DIREITO DE PROPRIEDADE
RESTAURAÇÃO NATURAL
PRIVAÇÃO DO USO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - Procedendo o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, a restituição da coisa só pode ser recusada provando o demando direito que legitime a recusa da restituição.
II - Se com a entrega (restituição) da coisa se realiza a restauração natural (para o futuro – ex nunc), o gozo da fracção de que o proprietário foi entretanto privado tem de ser indemnizado em dinheiro.
III - Para a atribuição de indemnização pela privação do uso de determinado bem, não bastando a simples prova da privação dares, não é também de exigir a demonstração efectiva do dano concreto, sendo suficiente que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante - doutra maneira: a indemnização do dano da privação do uso pressupõe a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afectação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário.

Texto Integral

Apelação nº 325/19.1T8LOU.P1

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: José Igreja Matos
Rui Moreira

*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO

Apelante/autora: B…, Ld.ª.
Apelados/réus: C…, D… e incertos.
Juízo local cível de Lousada – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.
*
Intentou a autora acção comum demandando os réus pedindo sejam condenados a reconhecer que é legítima e exclusiva proprietária de fracção autónoma que identifica, que a posse de tal fracção por parte deles é insubsistente, ilegal e de má fé, bem como a condenação deles a restituir-lha, livre e desocupada de pessoas e bens, e ainda a pagar-lhe indemnização de 15.200,00€ (quinze mil e duzentos euros), a acrescer do montante de 400,00€ por cada mês em que se mantiverem na posse ilícita da fracção, bem assim dos juros que se venham a vencer sobre tais quantias, desde a citação até efectiva entrega.
Como fundamento alegou factos tendentes a demonstrar o seu direito de propriedade sobre a identificada fracção autónoma (factos integradores da presunção de propriedade derivada do registo e ainda factos integradores da aquisição originária do domínio), a qual deu de arrendamento, em Outubro de 2004, mediante a renda anual de 4.800,00€, paga em duodécimos de 400,00€, a sociedade imobiliária que identifica, pelo período de cinco anos, renovável, com início em 01 de Novembro de 2004, sociedade que viria a ser alvo de dissolução administrativa em 2012 (dissolução, encerramento e liquidação da matrícula ocorrida em 19/11/2012), o que determinou, dado não existir convenção escrita em contrário, a caducidade do contrato, nos termos do disposto no art. 1051º, d) do CC. Mais alega que apesar da caducidade do contrato a fração não lhe foi entregue, tendo os identificados réus e incertos lá permanecido, sem autorização e contra a sua vontade (tendo sido os identificados réus interpelados já para a entrega da fracção), não sendo paga renda desde Novembro de 2015 (donde resulta dano que computa em 400,00€ por cada mês ou fracção, correspondente ao valor locativo do imóvel).
Foram citados os identificados réus (o réu varão editalmente) e cumpridas as formalidades de citação dos incertos, com a intervenção do Ministério Público, não sendo deduzida contestação.
No decurso da causa intentou a autora contra os réus C… e D… providência cautelar impetrando a entrega, ainda que de modo provisório, do imóvel objecto dos autos, providência que viria a ser julgada procedente por decisão de 29/10/2020, tendo a determinada entrega da fracção à autora (ainda que de modo provisório) sido cumprida em diligência realizada em 30/10/2020.
Nesta causa principal, realizado o julgamento, viria a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus dos pedidos.
Inconformada, apela a autora, terminando as suas alegações formulando as seguintes conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………
Contra-alegou o Ministério Público pela improcedência da apelação e consequente manutenção da sentença apelada.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Do objecto do recurso
Considerando, conjugadamente, a sentença recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações da apelante (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a apreciar:
- da pretendida modificação da decisão da matéria de facto,
- do mérito da causa – seja quando ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a fracção autónoma objecto da lide e sua restituição, seja quanto ao pedido indemnizatório.
*
FUNDAMENTAÇÃO
*
Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se:
Factos provados
1. Encontra-se registada a favor da autora a propriedade da fracção autónoma T-3 destinada a habitação, designada pela letra ‘O’, sita na no 1º andar direito, com entrada pelo n.º … da …, em Lousada, e inscrito na respetiva matriz predial urbana da União de freguesias … sob o artigo 3882 e descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º 704, da freguesia …, à qual corresponde a licença de utilização n.º …/02, emitida pela Câmara Municipal … em 13/09/2002.
2. A autora, por si e antepossuidores, há mais de 10, 15 e até 30 anos, utiliza o dito prédio, ocupando-o, cedendo-o, efetuando nele benfeitorias, transformando-o, pagando as respetivas contribuições, e todos os gastos como quem dele faz coisa sua.
3. Através de contrato de arrendamento de duração limitada, outorgado em 25 de Outubro de 2004, a autora arrendou a supra referida fracção autónoma à firma E…, Lda., com sede na …, n.º …, 1º dt.º Freguesia …, Concelho de Lousada, pelo período de cinco anos, renovável, com início em 01 de Novembro de 2004,
4. Tendo-se ajustado uma renda anual de 4.800,00€ (quatro mil e oitocentos euros anuais), a serem pagos em duodécimos de 400,00€ (quatrocentos euros) mês, através de transferência bancária para uma conta da A. na F….
5. Desde novembro de 2015, aquela sociedade deixou de efetuar o pagamento das rendas a que estava obrigada.
6. A E…, Unipessoal, Lda. foi alvo de ‘dissolução administrativa’, com a dissolução, encerramento e liquidação da matrícula ocorrida em 19/11/2012.
7. Foi enviada pela autora de 07/01/2019 para a fracção em causa e dirigida aos réus C… e D… uma missiva demandando-lhes a entrega do imóvel e a identificação dos ocupantes da fração, recebida pelo réu C… em 09/01/2019.
8. A ré D… ocupou a habitação com os seus filhos, nela sendo por vezes visto o réu, retirando-se aquela depois em data não apurada.
Factos não provados
A. Que os réus e terceiros incertos têm ocupado a fração até ao presente.
B. E que, sem prejuízo do escrito em 8, se vêm recusando a proceder à sua entrega.
*
Fundamentação jurídica
A. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – da pretensão recursória de ver julgado provado que ‘a fracção dos autos foi entregue, provisoriamente, por via judicial, à recorrente, em 30/10/2020’ (alínea d) da conclusão 30ª).
Defende a apelante que tal matéria – revelada pelos termos processuais da providência cautelar apensa (em decisão aí proferida em 29/10/2020 foi julgada procedente a providência intentada pela aqui autora apelante contra os aqui réus C… e D… e, em consequência, determinada a entrega à requerente da fracção autónoma objecto da presente lide, de modo provisório, diligência de entrega que viria a ocorrer em 30/10/2010) – deve ser levada à fundamentação de facto da decisão.
Impugnação de manifesta e patente improcedência pois que tal matéria não constitui, verdadeiramente, matéria de facto pertinente à causa, a incluir no segmento relativo à fundamentação de facto da decisão aludido nos números 3 e 4 do art, 607º do CPC, antes se tratando de tramitação processual observada no processo (melhor, em providência cautelar apensa) e que, sendo relevante à decisão, poderá (rectius, deverá) ser valorizada pelo tribunal na fundamentação jurídica da decisão.
Improcede, pois, face a estes considerandos, este segmento de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A.2. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – da pretensão recursória de ver julgada provada a demais matéria de facto aludida na conclusão 30ª.
Impugna a autora apelante a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto sustentando que a valorização da prova produzida nos autos impõe se julgue provada matéria que a decisão apelada desconsiderou e julgou não provada.
Impugnação que se acolhe no art. 662º do CPC (pretende a apelante a reapreciação de elementos probatórios sujeitos à livre apreciação do juiz - art. 607º, nº 5, 1ª parte, do CPC), constatando-se ter a apelante observado todos os ónus e exigências impostos ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto (art. 640º do CPC):
- indica, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (art. 640, nº 1, a) do CPC), tomando clara posição sobre o resultado pretendido relativamente a eles (art. 640º, nº 1, c) do CPC) – veja-se a conclusão 30ª, na qual a apelante expõe os pontos de facto impugnados e o sentido que preconiza para o seu julgamento,
- especifica os concretos meios probatórios que em seu entender sustentam decisão diversa (art. 640, nº 1, b) do CPC), indicando na motivação[1] as passagens da gravação (que até transcreve) tidas por relevantes quanto aos depoimentos invocados como fundamento da impugnação (art. 640º, nº 2, a) do CPC), enunciando de forma clara os concretos motivos da sua discordância da decisão impugnada.
Pretende a apelante que, considerando a prova documental, o acto processual da citação da ré mulher (efectivada na fracção autónoma objecto dos autos), os resultados das consultas às bases de dados realizadas no âmbito das diligências observadas para citação do réu varão e a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento se julgue (eliminando-se a matéria não provada - conclusões 4ª e 5ª – e reformulando-se o julgamento do facto provado nº 8 – conclusão 3ª) provado que (conclusão 30ª):
a. Em 01/02/2019, os réus, D… e C…, ocupavam a habitação[2] com os seus filhos,
b. Os réus, não obstante a carta indicada em 7., não entregaram o imóvel dos autos à autora.
c. Os réus abandonaram o imóvel entre Fevereiro de 2019 e Maio de 2019.
e. Desde Novembro de 2015, e pelo menos até Fevereiro de 2019, os réus fizeram uma utilização ininterrupta da fracção dos autos.
f. A autora não teria dificuldade em arrendar a fracção pela quantia de 400,00€.
Quando convocada a reapreciar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto alicerçada em elementos probatórios sujeitos à livre apreciação do juiz (art. 607º, n.º 5, 1ª parte, do CPC), tem a Relação, ‘assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância’, de expressar a partir deles a sua convicção com total autonomia, devendo reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado (confirmando a decisão, decidindo em sentido oposto, ou, num plano intermédio, alterando a decisão no sentido restritivo ou explicativo)[3] – reapreciação que não pode confundir-se com um ‘novo julgamento’[4].
A reapreciação da matéria de facto pela Relação, no âmbito da previsão dos artigos 662º, n.º 1 e 640º, n.º 1 do CPC, importa a reponderação dos elementos probatórios produzidos nos autos, averiguando se permitem afirmar, de forma racionalmente fundada, a veracidade da realidade alegada quando o facto tenha sido julgado não provado ou o inverso, quando o facto tenha sido julgado provado pela primeira instância.
Nesta actividade, os poderes do Tribunal da Relação não podem ser restritivamente circunscritos à simples apreciação do juízo valorativo efectuado pelo julgador a quo, ou seja, ao apuramento da razoabilidade da convicção formada pelo juiz da primeira instância face aos elementos probatórios disponíveis no processo (à apreciação da existência de erro notório), devendo antes a Relação, fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, efectuar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de formar uma convicção autónoma), alterando a decisão caso adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção[5].
De afastar, pois, o destoante e anacrónico argumento ainda esgrimido pelo Ministério Público nas suas contra-alegações – apesar de não ter levado o argumento às conclusões, defende na motivação que ‘sempre que convicção do Juiz que proferiu a decisão recorrida seja uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser respeitada pelo tribunal de recurso’.
Apreciação dos elementos probatórios que se não confunde ou resume a certificar o declarado pelas partes ou testemunhas ou o teor de determinado elemento probatório – através da análise crítica dos elementos probatórios (em ordem à justificação racional da decisão – elemento verdadeiramente estruturante e legitimador desta, que lhe confere a natureza de decisão, afastando-a do que seria uma simples imposição judicial) aprecia-se tanto a valia intrínseca de cada um deles (a consistência, coerência e verosimilhança de cada um dos referidos elementos, tomado individualmente) como a sua valia extrínseca (conjugação e compatibilidade entre todos eles).
Trata-se de um processo de análise de todos os elementos probatórios cujo produto final há-de ser o resultado da sua valoração e compatibilização lógica e racional – da sua apreciação e valoração, tanto individual como conjugada (na sua relacionação reversiva), da sua sujeição a testes de compatibilidade, à luz das regras da normalidade, da verosimilhança, da lógica, do bom senso e da experiência da vida.
As provas (art. 342º do CC) têm por função a demonstração da realidade dos factos. Através delas não se busca criar no espírito do julgador a certeza absoluta da realidade dos ‘factos’ – ‘se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça’[6] –, mas antes produzir o que para a justiça é imprescindível e suficiente – um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida.
A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto ‘não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)’[7].
Estes considerandos conduzirão o tribunal na reapreciação da matéria impugnada – apurar se os elementos probatórios permitem considerar demonstrado (como defende a apelante), por um lado, que os réus C… e D… habitavam na fracção autónoma objecto dos autos (com os filhos) e se desde Novembro de 2015 a ocuparam ininterruptamente até meados de 2019 (se abandonaram a fracção entre Fevereiro e Maio de 2019), recusando a sua entrega à autora e, por outro lado, se a autora não teria dificuldade em arrendar a fracção pela renda mensal de 400,00€ (com consequente eliminação da matéria julgada não provada).
Ponto de partida na análise crítica que se impõe efectuar é a prova documental produzida nos autos – prova documental que, atenta a sua valia objectiva (os factos por ela revelados mostram-se indiscutidos), constitui alicerce e ponto de referência seguro para, à sua luz, ser valorada a prova produzida em audiência (prova testemunhal e por declarações de parte).
Tais elementos documentais consubstanciam-se:
- no acto processual de citação da ré mulher, efectivada em 1/02/2019 na fracção autónoma objecto dos autos (como se constata do aviso de recepção por ela assinado e remetido aos autos em 8/02/2019),
- no aviso de recepção, concernente a carta dirigida pela autora à ré mulher, endereçada para a fracção objecto dos autos, solicitando a respetiva entrega, assinado em 8/01/2019 pelo réu varão (documentos juntos sob o nº 5 com a petição inicial – matéria aliás vazada no número 7 da fundamentação de facto),
- na tentativa de citação do réu varão levada a efeito por agente de execução em 22/05/2019, no âmbito dos presentes autos, a qual se revelou infrutífera, por ninguém ter atendido na fracção objecto dos autos (tendo o agente de execução sido informado por vizinhos e pela administração do condomínio que o réu havia deixado o local cerca de dois meses antes, levando consigo o mobiliário),
- no contrato de arrendamento aludido nos factos provados 4 e 5 e junto com a petição inicial sob o número 3, donde consta que a fracção autónoma dele objecto (e também objecto dos presentes autos) se destinava a habitação do sócio da arrendatária, contrato no qual o aqui réu (gerente da sociedade arrendatária) outorgou como fiador – e no qual foi acordada uma renda de 400,00€ mensais,
- nas consultas realizadas no âmbito das diligências tendentes à sua citação constatou-se que nos serviços de identificação civil, na autoridade tributária e na Segurança Social constava (em Fevereiro e Março de 2019) como residência do réu varão a fracção objecto dos presentes autos.
Elementos documentais que hão-se ser conjugados e harmonizados com a prova testemunhal produzida em audiência (a cuja integral audição se procedeu) e que, no que releva à análise que se impõe efectuar, trouxe os contributos que se destacam:
- a testemunha G… (cuja razão de ciência assenta na dupla circunstância de ter sido mediador no contrato de arrendamento aludido nos factos provados 4 e 5 e habitar no edifício em que se integra a fracção objecto os autos), revelou conhecer os réus, afirmando que habitavam a fracção com os seus filhos: referiu que habitaram a fracção desde que o contrato de arrendamento foi outorgado (tiveram intervenção na negociação do contrato – incluindo a ré mulher, que tratou de vários assuntos relacionados com o arrendamento) com a autora e nela habitaram pelo menos até cerca de ano e meio antes da data em que foi realizada a audiência de julgamento (25/11/2020), ainda que o réu estivesse emigrado em trabalho (regressando à fracção e à família sempre que vinha ao país); referiu-se ainda ao incumprimento do pagamento das rendas e ao facto dos réus terem sido interpelados pela autora para entregarem a fracção (conhecimento indirecto, por lhe ter sido referido pelo gerente da autora), bem como ao facto de não terem entregue a fracção (tendo-a antes deixado com estragos vários, que descreveu pormenorizadamente - até as sanitas e bidés das casas de banho tinham sido pelos réus retirados); aludiu ainda ao valor locativo da fracção, que referiu situar-se entre os 400,00€ e os 450,00€,
- a testemunha H… (cuja razão de ciência advém de prestar serviços de contabilidade à autora, tendo por isso acesso à relevante documentação relativa aos contratos celebrados pela autora) afirmou que autora se dedica à actividade imobiliária, tendo variados imóveis; afirmou que a última renda paga relativamente à fracção objecto dos presentes autos, em Novembro de 2015, ascendia ao valor de 447,00€ (não sabendo se tal valor incluía ou não o condomínio).
A análise racional destes elementos probatórios – à luz de juízos de normalidade e razoabilidade, da lógica e das regras da experiência da vida – permite concluir com meridiana clareza e segurança (com o grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida) que os réus C… e D… habitavam a fracção autónoma objecto dos autos, dela fazendo casa de morada (casa de habitação do núcleo familiar constituído por eles e respectivos filhos). Conclusão que, com o alto grau de probabilidade necessária à demonstração do facto em juízo, resulta da conjugação reversiva dos aludidos elementos probatórios: a prova documental, demonstrativa de que nessa morada receberam correspondência (assinaram os avisos de recepção – a ré mulher o aviso de recepção da carta de citação; o réu varão o aviso de recepção da carta de interpelação enviada pela autora) e que essa era a morada que constava como morada do réu varão na autoridade tributária, nos serviços de identificação civil e na Segurança Social, compatibiliza-se e harmoniza-se (mutuamente se corroborando) com a prova testemunhal produzida, de acordo com a qual (depoimento da testemunha G…) os réus aí habitaram com os seus filhos até cerca de ano e meio antes da data da audiência de julgamento dos presentes autos (25/11/2020).
Que os réus não entregaram a fracção à ré conclui-se da circunstância da fracção ter sido entregue à autora apelante no âmbito do procedimento cautelar apenso (intentado na pendência da presente causa), apresentando a mesma estragos variados (e descritos com algum pormenor pela testemunha G…), o que é incompatível com a voluntária restituição da fracção.
Por fim, conjugando os elementos documentais – valorando estes, pode concluir-se que em Fevereiro de 2019 a fracção estava ainda na disponibilidade dos réus (a ré mulher foi aí citada para a presente acção) e que a deixaram tempos antes do agente de execução, em Maio de 2019, ter aí tentado citar o réu – e a prova testemunhal – a testemunha G… afirmou que os réus habitaram a fracção até cerca de ano e meio antes da data da audiência de julgamento dos autos – pode com segurança concluir-se que os réus habitaram a fracção desde Novembro de 2015 (eram eles quem habitava a fracção na vigência do contrato de arrendamento referido na matéria provada e continuaram a fazê-lo após Novembro de 2015), o que fizeram pelo menos até Fevereiro de 2019 (o termo final de tal uso apenas por aproximação pode ser concluído da conjugação dos elementos probatórios referidos – a testemunha situa-o aproximadamente em Maio de 2019, mas os elementos retirados da frustrada tentativa de citação do réu varão levam a concluir que os réus deixaram de habitar o local um par de meses antes, afigurando-se por isso prudente e seguro ter por demonstrado que tal terá ocorrido em Fevereiro de 2019, pois que então ainda a ré foi aí citada).
Na outra vertente da impugnação, impõe-se ponderar que sendo a autora uma sociedade comercial, por natureza e definição visando a obtenção de lucro, que se dedica à actividade imobiliária (como referido pela testemunha H…), utilizaria a fracção objecto dos autos (destinada a habitação) na prossecução do seu objecto, podendo assim fundadamente presumir-se judicialmente (arts. 349º e 351º do CC) que, estivesse ela na sua disponibilidade (ao invés de estar a ser habitada pelos réus e na disponibilidade destes) a teria colocado no mercado de arrendamento.
O valor locativo da fracção pode também concluir-se com segurança, conjugando o depoimento da G… (que tem conhecimento na área da mediação imobiliária - essa a actividade que desenvolve profissionalmente), que o situou entre os 400,00€ e os 450,00€ mensais, com a circunstância da mesma ter sido dada de arrendamento à anterior inquilina pela renda de 400,00€ mensais.
Merece, pois, provimento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, devendo julgar-se provado (eliminando-se a matéria não provada, alterando-se a redacção do facto provado número 8 e aditando-se mais dois números aos factos provados):
8. Desde Novembro de 2015 até Fevereiro de 2019, os réus C… e D…, de forma ininterrupta, ocuparam e utilizaram, habitando-a com os filhos, a fracção autónoma referida no facto 1º.
9. Os réus C… e D… abandonaram a fracção referido em Fevereiro de 2019, não a tendo entregue à autora.
10. A autora não teria dificuldade em arrendar a fracção pela quantia de 400,00€ mensais.
B. Do mérito da causa – reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a fracção autónoma objecto da lide, sua restituição e pedido pedido indemnizatório.
Considerando ser pretensão da autora apelante o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma identificada no facto 1º da matéria provada (a pronuntiatio) e a sua restituição (a condemnatio), a presente acção configura acção real – com ela pretende a autora apelante o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a coisa objeto do pleito, bem como a sua restituição, visando assim defender esse direito da violação que alega estar a ser-lhe infligida pelos réus. Qualificação como acção real (de reivindicação – art. 1311º do CC) que o pedido indemnizatório com os demais cumulado não impede – nada impede que ao abrigo das regras do direito processual atinentes à cumulação de pedidos (art. 555º do CPC) ‘o autor da reinvindicação junte aos dois pedidos referidos no art. 1311º um pedido de indemnização (v. g., dos danos causados na coisa pelo demandado ou do valor de uso que este dela fez)’[8].
O pedido de reconhecimento do direito de propriedade é de patente procedência, desde logo porque goza a autora da presunção legal relativa estabelecida no art. 7º do CRP (presunção de que o direito de propriedade existe e é da sua titularidade), como se conclui do primeiro facto provado.
Tratando-se o direito de propriedade de um direito absoluto, erga omnes (ou seja, que se impõe a todos os outros), exclusivo (jus excludendi omnes allios), pode o proprietário exigir que terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectem o seu exercício[9]. Este direito tem como correspectivo um estado de sujeição de todas as outras pessoas, que devem respeitar o direito exclusivo do proprietário[10].
Havendo que reconhecer à autora apelante o seu direito de propriedade e demonstrado que os réus C… desde Novembro de 2015 até Fevereiro de 2019 (e, assim, já durante a pendência da acção), de forma ininterrupta, ocuparam e utilizaram o imóvel, habitando-o com os filhos, abandonando-o sem o devolver à autora, tem também de julgar-se procedente o pedido de restituição (a condemnatio), pois que não demonstrada qualquer causa legítima para aquela utilização – nos termos do art. 1311º, nº 2 do CC, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada provando o demando direito que legitime a recusa da restituição (provando qualquer relação, obrigacional ou real, que lhe confira a posse ou detenção da coisa – v. g., o usufruto, a locação ou situação que lhe faculte direito de retenção)[11].
Procedente também a pretensão indemnizatória, pois se verificam todos os pressupostos legalmente exigidos para o surgimento da obrigação de indemnizar (ou seja, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual como fonte da obrigação de indemnizar).
Os réus C… e D… ocupam a fracção que é propriedade da autora – e nisto se consubstancia o facto (o facto humano voluntário) –, não tendo demonstrado para tal qualquer título válido (e aqui reside a ilicitude – os réus violam direito absoluto da autora), o que fazem, se não dolosamente, pelo menos com negligência (os réus estão obrigados a saber que não podem ocupar a fracção que é da autora), existindo também um dano e um nexo de causalidade entre este e o facto, dano este que consiste na impossibilidade de a autora usar e fruir a fracção de sua propriedade.
Tal indemnização é calculada nos termos dos artigos 562º e seguintes do CC.
Se com a entrega (restituição) da fracção se realiza a restauração natural (para o futuro – ex nunc), certo é que o gozo da fracção que os réus entretanto fizeram (e, por contraponto, a privação da autora do pleno gozo e fruição de coisa sua), tem de ser indemnizado em dinheiro – a reposição natural, consubstanciada na restituição da fracção, não repara integralmente o dano, pois que durante vários anos os réus usaram e fruíram coisa da autora, impondo-se assim a indemnização pecuniária.
Constitui tendência actual o entendimento jurisprudencial do STJ de que para a atribuição de indemnização pela privação do uso de determinado bem, não bastando a simples prova da privação da res, não é também de exigir a demonstração efectiva do dano concreto, sendo suficiente que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante[12] - doutra maneira: a indemnização do dano da privação do uso pressupõe a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afectação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário[13].
Entendimento que merece o nosso acolhimento, por dar apropriada e justa tutela aos direitos de uso, gozo e fruição do proprietário sem representar qualquer indevido empobrecimento do lesante, antes traduzindo o reconhecimento do dever de reposição das utilidades fruídas e gozadas que, se obtidas de forma lícita, teriam com toda a probabilidade importado um custo pecuniário – trata-se de um sucedâneo pecuniário da reposição natural (o gozo da coisa não pode ser restituído, impondo-se por isso a indemnização em dinheiro – art. 566º, nº 1 do CC).
Da factualidade apurada pode concluir-se, por presunção judicial (art. 349º do CC), ser pretensão da autora dar à fracção uso susceptível de lhe propiciar ganhos, ou seja, de dela retirar todas as utilidades em vista da obtenção de lucro, atento o princípio da especialidade do fim que rege a actuação das sociedades comerciais (art. 6º do Código das Sociedades Comerciais) – tratando-se de fracção autónoma destinada à habitação, com toda a verosimilhança e probabilidade, a sua proprietária, sociedade comercial, certamente a afectaria ao mercado de arrendamento, como já havia feito (a fracção fora já dada de arrendamento, que cessou por caducidade, atenta a extinção da sociedade arrendatária).
Tem-se, pois, por demonstrado (por presunção judicial) que a autora apelante colocaria a fracção no mercado de arrendamento, obtendo as rendas correspectivas.
Demonstrada assim matéria que permite apurar o montante do dano sofrido pela autora, aplicando a teoria da diferença – tal dano (prejuízo) corresponde ao valor locativo da fracção (400,00€ mensais – veja-se o facto provado número 10, acima aditado na procedência da impugnação da decisão de facto da primeira instância), pois tal é o valor que a autora apelante deixou de obter e que com toda a probabilidade teria obtido não fora o acto lesivo.
Procede, assim, a pretensão indemnizatória da autora apelante, pois se impõe concluir estarem os réus C… e D… constituídos na obrigação de a indemnizar no montante de 400,00€ por cada mês que, desde Novembro de 2015 até Outubro de 2020 (data em que a fracção foi entregue à autora apelante no âmbito do procedimento cautelar apenso), inclusive, utilizaram a fracção (o que corresponde a vinte e quatro mil euros, ponderando o período temporal de sessenta meses decorrido entre Novembro de 2015 e Outubro de 2020), a acrescer dos juros de mora à taxa de 4% (art. 559º, nº 1 do CC e Portaria 291/03, de 8/04) desde a citação até integral pagamento.
C. Síntese conclusiva
Procede, pois, a apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições (omitindo, nesta tarefa, os argumentos decisórios circunscritos à apreciação da impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto):
………………………………
………………………………
………………………………
*
DECISÃO
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a sentença apelada, em:
- reconhecer o direito de propriedade da autora sobre a fracção autónoma identificada no número 1 da factualidade provada,
- condenar os réus C… e D… a reconhecer tal direito,
- condenar os réus C… e D… na restituição da fracção, livre e desocupada de pessoas e bens,
- condenar os réus C… e D… a pagar à autora indemnização no montante de vinte e quatro mil euros (24.000,00€), a acrescer dos juros de mora à taxa de 4% desde a citação até integral pagamento.
As custas (da acção e da apelação) serão suportadas pela ré D… – o réu C… (ausente, representado pelo Ministério Público) está isento (art. 4º, nº 1, l) do Regulamento das Custas Processuais).
*
Porto, 29/09/2021
João Ramos Lopes
José Igreja Matos
Rui Moreira

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
____________
[1] A indicação na motivação é suficiente, não sendo necessária a sua inclusão nas conclusões - Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, pp. 168/169.
[2] Habitação, leia-se, fracção autónoma identificada no facto provado com o número 1.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 290.
[4] Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 300.
[5] Defendiam-no a propósito do regime processual anterior ao introduzido pela Lei 41/2013, de 26/07, ao nível da doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); ao nível da jurisprudência (tirada no âmbito da vigência do anterior regime processual), p. ex., os Acórdãos do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt.
Posição que a doutrina e a jurisprudência vêm mantendo (e veementemente reforçando) quanto ao regime processual vigente – p. ex., na doutrina Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 298 a 303 (maxime 302 e 303) e na jurisprudência os acórdãos do STJ de 8/01/2019 (Ana Paula Boularot), de 25/09/2019 (Ribeiro Cardoso), de 16/12/2020 (Tomé Gomes) e de 1/07/2021 (Rosa Tching), no sítio www.dgsi.pt.
[6] A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
[7] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 191.
[8] P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, p. 113.
[9] Por exemplo, P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, p. 93.
[10] Sem prejuízo do direito do proprietário estar limitado pelas restrições de direito público – a expropriação de utilidade pública, as restrições à construção, as servidões non aedificandi, etc. – ou de direito privado – as que resultam das relações de vizinhança, previstas nos artigos 1344º e seguintes, por exemplo.
[11] P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, p. 116.
[12] Assim o acórdão do STJ de 28/01/2021 (Rosa Tching), no sítio www.dgsi.pt (com vastas indicações jurisprudenciais – também doutrinais – sobre a questão). Também, por recente, ainda que relativo a privação de uso de bem móvel (automóvel), o acórdão do STJ de 17/06/2021 (Cura Mariano), no sítio www.dgsi.pt.
[13] Citado acórdão do STJ de 28/01/2021, estribando-se em Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, 2008, pp. 594-596.