INCIDENTE DE INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
SEGURO OBRIGATÓRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL DA CLÍNICA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
Sumário

I – É de natureza obrigatória o contrato de seguro celebrado entre a entidade titular de uma unidade privada que tem por objecto a prestação de serviços de saúde e que disponha de internamento, nos termos previstos no artigo 5.º da Portaria n.º 290/12, de 24 de Setembro;
II - Como é próprio dos seguros obrigatórios (artigo 146.º, n.º 1, do regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), o lesado pode accionar directamente a seguradora para exigir o pagamento da indemnização a que se acha com direito por factos praticados na unidade de saúde que transferiu para aquela a sua responsabilidade civil por danos causados na prossecução da respectiva actividade;
III - O incidente de intervenção de terceiros (na modalidade de intervenção principal) visa fazer intervir na lide alguém que nela deveria estar (litisconsórcio necessário) ou poderia estar (litisconsórcio voluntário) desde o início, como é o caso.

Texto Integral

Processo n.º 5980/18.7 T8VNG-A.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Cível de V.N. de Gaia (J3)


Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
1. Configuração da acção
B… intentou, em 10.07.2018, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “C…S.A.” (1.ª ré) e “D…S.A.” (2.ª ré) alegando, em apertada síntese, que é sapador bombeiro de profissão e, no ano de 2015, recorreu aos serviços do C…, estabelecimento pertencente à primeira ré, que aí presta serviços de saúde através dos profissionais, designadamente médicos, por si contratados. Entre outros exames, em Agosto de 2015, no contexto de estudo de um nódulo pulmonar que lhe fora detectado, o autor foi submetido a BAT torácica nas instalações da 1.ª Ré e, no decurso desse exame, e sem que nada o fizesse prever, em função da aparente simplicidade do mesmo, e sem que este risco devesse ser configurável ou expectável pelo próprio doente, sofreu uma perfuração do pulmão direito.
Sentiu e manifestou, de imediato, dores intensas que se prolongaram até à data (da instauração da acção).
Desde então, 19.08.2015, está incapacitado para o trabalho e já sofreu avultados prejuízos, quer a nível profissional, quer em termos sociais e pessoais.
Vem, pois, responsabilizar a 1.ª ré, pois o médico que, ao seu serviço, realizou o referido BAT torácico não agiu de acordo as legis artis definidas em protocolos de boas práticas clínicas, e exigir ressarcimento desses prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais).
Quanto às razões da demanda da seguradora ré, alega que, «salvo erro», julga que a 1.ª R. transferiu para ela, «ou outra a indicar» por ela, a responsabilidade civil decorrente de atos ou omissões no exercício da sua actividade».

2. Oposição das rés
As rés apresentaram contestação, alegando, em síntese:

Primeira ré
Os médicos que realizaram a(s) intervenção(ões) no autor são especialistas com total autonomia para o exercício das suas funções bem como sobre o modo de execução da sua actividade, não estando por isso vinculado(s) a qualquer ordem ou instrução da ré.
Laboram em regime de prestação de serviços, tendo autonomia e independência na direção e execução das suas funções.
Confirma que o autor foi submetido a exames médicos nas suas instalações, designadamente Biópsia Aspirativa Transtorácica (BAT Torácica), realizada pelo Dr. E….
Previamente, foi explicado ao autor todo o procedimento referente a esse exame, nomeadamente que o procedimento implicaria a realização de uma picada com agulha num local do tórax (que implica, necessariamente, a perfuração do pulmão) e que a taxa de complicações, entre outras (como hemorragia pulmonar) do surgimento de Pneumotórax, é bastante elevada.
Após essa explicação, prestados todos os esclarecimentos, o autor assinou o respetivo consentimento informado.
Sucede que, no decurso da realização da BAT o autor sofreu um Pneumotórax iatrogénio à direita, ou seja, saiu ar do pulmão para o espaço entre este e as costelas, e, por precaução, com o objectivo de mera vigilância, esteve internado em medicina interna, nas instalações da ré, entre 19/08/2015 e 21/08/2015.
No entanto, o procedimento foi realizado em respeito pelas legis artis e conforme decorre das indicações técnicas de execução do procedimento em causa.
Em todo o caso, à data dos factos alegados pelo autor, a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros estava transferida para a “D1…” (que, na sequência de fusão, é actualmente a D…) por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………..

Segunda ré
Confirma que celebrou com o “C….”, na qualidade de tomador, um contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil Profissional, com o Plano de Coberturas Unidade Privada de Saúde – Estabelecimento, titulado pela apólice n.º ………., no qual figura como segurada, entre outras, a aqui primeira ré e que, à data dos factos, estava em vigor, regendo-se pelas Condições Particulares e Gerais da referida apólice.
No entanto, a situação que aqui se discute não está abrangida pelo âmbito de cobertura dessa apólice, porquanto a referida biópsia aspirativa transtorácica foi efectuada pelo Dr. E…, médico com a especialidade de radiologia, que, à data dos factos, não fazia parte do quadro próprio de pessoal da 1.ª ré, não sendo seu funcionário.

3. Intervenção de terceiros
Em 08.03.2019, realizou-se audiência prévia e, logo no seu início, o autor, pela sua ilustre mandatária, requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 316.º, n.º 2, e 39.º do C.P.C., a intervenção, como parte principal, do Dr. E….
As rés pronunciaram-se sobre o requerido e declararam nada ter a opor à pretendida intervenção.
Foi, então, proferido despacho a considerar tempestivo o pedido de intervenção e a determinar a citação do indicado Dr. E….
Citado, o chamado apresentou articulado próprio em que, no que para aqui importa, alegou:
No caso de vir a ser responsabilizado pelos factos em causa, transferiu para a Companhia de Seguros, F… S.A., mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………., a responsabilidade civil profissional decorrente da sua actividade médica, até ao limite de 15.000€.
Além disso, complementarmente, celebrou com a Companhia de Seguros G… S.A. (actualmente, D…, S.A.) contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………. pelo qual transferiu a sua responsabilidade civil profissional decorrente da sua atividade médica por eventuais danos causados a terceiros.
Com esse fundamento, requereu a intervenção principal das referidas companhias seguradoras:
- F… S.A. e
- D… S.A.
Após ter sido facultado o exercício do contraditório (artigo 318.º, n.º 2, do CPC), em 17.06.2019 foi proferido o seguinte despacho:
«Na contestação que apresentou veio E… suscitar a intervenção principal provocada das companhias de seguros
-F… SA
-D… SA.
Invoca a celebração com ambas de um contrato de seguro relativo à responsabilidade civil profissional decorrente da sua atividade médica; no primeiro caso até €15.000,00; no segundo acima desse valor.
Notificado o A., nada opôs à intervenção.

*
Face ao invocado contrato de seguro, atento o objeto dos autos (ação de responsabilidade civil por ato médico praticado pelo chamado identificado), cremos que as seguradoras são também sujeitos passivos da relação material controvertida, pelo que podem intervir na ação ao lado do chamado em litisconsórcio voluntário (art.º 316.º, n.º 3, a), do C.P.C.).
Assim, sendo o chamamento oportuno (artº. 318.º, n.º 1, c), C.P.C.), admite-se o mesmo.
Custas do incidente a cargo do requerente.
Notifique.
Cite as intervenientes –art.º 319º, n.º 1, C.P.C.».

Citada, a chamada F…, S.A. apresentou articulado próprio em que se defende por excepção e por impugnação.
Na defesa por excepção, invoca a sua ilegitimidade processual, bem como a do seu segurado, e a prescrição.
Reconhece que, à data dos factos, o Interveniente E… beneficiava de um seguro de grupo, de Responsabilidade Civil Profissional celebrado entre a Interveniente F… a Ordem dos Médicos, titulado pela Apólice n.º …………, com o capital seguro de €15.000,00, o que não significa que ela, interveniente seguradora, esteja constituída na obrigação de indemnizar o autor.
Isto porque, como decorre do alegado pelo autor nos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 11.º, 40.º e 43.º da petição inicial, os serviços prestados foram-no pela 1ª Ré (C…, S.A.) e não pelo Interveniente médico, o qual atuou meramente como auxiliar daquela na prossecução da sua atividade.
A existir responsabilidade da 1.ª ré (o que não aceita), ocorreria nos termos do artigo 800º do Código Civil, segundo o qual “o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.”
Por isso, responsabilidade do Interveniente médico, bem como da Interveniente F…, simplesmente não existe e, portanto, não são eles os sujeitos da relação material controvertida, mas sim a 1ª Ré, pelo que são ambos partes ilegítimas.
Por outro lado, a existir responsabilidade por acto médico, estaríamos no âmbito da responsabilidade extracontratual.
Ora, tendo o evento, alegadamente danoso, ocorrido em 19.08.2015, uma vez que foi citada para a acção, apenas, em 28.06.2019, em relação a si, já estaria prescrito o direito que o autor aqui pretende fazer valer, por terem decorrido mais de três anos.
Na defesa por impugnação, alega que não está verificado nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil, desde logo, a prática de acto ilícito, pois na prática do acto médico em causa não foram violadas as regras das legis artes.
Também a “D…, S.A.” apresentou articulado, alegando:
É certo que celebrou com o interveniente Dr. E… um contrato de seguro do ramo RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL – SAÚDE, titulado pela apólice n. ………., o qual teve o seu início no dia 18.12.2014, era válido e estava em vigor à data dos factos em discussão nos autos.
Quanto ao mais, repetiu, no essencial, o alegado na contestação que havia apresentado.
O chamado Dr. E… respondeu ao articulado da “F…, S.A.” e no que respeita à, por esta, invocada excepção de ilegitimidade passiva, diz que, mesmo que a mesma fosse procedente e em consequência, unicamente a R. C…, Lda viesse a responder pelos factos em apreço nos autos, sempre esta teria direito de regresso em relação ao chamado, facto que, desde logo, afasta o alegado pela seguradora.

4. Saneamento e condensação
Com data de 21.01.2021, foi proferido despacho em que, além do mais, se conheceu da excepção de ilegitimidade, decidindo-se pela sua procedência e absolvendo da instância a ré “D…, S.A.”, e as intervenientes principais “F…, S.A.” e “D…, S.A.”.

1. Impugnação do despacho
Inconformado com a decisão de absolvição da instância, a ré “C… S.A.” dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões (reprodução integral):
«1. Vem o presente recurso do despacho saneador proferido que decidiu, entre outras coisas, absolver da instância a R. D…, SA e as intervenientes principais F…, SA e D…, SA.
2. A intervenção da D…, SA sempre seria de admitir: fosse a título principal, fosse a título acessório.
3. Diga-se, desde já, que a recorrente tem interesse em que a mencionada companhia de seguros seja chamada a intervir, cfr art. 316º CPC, não tendo qualificado tal intervenção como principal ou acessória.
4. Resulta da petição inicial, bem como da contestação da recorrente, a celebração de um contrato de seguro com a ré Seguradora, nos termos do qual a recorrente transferiu para esta a responsabilidade civil em que possa incorrer.
5. Consequentemente, a ré seguradora responde pelos prejuízos, alegados e reclamados pelo autor, verificando-se os requisitos formais para a intervenção principal da referida Seguradora.
6. A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.
7. Assim, a ré é parte legítima quando houver a possibilidade de, atenta a configuração do autor, vir a ser condenada.
8. A ré D… SA foi demandada nessa qualidade de seguradora e em momento algum contestou a sua legitimidade passiva.
9. Acresce que atento o princípio da estabilidade da instância, esta deve manter.se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, tendo sido citada a ré – cfr art. 260º CPC.
10. De qualquer modo, a ré seguradora sempre teria de ser chamada a intervir atento o seu interesse na causa em resultado da relação material controvertida existente entre a mesma e a ré, ora recorrente, face ao disposto pelo artigo 311º conjugado com o disposto pelos artigos 32º, 33º e 34º todos do CPC.
11. Assim, a intervenção da seguradora, seja na qualidade de Ré, seja na qualidade de Interveniente, tem que ser admitida pois que a recorrente transferiu para esta a sua responsabilidade civil por danos causados no exercício da sua actividade, afigurando-se indiscutível que a seguradora tem interesse em intervir na demanda, juntamente com a recorrente, pois poderá vir a responder por esta.
12. Ou seja, a ré seguradora tem efectivo interesse na apreciação da situação jurídica por assumir interesse igual ao da ré, tal como exigido pela alínea a) do n.º 3 do artigo 316.º CPC.
13. Acresce que estamos perante um contrato de seguro de cariz obrigatório atento o disposto pelo artigo 1º da Portaria 290/2012 (24/09) esta: “… estabelece os requisitos mínimos relativos à organização e funcionamento, recursos humanos e instalações técnicas para o exercício da atividade das unidades privadas que tenham por objeto a prestação de serviços de saúde e que disponham de internamento.”
14. Conjugado com o nº 5 da mesma: “As unidades privadas que prossigam atividades no âmbito da prestação de serviços de saúde e que disponham de internamento devem contratar e manter em vigor um seguro de responsabilidade civil e profissional que cubra os riscos inerentes à respetiva atividade e à atividade dos seus profissionais”.
15. Flui expressa e inequivocamente do teor dos artigos transcritos a obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil nas unidades privadas que tenham por objeto a prestação de serviços de saúde e que disponham de internamento.
16. O objectivo do legislador foi exigir o cumprimento de determinados requisitos às unidades que prestem serviços de saúde e disponham de internamento a fim de proteger o utente que às mesmas recorrem.
17. Atenda-se ao teor do Ac TRG de 09.07.2015 proferido no âmbito do processo nº 4077/14.3TBBRG-A.G1 in www.dgsi.pt e que segue o mesmo entendimento.
18. Consequentemente, tratando-se de seguro de responsabilidade civil obrigatório, o autor tinha o direito de pedir o pagamento da indemnização directamente à seguradora, conforme resulta da disposição comum do artigo 140º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 72/2008) e sobretudo da disposição especial do seu artº 146º, que se aplica aos casos de seguro obrigatório.
19. Aliás, a cobertura do seguro contratado com a ré, é, desde logo, definida em termos amplos e genéricos pelo nº 1 da cláusula 2ª das Condições Particulares da Apólice, já junta aos autos: “O presente contrato garante o pagamento das indemnizações por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais directamente causados a pacientes ou terceiros em consequência de erros, omissões ou negligência cometidos pela entidade segurada no exercício da sua actividade.”
20. De qualquer modo, mesmo que a situação não estivesse regulada nas referidas normas, sempre teria de se entender estarmos perante um contrato a favor de terceiro (neste caso o autor), que assim o podia invocar em seu favor – art.º. 444 do Código Civil), pelo que a recorrente tem o direito de suscitar a intervenção principal da seguradora, pois são ambos solidariamente responsáveis nos termos do artigo 497º do Código Civil.
21. Nesse sentido Ac. do STJ de 16.01.1970, BMJ Nº.193, PÁG. 359, e de 30.03.1989, BMJ Nº. 385, PÁG. 563.
22. E também Ac TRP de 14.06.2010 “a intervenção principal respeita às situações em que está exclusivamente em causa a própria relação jurídica invocada pelo autor ou em que os terceiros sejam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, abrangendo todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista”.
23. Assim, não só é manifesta a legitimidade da D…, SA, como até, tendo o autor optado por exigir dela directamente o pagamento da indemnização a que se acha com direito, em bom rigor só ela tem legitimidade passiva e não o C…, S.A.
24. Pelo que nada há a questionar no que diz respeito à legitimidade da ré D… SA, face ao contrato de seguro celebrado com a ré C….
25. Ainda que assim não se tratasse de um contrato de seguro obrigatório, a ré C… sempre teria direito de regresso contra a ré D… SA, pelo que mesmo que esta não interviesse como parte principal, sempre teria de se considerar chamada a título acessório – art. 321º CPC
26. Conforme referido no articulado apresentado ré recorrente, em 16.12.2020 e com refª 37487881, no qual expressamente invoca a existência do direito de regresso.
27. Finalmente, atendendo ao disposto pelos artigos 5º e 547º CPC, o Juiz não se encontra vinculado ao enquadramento jurídico desenhado pelas partes, devendo adoptar decisões que assegurem um processo equitativo, o que conduz a que, in casu, deveria ter decidido e promovido pela intervenção acessória da ré seguradora, já que é esse o entendimento que perfilha.
28. Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a sua substituição por outra que admita a intervenção da D…, SA»

Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo).
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre das conclusões do recurso, a única questão a apreciar e decidir consiste em saber se as seguradoras, quer a demandada inicialmente (“D…, S.A.”), quer a chamada “F…, S.A.” têm legitimidade passiva para figurarem nesta acção.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos e as vicissitudes processuais relevantes para a decisão constam do antecedente relatório.
2. Fundamentos de direito
Como se assinalou no relatório, no despacho que admitiu o chamamento das referidas seguradoras como intervenientes principais no processo (despacho de 17.06.2019), entendeu-se que estas «são também sujeitos passivos da relação material controvertida, pelo que podem intervir na ação ao lado do chamado em litisconsórcio voluntário (art.º 316.º, n.º 3, a), do C.P.C.)».
No despacho recorrido vem, em contraposição, defender-se que as mesmas seguradoras carecem de legitimidade (quer como intervenientes principais, quer como ré, no caso da “D…, S.A.”), não com o fundamento invocado pela “F…, S.A.” (que, relembre-se, invocou a sua ilegitimidade e a do seu segurado, o chamado Dr. E…, com o fundamento de que este actuou como mero auxiliar da ré “C…, S.A.” na prossecução da actividade desta, pelo que, a haver obrigação de indemnizar o autor, recairia sobre esta ré a respectiva responsabilidade, nos termos previstos no artigo 800.º do Código Civil), mas porque «não prestaram ao A. quaisquer serviços médicos e, por isso, não se encontram com a R. C… nem com o interveniente principal E… numa situação de litisconsórcio (voluntário), sendo apenas titulares de uma relação jurídica conexa (que apenas diz respeito às RR. entre si, e aos intervenientes principais entre si)», invocando-se, em abono, os acórdãos da Relação de Guimarães de 13/2/2020 (processo n.º 1540/19) e de 19/10/2017 (processo n.º 6101/15).
Na decisão recorrida partiu-se do pressuposto de que os contratos de seguro celebrados, designadamente aquele em que a segurada é a ré “C…, S.A.”, são seguros facultativos, razão por que «nos termos do art. 140º nº2 e 3 do RJCS, a seguradora só poderia ser directamente demandada pelo lesado (aqui A.) no caso de o contrato de seguro prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, ou se o segurado tivesse informado o lesado da existência de um contrato de seguro, com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador».
É, também, esse o pressuposto em que assentam os referidos acórdãos da Relação de Guimarães, como se alcança da passagem que, com a devida vénia, aqui se reproduz:
«Vem sendo decidido pelos Tribunais Superiores que A Nova Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Dec. Lei nº 72/2008, de 16.4, nos casos de seguro facultativo, permite, de forma expressa, que o lesado demande directamente a seguradora em duas situações: quando o contrato de seguro assim o preveja (art. 140º, nº 2) e quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro e a seguradora com ele tenha iniciado negociações directas (art. 140º, nº 3)[1].
No âmbito de um contrato de seguro facultativo, o lesado só tem o direito de demandar directamente a seguradora se no contrato estiver previsto esse direito (art. 140/2 da LCS) ou se o segurado o tiver informado da existência do contrato e na sequência a seguradora tiver entrado em negociações directas com o lesado (art. 140/3 da LCS)[2].
Também a Relação de Guimarães, no seguimento da jurisprudência referida, decidiu que
I - Na intervenção principal provocada (passiva), o interveniente faz valer um direito próprio, paralelo ao do R., em termos de poder com ele ter sido demandado diretamente pelo A., “ab initio”
II - Não é esse o caso da ré seguradora, que, nos termos do artº 140º da Lei do Seguro, não pode, por regra, ser demandada diretamente pelo lesado (a não ser nas situações, excecionais, previstas nos nºs 2 e 3 daquele preceito).
III – A sua intervenção ao lado do segurado apenas pode ser admitida como acessória, para poder contra ele exercer um eventual direito de regresso[3]
Aí escreve, de modo elucidativo, a Exma Desembargadora Maria Amália Santos que “O contrato de seguro encontrava-se regulado – até à data da entrada em vigor do citado DL nº 72/2008 (de 16/4) -, nos artºs 425.° a 431º do Código Comercial, sendo certo que daquelas normas (ou doutras, relacionadas com o contrato de seguro) nada resultava que permitisse a demanda directa pelo lesado da empresa seguradora e a correspondente responsabilização deste perante aquela.
Invocava-se, em face disso, o regime do artºs 443º e ss. do CC, para, a partir da qualificação do contrato de seguro como um típico contrato a favor de terceiro, sustentar o direito deste (como beneficiário) à prestação e, portanto, a possibilidade de a exigir directamente do segurador (artº 444º, nº 1 do CC).
Aliás, o contrato de seguro foi então (como ainda hoje) assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (cfr., na jurisprudência, entre outros, Acs. da RL de 07.11.2006 e da RP de 06.07.2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.; na doutrina, cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 99º, pág. 56, nota 1; Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, págs. 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., pág. 372 e segs.; José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 258 e 259), prevendo-se no artº 444º nº1 do CC que “o terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito á prestação, independentemente de aceitação”.
Por isso, na ausência de lei expressa sobre a matéria, era seguida a orientação de que o beneficiário da prestação podia demandar diretamente a seguradora.
Com a entrada em vigor do Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou a actual Lei do Seguro, o legislador tomou posição clara sobre a matéria, não deixando, quanto a nós, margem para dúvidas, sobre a impossibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora, no caso dos seguros voluntários, a não ser nos casos (excecionais) previstos nos nºs 2 e 3 do artº 140º daquele DL.
De facto, o legislador circunscreveu, no âmbito do contrato de seguro de responsabilidade civil facultativa, a acção directa do lesado face à seguradora do lesante, às circunstâncias previstas no artº 140º nºs 2 e 3 do referido diploma, ou seja, quando o contrato de seguro preveja o direito do lesado a demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto; e quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre lesado e segurador.
Fora dessas situações (fazendo apelo ao argumento “a contrario sensu”), não é consentida a demanda direta da seguradora.
Ora, como bem se referiu no despacho recorrido, não tendo sido alegada nenhuma daquelas circunstâncias no caso concreto, tal demanda direta estaria vedada ao A.
É certo que num ou noutro caso, “O segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ele tenha assumido, suportando os custos daí decorrentes” (nº 1), mas tem de entender-se aqui a intervenção da seguradora como assistente e não como parte principal.
Assim, e no que toca ao seguro de responsabilidade civil por danos, em que “o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros” (artº 137º, do citado Decreto-Lei) e mediante o qual se “garante a obrigação de indemnizar”, apenas no caso de seguro obrigatório o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador (artº 146º, nº1), caso em que a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado.
A posição do legislador foi, aliás, assumida, de forma consciente, como resulta do preâmbulo do citado Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, donde consta que “no seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador”».
Porém, esse pressuposto não se verifica no caso sub judice.
O Dec. Lei n.º 279/2009, de 6 de Outubro, veio definir o regime jurídico a que ficariam sujeitos a abertura, a modificação e o funcionamento de unidades privadas de saúde com internamento.
Esse diploma legal foi revogado pelo Dec. Lei n.º 127/2014, de 22 de Agosto, no qual passou a estar definido o regime jurídico a que ficam sujeitos a abertura, a modificação e o funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde (e não apenas as unidades privadas).
É certo que, como se refere no despacho recorrido, nenhum desses diplomas legais «contém qualquer previsão de obrigatoriedade de contrato de seguro».
No entanto, a Portaria n.º 290/12, de 24 de Setembro, estabelece os requisitos mínimos relativos à organização e funcionamento, recursos humanos e instalações técnicas para o exercício da atividade das unidades privadas que tenham por objeto a prestação de serviços de saúde e que disponham de internamento e no seu artigo 5.º, sob a epígrafe “Seguro profissional e de actividade”, dispõe:
«As unidades privadas que prossigam atividades no âmbito da prestação de serviços de saúde e que disponham de internamento devem contratar e manter em vigor um seguro de responsabilidade civil e profissional que cubra os riscos inerentes à respetiva atividade e à atividade dos seus profissionais».
Para afastar a natureza obrigatória dos contratos de seguro em causa, diz-se no despacho recorrido que «o A., na petição inicial, não invoca ter feito qualquer cirurgia e alega expressamente que o exame que realizou e que lhe terá provocado danos foi efectuado na consulta externa».
No entanto, não é isso que releva para este efeito, mas o facto de o estabelecimento da ré “C…, S.A.” ser uma unidade privada que prossegue a sua actividade no âmbito da prestação de serviços de saúde e que dispõe de internamento (tanto assim que o autor alega que, na sequência da BAT Torácica a que foi sujeito e da perfuração do pulmão dela resultante, esteve internado entre 19.08.2015 e 21.08.2015).
Por isso, como defende a recorrente, decorre, expressa e inequivocamente, da citada norma da Portaria n.º 290/12 o carácter obrigatório do seguro contratado.
Ora, como é próprio dos seguros obrigatórios, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do regime jurídico do contrato de seguro (Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador.
Como é bem sabido, o incidente de intervenção de terceiros (na modalidade de intervenção principal) visa fazer intervir na lide alguém que nela deveria estar (litisconsórcio necessário) ou poderia estar (litisconsórcio voluntário) desde o início.
Por isso foi correcta a decisão de admitir o chamamento das mencionadas seguradoras.
Ultrapassada que está, há muito, a controvérsia doutrinária sobre qual deve ser o critério aferidor da legitimidade das partes, é inegável que esse pressuposto processual perdeu grande parte do seu interesse prático e por isso não se justifica que nos detenhamos sobre ele.
Bastará dizer que a legitimidade no processo civil é (tal como no direito substantivo ou material) um conceito de relação: relação entre a parte no processo e o objecto deste e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o[4].
Tem legitimidade activa quem, juridicamente, pode fazer valer a pretensão em face do demandado; tem legitimidade passiva a pessoa que, juridicamente, pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida.
Por outras palavras, «o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca[5], surgir nela como sujeito susceptível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for directamente prejudicado com a procedência da ação»[6].
Sendo a lei a definir a legitimidade através da titularidade do interesse em litígio, importa sublinhar que há-de tratar-se de um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer. Não basta um interesse indirecto[7], reflexo ou derivado, «ou ainda mais um interesse diletante ou de ordem moral ou académica».
Ambas as seguradoras procuram alijar a sua responsabilidade, alegando que a situação em causa não está abrangida pelo âmbito de cobertura das respectivas apólices: a “D…, S.A.”, com a alegação de que a “BAT torácica” foi efectuada pelo Dr. E…, médico com a especialidade de radiologia, que, à data dos factos, não fazia parte do quadro próprio de pessoal da 1.ª ré, não sendo seu funcionário; a “F… S.A.”, alegando que os serviços prestados ao autor foram-no pela 1.ª ré “C…, S.A.” e o Dr. E… actuou como mero auxiliar desta na prossecução da sua actividade (pelo que a haver responsabilidade de alguém será desta ré nos termos do artigo 800.º do Código Civil), concluindo que «responsabilidade do Interveniente médico, bem como da Interveniente F…, simplesmente não existe».
Ora, como está bem de ver, esses factos (qualidade em que agiu o Dr. E… ao praticar aquele acto médico e se a situação em litígio está abrangida pelo âmbito de cobertura dos contratos de seguro celebrados) nada têm a ver com a legitimidade, mas com o mérito da acção.
Concluindo, as mencionadas seguradoras têm legitimidade para a acção, pelo que nela devem permanecer, quer como intervenientes principais, quer como ré (no caso das “D…, S.A.”).
Não pode, pois, manter-se o despacho recorrido.

III Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto por “C…, S.A.” e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo a acção prosseguir com as chamadas “F…, S.A.” e “D…, S.A.” (esta, também, como ré), para a qual dispõem de legitimidade.

Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 4.10.2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Ac. da Relação do Porto de 22/10/2013, Processo nº 185/11.0TBVLG.P1, in dgsi.net
[2] Ac. da Relação do Porto de 14/11/2013, Processo nº 1394/13.3TBMAI-A.P1, in dgsi.net
[3] Acórdão da Relação de Guimarães de 01-10-2015, Processo nº 345/13.0TBAMR-A.G1, in dgsi.net.
[4] Cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 51.
[5] A efectiva existência dessa relação e da pretensão deduzida diz já respeito ao mérito da acção.
[6] A.S. Abrantes Geraldes e outros, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 59.
[7] Sem prejuízos das situações excepcionais em que a legitimidade se define pela titularidade de um interesse indirecto, de que é exemplo a acção subrogatória.