CAUSA DE PEDIR
ARTICULADO DE APERFEIÇOAMENTO
CONTRATOS SIMULADOS
PEDIDOS SUBSIDIÁRIOS
Sumário

I - Numa decisão que versa apenas sobre direito processual, o substrato que constitui a premissa menor da decisão corresponde exclusivamente ao conteúdo de diversos actos processuais e a sua invocação basta-se com a descrição das peças e seu teor, designadamente no relatório da decisão, sem que se torne necessário o respectivo elenco como se de factos se tratassem.
II - Constitui diferente causa de pedir, inadmissível se oferecida em articulado de aperfeiçoamento, uma sucessão de contratos arguidos de simulados, por referência à causa de pedir invocada na petição inicial, que correspondia apenas a um contrato relativamente ao qual apenas uma cláusula era apontada como simulada. Nessa hipótese, o articulado de aperfeiçoamento não pode ser considerado.
III - Apesar de ser admissível o prosseguimento da acção para conhecimento de pedidos subsidiários em caso de absolvição da instância quanto ao pedido principal, esse conhecimento pode ter-se por prejudicado se a improcedência desse pedido principal constituir um antecedente lógico do conhecimento dos pedidos subsidiários.

Texto Integral

Proc. nº 1585/19.3T8PVZ.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 4

Rel. nº 621
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

B… intentou a presente acção contra C… e “D…, Lda.”, alegando que se encontra pendente um processo executivo para pagamento de quantia certa no qual figura na qualidade de exequente e a 1ª ré na qualidade de executada, no qual nomeou à penhora o prédio urbano descrito sob o nº 7234/20100302 da freguesia …, cujo registo foi lavrado como provisório por natureza. Nesse processo, notificada para o efeito, a aqui 2ª ré declarou que o prédio é sua propriedade, constando a seu favor reserva de propriedade que se mantém. Foi, então, ali proferido despacho suspendendo a execução quanto ao imóvel e remetendo as partes para os meios comuns, quanto à prova do modo pelo qual foi adquirida a sua propriedade. Afirma, porém, que a alegada reserva de propriedade que impediu o prosseguimento da execução sobre aquele imóvel se funda em negócio simulado, já que o negócio entre as aqui rés teve em vista frustrar as expectativas dos credores da 1ª ré, colocando o seu único bem a salvo de penhoras. Com efeito, a ré C… faz saber a todos que o imóvel é seu, enquanto familiares da representante legal da 2ª ré propalam que financiaram a 1ª ré em cerca de 20.000,00 € para pagamento de dívidas, constituindo a reserva de propriedade uma garantia do pagamento do valor mutuado. Daí propor a presente acção, pretendendo:
a) a declaração de nulidade da reserva de propriedade inscrita a favor da ré “D…, Lda.”, antes “E…, Unipessoal, Lda.”;
b) o cancelamento do registo da reserva que incide sobre o bem descrito no artigo 4º da petição;
Caso assim não se entenda,
c) a condenação da ré C… a cumprir a eventual obrigação que sobre ela impende em resultado do negócio jurídico celebrado com a ré “D…, Lda”, sob pena de, não cumprindo tal obrigação, a autora ficar sub-rogada na sua posição;
d) a condenação da ré “D…, Lda.” a emitir declaração de extinção de reserva da propriedade.
A 2ª ré contestou, impugnando a alegação.
Convidada a aperfeiçoar o seu articulado, para identificar o negócio jurídico no qual se insere a reserva de propriedade que enfermaria do vício invocado e para alegar os concretos factos com base nos quais conclui pela existência de simulação, a autora acatou tal convite.
Em novo articulado, veio então alegar que as rés acordaram entre si celebrar um contrato, com a aparência de uma compra e venda do prédio urbano em causa, pelo preço de 100.000,00 €, do qual a 2ª ré declarou ter recebido 80.000,00 €, reservando para si a propriedade do mesmo até que fossem pagos os restantes 20.000,00 €. Porém, o prédio nunca deixou de pertencer à 1ª ré, pois que embora da escritura de compra e venda conste que a 2ª ré, dita vendedora, era a dona do prédio e a 1ª ré a compradora, o prédio nunca foi efetivamente adquirido por aquela, tendo havido conluio entre ambas no sentido de o prédio ficar a salvo dos credores. As partes contratantes não quiseram comprar nem vender, a 1ª ré não pagou à 2ª ré a parte do preço declarado (80.000,00 €) e o valor de 20.000,00 € não é, como declarado, o restante do preço, mas o valor de uma dívida da 1ª ré. Assim, sob a capa do negócio de compra e venda com reserva de propriedade alberga-se um outro que foi verdadeiramente querido pelas partes: um contrato de mútuo no valor de 20.000,00€. Por isso, o referido contrato de compra e venda com reserva de propriedade, sendo simulado, é nulo.
Para além disso alega que no referido escrito a 2ª ré fez constar que o prédio em causa se encontrava, então, registado a seu favor, verificando-se que por escrito de compra e venda datado de 2 de Março de 2010, F…, gerente da sociedade “G…, Lda.”, declarou vender à 2ª ré, pelo preço de 150.000,00 € o identificado imóvel. O referido F… era pessoa da confiança da 1ª ré e a quem a 2ª ré recorria e recorre para pedir dinheiro emprestado. Como desse escrito resulta, o prédio encontrava-se registado em nome da alegada vendedora. Por seu lado, a dita vendedora “G…” procedeu ao registo de aquisição do prédio por “compra” à 1ª ré.
Alega ainda que o imóvel nunca deixou de ser pertença da 1ª ré que o adquiriu por herança de seus pais, acabando formalmente titulado pela 2ª ré para se manter a salvo dos credores, para tal contando, primeiro, com a colaboração do referido F… e, posteriormente, com a da sócia gente da 2ª ré, H….
A 1ª ré exerceu o contraditório quanto a este articulado, impugnando o alegado e rejeitando a ocorrência de qualquer negócio simulado.
Apreciando o articulado de aperfeiçoamento, o tribunal proferiu decisão que considerou inadmissíveis as alegações constantes do articulado dito de aperfeiçoamento, por comportar o que foi classificado como uma alteração da causa de pedir, perante a circunstância de agora se invocar e pretender não só a declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato de compra e venda, mas a nulidade do próprio contrato, bem como de outros que o precederam.
Para além disso, na mesma decisão, foi dada por verificada a falta de interesse em agir da autora, no tocante à mera pretensão de nulidade da cláusula de reserva de propriedade, por esta se inserir num negócio que seria inteiramente nulo, mas do que apenas decorreria a sediação da propriedade do prédio na esfera patrimonial da 2ª ré, onde a autora jamais o poderia executar. Por fim, considerou prejudicada a possibilidade de apreciação do pedido subsidiário, face aos fundamentos do não conhecimento do pedido principal.
Em conclusão, o tribunal absolveu as rés da instância, quanto ao pedido principal, e considerou prejudicada a apreciação dos pedidos subsidiários.

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É desta decisão que a autora vem interpor recurso, bem como de outra que indeferira uma nulidade que havia invocado sobre um anterior despacho, concluindo conforma se passa a transcrever:
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A 1ª ré ofereceu resposta ao recurso, defendendo a confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, tendo o tribunal a quo rejeitado o reconhecimento da nulidade arguida.
Recebido neste TRP, cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC).
No caso, as questões traduzem-se no seguinte:
- aferir da nulidade do despacho de 9/2/2021 e, sendo caso disso, dos subsequentes efeitos para a causa;
- aferir da nulidade da decisão recorrida, por não compreender uma especificação dos factos tidos por provados, que constituam o seu fundamento;
- aferir se o conteúdo do articulado de aperfeiçoamento da p.i. consunstancia uma alteração da causa de pedir;
- apreciar o interesse em agir da autora, no âmbito do articulado inicial, sendo caso disso;
- verificar a pertinência do prosseguimento da causa, para apreciação dos pedido subsidiário.
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Para a apreciação destas questões é útil ter presente o conteúdo de diferentes actos processuais que integram os presentes autos e que, como referiremos infra, consubstanciam, no caso, a premissa menor – o mesmo é dizer-se o substrato material – da decisão.
Entre estes, e passando de imediato à apreciação da primeira questão, é útil ter presente o teor do despacho de 9/2/2021, relativamente ao qual a autora arguiu uma nulidade, em termos que não mereceram provimento junto do tribunal recorrido, cuja decisão cumpre aqui reapreciar por a autora também a ter incluído no objecto deste recurso.
Na parte que releva, esse despacho traduz-se no seguinte:
“Efectivamente, a autora peticiona, a título principal, a declaração de nulidade da reserva de propriedade inscrita a favor da 2ª ré e que incide sobre o prédio urbano penhorado na acção executiva que instaurou contra a 1ª ré, bem como o cancelamento do respectivo registo.
Para alicerçar esse pedido refere que “a alegada reserva de propriedade se funda em negócio simulado”. Convidada a aperfeiçoar a sua petição mediante a alegação do concreto negócio que alega ser simulado e dos concretos factos com base nos quais conclui que esse negócio é simulado, a autora esclareceu que está em causa uma escritura pública de compra e venda outorgada entre a 1ª e a 2ª ré em 04.03.2013, pela qual a 2ª ré declarou vender à 1ª ré, que por sua vez declarou comprar-lhe, o prédio urbano que a autora logrou penhorar no âmbito da acção executiva que intentou contra a 1ª ré, compra e venda essa que prevê a reserva de propriedade do prédio a favor da 2ª ré até ao pagamento do remanescente do respectivo preço, no montante de 20.000,00 €. (…)
Ora, a considerar-se esse negócio jurídico de compra e venda simulado (e apenas sobre esse concreto negócio jurídico versa a causa de pedir), a consequência que necessariamente se retirará dessa simulação não se cingirá à nulidade da cláusula de reserva de propriedade nele prevista mas à nulidade de todo o contrato (tal como aliás a autora reconhece no artigo 11º do seu articulado de aperfeiçoamento), com o consequente regresso do prédio à titularidade da 2ª ré, não podendo a execução intentada pela autora contra a 1ª ré prosseguir relativamente ao mesmo, ou seja, não se vislumbrando que interesse possa a autora ter nesse desfecho.
Por outro lado, pondera ainda o tribunal conhecer imediatamente do pedido subsidiário formulado pela autora, julgando o mesmo improcedente, na medida em que a 1ª ré não é credora da 2ª ré mas sua devedora, não sendo aqui aplicável o disposto no art.º 606 do CC.
Tratando-se de questões novas não abordadas pelas partes nos respectivos articulados, das quais o tribunal apenas se apercebeu no decurso da elaboração do despacho saneador, concede-se ás mesmas um prazo de 10 dias para, querendo, sobre ela se pronunciarem, sem prejuízo de se manter a dispensa de realização de audiência prévia.”
Foi quanto à referência neste despacho, à penhora do prédio em causa, que a autora arguiu uma nulidade, nos seguintes termos:
“Não tendo a aqui autora logrado penhora o prédio urbano em causa, o despacho judicial em referência assenta sobre um não facto – «o prédio urbano que a autora logrou penhorar no âmbito da ação executiva que intentou contra a 1ª ré.»
Encontra-se, por isso, o despacho em apreço eivado de nulidade que aqui se deixa arguida para todos os efeitos legais– artigos 200º, nº 3 e 201º do CPC.”
É, porém, evidente que não se verifica qualquer nulidade, o que, desde logo, impossibilitou a autora de a especificar, tornando, assim, essa arguição um exercício sem qualquer conteúdo.
O problema refere-se à referenciação do prédio em questão, naquele despacho: o tribunal, para o referir, menciona-o como “o prédio urbano que a autora logrou penhorar”, mas a autora considera que não logrou penhorá-lo, pois que a execução foi suspensa quanto a ele, por causa da reserva de propriedade que motiva a discussão da situação, nestes autos.
Acontece, porém, que fosse correcta ou incorrecta a afirmação de que a autora logrou penhorar o prédio, isso sempre seria absolutamente indiferente para os actos que se seguiram (a pronúncia sobre as questões descritas no despacho e a sua ulterior solução), de forma alguma condicionando a prática de qualquer acto processual e influenciando o exame ou decisão da causa. Por isso, nos termos do art. 195º, nº 1 do CPC, jamais se poderia identificar aqui qualquer nulidade.
Mas nem a uma questão de mérito do despacho se poderia reconduzir uma eventual incorrecção na referenciação do prédio, como penhorado a requerimento da autora: é que tal despacho nada decidiu, designadamente quanto à circunstância de ter havido ou não penhora, ou quanto a qualquer outra questão: limitou-se a convidar as partes a pronunciarem-se sobre questões ali identificadas, ao que os termos de referenciação do prédio são indiferentes.
Por fim, resta afirmar que nem sequer é incorrecta a referenciação do prédio em causa como “o prédio urbano que a autora logrou penhorar”. É que a penhora foi executada, e registada como provisória por natureza (cfr. doc. de fls. 14,v.), sem prejuízo do que sucedeu a seguir, em razão da reserva de propriedade que relativamente a tal prédio se encontrava registada. Por isso, nenhum erro se verifica na designação daquele prédio, ao que acresce que nenhuma dúvida se verifica, também, em relação ao que sucedeu depois: a execução foi suspensa quanto ao mesmo imóvel, devendo discutir-se noutros autos a respectiva titularidade.
Por conseguinte, afirmar, como o faz a autora, que não logrou aquela penhora, querendo com isso significar que ela não evoluiu para registo definitivo nem a execução prosseguiu quanto ao prédio, é, na verdade, indiferente para a o objecto do processo: sendo verdade, é-o tanto quanto a afirmação de que, num primeiro momento, a autora logrou a penhora provisória por natureza desse mesmo prédio. E isso é tão mais irrelevante quanto se atente em que a questão colocada pela apelante se reduz à mera referenciação, no texto do despacho, do prédio que é objecto mediato deste processo.
Por todo o exposto, resta recusar a verificação da invocada nulidade.
Improcede, por isso, o recurso, nesta parte.
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De seguida, a apelante vem arguir a nulidade da decisão recorrida, por não compreender uma especificação dos factos tidos por provados, que constituam o seu fundamento.
Não tem, no entanto, razão.
Com efeito, a decisão proferida nos autos, que culminou com a absolvição da instância das rés, consubstancia uma pura decisão de direito processual. O seu substrato, que constitui a premissa menor da decisão, corresponde exclusivamente ao conteúdo de diversos actos processuais, designadamente o conteúdo da petição inicial, do despacho de aperfeiçoamento, do articulado de aperfeiçoamento e, embora sem relevo prático para a decisão, os articulados de contraditório das rés. Por conseguinte, além de esse conteúdo se encontrar documentalmente provado, na medida em que integra o próprio processo, a sua invocação, enquanto substrato da decisão, basta-se com isso mesmo: com a descrição das peças e seu teor, designadamente no relatório da decisão.
Ora, na decisão em crise, é precisamente isso que é feito: a Sra. Juiz descreve os articulados produzidos pela autora e o respectivo conteúdo, usando-os como objecto da análise jurídico-processual que desenvolve de seguida, para concluir pela inadmissibilidade do articulado de aperfeiçoamento e pela falta de um pressuposto processual essencial ao prosseguimento da instância. Nessa medida, o direito adjectivo que aplica não se encontra desprovido de suporte fáctico, sendo que este se traduz na actividade processual da autora, devidamente referido na própria decisão.
Rejeita-se, pois, que a decisão recorrida incorra na nulidade da al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Improcederá, pois, a apelação, também nesta parte.
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A terceira questão a decidir reporta-se à adequação da decisão de inadmissibilidade do articulado de aperfeiçoamento, por representar uma alteração da causa de pedir.
Decidiu o tribunal a quo: “Entendemos que essa alteração da causa de pedir não é admissível, pois o pedido formulado na acção não contempla a factualidade agora alegada. É que nos autos apenas é peticionada a declaração de nulidade, por simulação, da cláusula de reserva de propriedade prevista no contrato celebrado entre as rés - e que sabemos agora, na sequência do convite ao aperfeiçoamento, ser um contrato de compra e venda -, já não a declaração de nulidade, por simulação, desse contrato de compra e venda no seu todo e dos outros dois contratos de compra e venda que o antecederam.”
Na petição inicial, a autora alega:
- que a ré C… adquiriu a propriedade do imóvel, sob condição suspensiva de reserva desse direito de propriedade a favor da alienante “D…, Lda (2ª ré), até ao pagamento do valor de 20.000,00€, que seria o remanescente não pago, do preço;
- que essa reserva se funda num acordo simulado, vocacionado para eximir o prédio à execução de diversos credores da C…; -
- que a reserva de propriedade se destina a garantir o pagamento de um empréstimo feito à C…, de 20.000,00€;
- que a reserva de propriedade é nula, fundada em negócio simulado, devendo cancelar-se o seu registo.
Em consequência, pede:
- que se declare a nulidade da cláusula de reserva de propriedade inscrita a favor da ré D…, Lda;
- que se ordene o cancelamento do registo dessa cláusula de reserva de propriedade;
- ou, se assim se não entender, que se condene a ré C… a cumprir o contrato com a 2ª ré, sob pena de a autora ficar sub-rogada na sua posição e se condene a 2º ré a emitir declaração tendente à extinção da reserva de propriedade.
Na sequência de convite a aperfeiçoamento, tendente ao conhecimento dos concretos termos do negócio de que proveio a cláusula de reserva de propriedade arguida de simulada e dos concretos factos em que se consubstancie essa simulação, a autora apresentou novo articulado, onde alegou:
- que o prédio sempre foi da 1ª ré, C…, que sempre o habitou;
- que em 2001 a C… vendeu o prédio a uma sociedade “G…”, que registou essa aquisição;
- que a “G…” vendeu o prédio, em Março de 2010, à 2º ré D…, Lda;
- que o gerente da “G…” era pessoa da confiança de C…, e que H… era gerente da D…, Lda, sendo o F1… conhecedor das necessidades de dinheiro da C…;
- que em 2013 a C… declarou comprar o prédio à D…, Lda, por 100.000,00€, tendo declarado o recebimento de 80.000,00€ e estabelecendo-se a cláusula de reserva de propriedade até que fossem pagos os restantes 20.000,00€.
- que nunca nenhuma das entidades quis vender ou comprar o prédio, que nunca ocorreu o pagamento de qualquer preço e que todos sempre tiveram por objectivo que o prédio deixasse de estar registado como pertencente a C…, para o pôr a salvo de diversos processos executivos contra esta.
Nenhuma alteração foi requerida quanto ao pedido inicialmente formulado.
Analisando o teor de ambos os articulados, é evidente a conclusão de que, no articulado de aperfeiçoamento, a autora não se limitou a identificar os factos em que se consubstanciava a simulação da cláusula de reserva de propriedade aposta no negócio de compra do prédio em questão, à ré D…, Lda.
Com efeito, perante a petição, a causa de pedir era constituída pela existência de uma tal cláusula nesse contrato de compra e venda e pelos elementos que evidenciariam a sua natureza de acto simulado (que haveriam de ser subsumíveis ao art. 240º ou 241º do C.Civil), cuja omissão justificara o convite ao aperfeiçoamento. Subsequentemente, o pedido era a declaração de nulidade dessa cláusula, que teria por efeito a inexistência da reserva de propriedade sobre o imóvel, propriedade essa que, então, se teria transferido por mero efeito do contrato, para a adquirente C…, nos termos da al. a) do art. 879º do C. Civil.
Já perante o articulado oferecido na sequência do convite de aperfeiçoamento da p.i., a causa de pedir seria bem mais complexa: uma sucessão de contratos de compra e venda do mesmo prédio, o primeiro dos quais com a respectiva venda da 1ª ré C… para a “G…”; o segundo, da “G…” para a 2ª ré D…, Lda; o terceiro, desta D…, Lda para a Ré C…, no qual se incluiria a cláusula de reserva de propriedade arguida como simulada. Porém, todos esses três contratos seriam também simulados, pois que nunca nenhum dos outorgantes quis comprara e vender o prédio, nem pagou o seu preço, nem jamais convencionaram que a respectiva propriedade saísse da esfera jurídica da ré C….
A radical diferenciação desta causa de pedir complexa, para com a causa de pedir usada na versão constante da p.i. é também evidenciada pela diferença dos efeitos jurídicos que o acolhimento da tese da autora agora traria, a qual haveria de comportar ainda uma profunda alteração subjectiva no lado passivo da instância.
Com efeito, por um lado, o reconhecimento da tese da autora e a declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade aposta no terceiro negócio descrito – aquele por via do qual a 1ª ré teria adquirido a propriedade do imóvel da ré D…, Lda – implicaria a conclusão de que todos aqueles negócios haviam sido simulados, pelo que todos haveriam de ser declarados nulos, do que resultaria não apenas a declaração de nulidade da referida cláusula de reserva de propriedade, como pedido na p.i., mas a nulidade de todos os três negócios, com a inerente destruição de todos os respectivos efeitos e, assim, a reposição da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio na esfera jurídica da ré C…. Onde, conforme pretendido pela autora, esta o poderia executar.
Mas, por outro lado, para isso, os demais intervenientes no negócio não poderiam deixar de intervir na instância, o que aqui não se verifica, desde logo por via da ausência da “G…”.
Isso evidencia a existência – no segundo articulado da autora - de uma acção completamente diferente, com diferentes causa de pedir, pedido e partes, com essa versão a demarcar-se totalmente do pedido formulado na petição, que apenas haveria de ter sido aperfeiçoada e que compreendia simplesmente a declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade, do que resultaria (como se referiu antes) a sobrevivência do contrato de venda do prédio da ré D…, Lda para a ré C…, sem suspensão do efeito translativo da propriedade, em termos que habilitariam já a execução do imóvel no património desta, mas com o pressuposto da não afectação da anterior sucessão de negócios por via dos quais o prédio foi sendo transmitido até à própria ré D…, Lda. Isso, porém, mostra-se agora ultrapassado em razão do complexo factual descrito no articulado, do qual resultaria a nulidade de todos aqueles negócios, em vez do que era pressuposto, que era tão só o fundamento factual da alegada simulação da cláusula de reserva de propriedade.
O que vem de expor-se tem duas consequências.
A primeira reporta-se à rejeição do articulado de aperfeiçoamento, em consequência do disposto no nº 6 do art. 590º e do art. 265º do CPC. Com efeito, diferentemente do que acontecia no CPC anterior, é agora vedado ao autor que venha invocar nova ou distinta causa de pedir, ao oferecer o articulado dito aperfeiçoado. A situação que supra se descreveu incorre claramente na transgressão dessa regra, como bem explica lebre de Freitas, CPC Anot. Vol. II, nota 9 ao art. 590º, pg. 634 (no mesmo sentido, Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. I, notas 37 e 38 ao art. 590º, pgs. 680 e 681).
A segunda prende-se com a impossibilidade de aproveitamento da factualidade trazida pelo novo articulado da autora, para a integração da causa de pedir apresentada na pi. Como se explicou, a autora não esclareceu, especificando a correspondente factualidade, as razões da nulidade da cláusula de reserva de propriedade que, sendo declarada nula e mantendo-se o restante desse negócio, conduziria à transmissão da propriedade do imóvel para a ré C…. O que referiu, isso sim, foram factos que, demonstrando-os como lhe incumbiria, conduziriam à declaração de nulidade de todo esse negócio.
Nessas circunstâncias, além de se transcender necessariamente o pedido formulado na p.i., enquanto efeito incontornável da declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre C… e D…, Lda, o que daí resultaria seria o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel na esfera jurídica da D…, Lda, o que sempre seria incongruente com a satisfação do direito que a autora aqui pretendia exercer, pois que não lhe permitiria alcançar o resultado que a habilitaria, na acção executiva que está na génese dos presentes autos, executar esse mesmo prédio no património da ré C….
Daí - e passando de imediato para a apreciação da quarta questão identificada no objecto do recurso, dada a sua intrínseca conexão com a anterior - também, a conclusão pela confirmação da solução decretada pelo tribunal recorrido, sobre a verificação de uma excepção dilatória inominada, qual seja a da falta de interesse em agir.
Como se sabe, o interesse em agir corresponde a uma utilidade no recurso a uma acção judicial, para ver satisfeito um direito substantivo lesado pelo comportamento da parte contrária. Esse interesse estará ausente sempre que a acção intentada não permita a realização do direito invocado.
É o que acontece no caso em apreço. Com efeito, como já se referiu, perante a eventual conclusão de que o negócio celebrado entre a C… e a D…, Lda seria integralmente simulado e, consequentemente, nulo, não o sendo apenas a cláusula de reserva de propriedade, daí resultaria a inutilidade da acção, pois que a propriedade do imóvel se manteria na esfera jurídica da D…, Lda, assim se chegando a uma solução que nenhuma utilidade traria para a realização do direito de crédito que a autora invoca deter sobre a ré C…. Sempre inexistiriam factos habilitantes a que a acção prosseguisse exclusivamente para a apreciação do pedido de nulidade da referida cláusula, pelo que o prosseguimento da acção, a ocorrer, tendo por referência o contrato de compra e venda celebrado entre as duas rés, só poderia culminar na apreciação da sua natureza simulatória. E daqui, a proceder a acção, resultaria, a referida nulidade de todo o contrato, em termos adversos até ao próprio interesse da autora.
Também nesta parte, por isso, deve manter-se a decisão recorrida.
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Por fim, a autora defende que, perante a não apreciação do pedido principal, deveria o tribunal fazer prosseguir a acção para apreciação dos pedidos subsidiários que formulou, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo.
Recorde-se que, para a hipótese de improcedência do pedido de declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade, a autora peticionou a condenação da ré C… a cumprir a eventual obrigação que sobre ela impende em resultado do negócio jurídico celebrado com a ré “D…, Lda”, sob pena de, não cumprindo tal obrigação, a autora ficar sub-rogada na sua posição, bem como a consequente a condenação da ré “D…, Lda.” a emitir declaração de extinção de reserva da propriedade. Porém, o tribunal recorrido declarou que, “Na situação dos autos, não chegando o tribunal a conhecer do mérito do pedido principal, concluindo pela sua procedência ou improcedência, resulta prejudicada a apreciação do pedido subsidiário.”
Impugnando este segmento da decisão, a autora alega que o facto de não ter havido apreciação de mérito quanto ao pedido principal, mas sim uma absolvição da instância, não deve ser impeditivo da apreciação dos pedidos subsidiários, nos termos do art. 554º, nº 1 do CPC.
Não se hesita em aderir a este entendimento. Com efeito, o texto da norma referida compreende, não apenas as situações de improcedência do pedido principal, como factor de actuação dos pedidos subsidiários, mas também outras situações em que, não tendo havido decisão substancial sobre aquele pedido, se torna pertinente a apreciação dos pedidos subsidiários (cfr, neste sentido, Abrantes Geraldes, ob. cit., em anotação ao art. 554º, nota 2, pg. 613). De resto, tal como dispõe o nº 2 da mesma norma, nem a oposição entre os pedidos impede a possibilidade de dedução de pedidos subsidiários.
Porém, no caso em apreço, o factor que prejudica – a nosso ver e em concordância com o tribunal recorrido – a apreciação dos pedidos subsidiários não é a sua inadmissibilidade formal, em face da não apreciação substantiva do pedido principal. O que prejudica a apreciação desses pedidos é a sua conexão lógica com o pedido principal que não chegou a ser apreciado.
Com efeito, no caso concreto (ou, nas palavras da decisão recorrida, na situação dos autos”) só teria sentido apreciar o direito da autora de impor à ré C… a obrigação de acabar de cumprir o contrato celebrado com a D…, Lda, ou o seu direito à sub-rogação no direito desta ré a cumprir o remanescente do contrato, para obter a transferência da propriedade do imóvel para ela (sem que se conceda desde já o reconhecimento de tais direitos) se isso tivesse por pressuposto a validade do contrato, por não padecer da simulação que lhe é imputado. Ou seja, e nas concretas circunstâncias do caso descritas pela autora, só terá sentido avançar para soluções que compreendem o cumprimento do contrato de compra e venda celebrado entre as rés, se tivermos por excluída a nulidade desse mesmo contrato (o que corresponderia à improcedência do pedido principal), e não o desconhecimento sobre a sua validade ou invalidade, como resulta da decisão de absolvição da instância decretada supra.
E isto compreende-se como forma de impor a todas as partes a força de caso julgado da decisão que excluísse a nulidade do contrato, por simulação. A não ser assim, e ainda que os pedidos subsidiários procedessem, sempre ficaria aberta a possibilidade de as próprias rés arguirem a simulação, em acção que intentassem entre si, nos termos permitidos pelo art. 242º, nº 1 do C. Civil. Então, apesar da sentença que lhe pudesse ser favorável nestes autos, relativa aos pedidos subsidiários, sempre poderia a autora ficar inibida de exercer o seu direito, perante uma outra sentença proferida numa acção entre as rés, que declarasse a nulidade do contrato.
Verifica-se, pois, que, em concreto, a não apreciação do pedido principal prejudica logicamente a apreciação dos pedidos subsidiários. E, nesta dimensão, tem de reconhecer-se o acerto da decisão recorrida, a qual, para além disso, tem a virtualidade de facultar à autora o exercício do seu direito, em conformidade com a versão entretanto apresentada, numa nova acção.
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Por todo o exposto, resta concluir pela confirmação da decisão recorrida, na improcedência da presente apelação.

Sumário (art 663º, nº 7 do CPC):
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3 - DECISÃO

Em conclusão, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação, na confirmação integral da decisão recorrida.
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Custas pela apelante.
Notifique.

Porto, 29/9/2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda