DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OFENSA DO CASO JULGADO
CONTRADIÇÃO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
Sumário


I – É admitida revista independente sobre decisões interlocutórias no caso do artº 671º nº 2 al. a) CPCiv, em que o recurso é sempre admissível, seja em apelação, seja em revista, mas circunscrito ao específico fundamento, no caso, a ofensa de caso julgado.
II – Não existe qualquer contradição entre um despacho que se limita a conceder prazo às partes para se pronunciarem sobre determinada diligência e o despacho posterior, que, esse sim, indefere a diligência.
III – Um primeiro despacho que decide a audição das partes sobre determinada matéria constitui despacho de mero expediente, que não admite recurso, conforme art.ºs 630.º n.º 1 e 152.º n.º 4 CPCiv.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Súmula do Processo

AA e mulher BB intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher DD, EE e mulher FF, GG e mulher HH e II e mulher JJ.

Pediram que:

a) Todos os réus sejam condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre os seus identificados prédios, e sobre a água referida, e, bem assim, o direito de servidão de aqueduto melhor descrito na petição, constituído pelo menos por usucapião e onerando os prédios de todos os réus, nos termos descritos;

b) Os primeiros réus sejam condenados a reporem a situação anterior às obras de construção da vinha que realizaram no local, por forma a assegurar o completo e irrestrito trânsito da água pelo seu prédio, repondo a mina e a canalização no estado anterior, esta em toda a extensão que for necessária até ao prédio dos autores, isto é também pelos prédios dos demais réus.

Na petição inicial requereram a realização de prova por arbitramento a fim de comprovar o estado atual do sistema referido nos articulados, as causas da inexistência de água a partir dos encanamentos e até aos prédios dos autores, bem como para definir as medidas – e o seu custo - que em concreto se tornam necessárias para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios.

Findos os articulados, foi proferido despacho sanador que:

A) fixou à causa o valor de € 30 000,01;

B) fixou como objeto do litígio “o reconhecimento do direito dos Autores à agua de nascente existente no prédio dos 1.ºs Réus e da existência de uma servidão de aqueduto sobre os prédios dos Réus, havendo que, em sede de audiência final, apurar:

- se existe água na mina;

- se a falta de água no prédio dos Autores se deveu à intervenção dos 1.os Réus, por alteração do aqueduto existente, tapando a zona da base da mina com um murete e, na afirmativa, quais as obras necessárias;

- quais as obras necessárias para a reposição da água no prédio dos Autores e qual o seu valor;

- se o direito à utilização da água dos Autores se extinguiu pelo não uso.”

C) determinou “a realização da perícia, cujo objeto não se entende ser impertinente ou dilatório, fixando-se como quesitos:

- qual o estado atual da mina e encanamentos;

- qual a causa (in)existência da água no prédio dos Autores;

- quais as obras realizadas no prédio dos Réus que pudessem ter impedido a passagem da água e, na afirmativa, quais as medidas necessárias – e o seu custo – para que a água dos Autores volte a aceder aos seus prédios.”

Foi junto aos autos o relatório pericial no qual o Sr. perito respondeu aos quesitos formulados nos seguintes termos:

“a) “qual o estado actual da mina e encanamentos;"

De acordo com o descrito no ponto anterior não foi possível aceder ao interior da mina, por ausência de condições de segurança no poço de inspecção (2) e porque a mesma não é acessível a partir da caixa de visita (3).

Os encanamentos encontram-se enterrados e apenas foi possível visualizar as suas extremidades na caixa de visita (3), de acordo com o registo fotográfico anteriormente apresentado. O estado destas extremidades não denota oclusões ou anomalias funcionais que pudessem colocar em causa o escoamento de água nestes locais.

b) “qual a possível causa de (in)existência da água no prédio dos Autores;

Como causas possíveis de inexistência de água no prédio dos autores destacam-se as seguintes:

a) Inexistência de água no local identificado pelo Autor como nascente;

b) Oclusão da mina, por abatimento ou outro motivo, no traçado entre o ponto identificado como nascente (1) e o poço de inspecção (2). Embora possam existir outras causas, admite-se que os trabalhos de compactação associados à construção, com equipamentos pesados, da estrada existente (Rua ...) poderão ter contribuído para a degradação da mina;

c) Caso se consiga futuramente provar que a água atinge o poço de inspecção (2) e que não atinge a caixa de visita (3) poderá existir uma rotura na tubagem em polietileno de alta densidade, instalada no troço da servidão compreendido entre o poço de inspecção (2) e a caixa de visita (3);

d) Caso se consiga futuramente provar que a água atinge a caixa de visita (3) e que não atinge o prédio do Autor poderão existir oclusões ou roturas nas tubagens que dão continuidade à servidão pelos demais prédios atravessados.

Contudo, na medida em que o perito constatou, no dia da visita, que a água não atingia o poço de inspecção (2), as causas mais prováveis serão as indicadas nas alíneas a) e b) do parágrafo anterior.

Atendendo a que o Autor alega que existe uma mina visitável entre o poço de inspecção (2) e o local identificado como nascente (1) o perito recomenda que, em primeiro lugar, se faça uma inspeção neste troço de servidão, por uma equipa de prospeção habilitada a executar este tipo de trabalhos, com indicação dos avanços em termos de comprimento alcançado e registo vídeo em contínuo.

c) “quais as obras realizadas no prédio dos Réus que pudessem ter impedido a passagem da água e, na afirmativa, quais as medidas necessárias, e o seu custo, para que a água dos Autores volte a aceder aos seus prédios.

As obras realizadas no prédio do 1.º Réu foram as de construção de uma vinha, que provavelmente implicaram a mobilização superficial de terras e poderão ter danificado partes dos encanamentos a cota mais elevada.

Caso se consiga provar futuramente que a água da nascente consegue atingir o poço de inspecção (2) e que não atinge a caixa de visita (3), e apenas nestas circunstâncias, haverá que abrir valas e substituir as tubagens com roturas ou danificadas, aterrando as valas no final. Neste sentido, e desconhecendo-se o comprimento total da suposta necessidade de substituição das tubagens, estimam-se como custos das obras os seguintes:

a) Abertura e tapamento de valas numa profundidade até 1,5m: 30,00 €/m;

b) Remoção da tubagem existente e colocação de tubagem nova em PEAD e respetivos acessórios: 12,00 €/m;

No que respeita ao prédio do 2.º Réu bastará, na medida que existe uma tubagem suplementar já instalada em traçado enterrado aquando dos trabalhos de construção da moradia existente, reactivar essa mesma tubagem, ligando-a nas suas extremidades aos troços de montante (no prédio do 1.º Réu) e de jusante (no prédio do 3.º Réu). Estima-se que este trabalho implique um custo de € 175,00.”

Com data de 21.10.2020, as partes foram notificadas do relatório pericial para dele reclamarem ou pedirem esclarecimentos, no prazo de 10 dias.

Na sequência desta notificação, as partes não apresentaram reclamação, não pediram esclarecimentos e nada requereram.

Foi designada data para a realização da audiência de julgamento.

No início da 1ª sessão de julgamento, ocorrida em 14.5.2021, o mandatário dos autores “apresentou requerimento no sentido de se proceder à diligência de prospeção recomendada pelo perito no relatório pericial apresentado, após o que a Mm.ª Juíza proferiu despacho, remetendo para momento posterior à audição das testemunhas a decisão sobre a necessidade de tal diligência.”

No final da sessão de julgamento de 14.5.2021, e terminada a inquirição das testemunhas designada para essa sessão, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Atento o adiantado da hora, interrompo a presente audiência e designo para sua continuação o próximo dia 02 de julho de 2021, pelas 09:30 horas, data que é designada com o acordo dos Il. Mandatários presentes.

Atendendo ao requerimento agora apresentado e à prova produzida, entendo que a diligência, a realizar-se, deverá ser com o acordo de todas as partes, concedendo, 5 (cinco) dias para se pronunciarem sobre o requerimento de prova apresentado pelos Autores no início da presente audiência.”

Em 18.5.2021, os réus CC e DD, apresentaram requerimento no qual referiram que “por entenderem extemporânea e inútil, porque desajustada e fora do âmbito do objeto do processo, não dão o seu assentimento à requerida pretensão dos AA., isto é, à realização de nova ou complementar inspeção ou perícia.”

Em 19.5.2021, os réus EE e FF apresentaram requerimento idêntico referindo que “também não dão o seu assentimento à requerida pretensão dos AA., isto é, à realização de nova ou complementar inspeção ou perícia.”

Sobre a pretensão dos autores foi proferido despacho em 26.5.2021 (ref. ...) com o seguinte teor:

“Como se referiu em sede de audiência qualquer apuramento extra em sede de perícia, teria de ser acordado pelas partes, atendendo que a perícia não tinha sido oportunamente objeto de qualquer reclamação e que a questão central da causa se coloca com a intervenção dos 1.ºs Réus na alteração da estrutura, com a colocação do murete na mina.

Assim, não existindo acordo das partes, nem entendendo oficiosamente o Tribunal necessário o apuramento do estado daquele segmento – quer para o apuramento do direito à água, à servidão e à verificação do facto ilícito imputado ao 1.º Réu – indefiro o requerido complemento da perícia.”

Em 2.7.2021 realizou-se a 2ª sessão de julgamento na qual foram inquiridas as restantes testemunhas, prestadas declarações de parte e produzidas alegações.

Os autores não se conformaram com o despacho ref. ... e interpuseram recurso de apelação, na decisão do qual se verificou a confirmação do despacho recorrido.

                  

Ainda inconformados, voltam a recorrer os Autores, agora de revista, formulando as seguintes conclusões:

1ª – Os autores moveram a presente ação contra os réus reivindicando a propriedade de uma água que nasce no terreno dos primeiros réus e é depois transportada, primeiro através de uma mina, depois por canos subterrâneos, até um tanque situado no prédios dos autores, ou seja, invocaram também uma servidão de aqueduto, alegando que os primeiros réus construíram no seu prédio uma vinha, tendo dessa construção resultado que a água deixou de correr na mina e nos encanamentos, pedindo a condenação desses primeiros réus a reporem a situação anterior, por forma a serem restituídos à água que lhes pertence.

2ª – Os réus reconheceram o direito dos autores, não obstante qualificarem a situação descrita como de servidão de águas e não de propriedade, alegando que a servidão se encontrava extinta pelo não uso, uma vez que cerca do ano de 1960 a água secou por completo e os autores deixaram de poder utilizá-la.

3ª – No requerimento probatório integrado na petição inicial, os autores pediram a realização de prova por arbitramento com o objetivo de “comprovar o estado atual do sistema (…) as causas da inexistência da água (…) bem com o para definir as medidas – e o seu custo – que em concreto se tornam necessárias para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios”, tendo a Exma. julgadora, no despacho saneador, sem se pronunciar sobre esse requerimento dos autores, determinado oficiosamente a realização de uma perícia para a qual formulou quesitos (“qual o estado atual da mina e encanamentos; qual a causa da (in)existência da água no prédio dos autores; quais as obras realizadas no prédio dos réus que pudessem ter impedido a passagem da água e, na afirmativa, quais as medidas necessárias – e o seu custo – para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios”).

4ª – No entanto, no seu relatório, o perito não respondeu aos quesitos formulados pelo tribunal, o que os recorrentes consideraram justificado, porque:

a) quanto ao “estado atual da mina e encanamentos”: “não foi possível aceder ao interior da mina por ausência de condições de segurança no poço de inspeção (2) e porque a mesma não é acessível a partir da caixa de visita (3)”

b) quanto à “possível causa de inexistência de água no prédio dos autores”, depois de referir em abstrato as causas possíveis, não pôde concluir por falta de acesso ao poço e mina, declarando que, a seu ver, necessário se tornava “que em primeiro lugar se faça uma inspeção neste troço de servidão, por uma equipa de prospeção habilitada a executar este tipo de trabalhos, com indicação dos avanços em termos de comprimento alcançado e registo vídeo em continuo”;

c) quanto às “obras realizadas no prédio dos réus que pudessem ter impedido a passagem da água e, na afirmativa, quais as medidas necessárias e o seu custo, para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios”, o perito disse não poder responder senão depois de conhecer o resultado da solicitada prospeção.

