tecnologia. As diligências realizadas consistiram essencialmente em vigilâncias externas, intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas e audição dos consumidores de estupefacientes. Não houve necessidade de recorrer a mecanismos de cooperação judiciária internacional e das testemunhas arroladas na acusação, oito pertencem aos órgãos de polícia criminal que efetuou a investigação e as restantes vinte e oito são consumidores de estupefacientes.

Acresce que, a acusação e a pronúncia foram proferidas dentro dos prazos normais de seis e dez meses, artº 215º nº 1 al. a) e b) e nº 2 e destas peças processuais consta o papel de cada um dos arguidos na atividade do tráfico, com a indicação dos respetivos elementos de prova que, indiciariamente, o demonstram.

Ponderando todos estes elementos afigura-se-nos que, não existem objetivamente razões que justifiquem a declaração de excecional complexidade e o alargamento dos prazos de prisão preventiva, pelo que se impõe julgar procedente o recurso.

IV- Decisão

Termos em que acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelos arguidos e se revoga pelas razões referidas o despacho recorrido, que declarou a excecional complexidade do processo com as legais consequências.

Sem custas.

Notifique.

Évora, 16 de dezembro de 2021

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno

(Texto elaborado e revisto pelo relator)