CUSTAS
REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
LEGITIMIDADE
TEMPESTIVIDADE
TRÂNSITO EM JULGADO
DECISÃO FINAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ATO PROCESSUAL
PRAZO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CONSTITUCIONALIDADE
ÓNUS JURÍDICO
FACULDADE JURÍDICA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário


A Lei n.º 27/2019 veio eliminar a regra que determinava que a parte que obtivesse provimento total na ação judicial tinha, ainda assim, de responder solidariamente com a parte vencida pelo pagamento do valor remanescente da taxa de justiça. Com a nova redação do art. 14.º, n.º 9, do RCP, o responsável pelo impulso processual, que não seja condenado a final, fica dispensado do pagamento do remanescente, mas esta quantia deverá ser considerada na conta final e imputada à parte vencida. A parte vencedora não tem, por conseguinte, legitimidade para requerer a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça. A dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ou a sua redução, deve requerida até ao trânsito em julgado da decisão final do processo. Via de regra, a prática de actos processuais, incluindo a daqueles previstos no RCP, está sujeita a prazos. Para  a segurança jurídica, que confere estabiliade e previsibilidade à tramitação processual, concorrem as normas que fixam prazos. Não o fazendo até ao trânsito em julgado da decisão final, deixa precludir esse “ónus” ou “faculdade”, perdendo-a. Fica, assim, prejudicada a apreciação da (des)proporcionalidade da exigência do pagamento da totalidade das taxas de justiça devidas perante o serviço de administração da justiça prestado. Afasta-se qualquer juízo de inconstitucionalidade do efeito preclusivo do pedido de dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente associado ao trânsito em julgado da decisão final. A preclusão do “ónus” ou “faculdade” de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art. 6.º, n.º 7, do RCP, não enferma de inconstitucionalidade material (independentemente do valor de que a parte se venha a constituir devedora).

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça,



I - Relatório

1. Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda., intentou contra a Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A., e Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q.,  ação de preferência, peticionando:

- o reconhecimento do seu direito de preferência na venda do ... e, em consequência, o direito de para si o haver pelo preço de € 1.000.000,00, substituindo-se à segunda Ré na escritura de compra e venda;

- a condenação da 2.ª Ré a entregar-lhe o referido edifício;

- o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2.ª Ré tenha promovido a seu favor em consequência da aquisição do mesmo prédio;

- a condenação da 2.ª Ré a entregar-lhe todas as rendas que haja recebido, em virtude dos contratos de arrendamento em curso, desde a aquisição do imóvel em causa até à sua entrega.

2. Alegou, em síntese, que:

- por contrato de arrendamento urbano não habitacional, celebrado a 19 de abril de 2012, tornou-se arrendatária de parte da fração autónoma designada pela letra “R”..., referente ao oitavo piso, ..., na parte destinada a escritórios do prédio urbano designado por ..., sito em ...;

- esse contrato foi objecto de aditamento para revisão da renda a 3 de abril de 2013;

- a 1 de fevereiro de 2016, interveio na celebração de contrato de cedência temporária de espaço relativamente a áreas para arrecadação no mesmo edifício;

- a 17 de fevereiro de 2016, com efeitos reportados a 1 de dezembro de 2015, tornou-se, além de arrendatária de parte da fração autónoma designada pela letra ...(que já era desde 2012), também arrendatária de parte das frações autónomas designadas pelas letras “S”, “T”, “N”, “O” e “Q”;

- a 15 de fevereiro de 2017, foi celebrada, entre a 1ª e a 2ª Rés, escritura pública de compra e venda do ... por € 1.000.000,00, em violação da disciplina jurídica do instituto do direito de preferência.

3. A 1.ª Ré - Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A. - apresentou contestação, excecionando o mérito da pretensão da Autora. Alegou, em síntese, que é parte ilegítima, que a Autora não tem interesse em agir, que o invocado direito de preferência, se existisse, teria caducado por falta de depósito da totalidade do preço (€ 3.050.000,00 e respetivas despesas), que a Autora renunciou expressamente ao exercício do direito de preferência e que o seu comportamento é claramente abusivo.

4. A 2.ª Ré - Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q. - apresentou contestação, excecionando o mérito da pretensão da Autora. Alegou, em síntese, que a posição jurídica da Autora como arrendatária, reportada ao contrato de arrendamento celebrado a 17 de fevereiro de 2016, tendo como objecto frações autónomas do ... designadas pelas letras “R”, “S”, “T”, “N”, “O” e “Q”, não lhe permitia exercer o direito de preferência, pois que ainda não havia decorrido o prazo de três anos estabelecido no art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC. Referiu que este contrato revogou aquele celebrado a 19 de abril de 2012. Mencionou ainda que a Autora perdeu o direito legal de preferência, pois que não compareceu, a 13 de fevereiro de 2017, às 11 horas, na Rua..., ..., em ..., no ato de outorga da escritura de compra e venda pelo preço de € 3.050.000,00, preço oferecido pela Autora em licitação efetuada a 8 de fevereiro de 2017, com a R... – Publicidade, Lda.; que a Autora venceu a referida licitação, mas não chegou a celebrar qualquer negócio de compra e venda. Invoca, por último, que o exercício do alegado direito de preferência constitui abuso do direito.

5. Por seu turno, a Autora respondeu, pugnando pela improcedência das invocadas exceções, nos moldes referidos a fls. 230 a 233, que se dão por reproduzidos.

6. Foram juntos pelas partes diversos pareceres jurídicos.

7. Foi realizada audiência prévia, não tendo sido possível conciliar as partes.

8. A 22 de outubro de 2018, o Tribunal de 1.ª Instância, no saneador-sentença, decidiu o seguinte:

“Nestes   termos   e   em   função   do   exposto,   julgando   a   presente   improcedente,   o Tribunal decide:

a) Julgar improcedentes todas as excepções invocadas pelas rés.

b) Julgar procedente o peticionado pela autora e, em consequência:

 1 - Reconhecer o seu direito de preferência na venda do ... e, em consequência, o direito de para si o haver, pelo preço de um milhão de euros, substituindo-se à segunda ré, na escritura de compra e venda;

2 - Condenar a segunda ré a entregar-lhe o mesmo;

3 - Ordenar o cancelamento de todos e quaisquer registos que a segunda ré tenha promovido a seu favor em consequência da aquisição do referido prédio;

4 - Condenar a segunda ré a entregar-lhe todas as rendas, que haja recebido, desde a aquisição do referido imóvel, até à entrega do imóvel em virtude dos contratos de arrendamento em curso.

c) Julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido pela ré Portfolio e, em consequência, absolver a mesma do pagamento da quantia de € 3 050 000.

d) Julgar procedente pedido reconvencional deduzido pela ré Portfuel e, em consequência, condenar a mesma a pagar àquela a quantia de € 1 525 599, 70, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até efectivo pagamento.

Custas do pedido principal pelas rés (1/2 para cada) - cfr. artigo 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Custas do pedido reconvencional deduzido pela ré Portfolio, a cargo desta. Custas do pedido reconvencional deduzido pela ré Portfuel a cargo da autora.

Registe e Notifique.

9. Não conformadas com a decisão, as Rés Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A., e Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q., interpuseram recurso de apelação.

10. A Autora contra-alegou.

11. Por acórdão de 11 de dezembro, com voto de vencido, o Tribunal da Relação de … decidiu o seguinte:

Assim, de harmonia com as disposições legais citadas, decide-se negar provimento às apelações das RR. e não tomar conhecimento no que concerne a custas da apelação da R., Portfólio da, confirmando-se, pois, pelas razões que ficam expostas, a decisão recorrida.

Custas do recurso, a cargo das recorrentes.

12. Irresignada com a decisão, a 1.ª Ré - Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A. - interpôs recurso de revista, apresentando as seguinte Conclusões:

7.1.      DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

1. O presente recurso de revista é admissível, pois não só versa sobre o mérito da causa, como não constitui um caso de dupla conforme, uma vez que apesar de o Acórdão Recorrido ter confirmado a decisão do Tribunal de Primeira Instância, contou com um voto de vencido da Exam. Juíza Desembargadora … que discorda em absoluto da decisão que veio a ser tomada pelo Tribunal da Relação (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC).

2. Além disso, o presente recurso é manifestamente tempestivo e cumpre com os critérios do valor da acção e da sucumbência, uma vez que o valor do pedido principal (da RECORRIDA) é de € 1.000.000,00, sendo o valor do pedido reconvencional formulado pela RECORRENTE de € 3.050.000,00 (cfr. artigos 638.º, 138.º e 629.º, n.º 1, do CPC).

7.2.      DA ALTERAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO

3. Em primeiro lugar, no que respeita à decisão da matéria de facto, as instâncias recorridas andaram mal ao não terem dado como provado que “[a]pós ter comunicado que não iria comparecer para outorgar a escritura de compra e venda do IMÓVEL pelo preço de € 3.050.000,00, a A. negociou com a R. Portfolio para adquirir o IMÓVEL por um preço situado entre os € 1.100.000,00 e €1.500.000,00”, fazendo errada interpretação e aplicação do preceito vertido no artigo 358.º do Código Civil.

4. Desde logo, porque este facto emerge de confissão judicial sem reservas da RECORRIDA (cfr., inter alia, artigo 17.º da petição inicial), bem como de documento junto aos autos com a petição inicial (cfr. DOC. 10 junto com a petição inicial) não impugnado.

5. Por conseguinte, ao abrigo do disposto no artigo 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal da Justiça pode conhecer do pedido de alteração da matéria de facto aqui

formulado, porquanto resulta de confissão, ou seja, de facto que emerge de meio de prova com força probatória plena.

6. Adicionalmente, a inclusão do referido facto no elenco da factualidade assente assume enorme relevância na medida em que permite trazer à luz, por um lado, que a RECORRIDA renunciou ao direito de preferência e, por outro lado, que a RECORRIDA actuou em abuso de direito ao dar início aos presentes autos com o fim de exercer o seu putativo direito de preferência.

7. Note-se que se o aludido facto tivesse sido levado em devida conta pelas instâncias recorridas, isso determinaria uma decisão em sentido diametralmente oposto, ou seja, no sentido da improcedência da presente acção de preferência.

7.3.    DA ILEGITIMIDADE PASSIVA

8. Em segundo lugar, no que respeita à excepção de ilegitimidade passiva da RECORRENTE, as instâncias recorridas andaram mal ao não absolverem a RECORRENTE da instância, por terem a considerado parte legítima nos autos, fazendo uma errada interpretação e aplicação ao caso dos autos do preceito vertido nos artigos 30.º, 577.º e 278.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

9. A correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 30.º do CPC, determina que a RECORRENTE seja absolvida da instância, bastando olhar aos pedidos formulados nos autos pela RECORRIDA e às decisões das instâncias recorridas para se compreender (i) que nenhum pedido foi, a qualquer título, deduzido pela RECORRIDA contra a RECORRENTE e (ii) que da procedência da acção de preferência não resulta nenhum prejuízo (ou sequer impacto) para a RECORRENTE.

10. Na verdade, a RECORRENTE não tem qualquer interesse, directo ou indirecto, em contradizer os pedidos da RECORRIDA. Veja-se que até o ressarcimento dos putativos danos sofridos pela RECORRIDA em decorrência da pretensa violação do direito de preferência (consubstanciados no não recebimento de rendas) é reclamado apenas e directamente pedido à PORTFUEL.

11. E, também não se diga, que o mero facto de a RECORRIDA ter atribuído à RECORRENTE o papel de sujeito processual determina que a RECORRENTE seja parte legítima, pois a análise e apreciação da legitimidade passiva da RECORRENTE, no caso concreto, leva-nos a constatar que, de facto, a RECORRENTE não tem qualquer interesse directo em contradizer, sendo-lhe o resultado da presente acção totalmente indiferente.

12. Acresce que, no caso concreto, também não estamos perante uma situação de litisconsórcio passivo necessário, ficando o efeito útil da decisão suficientemente acautelado pela presença da PORTFUEL nos autos, designadamente por nenhuma consequência jurídica poder advir para a RECORRENTE (caso esteja ausente da acção)

13. Por outro lado, evitar uma contradição de julgados também não pode servir de justificação para a legitimidade processual da Recorrente, uma vez que no caso dos autos não se vislumbram quaisquer putativos danos (além do não recebimento de rendas) que a RECORRIDA pudesse legitimamente invocar contra a RECORRENTE com fundamento na pretensa violação do direito de preferência.

14. De todo o exposto resulta que, no caso concreto, a RECORRENTE carece de legitimidade passiva, o que consubstancia, nos termos da alínea e) do artigo 577.º do CPC, uma excepção dilatória nominada, excepção esta de conhecimento oficioso (cfr. artigo 578.º do CPC), e que determina a imediata absolvição da RECORRENTE da instância, nos termos e para os efeitos do artigo 278.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

7.4.    DA FALTA DE INTERESSE EM AGIR

15. Já no que diz respeito à excepção de falta de interesse em agir da RECORRENTE, as instâncias recorridas andaram mal ao absolveram a RECORRENTE da instância, por terem considerado que a RECORRENTE tinha interesse em agir, fazendo uma errada interpretação e aplicação ao caso dos autos do preceito vertido nos artigos 577.º e 278.º, n.º 1, alínea e) do CPC.

16. No ACÓRDÃO RECORRIDO, o Tribunal da Relação de Lisboa justificou a sua decisão referindo que: “(…) é o obrigado à preferência que tem o ónus de comunicar a perspectiva da alienação e de viabilizar a integridade do direito de preferência. Desta forma, pensamos ter ficado demonstrado o interesse em agir por parte da R. Portfolio.” (cfr. página 39 do ACÓRDÃO RECORRIDO).

17. Não procede a argumentação do ACÓRDÃO RECORRIDO, porque apesar de o obrigado à preferência (a RECORRENTE) ter “o ónus de comunicar a perspectiva da alienação e de viabilizar a integridade do direito de preferência”, da factualidade provada (cfr. factos provados n.º 8, 10, 13 e 14) resulta que esse ónus foi integralmente cumprido nos precisos termos da lei pela RECORRENTE, não havendo qualquer incumprimento que lhe possa ser imputado para efeitos da presente acção.

18. Mas ainda que assim não fosse (sem conceder), o argumento invocado não revela para a análise aqui em causa, pois que não é o “ónus de comunicar” da RECORRENTE que determina se esta possui ou não interesse em agir na presente acção.

19. O que determina o interesse em agir (ou a sua falta) são os efeitos práticos que desta acção possam decorrer para a RECORRENTE e, bem assim, a efectiva utilidade da tutela jurisdicional que a RECORRIDA poderá retirar desta acção em relação à RECORRENTE

20. E, olhando-se ao caso dos autos, resulta cristalino que basta a intervenção da PORTFUEL para assegurar a procedência dos pedidos da RECORRIDA e o efeito útil da decisão a final proferida, não havendo necessidade objectiva e justificada de demandar a RECORRENTE na presente acção, o que redunda na sua falta de interesse em agir.

21. De todo o exposto resulta que, no caso concreto, a RECORRENTE carece de interesse em agir, o que consubstancia uma excepção dilatória inominada, que determina a imediata absolvição da RECORRENTE da instância, nos termos e para os efeitos do artigo 278.º, n.º 1, alínea e) do CPC.

A entender-se de modo diverso, sem conceder,

7.5. DA INADMISSIBILIDADE DA ACÇÃO DE PREFERÊNCIA

22. É inquestionável que o ACÓRDÃO RECORRIDO enferma de erro de julgamento ao declarar procedente a acção de preferência.

23. Com efeito, as instâncias recorridas entenderam – com o devido respeito, erradamente – que o direito de preferência da RECORRIDA se mantinha, mesmo quando esta optou por não o exercer nos termos da licitação.

24. Assim, a questão de fundo é precisamente saber qual é a consequência de a RECORRIDA não ter exercido o direito de preferência (porque não quis) nos termos da licitação: o direito de preferência mantém-se ou extingue-se?

25. No entender da RECORRENTE, e conforme decorre do artigo 1032.º do CPC, o direito de preferência da RECORRIDA extinguiu-se em consequência da comunicação de que não iria comparecer, bem comodo facto de não ter efectivamente comparecido para outorgar o contrato de aquisição do IMÓVEL, motivo pelo qual a presenta acção se afigura inadmissível.

26. Cumpre aqui esclarecer que a perda do direito de preferência pela RECORRIDA implica que a RECORRIDA não tenha apenas perdido o direito de preferir pelo valor de € 3.050.000,00, tendo perdido o direito de preferência por qualquer valor, sendo por inadmissível a presente acção de preferência.

27. Dito isto, em primeiro lugar, em face da factualidade provada nos autos, dúvidas não subsistem de que a RECORRIDA efectivamente renunciou ao direito de preferência, não mais podendo exercê-lo, sequer por meio da acção de preferência.

28. Estamos perante um caso de direitos de preferência alternativos, sendo o procedimento previsto a licitação entre preferentes (cfr. o disposto no artigo 419.º, n.º 2 do Código Civil e no artigo 1032.º do CPC), resultando do regime legal que da licitação resulta um preferente vencedor e, no caso de não exercício do direito de preferência, o mesmo é devolvido ao preferente vencido que tenha oferecido o lance imediatamente inferior, e assim sucessivamente.

29. A solução apontada pelo regime legal é precisamente a perda sucessiva dos preferentes licitantes à medida que não vão exercendo o direito de preferência em conformidade com a licitação.

30. Acresce que, sobre o procedimento a adoptar na licitação (as regras) a lei é silente, podendo as partes, de acordo com o princípio da autonomia privada fixar o que lhes aprouver(conquanto não viole lei imperativa).

31. Ora, tal como se provou, tanto as regras da licitação como o procedimento a observar subsequentemente foram expressamente definidos e aceites, de um lado, pela RECORRENTE e, de outro lado, pela RECORRIDA e pela R..., o que se afigura admissível em face do disposto no artigo 405.º do Código Civil.

32. Isto é, de um lado, na comunicação enviada em 03-02-2017 a RECORRENTE fez constar a sua proposta relativamente às regras da licitação e ao procedimento a observar, assim como às consequências emergentes para as preferentes da não outorga por si da escritura pública de compra e venda nos termos da licitação.

33. De outro lado, a RECORRIDA, em 08-02-2017, perante notário, declarou (conjuntamente com a outra preferente) conhecer e aceitar as regras da licitação vertidas na carta de 03-02-2017, tal como consta expressamente das páginas 8, 9 e 12 a 15 do documento n.º 9 junto com a petição inicial (um certificado notarial).

34. Dúvidas não subsistem de que, no caso dos autos, o acordo celebrado pelas partes é meramente confirmativo e dilucidativo do regime legal, tendo as partes, ademais, expressamente definido e acordado quais as consequências do não exercício do direito de preferência nos termos da licitação.

35. Inquestionável é, também, que o conteúdo do acordo é o da carta-proposta, devidamente interpretada, como é sempre que o acordo se forme por simples aceitação da proposta. Esse conteúdo compreende dois pontos: 1.º - o modo de licitação (…) [e] 2.º- a cominação da perda do direito para a não comparência de qualquer dos preferentes nas escrituras públicas de compra e venda da totalidade do prédio.

36. Não menos importante é referir aqui que a RECORRIDA, aliás, como refere o ACÓRDÃO RECORRIDO nunca questionou a validade e eficácia do aludido acordo.

37. A esta luz, dúvidas não subsistem que as partes acordaram que, caso o direito de preferência não fosse exercido nos termos da licitação, tal implicaria a perda do direito de preferência. Isto quer o não exercício do direito fosse por parte da preferente vencedora (in casu, a R...), quer fosse por parte da preferente vencida (in casu, a RECORRIDA).

38. E, assim, é evidente que, tendo-lhe sido devolvido o direito, ao ter declarado que não iria comparecer na escritura de compra e venda do IMÓVEL pelo valor resultante da licitação (€ 3.050.000,00) a RECORRIDA renunciou ao direito de preferência (não mais podendo exercê-lo, em paridade com o que sucede com a outra preferente, a R...).

39. Além de não ter qualquer suporte legal/contratual, a procedência de acção de preferência pelo valor de € 1.000.000,00, nas circunstâncias do caso concreto, atenta contra os mais elementares princípios do ordenamento jurídico português, criando benefícios injustificados entre preferentes na mesma situação e com o mesmo comportamento.

40. Ademais, a solução apontada pelo ACÓRDÃO RECORRIDO redunda num total desrespeito pela autonomia das partes e a grosseira violação do princípio pacta sunt servanda, mais potenciando abusos e fraudes no regime da preferência em que tivesse havido licitações entre vários pretensos detentores desse direito.

41. Acresce que, o entendimento que subjaz ao ACÓRDÃO RECORRIDO levaria a uma situação de total incerteza e insegurança (i) para terceiros preferentes, (ii) para o proprietário do bem que assim nunca saberia em que momento e como o direito de preferência poderia ser exercido e por quem e (iii) para o pretendente comprador não preferente.

42. E obviamente que desrespeitar a licitação efectuada, implica que o direito de preferência nunca se extingue, havendo uma constante necessidade de se retomar o início do processo, acabando por se traduzir numa restrição intolerável ao direito de propriedade, vendo-se o proprietário impedido ad eternum do poder de disposição sem que qualquer fundamento legal ou contratual – como bem se entendeu no voto de vencido ao ACÓRDÃO RECORRIDO.

43. Pelo que, chegados a este ponto, é forçoso que se conclua que a declaração de não comparência e a não comparência efectiva têm, segundo a compreensão normal, e neste contexto em concreto, o sentido de renúncia ao exercício dos respectivos direitos de preferência, tal como resultaram da licitação.

44. Sem embargo, e ainda que dúvidas pudessem existir sobre se a RECORRIDA teria ou não renunciado ao direito de preferência, tal resultaria inequívoco do facto de a RECORRIDA – depois de ter comunicado que não ia exercer o seu direito de preferência nos termos da licitação – ter encetado negociações com a RECORRENTE para comprar o IMÓVEL por um preço entre os € 1.100.000,00 e € 1.500.000,00.

45. Perante a factualidade dos autos, estamos evidentemente perante uma renúncia tácita, ou seja, numa situação em que a RECORRIDA adoptou um comportamento do qual se infere com toda a probabilidade e segurança a sua vontade negocial (cfr. o disposto no artigo 217.º do Código Civil).

46. De facto, um declaratário normal na posição da RECORRENTE, tendo em consideração a postura negocial da RECORRIDA após esta (i) ter aceite as regras da licitação e procedimento subsequente e (ii) ter comunicado que não ia celebrar a escritura de compra e venda do IMÓVEL pelo último lanço oferecido, apenas poderia entender que a mesma havia renunciado ao direito de preferência na alienação do IMÓVEL.

47. E esta renúncia é válida e eficaz, porquanto a RECORRIDA esteve desde sempre na posse de todos os elementos essenciais para formar a vontade de exercer a preferência e, no concreto caso, das consequências do não exercício do direito de preferência pelo preço resultante da licitação, isto é, de € 3.050.000,00.

48. À luz do exposto, conclui-se que a RECORRIDA renunciou ao direito de preferência na compra do IMÓVEL e, por isso, não lhe era admissível o recurso à presente acção, a qual outro fim não merece que não a total improcedência.

I. Em segundo lugar, sem conceder, sempre se diria que a RECORRIDA, em face do concreto circunstancialismo dos autos, teria visto o seu direito de preferência extinto por caducidade.

49. Para o que ao caso importa, a RECORRIDA aceitou expressamente as regras da licitação, o procedimento subsequente e a consequência do não exercício do direito de preferência pelos preferentes em conformidade com a licitação (cfr. factos provados n.os 8, 13 e 14).

50. Tal procedimento foi ao encontro daquilo que constava do acordo celebrado, para o caso de a R... não exercer o direito de preferência em conformidade com a licitação (ou seja, pelo lanço vencedor, de € 3.100.000,00).

51. Pelo que, sendo admissível que as partes estipulem casos especiais de caducidade (cfr. o disposto no n.º 1 do artigo 330.º do Código Civil), a omissão de comparência na escritura agendada de acordo com o anteriormente estipulado e após devidamente notificada para o efeito, sempre teria o efeito de caducidade do direito, à semelhança do efeito cominado por lei para a omissão de declaração de preferência (cfr. o disposto no artigo 416.º, n.º 2 do Código Civil).

52. Termos em que o direito de preferência da RECORRIDA sempre teria caducado em 13-02-2017, em virtude da não comparência da RECORRIDA para exercer o direito de preferência.

53. E, ainda que ficcionando – como as instâncias recorridas parecem fazer – que a RECORRIDA manteria, ainda assim, o direito a preferir pelo valor de € 1.000.000,00 (no que não se concede e apenas por excessiva cautela do patrocínio se equaciona), a verdade é que o direito da RECORRIDA teria caducado em 15-02-2017.

54. Dúvidas não subsistem que, desde o primeiro momento (25-01-2017), a RECORRIDA conhecia os termos em que a transacção iria ser efectivada com a PORTFUEL, assim como a data em que tal ocorreria (cfr. pontos 8 e 9 dos factos provados).

55. Sabia, também, a RECORRIDA, pelo menos desde o dia 08-02-2017, que caso o direito de preferência não fosse exercido nos termos da licitação por qualquer dos preferentes, a RECORRENTE iria outorgar a escritura de compra e venda do IMÓVEL, pelo preço de € 1.000.000,00, com a PORTFUEL o dia 15-02-2017 – tal como veio a suceder.

56. Na posse destes elementos – e de todos os elementos que lhe permitiam formar a vontade de exercer o seu putativo direito de preferência –, a RECORRIDA limitou-se, primeiro, a comunicar que não iria preferir na aquisição do IMÓVEL nos termos da licitação e, seguidamente, negociou a aquisição do IMÓVEL, sempre, por preço superior a € 1.000.000,00.

57. Porém, não resulta provado – nem tal aconteceu – que a RECORRIDA tenha comunicado à RECORRENTE que iria comparecer no dia 15-02-2017 para exercer o seu pretenso direito de preferência pelo valor de € 1.000.000,00 ou que tenha comparecido naquele momento para procurar acautelar o direito (que apenas agora) vem defender que lhe assistia.

58. Também não se provou – nem tal sucedeu – que a RECORRIDA tenha lançado mão de qualquer expediente, incluindo em sede cautelar, para procurar acautelar o direito de preferência que (apenas agora) parece entender assistir-lhe, procurando impedir a venda do IMÓVEL à PORTFUEL.

59. Pelo que, sempre seria inequívoco que – não tendo a RECORRIDA a ele renunciado – o putativo direito de preferência da RECORRIDA havia caducado em 15-02-2017, não podendo a mesma prevalecer-se da presente acção de preferência com o fim de o exercer, a qual outro fim não merece que não a total improcedência.

60. E, em qualquer caso, cumpre esclarecer que a perda do direito de preferência pela RECORRIDA implica que a RECORRIDA não tenha apenas perdido o direito de preferir pelo valor de € 3.050.000,00, tendo perdido o direito de preferência por qualquer valor, sendo inadmissível a presente acção de preferência, a qual deve (também por isso) improceder.

Subsidiariamente, sem conceder,

7.6. DO COMPORTAMENTO ABUSIVO DA RECORRIDA

61. Perante a factualidade concreta dos autos, ainda que se entendesse que a RECORRIDA mantinha o direito a preferir na aquisição do IMÓVEL pelo preço de € 1.000.000,00, sempre o comportamento da RECORRIDA nos presentes autos se configuraria como abusivo.

62. Em primeiro lugar, sempre se diga que a conduta da RECORRIDA ao intentar a presente acção consubstancia um exercício abusivo do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

63. Com efeito, por um lado, a RECORRIDA (i) ao saber da existência de outro preferente na alienação do IMÓVEL, aceitou com ele participar na licitação; (ii) aceitou expressamente as regras da licitação e procedimento subsequente vertido nas comunicações de 03-02-2017; (iii) em concreto, aceitou que, caso nenhuma das preferentes exercesse o direito de preferência nos termos da licitação, que a RECORRENTE celebraria o contrato de compra e venda do IMÓVEL com a PORTFUEL, em 15-02-2017, pelo preço de € 1.000.000,00 e (iv) comunicou previamente à RECORRENTE que não iria celebrar o negócio de alienação do IMÓVEL nos termos da licitação.

64. Por outro lado, a RECORRIDA, depois de comunicar que não iria celebrar o negócio de alienação do IMÓVEL nos termos da licitação, procurou negociar com a RECORRENTE a aquisição do IMÓVEL por um preço entre € 1.100.000,00 e € 1.500.000,00, em qualquer dos casos sempre superior aos € 1.000.000,00 e nada mais comunicou à RECORRENTE para, por qualquer meio, salvaguardar o seu putativo direito de preferência que (apenas agora) vem defender que lhe assiste e foi violado.

65. A conduta supra descrita da RECORRIDA levou a que a RECORRENTE – justificada e razoavelmente – entendesse que a RECORRIDA não iria exercer o seu direito de preferência, pelo que a RECORRENTE poderia honrar o compromisso contratual que tinha com a PORTFUEL, ou seja, outorgara escritura de compra e venda do IMÓVEL com a PORTFUEL.

66. Note-se que, uma coisa era a RECORRIDA sabendo que – na ausência do exercício do direito de preferência por qualquer dos preferentes nos termos da liquidação – a RECORRENTE iria celebrar a escritura de compra e venda do IMÓVEL com a PORTFUEL, nos termos e condições que lhe foram reiteradamente transmitidos, ter imediatamente comunicado à RECORRENTE que mantinha o propósito de exercer a preferência e substituir-se à PORTFUEL na escritura de compra e venda aprazada.

67. Outra coisa distinta é a RECORRENTE conformar-se (ao menos aparentemente) com a perda do direito de preferência e procurar negociar a aquisição do IMÓVEL por preço superior ao que agora – e quase à bica do prazo de caducidade previsto no artigo 1410.º do Código Civil - vem, por meio desta acção tentar exercer o direito de preferência.

68. É assim evidente o abuso de direito da RECORRIDA, na modalidade de venire contra factum proprium, devendo a acção improceder, sob pena da violação do disposto no artigo 334.º do Código Civil.

69. Em segundo lugar, a conduta da RECORRIDA ao intentar a presente acção consubstancia um exercício abusivo do direito, na modalidade de tu quoque.

70. Caso a RECORRIDA não houvesse renunciado ao direito de preferência – no que não se concede –, o facto é que a RECORRIDA acordou nas regras da licitação e do procedimento subsequente e, no final do dia, não compareceu para exercer a preferência nos termos daí resultantes.

71. Além disso – e não obstante ser incontornável que o negócio que foi celebrado em 15-02-2017 entre a RECORRENTE e A PORTFUEL corresponde precisamente ao que vinha sendo comunicado desde 25-01-2017 –, e depois de não ter comparecido para exercer a preferência, a RECORRIDA negociou ainda a aquisição do IMÓVEL por um preço entre os € 1.100.000,00 e € 1.500.000,00, do modo que entendeu adequado para se substituir à PORTFUEL na aquisição do IMÓVEL.

72. Acresce a isto que, a RECORRENTE não compareceu no dia, hora e local em que seria outorgada a escritura de compra e venda do IMÓVEL entre a RECORRENTE e a PORTFUEL, nem lançou mão de qualquer procedimento ou notificação com o fim de impedir a alienação do IMÓVEL, nos termos que naquela data tão bem eram por si conhecidos.

73. À luz do exposto é forçoso concluir pelo abuso de direito da RECORRIDA, na modalidade de tu quoque, devendo a acção improceder, sob pena da violação do disposto no artigo 334.º do Código Civil.

Normas jurídicas violadas: nos artigos 334.º, 405.º, 416.º, 419.º, n.º 2 e 1410.º do Código Civil e dos artigos 30.º, 577.º e 278.º, n.º 1, alíneas d) e e), 1032.º do Código de Processo Civil.

POR TODO O EXPOSTO, DEVE O PRESENTE RECURSO DE REVISTA SER ADMITIDO E JULGADO PROCEDENTE,DE FACTO E DE DIREITO,E,EM CONSEQUÊNCIA:

a)  Ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, aditando-se ao elenco dos factos provados que “[a]pós ter comunicado que não iria comparecer para outorgar a escritura de compra e venda do IMÓVEL pelo preço de € 3.050.000,00, a A. negociou com a R. Portfolio para adquirir o IMÓVEL por um preço situado entre os € 1.100.000,00 e €1.500.000,00” – cfr. subcapítulo 6.1 supra;

b) Ser declarada procedente a excepção de ilegitimidade passiva da RECORRENTE, por provada, e em consequência ser a RECORRENTE absolvida da instância – cfr. capítulo 6.2 supra; e /ou

c) Ser declarada procedente a excepção inominada de falta de interesse em agir da RECORRENTE, por provada, e em consequência ser a RECORRENTE absolvida da instância – cfr. capítulo 6.3 supra.

Caso assim não se entenda,

d) Ser revogado o ACÓRDÃO RECORRIDO e substituído por outro que declare improcedente a acção de preferência, com as demais consequências legais que ao caso cabem - cfr. subcapítulo 6.4 supra.

Subsidiariamente,

e) Ser revogado o ACÓRDÃO RECORRIDO e substituído por outro que declare abusivo o comportamento da RECORRIDA e, em consequência, declare improcedente a acção de preferência, com as demais consequências legais que ao caso cabem - cfr. subcapítulo 6.5 supra”.

13. Também não conformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a 2.ª Ré - Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q. - interpôs recurso de revista com as seguintes Conclusões:

1. Como se verifica através da leitura do douto acórdão recorrido, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre a questão suscitada no recurso de apelação da ora recorrente, a propósito da impugnação da matéria de facto, no sentido da eliminação da segunda alínea c) e actual facto provado n.º 4.

2. Essa falta de pronúncia é causa de nulidade do douto acórdão recorrido, por força do disposto nas alíneas d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, aplicável aos acórdãos proferidos em 2.ª Instância, por força do disposto no art.º 666.º do mesmo Código.

3. O que, a não ter sido suprido pelo Venerando Tribunal da Relação de …, deve ser reconhecido e declarado por esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça, ordenando a baixa do processo à 2.ª Instância, a fim de serem sanado o vício e proferido novo douto acórdão. Caso assim se não entenda, o que apenas por mera cautela se admite, mas sem conceder,

4. O (primeiro) contrato de arrendamento celebrado entre a então senhoria e a autora em 19 de Abril de 2012 constituiu uma determinada relação locatícia, que tinha por base parte de uma fracção autónoma (a “R”) do ..., melhor identificado nos autos, relação essa que terminou em 30 de Novembro de 2015, por revogação expressa das partes e sem salvaguarda de quaisquer efeitos do mesmo, o que, se pretendesse, as partes podiam ter previsto de forma diferente.

5. O (segundo) contrato de arrendamento celebrado entre a então senhoria do imóvel em causa e a autora, em 17 de Fevereiro de 2016, com efeitos retroagidos a 1 de Dezembro de 2015, constituiu uma nova relação locatícia, completamente distinta da anterior, designadamente no que se refere ao objecto (diversas fracções autónomas do supra aludido Edifício), à renda unitária fixada e ao regime da cessação.

6. Para efeitos de direito de preferência na venda da totalidade das fracções autónomas que integram o Edifício em causa (que ocorreu a 15 de Fevereiro de 2017), é necessário que o preferente seja o arrendatário actual (à data) do local arrendado e que esse arrendamento perdure ininterruptamente há mais de três anos.

7. Essa é a melhor e a única interpretação correcta do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 1091.º do CC.

8. A revogação operada pelas partes ao primeiro contrato de arrendamento celebrado teve como consequência directa e necessária a existência de duas relações locatícias distintas, interrompendo a primeira e separando-a juridicamente da segunda, de tal forma que, relativamente à única fracção autónoma abrangida pelos dois contratos de arrendamento (a “R”) foi dado como provado, no facto provado n.º 5, que, com a celebração do segundo contrato de arrendamento, a autora assumiu a posição de arrendatária, entre outras, de parte da fracção designada pela letra ....

9. Se a autora assumiu a posição de arrendatária de parte da fracção ..., com a celebração do contrato de arrendamento de 17 de Fevereiro de 2016, é inequívoco que, na altura, não tinha essa posição.

10.Face ao exposto, para efeitos de saber se a autora tinha direito de preferência na venda da totalidade das fracções autónomas do referido Edifício, que ocorreu em 15 de Fevereiro de 2017, não é permitido adicionar os períodos de vigência dos dois contratos de arrendamento.

11.A autora, à data da venda, era arrendatária de diversas fracções do referido Edifício desde 1 de Dezembro de 2015, ou seja, há pouco mais de um ano, motivo por que não era titular de direito de preferência legal naquela venda.

12.Ao decidir em sentido contrário, o douto acórdão recorrido violou o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 1091.º do CC e, bem assim, o disposto nos art.ºs 405.º, ...6.º, ...8.º, 406.º e 1082.º, todos do mesmo Código.

13.Deve, por isso, ser revogado, nessa parte, o douto acórdão recorrido, devendo considerar-se procedente a excepção dilatória inominada da inexistência do direito legal de preferência da A., enquanto requisito de admissibilidade da presente acção de preferência, ou, em alternativa, que parece ser mais correcta, improcedente a acção, por inexistência material do direito de preferência legal invocado, com as consequências legais, respectivamente, a absolvição das rés da instância ou a absolvição das rés dos pedidos contra ela formulados. Caso assim também se não entenda, o que, uma vez mais, apenas por mera cautela a ora recorrente admite, mas igualmente sem conceder,

14. Tendo a autora e a sociedade R... manifestado pretenderem exercer o direito de preferência na venda da totalidade das fracções do Edifício em causa, pelo preço de € 1.000.000,00, era obrigatório proceder-se a licitação, revertendo o excesso para a alienante (cfr. o disposto no n.º 2 do art.º 419.º do CC).

15. Essa licitação entre ambas teve lugar em 8 de Fevereiro de 2017, com base em regras por ambas expressamente aceites, tendo a R... oferecido o lanço mais elevado (€ 3.100.000,00).

16. Como a R... não compareceu à celebração da escritura pública de compra e venda, perdeu, definitiva e irremediavelmente o seu direito de preferência, tal como previsto nas regras da licitação, tendo-se o direito devolvido à autora pelo seu lanço mais elevado e imediatamente inferior ao da R... (€ 3.050.000,00), uma vez mais conforme previsto nas regras da licitação e, acima de tudo, por força do disposto, a nível substantivo, no n.º 2 do art.º 419.º do CC e, a nível adjectivo, nos n.ºs 3 e 4 do art.º 1032.º do CPC. Todavia,

17. Também a autora não compareceu à celebração da escritura de compra e venda, motivo  por que igualmente perdeu, definitiva e irremediavelmente, o direito de preferência que lhe havia sido concedido pela alienante, também por força das regras da licitação comunicadas por carta da 1.ª ré, de 3 de Fevereiro de 2017 e do regime estabelecido nos supra citados n.º 2 do art.º 419.º do CC e n.ºs 3 e 4 do art.º 1032.º do CPC.

18. A partir do momento em que foi necessário, por força da lei, recorrer a licitação, que se realizou entre os dois preferentes, a autora deixou, em qualquer circunstância, de ter direito de referência na venda da totalidade das fracções do Edifício em causa à ora recorrente, pelo preço de € 1.000.000,00.

19. A perda/renúncia ao direito de preferência consubstancia uma excepção peremptória que dá lugar à absolvição das rés dos pedidos contra elas formulados.

20. Ao decidir pela improcedência de tal excepção, o douto acórdão recorrido violou as regras e normas mencionadas nas antecedentes conclusões, devendo, por isso, tal decisão ser revogada e substituída por outra que julgue essa excepção procedente, com as legais consequências. Caso assim também tal não se entenda, o que, à semelhança das anteriores, apenas por mera cautela a ora recorrente admite, mas do mesmo modo sem conceder,

21. Sempre teria a autora actuado com manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, ao aceitar expressamente as regras da licitação e ao passar a pagar as rendas à ora recorrente, sem qualquer oposição ou manifestação em sentido contrário, vindo agora a propor a presente acção de preferência por referência ao preço de € 1.000.000,00, o que, após a licitação, nunca revelou pretender, muito pelo contrário, tendo tentado negociar essa aquisição por um valor entre € 1.100.000,00 e € 1.500.000,00.

22. O que tudo a ora recorrente requer que seja reconhecido e decretado por esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça, com as relações de subsidiariedade, cumulação ou alternância deduzidas e com as legais consequências.

Termos em que, e nos mais de direito aplicável, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de revista, decretando-se, se for o caso, a nulidade do douto acórdão recorrido e, a final, absolvendo-se as rés da instância ou dos pedidos contra ela formulados, nos moldes também supra expostos, assim fazendo V. Exas., Colendos Conselheiros, a costumada, necessária, desejada e Indispensável JUSTIÇA!!!

14. A Autora/Recorrida Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda., apresentou contra-alegações, oferecendo as seguintes Conclusões:

1 - A Matéria de Facto dada como provada no presente processo, encontra-se definitivamente assente;

2 - A "LSREF3 REO Mixed Portfolio, S.A.'\ Ia Ré e Recorrente no presente processo é parte legítima no mesmo e necessária na presente demanda, nos termos do artigo 30°, do CPC;

3 - A então "Magnetocare, Lda" e hoje em dia "F..., S.A., é arrendatária de parte do ... desde 2012, pelo que em Fevereiro de 2017, o local já se encontrava arrendado á A./Recorrida há mais de 3 anos, pelo que se encontrava preenchido o requisito constante da alínea a), do n° 1, do artigo 1091° do Código Civil, razão pela qual este direito se encontrava há muito na esfera jurídica da "Magnetocare, Lda" (hoje "F..., S.A");

4 - A licitação entre Preferentes, é apenas um momento do processo que se desenvolve com vista á concretização de um Direito de Preferência, quando existem direitos conflituantes que não podem ser exercidos em conjunto nem hierarquizados;

5 - No caso, terminada a licitação, o último lance foi da "R..." que desistiu, pelo que o Direito de Preferência devolveu-se á A./Recorrida "Magnetocare, Lda" (hoje "F..., S.A");

6 - Devolveu-se para ser exercido nas condições oferecidas ao 3o adquirente "Portfuel" e não em condições mais gravosas, uma vez que a Lei prevê que o titular do Direito de Preferência venha a adquirir o imóvel nas condições que se encontram contratadas com o 3o - no caso a "Portfuel";

7 - O direito da A./Recorrida "Magentocare, Lda" (hoje "F..., S.A") não caducou, nem esta renunciou àquele;

8 - Não houve por parte da A./Recorrida qualquer actuação que possa enquadrar-se no âmbito do Abuso de Direito, não se encontrando preenchidos os pressupostos previstos no artigo 334° do CC;

9 - Deve ser negado provimento aos Recursos de Revista interpostos por ambas as Recorrentes, confírmando-se o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que havia já confirmado a Sentença proferida pelo Tribunal Judicial da ....

Termos em que, assim decidindo, e, julgando totalmente improcedentes os presentes Recursos de Revista, farão Vs. Exas. Venerandos Juízes Conselheiros do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, costumada JUSTIÇA.”

15. Por acórdão de 22 de junho de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:

Nos termos expostos, acorda-se:

a) em julgar procedente o recurso interposto pela 2.ª Ré/Recorrente - Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q. - e, por conseguinte,

b) revogar o acórdão recorrido,

c) considerando-se improcedentes a ação e as reconvenções, absolvendo-se ambas as Rés/Recorrentes - Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A., e Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q. – do pedido, e a Autora - Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda., Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda. - dos pedidos reconvencionais,

d) ficando prejudicado o conhecimento de todas as restantes questões suscitadas nos recursos interpostos.

Custas pela Recorrida.”

16. Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A., ao abrigo do disposto no art. 616.º, n.º 1, ex vi dos arts. 685 e 666.º, n.º 1, do CPC, veio requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, de forma subsidiária, porquanto, em sua opinião, sendo parte vencedora, fica, desde logo, dispensada desse pagamento.

17. Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda. – atualmente denominada como Flow Comércio de Produtos Ortopédicos, S.A. -,  veio requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça e, subsidiariamente, a sua redução.

18. Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q., por seu turno, veio também requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

19. A 1 de outubro de 2021, a Relatora remeteu os autos ao Digníssimo Representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça para que se pronunciasse sobre o requerido pelas partes quanto ao remanescente da taxa de justiça.

20. A 8 de outubro de 2021, o Digníssimo Representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no seguinte sentido:

(…)

A parte vencedora, quanto a nós, carece de legitimidade para requerer a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, pelo que o seu pedido deverá ser indeferido.

No processo de recurso para fixação de jurisprudência com o n.º 1118/16.3T8VRL-B.G1.S1 discute-se a questão de saber até quando deve ser admitido o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça. Nesse processo, já formulamos o parecer do M.ºP.º, no seguinte

sentido:

“O direito de pedir a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida, nas causas de valor superior a 275.000 euros, poderá ser exercido até à data do trânsito em julgado da decisão final”

A autora MAGNETOCARE formulou o seu pedido muito depois de ter transitado em julgado a decisão final, pelo que somos de parecer que tal pedido deverá ser indeferido, por ser extemporâneo

Não obstante e se assim se não entender.

Ao contrário do que afirmam as partes interessadas, as questões submetidas ao julgamento deste STJ são bastante complexas, sendo, por isso, que as RR juntaram três pareceres de três ilustres juristas de reconhecido mérito.

Por isso, parece-nos correto que, nesta instância, seja dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça na proporção de 80%.”


II – Questões a decidir

Estão em causa as questões de saber:

- no requerimento da 1.ª Ré LSREF3 Reo Mixed Portfolio, S.A., se esta, por ser parte vencedora, está ope legis dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça e, se assim não for, se deve ser dispensada desse pagamento pelo Tribunal;

- no requerimento da 2.ª Ré Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., se esta, por ser parte vencedora, está ope legis dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça e, se assim não for, se deve ser dispensada desse pagamento pelo Tribunal;

- no requerimento da Autora Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda. – atualmente denominada como Flow Comércio de Produtos Ortopédicos, S.A. -, se esta deve ser dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça ou, pelo menos, ver reduzido o respetivo montante.


III – Fundamentação

A) De Facto

De acordo com as alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foram dados como provados os seguintes factos:

“1. No dia 15.2.17 foi celebrada escritura pública de compra e venda entre a 1ª e a 2ª ré, tendo o ..., identificado em 2) e 5) sido vendido, por aquela a esta, por um milhão de euros - (anterior primeira alínea d)).

2. Em 19.4.12, a autora celebrou com a A..., S.A., um acordo que ambas designaram por “contrato de arrendamento não habitacional”, cujo teor se encontra discriminado a fls. 11 a 14 e, se dá por integralmente reproduzido, salientando-se que, a autora assumiu a posição de arrendatária de parte da fracção autónoma designada pelas letra ..., referente ao oitavo piso, ..., na parte destinada a escritórios, sito no prédio urbano designado por “AA”, sito no ..., ..., Lote ..., ..., descrito na CRP de ..., com o n° ... e inscrito na matriz predial respectiva da freguesia de ... sob o artº ... – (anterior alínea a)).

3. O acordo referido supra foi objecto de aditamento para revisão do valor da renda em 3.4.13 – (anterior alínea d)).

4. Em 1.2.16 a autora celebrou um acordo com o BB que as partes denominaram de “contrato de cedência temporária de espaço”, cujo teor, constante de fls. 15 vs. a 24, se dá por integralmente reproduzido – (anterior alínea c)).

5. Em 17.2.16, a autora celebrou com a A..., S.A., um acordo que ambas designaram por "contrato de arrendamento não habitacional", cujo teor se encontra discriminado a fls. 25 a 30 e, se dá por integralmente reproduzido, salientando-se que, a autora assumiu a posição de arrendatária de parte das frações autónomas designadas pelas letras "R", e “S”, referentes ao oitavo piso, letras A e B, na parte destinada a escritórios e de parte das frações "I, N, O e Q", referentes a lugares de estacionamentos, sitas no prédio urbano designado por "AA", sito no ..., ..., Lote ..., ..., descrito na CRP de ..., com o n° ... e inscrito na matriz predial respetiva da freguesia de ... sob o art° ... - (anterior alínea d)).

6. Neste último acordo, as partes apuseram uma cláusula, com o seguinte teor: “É celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato de arrendamento não habitacional, nos termos e condições seguintes, que revoga o contrato de arrendamento não habitacional actualmente em vigor entre as partes – (anterior alínea e)).

7. Do doc. fls. 42 verso a 43 verso, que damos por reproduzido, consta nomeadamente que em Fevereiro de 2016, aquando da aquisição do ... pela ré Portfolio, foi a autora notificada na qualidade de arrendatária [de parte da fracção autónoma identificada pela letra ... no ... nos termos do contrato de arrendamento para fim não habitacional datado de 19 de Abril de 2012, aditado em 3 de Abril de 2013], para exercer o direito de preferência na aquisição então escriturada por € 2. 333.700, tendo a autora decidido não exercer tal direito, pelo que o prédio em questão, veio a ser adquirido pela segunda ré (Portfolio) - (anterior alínea f)).

8. O doc. fls. 44 a 45, que damos por reproduzido, corporiza uma carta datada de 25.1.17 onde consta nomeadamente ter sido a autora notificada pela R. Portfolio, para exercer o seu direito de preferência, em virtude da perspectiva de alienação à ré Portfuel, do mesmo prédio pelo montante de um milhão de euros, fazendo-se referência ao contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado em 17 de Fevereiro de 2016 entre a A..., S.A. e a A. - (anterior alínea g)).

9. A autora comunicou à ré Portfolio a intenção de exercer tal direito (g) por e mail e por carta - (anterior alínea h)).

10. Alguns dias mais tarde, foi a autora notificada de que, outra arrendatária - R..., Ld-, havia exercido o seu direito de preferência pelo indicado valor de um milhão de euros e que era necessário proceder-se a licitação entre as titulares do direito, o que veio a suceder em 8.2.17 - (anterior alínea i)).

11. Na licitação, após vários lances, o prédio em causa foi adjudicado à R..., ..., por € 3 100 000 (três milhões e cem mil euros) – (anterior alínea j)).

12.A R... não compareceu à escritura de compra e venda designada para o dia 10.2.17 – (anterior alínea k)).

13. A ré Portfolio notificou a autora para exercer o seu direito pelo valor do seu último lance - três milhões e cinquenta mil euros – (anterior alínea l)).

14. Na missiva, datada de 3.2.17, enviada pela ré Portfolio à autora, à sociedade R... e à ré Portfuel, mencionada no ponto 10, consta o seguinte:

A escritura pública de compra e venda da totalidade do prédio será outorgada no dia 10.2.17, às 11 horas, na Rua..., ..., .... Caso o preferente comprador [R...] não compareça na hora e local indicados ou, comparecendo, não outorgue a escritura pública de compra e venda da totalidade do prédio, perderá o direito a concluir a transação, considerando-se então o outro preferente notificado para comparecer no dia 13.2.2017, às 11 horas, na Rua..., ..., ..., para outorgar a escritura pública de compra e venda da totalidade do prédio (...).

Por fim, caso o outro preferente também não compareça na hora e local indicados, a senhoria e a Portfuel, Lda - outorgarão a escritura pública de compra e venda da totalidade do prédio, nos termos indicados nas notificações, no dia 14.2.17, às 11 horas, na Rua..., ..." - (anterior alínea m)).

 15. A autora informou previamente a ré Portfolio de que não iria comparecer na ..., ..., ..., no dia 13.2.17, para realização de escritura nos moldes supra descritos, o que, efectivamente, veio a suceder – (anterior alínea d)).

16. No dia 15.2.17 foi celebrada escritura pública de compra e venda entre a 1.ª e a 2.ª ré, tendo o ..., identificado nos pontos n.ºs 2 e 5 sido vendido, por aquela a esta, por um milhão de euros - (anterior alínea o)).

17. As RR celebraram um CPCV junto como documento n° 3 com a contestação apresentada pela R. Mixed Portfolio, do qual resulta nomeadamente que:

(i) "No âmbito das negociações tendentes à venda do Imóvel, em 24 de Janeiro de 2017, a Ré Mixed Portfolio e a Ré Portfuel celebraram o CPCV, nos termos do qual a primeira prometeu a vender à segunda o Imóvel, tendo esta prometido comprá-lo (conforme resulta do DOC. 3 junto com a contestação da R. Portfolio)" - cfr. 113° da contestação apresentada pela Recorrente;

(ii) "De acordo com o CPCV, ficou definido que a escritura pública de compra e venda do Imóvel seria outorgada até ao dia 15 de Fevereiro de 2017, desde que a condição prevista na cláusula 4.1. fosse devidamente preenchida (cfr. cláusula 3.1.2 do CPCV) " - cfr. artigo 115oda contestação apresentada pela recorrente;

(iii) "As contraentes [leia-se as RR nesta ação] acordam e aceitam expressamente que a assinatura do contrato de compra e venda está sujeita à anterior renuncia, pelas entidades públicas e pelos arrendatários indicados no anexo 4.1, aos direitos de preferência sobre a compra e venda dos imóveis, ou ao não exercício desses direitos de preferência no prazo legal imperativo que for aplicável" — cfr. artigo 116° da contestação apresentada pela recorrente.

(iv) "do referido anexo 4.1 ao CPCV contavam como arrendatários: (i) a A., (ii) a R...-L.... ("R...") e (iii) a T..., S.A. (cfr. anexo 4.1. ao CPCV) " - cfr. artigo 117o da contestação da recorrente; "no CPCV ficou também definido que, na eventualidade de a R. Mixed Portfolio não cumprir a sua obrigação de celebrar o contrato de compra e venda do imóvel a R. Portfuel poderia exigir-lhe, no máximo, €400.000,00, correspondentes ao: (i) pagamento do sinal, ou seja, €200.000,00; e (ii) pagamento de uma indeminização correspondente ao montante pago a título de sinal, por danos emergentes e lucros cessantes (cfr. cláusula 7.3. do CPCV) " - cfr. artigo 122° da contestação da recorrente4 - (pretendido aditamento da alínea p)).

18. A fls. 8 mostra-se comprovado que, em 27.07.17 (dia da propositura da acção), a A. depositou um milhão de euros, correspondente ao valor da transmissão do imóvel em apreço documentada nos autos.”

B) De Direito

(I)legitimidade das Rés vencedoras para requerer a dispensa – ou a redução – do pagamento do remanescente da taxa de justiça

1. De acordo com o art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (doravante RCP), “(…) Nas causas de valor superior a € 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.

2. Segundo o art. 14.º, n.º 9, do RCP (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março), “Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º, o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta a final.”

O acórdão do Tribunal Constitucional n.° 615/2018 (Maria de Fátima Mata-Mouros), proferido no processo n.º 1200/17, do Tribunal Constitucional, publicado no D.R. n.º 4/2019, Série II, de 7 de janeiro de 2019, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade e sem voto de vencido, julgou inconstitucional a norma que impõe a obrigatoriedade de pagamento do remanescente da taxa de justiça ao réu que venceu totalmente o processo, obrigando-o a pedir o montante que pagou em sede de custas de parte, resultante do artigo 14.º, n.º 9, do RCP. De acordo com o art. 14.°, n.° 9, do RCP, na redação anterior à Lei n.º 27/2019, tanto o Autor como o Réu, que vencem integralmente uma causa de valor superior a € 275.000,00, tinham de suportar o valor do remanescente da taxa de justiça, o qual, depois de pago, entra em regra de custas de parte. No art. 14.º, n.º 9, do RCP, na versão então em vigor, o legislador implementou um mecanismo de transferência da responsabilidade individual dos sujeitos pelo pagamento das custas judiciais para as contrapartes vencedoras que apenas poderiam reavê-las em sede de custas de parte. O Tribunal Constitucional, distinguindo entre a posição do Autor e a do Réu que vencem integralmente a ação, considerou desproporcional, por falta de justificação ao nível do custo-benefício, exigir a quem não recorreu à justiça - nem dela procurou retirar qualquer benefício tendo sido absolvido da pretensão do Autor -, o pagamento de parte substancial dos seus custos. Entendeu que esta comprimia excessivamente o direito fundamental de acesso à justiça, impondo um ónus injustificado face ao interesse público em presença em violação do princípio da proporcionalidade.

3. Pelo menos do ponto de vista do Réu que venceu integralmente a causa, a solução afigura-se justa e não inverte o conceito firmado em processo civil sobre o impulso processual.

4. A Lei n.º 27/2019 veio eliminar a onerosa regra que determinava que a parte que obtivesse provimento total na ação judicial tinha, ainda assim, de responder solidariamente com a parte vencida pelo pagamento do valor remanescente da taxa de justiça.

5. Com a nova redação do art. 14.º, n.º 9, do RCP, o responsável pelo impulso processual, que não seja condenado a final, fica dispensado do pagamento do remanescente, mas esta quantia deverá ser considerada na conta final e imputada à parte vencida.

6. A parte vencedora não tem, pois, legitimidade para requerer a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, pelo que o seu pedido deverá ser indeferido.

Questão de saber, nas situações em que o juiz não o faça oficiosamente, até quando as partes podem requerer a dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente ao abrigo do art. 6.º , n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (doravante RCP).

1. A Autora Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda. formulou o seu pedido muito depois de ter transitado em julgado a decisão final. Com efeito, esta transitou a 8 de julho de 2021 e o requerimento foi apresentado a 31 de agosto de 2021.

2. No Supremo Tribunal de Justiça, manifestaram-se, a este propósito, várias posições: a) até ao trânsito em julgado da decisão final; b) até dez dias subsequentes ao trânsito em julgado da decisão; c) até à elaboração da conta de custas; d) no prazo da reclamação da conta de custas, nos termos do art. 31.º do RCP.

3. No processo de recurso para uniformização de jurisprudência n.º 1118/16.3T8VRL-B.G1.S1-A discutiu-se a questão de saber até quando deve ser admitido o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, no qual, a 10 de novembro de 2021, se uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

A preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo”.

4. Com efeito, conforme o acórdão de uniformização de jurisprudência mencionado supra:

- com a notificação da decisão final (que pôs termo ao processo), as partes ficam conhecedoras de que o juiz não exerceu o poder de dispensa do pagamento do remanescente da taxa. Ficam, por conseguinte, cientes de que o remanescente da taxa vai ser considerado na conta de custas, que terão de suportar. Daí que, querendo, devam agir prontamente, requerendo a respetiva dispensa (ou redução) de pagamento;

- pode dizer-se que, se o juiz nada disse a esse propósito, é porque entendeu que nada devia dizer, porque os pressupostos para a referida dispensa não estavam preenchidos;

- perante a omissão do juiz, as partes devem requerer a reforma da decisão quanto a custas. Este pedido esse de reforma deve ser feito no prazo de dez dias contado da notificação da sentença ou acórdão (art. 149.º, n.º 1, do CPC);

- decorrido o prazo de recurso ou de pedido de reforma da decisão judicial quanto a custas, as partes não podem, na reclamação da conta, impugnar, por exemplo, o vício daquela decisão, incluindo a sua desconformidade com a CRP;

- se as partes não requererem a sua reforma, a decisão quanto a custas transita (art. art. 619º, nº1 do CPC);

- a elaboração da conta sem a redução ou dispensa do pagamento da taxa de justiça é mera consequência da inobservância do ónus que impende sobre as partes de requerer tempestivamente a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça;

- a conta tem de ser elaborada, após o trânsito (no prazo de 10 dez dias após o trânsito em julgado da decisão final, conforme o art. 29.º, n.º 1, do RCP), em conformidade com a decisão final que for proferida nos autos (art. 30.º, n.º 1, do RCP)

- se as partes não reclamaram da eventual omissão do juiz quanto à dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, aram com as respetivas consequências;

- apesar de as partes poderem, no prazo de dez dias após serem notificadas da conta de custas, pedir a sua reforma ou dela reclamarem (art. 31.º, n.º 1, do  RCP), uma vez que a decisão do juiz quanto a custas, já transitada em julgado, não pode ser alterada;

- a reclamação da conta não pode recair sobre a não dispensa, pois que que não está em causa um erro do contador que o juiz deva dirimir;

- o art. 31.º, n.º 4, do RCP, não comporta a pronúncia do juiz (que é constitutiva) na tramitação da reclamação da conta, sobre a dispensa de uma taxa que a lei prevê e que, porque não foi dispensada aquando da prolação da decisão de custas, foi levada à conta;

- o juiz não pode, sequer, porque se lhe esgotou o poder jurisdicional (art. 613.º, n.º 1, do CPC), mandar reformar a conta quando tenha sido elaborada de acordo com a sua decisão;

- o mecanismo previsto no art. 3.1º do RCP, da reclamação da conta ou pedido de reforma da mesma não afeta negativamente a conclusão de que o momento preclusivo da faculdade de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça é o do trânsito em julgado da decisão do processo.

5. Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes acórdãos:

- de 3 de março de 2017 (José Raínho), proc. n.º 473/12.9TVLSB.C.L1.S1;

- de 13 de julho de 2017 (Lopes do Rego), proc. n.º 669/10.8TBGRDB.C1-S1;

- de 22 de maio de 2018 (Alexandre Reis), proc. n.º 5844/13.0TBBRG.P1.S1;

- de 24 de maio de 2018 (Rosa Tching), proc. n.º 1194/14;

- de 11 de outubro de 2018 (Olindo Geraldes), proc. n.º 103/13;

- de 8 de novembro de 2018 (Maria da Graça Trigo), proc. n.º 567/11;

- de 8 de novembro de 2018 (Helder Almeida), proc. n.º 4867/18.6TBOER-A.L2.S1;

- de 11 de dezembro de 2018 (Pinto de Almeida), proc. n.º 1286/14;

- de 31 de janeiro de 2019 (Tomé Gomes), proc. n.º 478/08.4TBASL.E1.S1;

- de 26 de fevereiro de 2019 (Henrique Araújo), proc. n.º 3791/14;

- de 26 de fevereiro de 2019 (Henrique Araújo), proc. 3791/14.8TBMTS-Q.P1.S1;

- de 4 de julho de 2019 (Maria do Rosário Morgado), proc. n.º 314/17;

- de 24 de outubro de 2019 (Pedro Lima Gonçalves), proc. n.º 1712/11;

- de 5 de junho de 2020 (António Magalhães), proc. n.º 302684/11;

- de 29 de setembro de 2020 (Fátima Gomes), proc. n.º 2553/09.9TBVCD.P1.S1;

- de 13 de outubro de 2020 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 767/14.9TBALQ-C.L1.S2;

- de 2 de junho de 2021 (Ferreira Lopes), incidente n.º 4140/16.6T8GMR.G2-A.S1.

6. Na verdade, via de regra, a prática de actos processuais, incluindo a daqueles previstos no RCP, está sujeita a prazos. A segurança, que é uma das exigências feitas ao Direito, pode conflituar com a ideia de justiça. Segurança e justiça encontram-se numa relação de tensão dialética. Em muitos casos, “a própria praticabilidade do Direito pode exigir que o valor segurança prevaleça sobre o valor justiça[1]”. Para  a segurança jurídica, que confere estabiliade e previsibilidade à tramitação processual, concorrem, inter alia, as normas que fixam prazos.

7. A segurança jurídica configura um elemento constitutivo do Estado de Direito, nos termos do art. 2.º da CRP.

8. Esses prazos têm a natureza preclusiva prevista no art. 139.º, n.º  3 do, do CPC.

9. Conforme o art. 29.º,  n.º 1, do RCP, "A conta de custas é elaborada pela secretaria do tribunal que funcionou em 1.ª instância no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão final”.

10. Essa “conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da acção, dos incidentes, dos procedimentos e dos recursos”,  segundo o art. 30.º, n.º 1, do RCP.

11. Se assim não suceder, ou seja, se a conta não obedecer ao julgado, contiver erros de cálculo ou violar disposições legais, dela cabe reclamação nos termos do art. 31.º, n.° 2, do RCP.

12. Não constitui fundamento da reclamação da conta de custas a pretensão de dispensa do remanescente da taxa de justiça em apreço, pois que essa dispensa não depende do contador.

13. O mecanismo adequado ao fim pretendido pela Requerente é o recurso, quando couber recurso da decisão, ou a reforma da mesma decisão quanto a custas, nos termos dos arts. 616.º, n.os 1 e 3, do CPC.

14. Com efeito, conforme mencionado supra, a parte, notificada da decisão que põe termo ao processo, está em condições, por dispor de todos os elementos necessários, de solicitar a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, pois que sabe, de antemão, qual a taxa de justiça que será devida e incluída na conta de custas, uma vez que essa taxa de justiça tem necessariamente por referência o valor da ação e a tabela I-A anexa ao RCP.

15. Está igualmente em causa o respeito pelo princípio da economia e utilidade dos actos processuais, plasmado no art. 130.º, do  CPC, porquanto sendo a conta de custas elaborada apenas após o trânsito da decisão final (art. 29.º, n.º 1, do RCP), a sua elaboração traduzir-se-ia num ato inútil na sequência de requerimento da parte que o poderia e deveria ter apresentado antes da sua realização.

16. O Supremo Tribunal de Justiça, com base no princípio da economia e utilidade dos atos processuais, tem entendido que o pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça deve ser feito em momento anterior à elaboração da conta de custas[2].

17. Não tendo a Requerente formulado, até ao trânsito em julgado da decisão final, o respetivo requerimento, como que deixou precludir esse “ónus” ou “faculdade”, perdendo-a. Da sua conduta resultou a inadmissibilidade da prática do ato precludido.

18. Seguindo a jurisprudência dominante, o momento próprio para o juiz proceder à avaliação dos pressupostos previstos no art. 6.º, n.º 7, do RCP, é o da prolação da sentença ou do acórdão, oficiosamente, ou antes do trânsito em julgado da decisão, por via do pedido de reforma nos termos dos arts 616.º, n.os 1 e 3, 666.º, n.º 1, e 679.º, do CPC[3].

19. Refere a Requerente que o Tribunal não se pronunciou, na decisão, sobre a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

20. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, conforme mencionado supra, entende-se que o Tribunal decidiu sobre a dispensa da taxa de justiça porque “a dispensa do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do art. 6º, nº 7, do RCP, decorre de uma decisão constitutiva proferida pelo juiz, podendo naturalmente inferir-se - se nada se disser sobre esta matéria na parte da sentença atinente à responsabilidade pelas custas - que os pressupostos de que dependeria tal dispensa não se consideraram verificados, sendo consequentemente previsível para a parte, total ou parcialmente vencida, que a conta de custas a elaborar não contemplará seguramente essa dispensa[4].

21. Fica, assim, prejudicada a apreciação da (des)proporcionalidade da exigência do pagamento da totalidade das taxas de justiça devidas perante o serviço de administração da justiça prestado no caso em apreço, ou seja, não se analisa a questão da (in)verificação dos requisitos previstos no art. 6.º, n.º 7, do CRP..

22. É que está em causa a apreciação da (in)tempestividade do pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça.

Inconstitucionalidade ou não da norma do art. 6.º, n.º 7, do RCP, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, apresentado após a elaboração da conta de custas

1. Importa, ainda, apreciar se a interpretação do art. 6.º, n.º 7, do RCP, ora preconizada, se encontra ferida de inconstitucionalidade material.

2. Seguindo de perto a jurisprudência do Tribunal Constitucional constante do Acórdão nº 527/2016, de 4 de outubro de 2016[5]:

“Não se trata, aqui, de saber se é (ou deve ser) possível a redução do valor da taxa de justiça a pagar por via da dispensa ou redução do pagamento do remanescente, a final. Essa possibilidade, para além de resultar, de forma inequívoca, da redacção actual do nº 7 do artigo 6º do RCP, não foi negada à Autora por não existir base legal correspondente. (…) O eixo da discussão centra-se, assim, no efeito preclusivo daquela pretensão associado ao momento da elaboração da conta, tratando-se, agora, de saber se estamos perante um ónus processual proporcionado e compatível com um processo justo, apto a proporcionar a tutela efectiva dos direitos das partes que a ele recorrem.

(…)

Trata-se, em suma, de verificar se o ónus imposto à parte – ou seja apresentar o requerimento de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do nº7 do artigo 6º do RCP – revela adequação funcional e respeito pela regra da proporcionalidade, uma vez que resultam “[…] constitucionalmente censuráveis os obstáculos que dificultam ou prejudicam, arbitrariamente ou de modo desproporcionado, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva […] (Acórdão nº774/2014). O requisito da adequação funcional visa, precisamente, evitar a imposição de exigências puramente formais, impostas arbitrariamente e destituídas de qualquer sentido útil e razoável.

(…)

2.2.3. É evidente o interesse na fixação de um momento preclusivo para o exercício da faculdade de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça: sem tal fixação, a conta do processo não assumiria carácter definitivo, ficando como que suspensa de um comportamento eventual do destinatário da obrigação de custas não referenciado no tempo. Assim a previsão de um limite temporal para o exercício daquela faculdade não se mostra arbitrária, sendo útil para a realização dos fins de boa cobrança da taxa de justiça. Deve, então, apreciar-se se é excessiva ou de algum modo desproporcionada a fixação de tal efeito momento da elaboração da conta.

Ao contrário do que a Recorrente procurou sustentar, não se reconhece particular dificuldade na satisfação do ónus de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça em momento anterior ao da elaboração da conta, nem a parte vê negado o acesso ao juiz, pois pode – em tempo – suscitar a apreciação jurisdicional da sua pretensão.

Não causa dúvida que a interpretação afirmada na decisão recorrida é, genericamente, coerente com a sucessão de atos do processo: a decisão final é proferida; depois transita em julgado; após o trânsito em julgado, o processo é contado; a conta é notificada às partes, que dela podem reclamar.

Independentemente de qual seja a melhor interpretação do direito infraconstitucional (matéria sobre a qual não cabe ao Tribunal Constitucional emitir pronúncia), a fixação do apontado efeito preclusivo no momento em que o processo é contado tem coerência lógica com o processado (na medida em que a conta deverá refletir a referida dispensa), ou seja – para o que ora interessa apreciar – não se trata de um efeito que surpreenda pelo seu posicionamento na marcha processual.

Por outro lado, respeitando a interpretação afirmada na decisão recorrida, a parte dispõe de um prazo indiscutivelmente razoável para exercer a faculdade de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça (que se exprime através de uma declaração que não carece de fundamentação complexa – v., in casu, fls. 78) (…) Na verdade, pelo menos após a prolação da decisão final, a parte dispõe de todos os dados de facto necessários ao exato conhecimento prévio das quantias em causa: sabe o valor da causa, a repartição das custas e o valor da taxa de justiça previsto na tabela I do RCP, por referência ao valor da ação.

(…)

Acresce que a gravidade da consequência do incumprimento do ónus – que consiste na elaboração da conta sem a redução ou dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça – é ajustada ao comportamento omitido. Não se vê, aliás, que pudesse ser outra: se a parte não deduziu o pedido correspondente, a conta é elaborada nos termos gerais decorrentes da tabela legal.

Não se trata, ao contrário do que a Recorrente alega, de um resultado implícito, “não discernível” a partir do texto da lei. Desde logo, a própria redação do preceito (“[…] o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se…”) – independentemente da melhor interpretação no plano infraconstitucional, aspeto do qual, insiste-se, não cabe cuidar – é indubitavelmente compatível com o sentido afirmado na decisão recorrida, não gerando qualquer desconformidade que suporte a afirmação de um caráter surpreendente do resultado interpretativo.

Ademais, pela aplicação da norma em causa, a parte não fica impedida de “[…] sindicar a legalidade do ato de liquidação operado pela secretaria” nem se vê privada de “[…] questionar a adequação das quantias efetivamente liquidadas às concretas especificidades do processo”, como vem alegado pela Recorrente. Na verdade, se a conta não refletir adequadamente a condenação que a suporta ou não calcular corretamente o valor da taxa de justiça previsto na tabela legal, a parte pode dela reclamar nos termos do artigo 31.º do RCP. Simplesmente, o valor da taxa de justiça correto, para estes efeitos, será considerado na íntegra caso a parte não tenha, em tempo, deduzido o pedido de dispensa ou redução respetivo.

2.2.4. Cumpre referir, ainda, que – tal como a decisão recorrida evidencia – pese embora a discussão que vinha sendo mantida na jurisprudência, a interpretação em causa já havia sido afirmada em outras decisões, pelo que a Autora, agindo com a diligência devida e ponderando as correntes jurisprudenciais, podia e devia ter contado com a interpretação afirmada pelo tribunal de primeira instância e confirmada pelo Tribunal da Relação.

Aliás, a orientação da decisão recorrida corresponde, precisamente, àquela que o próprio Tribunal Constitucional tem seguido, como, justamente, foi observado pelo Ministério Público nas suas contra-alegações. Assim, tem vindo a ser decidido, uniformemente, que a reclamação da conta não é meio adequado a fazer valer uma isenção, já que tal meio processual se destina unicamente a reagir à elaboração irregular da conta, não sendo esse o caso quando ela se mostra conforme à decisão condenatória e à lei (cfr. Acórdãos n.ºs 60/2016, 211/2013, 104/13 e 83/2013, entre muitos outros), raciocínio que, por identidade de razão, vale para o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Assim, a interpretação normativa questionada pela Recorrente não traduz qualquer “ónus processual oculto” ou (nas suas palavras) uma “armadilha processual” com a qual a parte não podia contar.

As razões que antecedem permitem concluir que a norma extraída do n.º 7 do artigo 6.º do RCP, introduzido pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça apresentado no processo, pela parte que dele pretende beneficiar, após a elaboração da conta de custas, não viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva, designadamente na dimensão de garantia de um processo justo, nem se vê que interfira com qualquer outro parâmetro constitucional, o que conduz à improcedência do recurso”.

3. Afasta-se, assim, qualquer juízo de inconstitucionalidade do efeito preclusivo do pedido de dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente associado ao momento da elaboração da conta.

4. Na verdade, um tal juízo de conformidade com a Constituição da interpretação acolhida no acórdão recorrido quanto à norma plasmada no art. 6.º, n.º 7, do RCP, não pode ficar dependente de eventual “manifesta desproporcionalidade” entre a taxa de justiça devida e o serviço prestado, sendo-lhe prévio. De facto, de outro modo, o juízo de (in)constitucionalidade quanto ao efeito preclusivo da não apresentação de requerimento pedindo a dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente ficaria dependente do concreto valor de que a parte se passaria a constituir devedora, de se entender que tal valor constituiria “manifesta desproporcionalidade” entre a taxa de justiça devida e o serviço prestado e do subjetivismo necessariamente inerente a um tal juízo.

5. O juízo de conformidade com a Constituição não pode ficar dependente de uma avaliação casuística (e sempre subjetiva) quanto ao que será uma “manifesta desproporcionalidade” entre a taxa de justiça devida e o serviço efetivamente prestado no processo e, por isso, constitucionalmente inadmissível, sob pena de juízos de (in)constitucionalidade redundarem em subjetivismo, incerteza e insegurança jurídicas, resultado, este sim, constitucionalmente inadmissível.

6. Deste modo, a preclusão do “ónus” ou “faculdade” de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art. 6.º, n.º 7, do RCP, não enferma de inconstitucionalidade material (independentemente do valor de que a parte se venha a constituir devedora). É que, verificando-se uma desproporção entre a taxa de justiça devida e o serviço prestado, apenas à parte é imputável, por não ter requerido oportunamente a dispensa de pagamento, conforme poderia (por ter ao seu dispor todos os elementos para o efeito necessários) e deveria ter feito.

7. Na redação do art. 6.º, n.º 7, do RCP, o legislador não estabeleceu qualquer disciplina desadequada aos fins do processo ou desproporcionada por via de obstáculos que dificultem ou prejudiquem de forma arbitrária o acesso à justiça, já que prevê um “ónus” processual (como tantos outros existentes) que deixa ao dispor da parte a possibilidade da taxa de justiça ser reconduzida ao dispêndio judiciário e garantindo, por essa via, a exclusão da desproporção entre ambas.

8. Deste modo,

- a interpretação dos arts. 152.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2 do CPC, e 6.º, n.º 7 do RCP, no sentido de o Tribunal não ter de conhecer, mesmo oficiosamente, a (des)proporcionalidade entre o montante da taxa de justiça e a atividade jurisdicional desenvolvida, no caso de o pedido de dispensa do remanescente ser considerado, nos termos do art. 6.º, n.º 7 do RCP, extemporâneo, não é inconstitucional por violação do direito fundamental de acesso aos Tribunais e ao Direito, a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, consagrados no art. 20.º da CRP, conjugados com o princípio da proporcionalidade e com as exigências do Estado de Direito, decorrentes dos arts. 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, e 266.º, n.º 2 da CRP;

- do mesmo modo, a interpretação do art. 6.º, n.º 7 do RCP no sentido de que o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça deve ser deduzido em recurso ou reclamação da decisão final do processo, sob pena de não poder ser conhecido subsequentemente pelo Tribunal, não é inconstitucional por violação do direito fundamental de acesso aos Tribunais e ao Direito, a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, consagrados no ar. 20.º da CRP, conjugados com o princípio da proporcionalidade e com as exigências do Estado de Direito, decorrentes dos arts. 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, e 266.º, n.º 2, da CRP;

- não se trata de interpretar o art. 6.º, n.º 1, do RCP, e a Tabela I no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao Tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcional do montante devido a este título. Está, por isso, arredada a apreciação de qualquer inconstitucionalidade por violação do direito fundamental de acesso aos Tribunais e ao Direito, a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, consagrados no artigo 20.º da CRP, conjugados com o princípio da proporcionalidade e com as exigências do Estado de Direito, decorrentes dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 2.ª parte, e 266.º, n.º 2, da CRP. A norma observada pelo Tribunal, na decisão do caso concreto, nunca poderá corresponder a uma determinação da taxa de justiça exclusivamente em função do valor da casa, pois admite-se expressamente que podia ter existido um pedido de dispensa ou redução, desde que tempestivamente apresentado.

9. Por último, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 228/2018, de 2 de maio de 2018.

10. Conforme o acórdão n.º 228/2018 do Tribunal Constitucional:

IV – As questões do presente recurso não foram objeto de decisão no acórdão nº 527/2016 do Tribunal Constitucional, em termos que determinem o não conhecimento do objeto do recurso

40. O conhecimento do objeto de recurso é também exigido pelo facto de as questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Reclamante serem distintas da questão que foi decidida pelo Acórdão nº 527/2016, em que o Tribunal Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, apresentado após a elaboração da conta de custas.

(…)

57. Nada melhor do que citar (muito respeitosamente) as certeiras palavras do Exmº Senhor Juiz Conselheiro Relator, no acórdão nº 527/2016, de 4 de outubro de 2016:

− “a norma supra indicada, cuja inconstitucionalidade a Autora pretende ver apreciada, só poderia constituir ratio decidendi de uma decisão que se pronunciasse sobre o “se” da redução das custas por via da dispensa (ou redução) do pagamento do remanescente da taxa de justiça. No entanto, a decisão recorrida pronuncia-se unicamente sobre a questão prévia e formal do “quando” da dedução da respetiva pretensão.”

(…)

66. Ou seja, o STJ cita jurisprudência bem recente, contrária ao Acórdão nº 527/2016, deste Tribunal Constitucional, no sentido de que, após a elaboração da conta, o Tribunal pode e deve corrigir situações de desproporção flagrante, entre a atividade jurisdicional desenvolvida e o volume da taxa de justiça − o que é bem elucidativo, quanto à insegurança total que grassa, nesta matéria, em que uma lei pouco clara associada a uma jurisprudência (inexplicavelmente) estrita, constituem uma verdadeira “armadilha”, para todos os que acedem aos Tribunais.”

23. Em conformidade com o acórdão do TC n.º 527/16, “Não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça apresentado no processo, pela parte que dele pretende beneficiar, após a elaboração da conta de custas”.

24. A discordância com o mecanismo que o legislador considerou como adequado para fazer valer um direito não significa falta de tutela efetiva desse direito, negação do acesso à justiça ou adoção de solução desproporcionada

25. Por isso, deve o pedido em apreço ser indeferido, por ser extemporâneo.

 

IV – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em indeferir as reclamações apresentadas por Magnetocare, Comércio de Produtos Ortopédicos, Lda. – atualmente denominada como Flow Comércio de Produtos Ortopédicos, S.A. -, Lsref3 Reo Mixed Portfolio, S.A., e Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda., S.Q.


Custas pelas partes.


Lisboa, 30 de novembro de 2021.


Sumário: 1.  A Lei n.º 27/2019 veio eliminar a regra que determinava que a parte que obtivesse provimento total na ação judicial tinha, ainda assim, de responder solidariamente com a parte vencida pelo pagamento do valor remanescente da taxa de justiça. Com a nova redação do art. 14.º, n.º 9, do RCP, o responsável pelo impulso processual, que não seja condenado a final, fica dispensado do pagamento do remanescente, mas esta quantia deverá ser considerada na conta final e imputada à parte vencida. A parte vencedora não tem, por conseguinte, legitimidade para requerer a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça. A dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ou a sua redução, deve requerida até ao trânsito em julgado da decisão final do processo. Via de regra, a prática de actos processuais, incluindo a daqueles previstos no RCP, está sujeita a prazos. Para  a segurança jurídica, que confere estabiliade e previsibilidade à tramitação processual, concorrem as normas que fixam prazos. Não o fazendo até ao trânsito em julgado da decisão final, deixa precludir esse “ónus” ou “faculdade”, perdendo-a. Fica, assim, prejudicada a apreciação da (des)proporcionalidade da exigência do pagamento da totalidade das taxas de justiça devidas perante o serviço de administração da justiça prestado. Afasta-se qualquer juízo de inconstitucionalidade do efeito preclusivo do pedido de dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente associado ao trânsito em julgado da decisão final. A preclusão do “ónus” ou “faculdade” de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art. 6.º, n.º 7, do RCP, não enferma de inconstitucionalidade material (independentemente do valor de que a parte se venha a constituir devedora).


Maria João Vaz Tomé (relatora)

António Magalhães

Fernando Jorge Dias

_______

[1] Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.56.
[2] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de junho de 2020 (António Magalhães), Proc. n.º 302684/11.6YIPRT-A.L1.S2; de 11 de dezembro de 2018 (Pinto de Almeida), Proc. n.º 1286/14.9TVLSB-A.L1.S2;  de 8 de novembro de 2018 (Maria da Graça Trigo), proc. 567/11.8TVLSB.L1.S2; de 4 de julho de 2019 (Maria do Rosário Morgado), proc. n.º 314/07.9TBALR-E.E1.S1; de 3 de outubro de 2017 (José Rainho), proc. n.º 473/12.9TVLSB-C.L1.S1; de 26 de fevereiro de 2019 (Henrique Araújo), proc. n.º 3791/14.8TBMTS-Q.P1.S2..
Esta é também a posição da doutrina. Cfr. Salvador da Costa, textos de 15 de julho de 2019 e de 25 de outubro de 2019, in Blog do IPPC de Miguel Teixeira de Sousa.
[3] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de outubro de 2017 (José Rainho), proc. n.º 473/12.9TVLSB-C.L1.S1; 13 de julho de 2017 (Lopes do Rego), Proc. 669/10.8TBGRD-B.C1.S1; de 24 de maio de 2018 (Rosa Tching), Proc. 1194/14.3TVLSB.L1.S2; de 5 de junho de 2020 (António Magalhães), Proc. n.º 302684/11.6YIPRT-A.L1.S2. Esta é também a posição da doutrina. Cfr. Salvador da Costa, textos de 15 de julho de 2019 e de 25 de outubro de 2019, in Blog do IPPC de Miguel Teixeira de Sousa, na senda do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de fevereiro de 2019,in CJ, XXVII, Tomo 1, p. 94.
[4] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de outubro de 2017 (José Rainho), proc. n.º 473/12.9TVLSB-C.L1.S1; 13 de julho de 2017 (Lopes do Rego), Proc. 669/10.8TBGRD-B.C1.S1; de 5 de junho de 2020 (António Magalhães), Proc. n.º 302684/11.6YIPRT-A.L1.S2.
[5] Disponível para consulta in www.tribunalconstitucional.pt.