EXECUÇÃO
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
SÓCIO
PATRIMÓNIO
FACTO CONSTITUTIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Sumário


I. A existência de bens e a sua partilha entre os sócios da sociedade extinta constitui um facto constitutivo nos termos e para os efeitos do regime previsto no artigo 163.º, n.º 1, do CSC.
II. Não tendo a exequente alegado e provado que o sócio tenha recebido algum bem por força da partilha, não poderá a execução prosseguir contra o sócio.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


Recorrente: Super Bock Bebidas, S.A.

Recorrido: AA


1. Nos presentes autos de execução foi proferido o seguinte despacho:

“O exequente vem requerer que os autos de execução prossigam contra AA, sobre a quantia de €33.389,46, que o sócio recebeu em “partilha”.

Alega que a extinção foi administrativa sem activo ou passivo mas invoca a existência de um ativo líquido no valor de €40.618,83 em 2009 e €33.389,46 em 2010, pelo que se deve presumir que este recebeu em partilha e deve ser responsabilizado.

Decidindo.

Os presentes autos não podem prosseguir como acção para prestação de contas como parece pretender o exequente, pois os autos de execução, carecem de uma certeza e exigibilidade necessária para a cobrança coerciva que é apanágio das execuções e que inexiste no caso subjudice.

Terá o exequente de impugnar a partilha efectuada e intentar acção declarativa a propor contra a generalidade dos sócios, também representados pelos liquidatários, e considerando que cada sócio apenas responde até ao montante que recebeu na partilha (art. 163°, n° 1, do CSC), o demandante terá que justificar, na petição inicial, que, aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens e/ou valores e que esses bens e/ou valores foram distribuídos pelos sócios demandados e assim obter sentença que passar a constitui titulo executivo contra o liquidatário, provado que seja na declarativa que aquele recebeu bens e valores que não recebeu em determinado valor que passara a ser o limite da sua responsabilidade nos termos do artº 163 do CSC.

A acção declarativa a intentar é semelhante à prevista no Ac. do TR Guimarães de 18.01.2011 Proc. 929/08.8TBCSC.G1 onde se escreveu que Impende sobre a Autora, para lograr a responsabilidade daqueles nos termos do citado preceito legal, o ónus de alegar e provar que a sociedade tinha bens e que esses bens foram partilhados entre os sócios, em detrimento da satisfação do seu crédito.

De igual forma o Ac. Do TRP de 18.05.2017 in Proc. 2899/15.7T8LOU.P1 considerou que não obstante a dispensa de habilitação do ex-sócio consignada no art.º 162º do CSC, a substituição da sociedade não é automática nem ilimitada.

Não pode a execução prosseguir contra alguém que, não figurando no título executivo, também não viu ser feita alegação e prova, em procedimento declarativo, dos pressupostos da sua responsabilidade, processo que justamente visa a definição do direito e da obrigação, assim como dos respetivos titulares e obrigados. A exequente não dispõe de título executivo contra o executado, dado que este não foi condenado; apenas o foi a sociedade de responsabilidade limitada. Assim, o executado, perante o título dado à execução, é parte ilegítima.

Pelo exposto, indefere-se o pedido do exequente de prosseguimento da execução contra o sócio AA.

Mostrando-se os autos de insolvência quanto à executada insolvente IMPÉRIO DE SONS Unip. Lda (Tribunal Judicial da Comarca do ..... Este Processo: 1349/16...., Juízo de Comércio de ... - Juiz ...) encerrado por insuficiência de massa (artºs 230º nº 1 alínea d) do CIRE) deverá o Sr. Agente de Execução extinguir exceução quanto a esta nos termos do artº 88 nº 3 do CIRE, indeferindo-se o pedido do exequente de prossecução da execução, por inadmissibilidade legal do artº 88 nº 3 e 230 nº 1 al. d) CIRE.

L... d.s.”.


2. Interposto recurso de apelação pela Super Bock Bebidas, S.A., veio o Tribunal da Relação ... julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.


3. É deste Acórdão do Tribunal da Relação que a recorrente Super Bock Bebidas, S.A., vem interpor o presente recurso de revista.

Termina com as seguintes conclusões:


Vem o presente recurso de revista excecional interposto do aliás douto acórdão do 12/01/2021 que julgou improcedente a apelação dirigida ao Venerando Tribunal da Relação ..., por sua vez interposta da decisão de 1ª instância que indeferiu o prosseguimento da execução contra AA, único sócio da sociedade dissolvida IMPÉRIO DOS SONS LDA.


Verificam-se, assim, os requisitos previstos no artº 672.º do C.P.C.: (1) questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; (2) interesses de particular relevância social; e (3) necessidade / conveniência de harmonização de jurisprudência, pelo que o recurso deve ser admitido.


Na pendência de processo executivo, instaurado contra a sociedade IMPÉRIO DOS SONS LDA, constatou-se, no mesmo, que a sociedade devedora fora extinta, por decisão de 08/03/2016, através de dissolução administrativa (cfr. AP. ... na certidão da C. R. Comercial já junta aos autos.


Nos termos de despacho de 14/04/2020, em 27/04/2020, a exequente requereu o prosseguimento da execução contra o sócio único daquela sociedade, nos termos que aqui se dão como integrados e reproduzidos, invocando matéria a tanto necessária, v.g. (1) o regime de da extinção e liquidação de sociedades, (2) as circunstâncias concretas da extinção oficiosa, pelo Conservador do Registo Comercial, da mesma, (3) a unipessoalidade que a caracterizava, na pessoa do sócio e gerente único (o requerido AA), (4) a inexistência de liquidatários, (5) a substituição da sociedade pelo seu sócio único (artºs 163º e 164º do CSC), (6) cuja notificação foi requerida para exercício do contraditório (artºs 157º, 158º, nº 1, 162º, 163º e 164º do CSC), (7) o recebimento, pelo mesmo, do ativo da sociedade, (8) a inexistência de uma verdadeira partilha (dado estarmos perante um sócio único e, portanto, perante uma inexistência de comunhão de bens; cfr., artºs 154º, nº 1 e 163º nº 1, do CSC), (9) a violação do disposto no artº 157 do CSC, (10) a responsabilidade do requerido, quer nos termos gerais quer nos termos especiais do art. 158º do mesmo diploma, (11) o valor do activo existente e recebido, com base na contabilidade disponível da sociedade dissolvida, (12) indicando prova documental, protestando juntar outra, logo que obtida e oferecendo prova testemunhal.


O douto acórdão recorrido defendeu, para indeferir aquele pedido, em resumo, que (1) “para fazer acionar esta responsabilidade pessoal dos ex-sócios é necessário que se prove que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens, ou alguns desses bens, reverteram para eles, recaindo o ónus da alegação e prova de tais factos sobre o credor, nos termos do disposto no art." 342°, n.° 1, do Código Civil”, (2) que, nos termos do art° 54 n° 1 do CPC, “o exequente tem de deduzir esses factos constitutivos da sucessão, (3) o que a Recorrente não fez “referindo a existência de um activo líquido no valor de 40.618,83€ em 2009 e 33.389,46€ em 2010, pretendendo dever presumir-se que o sócio recebeu em partilha e deve ser responsabilizado”, (4) entendendo que “esta referência não satisfaz o imperativo da alegação dos factos concretos da existência de bens e da sua partilha entre os sócios”.

Isto posto,


Em Portugal verifica-se uma verdadeira "epidemia" de dissolução de sociedades "sem activo nem passivo", quando tal situação não corresponde à realidade, (1) nuns casos, voluntariamente (lavrando-se ata / deliberação falsa, nesse sentido), (2) noutros casos deixando de cumprir as obrigações legais, fiscais e registrais (por exemplo, não apresentando nem depositando as contas anuais, etc), provocando - como foi o caso - a sua dissolução oficiosa pela própria conservatória do registo comercial.

7o

Assim, as questões em causa, no presente recurso, são as seguintes:

- Perante o registo da dissolução e do encerramento da liquidação da sociedade unipessoal executada, por declaração oficiosa de cessação de atividade (nº 6 do art.º 8º do CIRC, nº 3 do art.º 114 do CIRS e nº 2 do art.º 34 do CIVA; alínea c/ do artº 5º do RJPADLEC), e da circunstância de, no processo da respetiva dissolução administrativa, constar a inexistência de ativo e passivo a liquidar, a execução deverá ser declarada extinta por inutilidade (ou impossibilidade) na prossecução da respetiva lide nos termos do artº 269º/3 NCPC? Ou, se requerido, deverá prosseguir contra o sócio único daquela sociedade? E, neste último caso, terá o exequente - sempre - o ónus da alegação e prova da existência de ativo e partilha? Devendo nomear concretamente os bens que o sócio único recebeu? Ou bastando-lhe invocar que, nos termos da contabilidade existente, a sociedade tinha determinados valores do activo, indicando prova (a realizar) para a sua determinação concreta, com observância do princípio do contraditório? Ficando sujeita à sindicância do executado ou terreiros, na hipótese de virem a ser penhorados bens que não recebeu da sociedade e/ou que ultrapassem o seu valor? Recaindo sobre os sócios o competente ónus da prova?


Fazendo-se notar que o douto acórdão recorrido parece partir de um errado pressuposto: Refere-se sempre à “partilha entre os sócios”, quanto no presente caso estamos perante uma sociedade unipessoal…


Ora, as questões à volta de tal problemática vêm, desde há anos, a levantar-se de forma cada vez mais frequente nos tribunais portugueses, e serão com certeza multiplicadas e recorrentes em face das mais do que previsíveis (certas) consequências económicas da pandemia que se vive atualmente (mais insolvências, mais dissoluções de sociedades, mais execuções, etc.) e, em consequência, um maior aumento de litigância responsabilizadora dos sócios das sociedades dissolvidas.

10º

Pelo que constitui um interesse da maior relevância jurídica e social que nomeadamente as questões levantadas neste recurso sejam resolvidas em termos claros e justos, e não (sempre salvo o devido respeito por melhor opinião) no sentido assaz criticável em que o foi no douto acórdão ora em revista.

11º

Também a jurisprudência não tem sido unânime na resolução destas questões.

12º

Em primeiro lugar, quanto à questão de saber a quem incumbe o ónus de prova da (in)existência de partilha daquele ativo pelos sócios: se este ónus recai sobre a esfera dos credores, alegando e provando a existência de bens sociais e partilha como facto constitutivo do seu direito (cfr. art. 342.º, n.º 1 CC); ou se são os sócios que, instados a responder pela dívida societária terão de alegar e provar a inexistência de bens partilhados como fato impeditivo do direito dos credores (cfr. art. 342.º, n.º 2 CC). 13º

Ora, o douto acórdão recorrido decidiu a favor da tese do “facto constitutivo” e não da do “facto impeditivo”, contrariando toda a jurisprudência que, nesse sentido, antes se referiu nas alegações, e, ainda, o decidido no douto acórdão do T. R. Lisboa, no Proc. 449/08.0TTCSC.1.L1-4, em que foi Relatora MARIA JOÃO ROMBA, proferido em 08-03-2017, e de que se junta cópia autenticada: “Tendo, no decurso de execução de sentença relativa a créditos laborais, ocorrido a extinção por dissolução administrativa da sociedade devedora, cabe apenas a cada um dos respectivos ex-sócios-, contra os quais a execução prossegue, sem necessidade de habilitação – provar que não recebeu em partilha bens suficientes para satisfazer a dívida exequenda, uma vez que essa eventualidade é matéria de excepção perentória, tratando-se de factos impeditivos do direito da exequente”.

13º

Em segundo lugar, quanto à questão da produção de prova e sujeição ao contraditório, no contexto do incidente em causa, ou seja, se o tribunal podia, pura e simplesmente, indeferir aquele requerimento ou, antes, sujeitá-lo à produção de prova e contraditório.

14º

Contrariando, também, a jurisprudência indicada nas alegações, e, concretamente, o decidido pelo douto Acórdão de 23/03/2020, transitado em julgado, do T. R. P. proferido no Proc. 11345/06.6YYPRT, que ora se junta por cópia autenticada: “Isto dito e tendo sido o próprio exequente que requereu o prosseguimento da execução contra os antigos sócios da dissolvida e liquidada sociedade executada, não podia o tribunal recorrido indeferir o assim requerido estribado na simples afirmação de que os autos não dispunham de qualquer elemento que permitisse responsabilizar os antigos sócios pela dívida reclamada.

Com efeito, pode até não ter havido uma verdadeira fase de liquidação, tal como esta vem desenhada nos artigos 146º e seguintes do CSC. Isto, porém, não significa que não houvesse bens para partilhar e que, portanto, os antigos sócios da dissolvida e liquidada sociedade não tenham recebido bens do seu património em partilha. (…) Procede, assim, o recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento do incidente deduzido, com a produção de prova indicada ou outra que se revele pertinente, evidentemente com a necessária abertura do contraditório.

15º

Em terceiro lugar e como consequência do antes referido, quanto à questão do controlo posterior ao deferimento de tal incidente, ou seja, se a Recorrente teria apenas que alegar a qualidade de sócio único do requerido relativamente à sociedade dissolvida para o peticionado ter sido liminarmente deferido.

16º

Contrariando, também, a indicada jurisprudência, e, concretamente, o decidido pelo douto acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, nº RP201312092726/10.1TBMTS-A.P1, proferido em 09-12-2013, de que se junta cópia autenticada: “Neste caso há que alegar e provar que os demandados eram sócios da sociedade dissolvida, deixando para a fase executiva e mais concretamente para a penhora a discussão sobre se o bem penhorado adveio ao executado pela partilha da sociedade extinta”.

17º

Assim, o acórdão recorrido está, relativamente às questões concretas fundamentais de direito antes indicadas, em manifesta contradição com a jurisprudência antes mencionada, designadamente com os três acórdãos transitados cujas cópia se juntam, o que acontece no domínio da mesma legislação, inexistindo acórdão de uniformização de jurisprudência sobre tais matérias.

18º

O meio processual utilizado foi o próprio.

19º

Não é verdade que a Recorrente tinha incorrido na falta de invocação dos factos concretos da existência de bens e da sua partilha entre os sócios.

20º

Primeiro, porque estamos perante uma sociedade unipessoal e, portanto, não houve partilha: os bens existentes foram todos para o sócio único.

21º

Depois porque, com base nos elementos documentais disponíveis, e como se transcreveu no anterior item “2” (Contexto processual) foram indicados os elementos concretos do activo que existiam nos anos em que foram prestadas contas.

22º

E teria que ter sido ordenado o prosseguimento do incidente, para dar oportunidade à exequente de produzir a prova arrolada, decidindo depois em conformidade e de acordo com o quadro factual que daí resultasse.

23º

Foi cumprido pela Recorrente o disposto no artigo 54º nº 1 do C. P. Civil, procedimento este que pode correr na fase executiva.

24º

Foi violado o direito à prova da Recorrente: esta solicitou logo determinadas diligências probatórias (supratranscritas, necessárias e determinantes para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa), para comprovação dos valores que foram objeto de “partilha / integração patrimonial” (não formal – que essa não “existiu” -, mas REAL, EFETIVA, MATERIAL) dos bens sociais, para, então, se poder concluir se os direitos dos credores foram ou não acautelados - o que lhe foi negado.

25º

A Recorrente invocou e pretendeu demonstrar, em processo executivo, que os bens (o activo da sociedade, o seu volume) passaram para a esfera do (antigo) sócio único, discriminando os valores de Existências, Matérias-primas, Créditos sobre terceiros, Depósitos bancários e Caixa. 26º

Demonstrou documentalmente a existência de activo, separado por diversos itens, espécies e valores e pretendeu, com a indicação de testemunhas, a prova de que tais bens (também) transitaram para a esfera do requerido, a par da transferência do vínculo jurídico.

27º

Assim, a Recorrente defende que perante o registo da dissolução e do encerramento da liquidação da sociedade unipessoal executada, por declaração oficiosa de cessação de atividade (nº 6 do art.º 8º do CIRC, nº 3 do art.º 114 do CIRS e nº 2 do art.º 34 do CIVA; alínea c/ do artº 5º do RJPADLEC), e da circunstância de, no processo da respetiva dissolução administrativa, constar a inexistência de ativo e passivo a liquidar,

28º

a execução não deverá ser declarada extinta por inutilidade (ou impossibilidade) na prossecução da respetiva lide, nos termos do artº 269º/3 NCPC,

29º

porque, se requerido pelo exequente, deverá prosseguir contra o sócio único daquela sociedade.

30º

Não tendo o exequente – sempre – o ónus da alegação e prova da existência de ativo e partilha, recaindo sobre os sócios o respetivo ónus da prova (factos impeditivos) - (cfr., além do mais, o antes citado acórdão do T. R. Lisboa, no Proc. 449/08.0TTCSC.1.L1-4, em que foi Relatora MARIA JOÃO ROMBA, proferido em 08-03-2017).

31º

Bastando-lhe nomear o volume dos bens do ativo existentes, bastando-lhe invocar que, nos termos da contabilidade existente, a sociedade tinha determinados valores do activo, indicando prova (a realizar) para a sua determinação concreta, com observância do princípio do contraditório (cfr., o antes citado Acórdão de 23/03/2020, transitado em julgado, do T. R. P. proferido no Proc. 11345/06.6YYPRT).

32º

Ficando a posterior nomeação e penhora de bens sujeita à sindicância do executado ou terceiros (v.g. por oposição ou embargos), na hipótese de virem a ser penhorados bens que não recebeu da sociedade e/ou que ultrapassem o seu valor (cfr., Ac. TRP nº RP201312092726/10.1TBMTS-A.P1, proferido em 09-12-2013).

33º

Como se vê, o douto acórdão recorrido está em contradição com toda a jurisprudência antes indicada, designadamente a vertida nos acórdãos de que se junta cópia.

34º

Face ao antes exposto, nos termos e com os fundamentos acima expostos, o Tribunal deveria, ao contrário do decidido, ter julgado o incidente procedente e ordenado o prosseguimento da execução contra o requerido, ordenando a produção da restante prova solicitada, tudo com sujeição ao princípio do contraditório.

35º

Não o tendo feito, violou o douto acórdão recorrido, por erro de interpretação, os citados preceitos, diplomas e princípios legais, devendo ser revogado e substituído por outro que julgue no sentido antes defendido, assim se fazendo justiça”.


5. Não foram produzidas contra-alegações.


6. Os autos subiram a este Supremo Tribunal, onde a ora Relatora, verificando que a recorrente invocava, entre outras coisas, a hipótese prevista no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, e se referia, nesse contexto, a diversos acórdãos, juntando a certidão comprovativa do trânsito de três, proferiu, em 20.10.2021, um despacho cujo teor, na parte essencial, é o seguinte:

Dispõe-se no artigo 637.º, n.º 2, do CPC:

“O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”.

Ao arrepio desta norma, que prescreve a individualização de um acórdão fundamento, a recorrente refere-se, como se viu, a três arestos, sendo certo que nem qualifica qualquer deles como “acórdão fundamento”.

Segundo a recorrente, existiria uma pluralidade de questões, daí os três acórdãos.

Mas o certo é que isto corresponde a um desdobramento artificial, logo indevido, da questão apreciada e decidida no Acórdão do Tribunal da Relação. Na verdade, esta respeita a saber o que é preciso para que os autos de execução prossigam contra o sócio (nas palavras do Tribunal recorrido, “em apurar se a presente execução deve prosseguir contra o sócio único da sociedade dissolvida, como sucessor desta”), designadamente se é necessária a alegação dos factos concretos da existência de bens no património social e da sua partilha pelos sócios.

A uma única questão há-de, pois, corresponder um único acórdão fundamento.

Além da necessidade do cumprimento do disposto na lei, esta não é uma situação em que quod abundat non nocet.

Explica-o bem Abrantes Geraldes a propósito da revista excepcional: “por razões que facilmente se compreendem, a sustentação da admissibilidade da revista excecional deve fazer-se a partir da apresentação e apreciação de um único acórdão (relativamente a cada questão de direito cuja resposta motive a interposição de recurso), não sendo de tolerar a apresentação de diversos arestos, deixando para o STJ o ónus de proceder à sua destrinça” [1] e, a propósito da revista para uniformização de jurisprudência, que “[p]or razões pragmáticas, relativamente à questão de direito objeto de controvérsia jurisprudencial, juntar-se-á apenas um único acórdão, ainda que existam outros no mesmo sentido, salvo se houver multiplicidade de questões sujeitas a semelhante divergência, qualquer delas fundamental para a decisão do caso concreto” [2].

A regra do acórdão único vale para todos os recursos de revista em que tenha de ser apurada uma contradição jurisprudencial, nomeadamente para os recursos interpostos nos termos do artigo 629.º, n.º 2, als. c) e d), e do artigo 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, que, pela identidade de fundamento, devem ficar todos sujeitos a um regime comum[3].

Perante isto, a solução que se apresenta como mais razoável, para já, é a de convidar os recorrentes a escolher entre os acórdãos indicados aquele em relação ao qual pretende que venha a ser apreciada, para os efeitos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, a invocada oposição de julgados[4].

 Profere-se, assim, uma espécie de despacho-convite ao aperfeiçoamento, sendo analogicamente aplicáveis, inter alia quanto ao prazo, o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC e ainda no artigo 652.º, n.º 1, al. a), ex vi do artigo 679.º do CPC.

Pelo exposto, convida-se os recorrentes a esclarecer, no prazo de cinco dias, qual dos acórdãos por ela indicados pretende que seja, a final, considerado o acórdão fundamento para efeito da contradição de julgados, conforme prescrito no artigo 637.º, n.º 2, do CPC.

Notifique”.


7. Notificada deste despacho, apresentou a recorrente requerimento, no qual vem:

A/

RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA, nos termos do artº 652 nº 3 do CPC, ex vi artº 679 do mesmo diploma, e com os fundamentos seguintes:


O douto despacho antes identificado convidou a Recorrente a indicar um único acórdão fundamento, entendendo estar em causa uma única questão de direito e, ainda, um “desdobramento artificial, logo indevido” realizado por aquela nas suas alegações e conclusões da questão em causa no recurso.


Ao inverso, a Recorrente indicou três acórdãos “fundamento” porque ajuizou serem três as questões autonomizáveis e em causa, ou seja, e em resumo:

1. A questão de saber a quem incumbe o ónus de prova da (in)existência de partilha do ativo pelos sócios em caso de dissolução de sociedade, para efeitos de prosseguimento de execução contra sócio:

• Tendo-se indicado como acórdão fundamento o douto acórdão do T. R. Lisboa, no Proc. 449/08.0TTCSC.1.L1-4, em que foi Relatora MARIA JOÃO ROMBA, proferido em 08-03-2017;

2. A questão da produção de prova e sujeição ao contraditório, no contexto do incidente em causa, ou seja, se o tribunal podia, pura e simplesmente, indeferir aquele requerimento ou, antes, deveria sujeitá-lo à produção de prova e contraditório:

• Tendo-se indicado como acórdão fundamento o douto Acórdão de 23/03/2020, transitado em julgado, do T. R. P. proferido no Proc. 11345/06.6YYPRT;

3. A questão do controlo posterior ao deferimento de tal incidente, ou seja, se a Recorrente teria apenas que alegar a qualidade de sócio único do requerido relativamente à sociedade dissolvida para o peticionado ter sido liminarmente deferido:

• Tendo-se indicado como acórdão fundamento douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, nº RP201312092726/10.1TBMTS-A.P1, proferido em 09-12- 2013.


As referidas questões não se confundem e relativamente a cada uma delas existe jurisprudência contraditória, a que urge por cobro (designadamente tendo em vista o objetivo latitudinário de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica).


A Recorrente alegou e justificou, mencionando razões objetivas e concretas pelas quais a relevância das três questões que selecionou, identificando-as, se revela, e, ainda (justificou) a sua apreciação, a título excecional, como sendo claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.


Nada impede que a Recorrente tenha elegido mais que uma questão, sendo que o objeto da revista se afere pela questão ou questões efetivamente selecionadas, relativamente às quais se julgue verificado o requisito de excecionalidade, sendo que entendimento diverso violaria por erro de interpretação o disposto nos artºs 672 e 674 do CPC.


Daí, a interposição do presente recurso, nos termos em que o foi, com carácter normativo, destinado a fixar critérios para a interpretação e aplicação uniformes do direito pelos tribunais, e, com isso, promovendo os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a Lei.


Concluindo:

1. No domínio da mesma legislação, existem neste recurso três questões autonomizáveis de direito, que não se confundem, e relativamente às quais (1) existe jurisprudência contraditória e (2) foram indicados (para cada uma) três acórdãos fundamento;

2. Deve assim o interposto recurso ser admitido e julgado, exatamente nos termos em que foi deduzido, sob pena de ser violado, por erro de interpretação o disposto nos artºs 672 e 674 do CPC, assim se fazendo

B/

Caso assim se não venha a entender (ou por inadmissibilidade da ora deduzida reclamação ou por improcedência dos seus fundamentos), desde já, à cautela e com caráter subsidiário, em obediência do douto despacho de 20/10/2021, vem esclarecer que deve ser considerado como acórdão fundamento o douto acórdão do T. R. Lisboa, no Proc. 449/08.0TTCSC.1.L1-4, em que foi Relatora MARIA JOÃO ROMBA, proferido em 08-03-2017, supra melhor identificado”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se, uma vez dissolvida a sociedade, para que a execução contra proposta contra esta prossiga contra o sócio é necessário que o exequente alegue e prove que a sociedade tinha bens e que houve partilha do património social.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Do Acórdão recorrido remete-se para o conjunto de factos constantes do relatório e aqui reproduzidos, sendo também estes os que se consideram relevantes para a decisão da causa.


O DIREITO

Nota sobre a admissibilidade do presente recurso e a delimitação do seu objecto

O presente recurso é interposto como revista excepcional.

Como é sabido, a revista excepcional está reservada aos casos em que existe dupla conforme, o que, tanto quanto se pode verificar, é o caso dos presentes autos.

Mas, antes de se analisar da existência de dupla conforme e de, confirmando-se a dupla conforme, se remeter o recurso à Formação, para aí serem apreciados os pressupostos da revista excepcional, é sempre preciso que se assegure que não existe qualquer impedimento à admissibilidade da revista além da dupla conforme.

Sucede que, nos casos do tipo aqui em causa, a lei restringe fortemente a possibilidade de recurso de revista.

Dispõe-se no artigo 854.º do CPC:

[s]em prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.

Quer isto dizer que, no âmbito do processo executivo, não há, em regra, recurso de revista, sendo esta apenas admissível em casos contados: quando os acórdãos da Relação sejam proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos ou de oposição deduzida contra a execução.

Ora, a presente revista não cabe (manifestamente) nestes casos.

Subsiste, contudo, ainda uma possibilidade: a possibilidade de a revista ser reconduzida a algum dos casos em que o recurso é sempre admissível, previstos no artigo 629.º, n.º 2, do CPC, e expressamente salvaguardados no artigo 854.º do CPC.

Não obstante a recorrente não se referir expressamente à norma do artigo 629.º do CPC, a verdade é que, como se viu, nas suas alegações de revista, ela invoca a contradição do Acórdão recorrido com outros acórdãos. Deve, consequentemente, apreciar-se da hipótese de o recurso ser admitido ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC.

Os requisitos de aplicabilidade desta norma são três: contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão; insusceptibilidade de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal; inexistência de acórdão de uniformização de jurisprudência conforme com o acórdão recorrido.

Concentre-se a atenção na contradição jurisprudencial em causa: ela consubstancia-se numa oposição frontal entre as respostas dadas pelos dois acórdãos (acórdão recorrido e acórdão fundamento) à mesma questão essencial de direito.

Olhe-se agora para o Acórdão recorrido com o intuito de identificar a questão essencial de direito e a resposta que lhe foi dada.

Nas palavras do próprio Tribunal, a questão consiste em “apurar se a presente execução deve prosseguir contra o sócio único da sociedade dissolvida, como sucessor desta”.

A resposta é negativa pelo facto de o exequente / ora recorrente não ter cumprido “a inquestionável necessidade da alegação de que a sociedade tinha bens e que esses bens foram pelos sócios partilhados”.

Explica-se no Acórdão recorrido:

É consensual o entendimento de que para fazer accionar esta responsabilidade pessoal dos ex-sócios é necessário que se prove que a sociedade tinha bens e que, em consequência da sua dissolução e extinção, esses bens, ou alguns desses bens, reverteram para eles, recaindo o ónus da alegação e prova de tais factos sobre o credor, nos termos do disposto no art.º 342º, n.º 1, do Código Civil.

Conceptualmente têm-se a existência de bens e a sua partilha entre os sócios como elementos constitutivos do direito do credor. Esse direito sobre os sócios só surge se tiver havido partilha de bens. Sem existência de bens e sua partilha pelos sócios não há, pois, qualquer direito do credor da sociedade em relação aos sócios (…)

É certo que o exequente não dispõe de título executivo contra o sócio da sociedade condenada, não sendo, por isso, ele o devedor que figura no título mas, como se viu, no artigo 54º do Código de Processo Civil consagra-se um desvio a esta regra geral, contemplando nomeadamente, em sede de acção executiva, esta situação da responsabilidade do sócio relativamente ao património ex-social. Estes desvios configuram uma habilitação-legitimidade.

Sendo, como foi dito, a existência de bens e a sua partilha entre os sócios elementos constitutivos do direito do credor, o referido artigo 54º, nº1 estatui que no próprio requerimento para a execução o exequente tem de deduzir esses factos constitutivos da sucessão”.

Olhe-se, depois, para o Acórdão fundamento selecionado pela recorrente – o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 8.03.2017, no Proc. 449/08.0TTCSC.1.L1-4.

A questão é, parafraseando este Tribunal, a de “saber sobre quem recai o ónus de alegar e provar que os sócios de sociedade anónima dissolvida e liquidada administrativamente na pendência de uma acção executiva que contra ela corria termos, receberam em partilha bens da sociedade”.

Responde-se que “a extinção da sociedade devedora, após a propositura da acção executiva, por dissolução administrativa, tem como consequência, por força do disposto pelo art. 162º do CSC, a substituição da sociedade dissolvida pela generalidade dos respectivos sócios, sem necessidade de habilitação” e que “embora, nos termos do art. 163º nº 1 do mesmo código, os antigos sócios só respondam pelo passivo social não satisfeito até ao montante que receberam na partilha do património da sociedade, não pode recair sobre a exequente o ónus de prova desse facto (que não é, de forma alguma, constitutivo do seu direito, uma vez que esse estava já reconhecido, tendo a obrigação correspectiva sido automaticamente transmitida, ope legis para os ex-sócios)”.

Adianta-se ainda no Acórdão fundamento que:

Caberá apenas a cada um dos ex-sócios, se for caso disso, provar que não recebeu em partilha bens suficientes para satisfazer a dívida exequenda, ou seja, essa eventualidade é matéria de excepção peremptória, tratando-se de factos impeditivos do direito da exequente ao prosseguimento da execução contra os ex-sócios da devedora, sua ex-empregadora, como disposto pelo art. 162º (…)”.

Quer dizer: no entender do Tribunal recorrido, no caso de dissolução da sociedade, para que a execução proposta contra esta possa prosseguir contra os sócios, é preciso que o exequente desenvolva esforços no sentido da alegação e da prova dos factos constitutivos da sucessão, designadamente a partilha de bens sociais pelos sócios; pelo contrário, no entender do Tribunal que proferiu o Acórdão fundamento, a execução prossegue contra os sócios de forma automática, sendo eles quem tem o ónus de provar os factos impeditivos do direito do exequente, designadamente que nada receberam na partilha ou que não receberam o suficiente para assumir aquela responsabilidade.

Tudo isto para dizer que se verificam os requisitos, incluída a oposição jurisprudencial, impostos pelo artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC (regulando uma das hipóteses em que o recurso é sempre admissível), o que significa que a revista é admitida ao abrigo deste fundamento especial.

Quanto ao objecto do recurso, e respondendo ao requerimento apresentado por último pela recorrente, remete-se para a fundamentação do despacho de convite ao suprimento, mantendo-se a decisão (aí implícita) de que existe uma única questão, por isso devendo ser indicado pela recorrente um único acórdão fundamento.

De facto, como se será demonstrado adiante, as alegadas duas “questões” restantes são meros argumentos em que a recorrente se apoia para manifestar a sua discordância relativamente à decisão ora em crise, bastando responder à única questão do recurso para se considerar que estes foram automaticamente rebatidos.


*


Das condições do prosseguimento da execução contra o sócio no caso de dissolução da sociedade executada

A questão suscitada no presente recurso pode sintetizar-se em poucas palavras: é ela a se saber se, dissolvida a sociedade, a execução proposta contra ela prossegue contra os sócios sem que o exequente tenha de fazer nada ou se, pelo contrário, lhe cabe exercer o ónus de alegação e de prova da partilha dos bens sociais.

Ela convoca a leitura e a interpretação dos artigos 162.º e s. do CSC, no capítulo respeitante à liquidação de sociedades.

Começando pelo artigo 162.º do CSC, dispõe ele que:

1 - As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.os 2, 4 e 5, e 164.º, n.os 2 e 5.

2 - A instância não se suspende nem é necessária habilitação”.

Comentando este preceito afirmam António Menezes Cordeiro e João Espírito Santo:

Com o conjunto dos dois números do artigo 162.º, o CSC afasta-se aqui da solução processual civil-comum, substituindo na titularidade da posição processual ocupada pela extinta sociedade, e ex lege, o conjunto dos sócios (…); essa substituição processual dá-se sem que se suspenda a instância ou haja necessidade de promover incidente processual de habilitação (…). A regra da continuação das ações pendentes com sócios, como autores ou réus, tem a maior importância prática: impede delongas seja no tocante à liquidação, seja quanto às próprias ações em causa; a regra é expressamente ressalvada pelo 269.º/1, a) do CPC [5].

Aplicando a disposição ao caso dos autos, fica, então, claro – e é a única conclusão que pode legitimamente retirar-se – que a extinção da sociedade não implica - não implica necessária ou automaticamente – a suspensão da instância executiva, sendo o lugar da sociedade, enquanto executada, em princípio, ocupado pelos sócios nos termos previstos especialmente na lei.

Esta norma não responde, contudo, à questão de saber se (e o que) é necessário para que a instância executiva possa realizar cabalmente os seus desígnios, isto é, prosseguir para a plena satisfação do exequente.

Lendo, a seguir, o artigo 163.º do CSC, encontra-se outra disposição relevante, em particular o n.º 1:

Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada”.

A regra da sucessão dos sócios à sociedade na acção executiva está, aparentemente, “explicada”: os sócios assumem, em conjunto, as obrigações da sociedade porque e na medida em que eles partilharam entre si os haveres sociais / o activo restante que, por esse facto, foi subtraído ao desígnio da satisfação do direito do credor.

Se assim é, pode dizer-se que a realização de uma partilha dos bens sociais, em que os sócios efectivamente partilharam bens sociais, é uma condição – uma condição material e jurídica – da responsabilização perante os credores da sociedade.

Ora, sendo o credor exequente quem tem interesse na responsabilização dos sócios, é ele quem tem de alegar e provar esta condição (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC) – quem tem de alegar e provar que a sociedade tinha bens e que eles foram objecto de partilha.

Como afirma o Tribunal recorrido, qualquer outra solução poria em causa a certeza e a segurança da execução e, consequentemente, a sua eficácia como mecanismo de tutela jurisdicional distinto da acção declarativa, vocacionado, não para uma declaração de direitos, mas para a directa realização dos mesmos direitos.

Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, cabia, pois, ao recorrente fazer a prova dos factos constitutivos do direito que alegava.

Insiste-se nesta conclusão porque ela é resposta suficiente a dois argumentos que a recorrente designou como questões, o que comprova que eles são argumentos e não questões como pretendia a recorrente.

Na realidade, daquela conclusão decorre, primeiro, não era ao tribunal que cabia convidar à produção de prova (contrariando as conclusões 13.ª e 14.ª) e, segundo, que não bastava alegar e provar a qualidade de sócio único, era necessário alegar e provar que ele havia recebido bens da sociedade (contrariando as conclusões 15.ª e 16.ª) – e já agora acrescenta-se: não podendo em caso algum presumir-se do facto de estar em causa um sócio único que ele recebeu quaisquer bens (contrariando a conclusão 20.ª).

A terminar, mas sem que isso importe menor relevância do que irá afirmar, cumpre salientar que a questão aqui em apreço tem sido objecto de atenção na doutrina bem como tema central de muitas decisões judiciais, designadamente proferidas neste Supremo Tribunal, algumas das quais muito recentes.

A propósito desta questão afirma Paulo Olavo Cunha o seguinte:

(…) encontrando-se a sociedade extinta, e sobrevindo dívidas sociais pré-existentes à sua extinção que, por alguma razão, não hajam sido acauteladas, importa determinar de quem é a responsabilidade pela satisfação das mesmas, sobretudo se tiver havido lugar à partilha. Se os sócios, no encerramento da sociedade, receberam bens (sociais) que, a conhecer-se oportunamente a dívida existente, a deveriam ter assegurado, devem responder pessoalmente por essa dívida, nos limites do montante que hajam recebido da sociedade por efeito da partilha. Neste caso deverá o credor demonstrar que a sociedade tinha bens e que os partilhou entre os sócios, prejudicando a satisfação do seu crédito. Caso a sociedade não o tenha feito – isto é, não tenha distribuído bens (aos sócios) –, o sócio não pode ser responsabilizado por dívidas não satisfeitas pelo ativo social, a menos que, tendo promovido a realização da dissolução e liquidação num só ato, tenha declarado não existirem quaisquer dívidas[6].

Veja-se agora, a título meramente exemplar da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão de 7.02.2013, Proc. 9787/03.8TVLSB.L1.S1, onde se diz:

I - Na acção posta pelo credor contra a sociedade, que, posteriormente, seguiu contra os sócios, o autor só pode obter a condenação destes no pagamento do respectivo crédito, se alegar e provar que aqueles obtiveram bens da sociedade resultantes da partilha do seu património.

II  - Com efeito, a referida partilha é uma facto constitutivo do direito do autor e não matéria de excepção”.

Veja-se também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2013, Proc. 7414/09.9TBVNG.P2.S1, em que se afirma:

Uma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade”.

Veja-se ainda, no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2018, Proc. 3275/15.7T8MAI- A.P1.S2, de cujo sumário consta:

Em acção pendente contra a sociedade que veio a ser liquidada e extinta, compete ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha da sociedade executada para efeitos de prosseguimento da acção contra os mesmos sócios nos termos do artigo 163º, nº 1, do CSC”.

E veja-se por último, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.10.2019, Proc. 4022/06.0TCLRS.L2.S1, em cujo sumário pode ler-se:

“1. Sendo extinta uma sociedade no decurso de acção judicial contra ela interposta, esta poderá prosseguir contra os antigos sócios, desde que estes tenham recebido bens na partilha, ficando a responsabilidade desses sócios pelo passivo social limitada pelo montante que receberam na partilha;

2. Não tendo ficado provado que qualquer dos sócios da R. tenha recebido em partilha algum bem da sociedade, não existe fundamento à luz dos arts. 162º e 163º nº1 do C.S.C. para que a acção prossiga contra esses sócios liquidatários”.

Não se vislumbram razões para algum desvio a esta orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, devendo, consequentemente, dar-se razão ao Tribunal recorrido.

Entende-se, em síntese, que a existência de bens e a sua partilha entre os sócios da sociedade extinta constitui um facto constitutivo nos termos e para os efeitos do regime previsto no artigo 163.º, n.º 1, do CSC. Não tendo a exequente alegado e provado que o sócio tenha recebido algum bem por força da partilha, não poderá a execução prosseguir contra o sócio.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Lisboa, 9 de Dezembro de 2019


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira (com declaração de voto)

Cura Mariano


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DECLARAÇÃO DE VOTO



Processo 4301/14.2T8LOU.P1.S1

Acompanho a fundamentação do acórdão no sentido de que a substituição da sociedade extinta pelos sócios liquidatários depende da verificação de factualidade cujo ónus de alegação e prova impendem sobre o credor/autor, enquanto constitutiva do direito; mas afasto-me dela quanto à determinação do conteúdo desse ónus, configurado naquela fundamentação como ‘a existência de bens e a sua partilha entre os sócios’, adoptando uma concepção mais abrangente daquele conteúdo no sentido da suficiência da alegação e prova (inclusivamente por presunção) da existência de bens que tenham revertido (directa ou indirectamente, de direito ou de facto) para os sócios.

De qualquer forma a alegação e prova da existência de bens tem de ser feita com um mínimo de concretização, não se bastando com alegações genéricas, como ocorre no caso em análise com mera invocação de existência de activo. Por isso voto a decisão.

Rijo Ferreira

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), p. 441.
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 543 (nota 793) (sublinhados do autor).
[3] No sentido da sujeição dos recursos interpostos ao abrigo da al. c) e da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º, do artigo 672.º, n.º 2, al. c), e do artigo 688.º, n.º 1, do CPC a um regime comum, cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 73.
[4] É esta a solução preconizada, por exemplo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13.03.2014, Proc. 16/13.7TBMRA-H.EL.S1-A (disponível em http://www.dgsi.pt).
[5] Cfr. António Menezes Cordeiro e João Espírito Santo, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, Almedina, 2020 (3.ª edição), p. 665 (sublinhados dos autores).
[6] Cfr. Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedade Comerciais, Coimbra, Almedina, 2019 (7.ª edição), pp. 1126-1127 (sublinhados do autor). Veja-se ainda a extensa jurisprudência no mesmo sentido citada na nota 1680.