5ª – Não tendo esse relatório sido objeto de qualquer despacho (cfr. a ata de audiência de julgamento de 14 de Maio de 2021), no inicio do julgamento, os autores lembraram a necessidade de proceder à diligência de prospeção recomendada pelo perito no seu relatório, “após o que a Mm.a Juíza proferiu despacho remetendo para momento posterior à audição das testemunhas a decisão sobre a necessidade de tal diligência”, seguindo-se a produção da prova com prestação de depoimentos de parte e das testemunhas dos autores, findo o que, foi interrompida a audiência e designado o próximo dia 2 de Julho de 2021 para continuação, com prestação de depoimentos das testemunhas indicadas pelos réus, concluindo, inesperadamente, a Exma. julgadora com um novo despacho do seguinte teor: “Atendendo ao requerimento agora apresentado e à prova produzida, entendo que a diligência, a realizar-se, deverá ser com o acordo de todas as partes, concedendo 5 (cinco) dias para se pronunciarem sobre o requerimento de prova representado pelos autores no início da presente audiência”.

6ª – Os réus responderam nesse prazo que não davam o seu assentimento à realização de nova ou complementar inspeção ou perícia, e os autores, notificados desse requerimento, para si surpreendente, pois tudo levava a crer que os réus anuíssem ao complemento do arbitramento, ao qual não haviam declarado opor-se, fizeram um requerimento lembrando que o senhor perito afirmara no seu relatório que “não foi de todo possível por questões de segurança aceder ao fundo (…) para observação do estado da mina, quer para o lado da nascente (1) quer para o lado da caixa de visita (3)” e que, em consequência, recomendara que “se faça uma inspeção neste troço de servidão, por uma equipa de prospeção habilitada” para lhe permitir “futuramente” responder aos quesitos, lembrando ainda que já estava decidido que a decisão sobre essa matéria só seria tomada “em momento posterior à audição das testemunhas”, ou seja, após a conclusão dos depoimentos das testemunhas ainda não ouvidas.

7ª – Foi então produzido o despacho de que se recorreu para a Relação, decidindo que “Como se referiu em sede de audiência, qualquer apuramento extra em sede de perícia, teria de ser acordado pelas partes, atendendo a que a perícia não tinha sido oportunamente objeto de qualquer reclamação e que a questão central da causa se coloca com a intervenção dos 1ºs réus na alteração da estrutura com a colocação do murete na mina”, pelo que “não existindo acordo das partes, nem entendendo oficiosamente o tribunal necessário o apuramento do estado daquele segmento – quer para o apuramento do direito à água, à servidão e à verificação do facto ilícito do 1º réu” foi indeferido o “requerido complemento da perícia”.

8ª – A decisão recorrida – ao confirmar o despacho que a precedeu, fê-lo, não obstante, com argumentos novos em relação ao decidido em 1ª instância, mas sempre, indeferindo diligências complementares de prova indispensáveis para responder aos quesitos que o próprio tribunal formulara – não pode manter-se, pelas seguintes razões que em parte respeitam a ambas as decisões:

a) É manifesta a violação do caso julgado constituído pelo despacho anterior segundo o qual o tribunal só decidiria a questão após ouvir todas as testemunhas, pelo que, nunca poderia decidir-se antes de serem ouvidas todas as testemunhas e não logo após a audição das testemunhas indicadas pelos autores (artigos 620º e 625º do Código do Processo Civil) sucedendo que, ainda que transitasse em julgado o segundo despacho, nunca este poderia aplicar-se por, ocorrendo colisão de julgados, só o primeiro podia cumprir-se conforme o estabelecido pelos artigos 620º e 625º do Código do Processo Civil;

b) A perícia não foi objeto de qualquer reclamação das partes, mas isso não é impeditivo de qualquer nova diligência, pois a reclamação contra o relatório pericial só pode ser apresentada se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, o que não sucedeu visto que os autores não podiam reclamar contra aquilo com que inteiramente concordavam (cfr. Conselheiro Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, O Processo Comum de Declaração. Fases e Tramitação, págs. 355 a 360);

c) Embora, como entendeu a 1ª instância, a questão central da causa possa entender-se que é o apuramento sobre se houve ou não qualquer alteração de estrutura, com a colocação de um murete, certo é que há outras questões igualmente centrais, e até mais relevantes, para decidir tais como a de saber se existe ou não água a correr na mina e encanamentos, e para responder a estas, por arbitramento, é indispensável a realização prévia dos trabalhos sugeridos pela perícia;

d) O arbitramento foi ordenado pelo tribunal e foi o tribunal que fixou os quesitos a que o mesmo devia responder, pelo que se impunha que a Exma. julgadora tomasse conhecimento das razões invocadas pelo perito para não poder responder aos quesitos, e decidisse o caminho a seguir, removendo os obstáculos ao conhecimento aprofundado e definitivo de toda a matéria objeto do arbitramento – e essa questão nem sequer constitui ónus de qualquer das partes, mas sim dever de ofício da Exma. decisora;

e) A jurisprudência tem decidido que “enquadrando-se o objeto da perícia no âmbito da matéria em discussão da causa quanto à factualidade ainda não assente, relevante para o exame e decisão da causa, só pode a mesma ser indeferida se for impertinente ou dilatória” (cfr. acórdão da Relação do Porto de 21 de março de 2007, proc. 0635835,dgsi.net), e o artigo 485º nº4 do Código do Processo Civil refere que o juiz pode “determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos” sem prejuízo de, como perito dos peritos, poder apreciar livremente a força probatória do arbitramento, sem que, porém possa aprecia-la arbitrária ou discricionariamente (cfr. os acórdãos da Relação de Évora de 18 de maio de 1989, BMJ 387,680 e de 6 de julho de 1993, BMJ 429,910).

9ª – Para além dessas razões, que mantêm a sua oportunidade, não obstante a decisão do acórdão recorrido, a decisão deste no sentido de que entre os dois despachos em causa não é possível de ser suscitada uma questão de colisão de julgados, porque o primeiro despacho é de mero expediente, sendo livremente revogável, e de que o artigo 485º nº 2 do Código do Processo Civil deve ser interpretado no sentido de que as partes devem reclamar do relatório dos peritos, mesmo quando com ele concordem, soma às razões precedentes mais razões de crítica que importa analisar e decidir.

10ª – Com efeito, o despacho que, ante requerimento dos autores lembrando à julgadora a necessidade de se pronunciar, e deferir, sobre a sugestão de produção de elementos complementares de prova, feita pelo perito, não pode ser considerado um despacho de mero expediente, mas, ainda que o fosse, o despacho que revogou aquele antecipando a decisão anunciada, traduz uma imagem de atropelo, falta de isenção e de coerência, incompatível com a necessidade de assegurar o prestígio dos tribunais.

11ª – No entanto, o despacho de que se recorreu não pode ser qualificado tecnicamente como de mero expediente, porque estes são aqueles que são determinados pelo juiz livremente e se limitam a assegurar o andamento regular do processo, de natureza puramente interna ou respeitantes apenas à tramitação do processo, em qualquer dos casos deixando inalteráveis os direitos das partes (A. Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, edição de 1982, página 41, Castro Mendes, Recursos, página 40 e 41, J.A. dos Reis, Comentário ao Código do Processo Civil, 2º volume, página 177, Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, ed. de 1966, 3º volume, página 155 e Abílio Neto, Novo Código do Processo Civil Anotado, comentário ao artigo 630º nº 1 desse código), o que no caso não sucede.

12ª – Com efeito, o anterior despacho não podia ser livremente revogado pelo segundo porque a manutenção daquela primeira decisão, que era espectável, era a única solução que respeitava o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório, tendo os recorrentes o direito de – e esse direito influenciava o tipo de perguntas e questões a pôr às testemunhas – esperar que a questão fosse solucionada só a final, e nunca sob condição de o deferimento ficar condicionado à anuência das outras partes.

13ª – A interpretação dada pelo acórdão recorrido ao nº 2 do artigo 485º do Código do Processo Civil, (no sentido de que “a deficiência da resposta (…) tem que ser entendida de forma ampla, não abrangendo apenas o caso em que a resposta é deficiente (…) mas também a situação em que o perito não consegue responder melhor sem a realização de outras diligências (…)”, sendo “o momento próprio e adequado para requerer a realização da diligência de prospeção (…) o prazo de dez dias subsequente à notificação desse relatório, ou por via de reclamação com fundamento em deficiência da resposta (…) ou por via de dedução de requerimento autónomo”) é absolutamente inadmissível por incomportada pelo significado das palavras, pelos interesses em jogo e pelas regras que impõem nessas hipóteses aos juízes especiais obrigações que não foram cumpridas.

14ª – Com efeito, quando alguém reclama de alguma coisa isso significa que discorda, que protesta, que reivindica, nunca que concorda com aquilo de que reclama (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, edição Verbo) e não há na legislação processual civil qualquer norma que permita sustentar, ao menos por analogia ou identidade de razões, que se pode reclamar daquilo com que se concorda: reclama-se contra irregularidades da venda (artigo 835º), reclama-se contra o indeferimento dos recursos (artigo 643º), reclama-se contra a falta de citação do executado (artigo 851º), reclama-se contra a fixação da matéria de facto na base instrutória (artigo 591º), reclama-se contra a recusa de confiança do processo (artigos 165º e 168º), reclama-se contra nulidades da sentença (artigo 616º), reclama-se contra o despacho do relator (artigo 692º nº 2), reclama-se contra nulidades dos atos (artigo 696º), reclama-se contra o não recebimento da petição (artigo 559º), reclama-se contra o registo de depoimentos (artigo 422º), reclama-se contra os atos dos funcionários da secretaria (artigo 157º nº 5), reclama-se contra a aplicação de taxa sancionatória excecional (artigo 531º).

15ª – Esse argumento, de resto, mais não é do que expressão do propósito de esconder a omissão de um dever funcional do juiz, pois este tem o dever de “determinar a realização de esclarecimentos ou aditamentos dos peritos mesmo quando as partes não apresentem reclamações” dever sobretudo presente “quando as questões colocadas aos peritos assumem natureza técnica específica, demandando especiais conhecimentos que não estão ao alcance do julgador” caso em que “deverá ser exaurida toda a potencialidade da prova pericial, sobretudo quando (…) a restante prova é dispersa e inconclusiva” (acórdão da Relação do Porto de 22 de Novembro de 2010, proc. 1231/07.8TBMAI-A.PI.dgsi.net).

16ª – De nada vale para justificar a recusa, a afirmação constante do despacho de que se levou recurso (“Assim, não existindo acordo das partes, nem entendendo oficiosamente o tribunal necessário o apuramento do estado daquele segmento – quer para o apuramento do direito à água, à servidão e à verificação do facto ilícito imputado ao 1º réu”), pois essa afirmação desacompanhada, como foi, de qualquer justificação, não tem o menor enquadramento legal, designadamente em função do que dispõe o artigo 485º nº 4 do Código do Processo Civil: “ O juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação de esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores”.

Termos em que, na procedência do recurso, deve ser revogado o acórdão recorrido para se tornar possível que o tribunal determine a realização das diligências prévias e complementares de prova recomendadas pelo perito, como condição de resposta aos quesitos que o próprio tribunal formulou, seguindo-se nova vistoria do local pelo perito, para completar o arbitramento e responder aos quesitos a que ainda não pôde responder, quer estas diligências sejam diretamente ordenadas pelo tribunal de recurso, quer venha a ser entendido que só podem ser ordenadas pelo tribunal de 1ª instância, hipótese em que o julgamento efetuado pelas instâncias deve apenas ser anulado, ordenando-se a remessa do processo para o tribunal de 1ª instância, a fim de ser cumprido o que se requer.


Factos Apurados

Encontram-se provados os factos relativos à tramitação do processo e conteúdo do acórdão impugnado, supra resumidamente expostos.


Conhecendo:



I


Em causa, na pretensão da Recorrente, o recurso do acórdão da Relação, proferido em apreciação da decisão interlocutória de 1ª instância que não admitiu determinada diligência de prospecção, em complemento da prova pericial realizada.

Decisão interlocutória ou intercalar, incluída naquelas que se proferem ao longo do processo e que não põem termo à instância, em relação às quais constitui regra geral, em matéria de recursos, a da respectiva impugnação não autónoma, mas diferida e concentrada:

- nos casos de decisões que digam respeito apenas à tramitação na Relação, com o recurso de revista interposto da decisão final (artº 673º CPCiv), a não ser quando a impugnação resultar absolutamente inútil ou nos casos expressamente previstos na lei;

- caso não haja recurso de revista (por dupla conforme ou pela sucumbência, na hipótese do artº 671º nº 1 e sem prejuízo da revista excepcional), em recurso a interpor após trânsito da decisão final (artº 671º nº 4 CPCiv).

A regra da impugnação do decidido interlocutoriamente na revista sobre a decisão final tem porém, ela própria, excepções – ou seja, admite-se revista independente sobre decisões interlocutórias no artº 671º nº 2 als. a) e b) CPCiv.

Quanto à al.a), o recurso é sempre admissível, seja em apelação, seja em revista, mas circunscrita ao específico fundamento (assim, por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pg. 40), fundamento esse que, no caso dos autos, se revelou a invocada ofensa do caso julgado formal - artº 629º nº 2 al. a) CPCiv.

Em matéria de ofensa de caso julgado, o acórdão recorrido forneceu dois tipos de argumentos para o indeferimento da apelação:

- não ocorre qualquer contradição entre os despachos de 14/5/2021 e de 26/5/2021: o primeiro entendeu que a diligência de prospecção requerida deveria ter o acordo de todas as partes, pelo que entendeu ouvir essas partes, para tanto tendo concedido prazo; o segundo, indeferiu o requerido, face à inexistência do projectado acordo, não se considerando também, oficiosamente, necessária a diligência em causa;

- o despacho de 14/5 constituiu despacho de mero expediente, apenas remetendo a apreciação da pretensão para momento posterior e não formando ipso facto caso julgado formal.



II


Salvo o devido respeito, nada existe que acrescentar ao bem fundado do acórdão recorrido, na parte de que nos é lícito conhecer.

Por um lado, não existe qualquer contradição entre um despacho que se limita a conceder prazo às partes para se pronunciarem sobre determinada diligência (ainda que no pressuposto, e apenas, de que a diligência deve ter o acordo das partes) e o despacho posterior, que, esse sim, indefere a diligência.

Por outro lado porque um primeiro despacho que decide a audição das partes sobre determinada matéria não passa de um despacho de mero expediente, que não admite recurso, conforme art.ºs 630.º n.º 1 e 152.º n.º 4 CPCiv, um despacho banal, que não põe em causa a situação subjectiva das partes – na expressão de J. Alberto dos Reis, cit. in Abrantes Geraldes, op. cit., pg. 56.

Diferente da matéria apreciada é, sem sombra de dúvida, o mérito do acórdão recorrido – todavia, sobre esse mérito, é-nos vedada pronúncia, nos termos das disposições legais atrás citadas.


Em resumo:

I – É admitida revista independente sobre decisões interlocutórias no caso do artº 671º nº 2 al. a) CPCiv, em que o recurso é sempre admissível, seja em apelação, seja em revista, mas circunscrito ao específico fundamento, no caso, a ofensa de caso julgado.

II – Não existe qualquer contradição entre um despacho que se limita a conceder prazo às partes para se pronunciarem sobre determinada diligência e o despacho posterior, que, esse sim, indefere a diligência.

III – Um primeiro despacho que decide a audição das partes sobre determinada matéria constitui despacho de mero expediente, que não admite recurso, conforme art.ºs 630.º n.º 1 e 152.º n.º 4 CPCiv.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos Recorrentes.


Lisboa e S.T.J., 09/12/2021

                                              

Vieira e Cunha (relatora)                                               

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes