CONCLUSÕES
ÓNUS DE CONCLUIR
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
INADMISSIBILIDADE
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
TAXA SANCIONATÓRIA EXCECIONAL
Sumário


I. Não padece de excesso de pronúncia o acórdão da Relação que depois de rejeitar o recurso de apelação quanto à impugnação da matéria de facto por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art.º 640º do CPC conhece do mérito da causa;
II. A configuração de tal situação como nulidade de excesso de pronúncia, porque assente em raciocínio objectivamente carente de sustentabilidade, consubstancia um comportamento atentatório da prudência ou diligência devidas, caindo na alçada do art.º 531º do CPC.
III. A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente os factos e a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual, se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação.
IV. Não é admissível, quanto ao recurso da matéria de facto, convite tendente ao aperfeiçoamento das conclusões.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA


ENTRE


AA
(aqui patrocinado por BB, adv.)

Autor / Apelado / Recorrido

CONTRA

CC

e mulher

DD

(aqui patrocinados por EE, adv.)

Réus / Apelantes /Recorrentes



I – Relatório

O Autor intentou acção de reivindicação contra os Réus pedindo:

a) se reconheça o direito de propriedade do autor sobre a totalidade do imóvel identificado no art. 1.º e 2.º da petição inicial;

b) se condene os Réus a desimpedir o acesso ao imóvel e a retirar todos os veículos colocados na parcela situada no topo norte do imóvel;

c) se condene os Réus a proceder à reposição do muro tal como se encontrava antes de aí terem colocado duas fileiras de tijolo e tubos para vedação;

d) se condene os Réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 50,00 por cada dia que impeçam o Autor de aceder livremente ao seu prédio e não retirem os veículos aí estacionados.


Foi proferida sentença que:

a) Reconheceu o Autor como proprietário da totalidade do identificado prédio misto, com a área de 6 808 m2;

b) Condenou os Réus a desimpedir o acesso ao imóvel e a retirar todos os veículos colocados na parcela situada no topo norte do imóvel, concedendo para o efeito um prazo de 15 dias;
c) Condenou os Réus a proceder à reposição do muro tal como se encontrava antes de aí terem colocado tijolo e tubos para vedação, no prazo de 15 dias, sob pena de a obra ser considerada perdida a favor do prédio do autor;

d) Condenou os réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento da condenação referida em b).

Inconformados, apelaram os Réus visando «impugnar a decisão recorrida, vindo questionar a apreciação da prova feita pelo tribunal a quo sobre a matéria carreada na ação bem como a omissão de pronúncia sobre matéria alegada e documentada nos autos pelos RR, com a consequente falta de apreciação e pronúncia da prova testemunhal e documental destes, não havendo sequer alusão àquela, bem como a falta de fundamentação que levou a julgar a acção procedente por parcialmente provada (??), não se aludindo qual a motivação que levou a dar total procedência à acção quando é simultaneamente referido “parcialmente provada” (se é parcialmente provada teria de ser parcialmente procedente)» e requerendo, «por pertinente, a apreciação da prova gravada». E concluem, em síntese, pela errónea apreciação da prova, por omissão de pronúncia, por falta de fundamentação.

   A Relação não conheceu da impugnação da matéria de facto por não se encontrarem satisfeitos os ónus estabelecidos no art.º 640º do CPC e, concluindo pela inexistência das invocadas nulidades de omissão de pronúncia e falta de fundamentação e pela correcção da sentença, manteve, integral e unanimemente, o decidido.

   Irresignados, vieram os Réus interpor recurso de revista excepcional «ao abrigo do art.º 672º, nº 1, do CPC» concluindo, em síntese e tanto quanto se depreende do arrazoado das suas conclusões, por terem satisfeito os ónus estabelecidos no art.º 640º do CPC, ainda que assim não fosse deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento e pela nulidade do acórdão por excesso de pronúncia e contradição.

     Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

      Considerando que, atento o objecto do recurso, não se verificava ‘dupla conforme’, o recurso foi admitido como revista nos termos gerais.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

  O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

   Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC.

    O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC), sendo correcta a qualificação do recurso como revista nos termos gerais efectuada no despacho de admissão do mesmo.

    Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

      Destarte, o recurso merece conhecimento.

      Vejamos se merece provimento.

           


-*-


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

    De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

   Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

    Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da nulidade por excesso de pronúncia;

- da nulidade por contradição;

- do cumprimento dos ónus estabelecidos no art.º 640º do CPC;

- do convite ao aperfeiçoamento.           

           


III – Os factos

A factualidade relevante para a apreciação do objecto do recurso é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

           
IV – O direito

Segundo os Recorrentes o acórdão recorrido padeceria da nulidade prevista no art.º 615º, nº 1, al. d), do CPC – excesso de pronúncia – porquanto não tendo apreciado a impugnação da matéria de facto se deveria abster de conhecer do mérito da causa; ao conhecer do mérito da causa conheceu do que não podia conhecer, fazendo um uso ilegítimo do poder jurisdicional.

   Só por estultícia se compreende uma tal arguição, dada a manifesta irrazoabilidade das consequências resultantes da tese que lhe subjaz: rejeitando-se a impugnação da matéria de facto por não se verificarem os respectivos pressupostos de admissibilidade o tribunal fica impedido de conhecer do mérito da causa, ficando o litígio irresoluto, numa situação de non liquet (expressamente proibida pelo art.º 8º do CCiv).

     O que é quanto baste para se concluir pela improcedência dessa arguição.

           

    Os mesmos recorrentes imputam, ainda, ao acórdão recorrido a nulidade prevista no art.º 615, º 1, al. c) – contradição entre os fundamentos e a decisão – porquanto não obstante rejeitar a reapreciação da matéria de facto «compreendeu-a e efectuou uma exaustiva enumeração, onde se inclui a que os Apelantes impugnaram, a qual utilizou para dar como provada a decisão do tribunal de 1ª instância».

   Não se vê, nem os Requerentes o especificam, como é que o facto de se atentar que a sentença apresenta uma fundamentação da decisão de facto relativamente a todos os factos apreciados (entre os quais figuram aqueles que os Recorrentes entendem mal apreciados) pode gerar alguma contradição com o facto de lançar mão do elenco factual fixado para conhecer do mérito da causa, levando a concluir pela verificação de contradição entre os fundamentos e a decisão.

   Tal arguição mostra-se, assim, manifestamente infundada.

Tais arguições, ademais, assentando em raciocínios objectivamente carentes de sustentabilidade, ao arrepio das posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou dos conceitos e princípios consolidados, atentam contra a prudência ou diligência devidas, caindo na alçada do art.º 531º do CPC.

Estando, no entanto, em causa a aplicação de uma sanção importa assegurar o direito de defesa.

Depois de se estabelecer, no artº 639º do CPC, que o recorrente deve apresentar uma alegação, onde explane os fundamentos pelo que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida, a qual deve ser rematada com conclusões que sintetizem esses fundamentos (enumerando mesmo o conteúdo mínimo dessas conclusões relativamente à matéria de direito no seu nº 2), a lei processual estabelece no seu art.º 640º que o recorrente no caso de impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve, em acréscimo às exigências do art.º 639º , proceder à especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, dos concretos meios probatórios que imponham decisão diversa e da decisão que deve ser proferida, sem contudo, e ao contrário do estabelecido no artigo precedente, fazer qualquer referência ao modo e ao local de proceder a essa especificação.

     No que a tal concerne, tendo em consideração a dupla função das conclusões da alegação – síntese dos fundamentos e concomitante delimitação objectiva do recurso – tem-se gerado o consenso de que as conclusões devem conter uma clara referência à impugnação da decisão da matéria de facto em termos que permitam uma clara delimitação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e que as demais especificações exigidas pelo art.º 640º do CPC devem constar do corpo das alegações (cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., págs. 165-167).

   Como contrapartida do acrescido esforço e alocação de meios que a ampliação dos poderes de cognição da Relação em matéria de facto, decorrentes das mais recentes reformas da lei processual, acarretam, e tendo em vista o bom funcionamento da justiça, vem-se defendendo que a apreciação das exigências estabelecidas no art.º 640º do CPC se efectue segundo um critério de rigor.

  Critério de rigor esse que vise impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se banalize numa mera manifestação de inconsequente inconformismo, mas antes, se contenha nos limites de uma precisa delimitação do objecto a impugnação (especificação dos concretos pontos de facto impugnados), da seriedade dessa impugnação (especificação dos meios probatórios que implicam decisão diversa) e da assunção clara do resultado pretendido (especificação da decisão que deve ser proferida).

  Mas, por outro lado, esse critério de rigor não deve transmutar-se num excesso de formalismo que redunde na denegação da reapreciação da decisão da matéria de facto, em violação dos artigos 2º (proporcionalidade) e 20º (processo equitativo) da Constituição da República e do art.º 6º (processo equitativo) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a propósito de excesso de formalismo enquanto violação do direito a um processo equitativo cf. o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 31MAR2020 no caso “DOS SANTOS CALADO E OUTROS c. PORTUGAL”, nº 55997/14).

  Em suma, a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no artº 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.

   No caso dos autos os Recorrentes optaram por estruturar toda a sua argumentação em função da apreciação dos meios probatórios numa perspectiva de omissão de pronúncia; e dessa forma espraiaram-se em considerações quanto ao conteúdo de depoimentos e de uma diversidade de documentos ou circunstâncias, pondo em causa o acerto da fixação do elenco factual; mas com essa estruturação perderam o foco naquilo que era essencial, que era a especificação dos pontos de facto que pretendiam ver alterados e o sentido dessa alteração.

   Com efeito em ponto algum das suas conclusões se encontra qualquer referência à especificação (acto de particularizar, explicar pormenorizadamente, determinar com precisão) dos concretos pontos de facto que entendiam mal apreciados pela sentença recorrida; pelo contrário, mantêm-se arreigados à estrutura argumentativa que elegeram imputando à sentença recorrida não erro de julgamento quanto à matéria de facto, mas antes nulidade por omissão de pronúncia, impetrando que «na procedência da apelação, deverá anular-se a sentença recorrida, e determinado que seja, substituída por outra que determine a análise da prova testemunhal produzida pelos RR».

    E ainda que no corpo da alegação se possa encontrar referências a pontos de facto (quer por referência à sua referenciação no elenco factual quer pela sua enunciação) elas caracterizam-se por uma imprecisão contextual que não possibilitam, ainda que por dedução, alcançar o nível de precisão e seriedade estabelecido pelo art.º 640º do CPC.

    Sendo que, de acordo com jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal (cf. acórdãos de 25NOV2020, proc. 950/18.8T8VIS.C2.S1, 09FEV2021, proc. 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1, 25MAR2021, proc. 756/14.3TBPTM.L1.S1, e 08SET2021, proc. 5404/11.0TBVFX.L1.S1), não é legalmente admissível, quanto ao recurso da matéria de facto, convite tendente ao aperfeiçoamento das conclusões.


V – Decisão

Termos em que:

- se nega a revista confirmando a decisão recorrida;

- se concede ao Recorrentes o prazo de 10 dias para, querendo, se pronunciarem sobre a aplicação de taxa sancionatória excepcional.

Custas da revista pelos Recorrentes.

                                                                                  

Lisboa, 09DEZ2021

Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista