CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
VÍCIOS DA COISA
OBRAS
INFILTRAÇÕES
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
ARRENDATÁRIO
ILICITUDE
CULPA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
RENDAS
Sumário


I. Impendendo sobre a locadora o ónus de provar que desconhecia, sem culpa, a existência de infiltrações de água das chuvas, anteriores ao início da vigência do arrendamento e impeditivas da utilização do locado para o fim a que destina, e não tendo a mesma feito essa prova, tais infiltrações constituem vício da coisa locada gerador de incumprimento do contrato por parte dela, nos termos do artigo 1032º, alínea a), do Código Civil.
II. Assim, se a locadora não cumpre a obrigação que sobre ela impendia de realizar as obras estruturais com vista a eliminar as infiltrações das águas pluviais pela cobertura, impedindo, deste modo, o uso do locado para o fim a que se destina, não tem a mesma fundamento para obter a peticionada declaração da resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto  na alínea d) do nº 2 do artigo 1083º, do Código Civil, uma vez que o não uso do locado é consequência da locadora não ter cumprido o contrato, por clara violação do artigo 1031º, alínea b), do Código Civil, sendo lícito à locatária, nestas circunstâncias e à luz do disposto no artigo 428º, deste mesmo código suspender o pagamento das rendas devidas até à eliminação daquelas anomalias.  
III. Mesmo nas hipóteses previstas nas alíneas a) a e), do nº 2, do artigo 1083º, do Código Civil, a resolução do contrato de arrendamento não opera automaticamente, verificada que esteja a factualidade objetiva integradora de cada uma daquelas situações, sendo necessário averiguar, caso a caso, se a gravidade e as consequências derivadas dessas violações contratuais se revestem de suficiente gravidade para tornarem inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
IV. O conceito de “inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento”, há-se ser determinado com base num juízo objetivo e concreto de ponderação e proporcionalidade entre a intensidade concreta e o grau de censurabilidade da violação contratual cometida e a gravidade objetiva do efeito que lhe corresponde.
V. Assim, para saber se certo comportamento ilícito e culposo do inquilino deve configurar-se como idóneo para produzir, segundo um juízo objectivo e casuístico de razoabilidade e proporcionalidade, a irremediável destruição da própria relação contratual, terá o intérprete e aplicador da lei, para alcançar a justiça do caso concreto, que formular um juízo de balanceamento ou ponderação, tendo em conta, por um lado, as concretas circunstâncias envolventes, quer do contrato e do fim que lhe subjaz, quer do incumprimento das obrigações do locatário e, por outro lado, a pretensão resolutiva do senhorio à luz dos princípios ou cláusulas gerais do abuso de direito e da boa fé contratual.
VI. A circunstância da locatária ter alterado a sua estrutura societária por via do aumento do capital social, não configura, por si só, incumprimento com gravidade e relevância suficientes para tornar inexigível à locadora a manutenção do contrato e para justificar a resolução do contrato de arrendamento, à luz do disposto no artigo 1083º, nº 2, alínea e), do Código Civil.
VII. A invocação da exceção do não cumprimento pela locatária não extingue o direito da locadora ao pagamento das rendas, não constituindo fundamento para a restituição à locatária das rendas pagas.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




***


I. Relatório


A Grande Cervejaria Solmar, Lda, instaurou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra Querido Sol, Lda pedindo seja:

- declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a Ré;

- a Ré condenada a restituir à A. o locado, livre e devoluto de pessoas e bens;

- a Ré condenada a pagar à A. o valor de € 51.250,00, correspondente ao valor das rendas em falta, acrescidas de juros à taxa comercial, contados desde a data de vencimento dessas rendas e até integral pagamento.

Alegou, para tanto e em síntese, que, no âmbito das faculdades que por via do contrato de locação  financeira que lhe foram conferidas, celebrou com a ré um contrato de arrendamento do imóvel objeto daquele primeiro contrato, pelo prazo e renda que indica, tendo ainda ficado acordado que a ré não o podia subarrendar, emprestá-lo ou, por qualquer forma ou meio, oneroso ou gratuito, cedê-lo ou transmiti-lo, seja a que título for, no todo ou em parte, designadamente através da cessão, a qualquer título das suas quotas, sem prévio consentimento por escrito da autora, nem possibilitar a terceiros a sua fruição temporária por cessão de exploração.

A ré declarou que conhecia o espaço e que o mesmo se adequava às suas pretensões, tendo-se obrigado a realizar, no locado, as obras de adaptação necessárias ao exercício do comércio de restauração e bebidas.

Todavia e porque a ré iniciou estas obras sem as necessárias licenças camarárias, tais obras foram embargadas e o locado está encerrado ao público desde o início do contrato, pelo que o não uso do locado constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento.

Invoca ainda como fundamento de resolução deste contrato, o não pagamento de rendas a partir de março de 2018 e a alteração da estrutura social da ré por via do aumento do capital social da ré e da entrada de um novo sócio, que passou a ser maioritário, e a alteração da gerência, não consentidas pelo contrato.


2. A ré contestou, sustentando, em síntese, que o não uso do locado deve-se à não realização das obras de carácter estrutural, que competia à autora realizar, o que a dispensa da obrigação de pagar a renda enquanto tal situação se mantiver e que a alteração da sua estrutura societária, nas circunstâncias dos autos, não constitui incumprimento que, pela sua gravidade e consequências, torne inexigível a manutenção do arrendamento.

Deduziu ainda reconvenção, pedindo seja:

- declarado que cabia à A. fazer as obras necessárias à eliminação dos defeitos estruturais do prédio verificados no auto de vistoria camarária de 29/01/2016 e indispensáveis ao gozo do local arrendado;

- a A. condenada a efetuar, dessas obras, as que extravasam o espaço da fracção arrendada e nas quais, por isso, a Ré não se lhe pode substituir, mas que são indispensáveis para o bom estado e uso da fracção arrendada;

- a A. condenada a reembolsar a Ré, com juros de mora, e mediante compensação com rendas vincendas, do que ela venha a despender com as obras que, embora a cargo da A., lhe é possível efetuar;

- condenada a A. a restituir à Ré a importância das rendas que esta lhe pagou e das que lhe venha a pagar durante o período em que, por falta de execução das obras a cargo da A., ela esteve e esteja ainda impedida de gozar a fracção arrendada;

- intimada a A. a apresentar, no prazo de 60 dias, à Câmara Municipal de ...., pedido de aprovação do projeto de obras referidas em b);

- intimada a A. a concluir essas obras no prazo de 12 meses;

- declarado que o prazo contratual do arrendamento, descontado de 12 meses, se iniciará com a conclusão, pela A. das obras referidas em a).


3. A autora respondeu, pugnando pela improcedência da reconvenção.


4. Proferido despacho saneador, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.


5. Após audiência de discussão e julgamento, em 02.11.2020, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) declarou a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a A. e a Ré a 28/09/2017 da fracção autónoma ”A”, com ocupação ao nível do R/C e da S/L ( dos corpos Central e Sul), com entrada pela Rua ......,..., ..., ..., ..., em ...;

b) condenou a Ré a restituir imediatamente a referida fracção autónoma livre de pessoas e bens;

c) condena-se a Ré a pagar à A. a quantia de € 51.250,00.

d) considerou prejudicado o conhecimento da reconvenção.


6. Inconformada com esta sentença, dela apelou a ré para o Tribunal da Relação ....... que, por acórdão proferido em 17.06.2021, julgou «a apelação parcialmente procedente nos seguintes termos:

 — a acção improcede quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento.

— condenamos a Autora a realizar as obras para eliminação dos defeitos estruturais do prédio verificados no auto de vistoria camarária de 29-1-2016 e indispensáveis ao gozo da coisa, assim procedendo o pedido reconvencional

— Improcedem os demais pedidos reconvencionais».


7. Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«i) Entendeu o douto Acórdão, de forma totalmente contrária à 1.ª Instância, que a “Autora não invoca factualidade que permita” demonstrar que tais infiltrações seriam facilmente reconhecíveis” pela Recorrida.

ii) Não pode concordar-se com tal entendimento patente no douto Acórdão, e, desde logo, porque a descrição feita das infiltrações constante dos pontos 3.3.2, 3.3.3, 3.3.4 demonstra exactamente o contrário: que tais infiltrações são e eram em 2017 facilmente reconhecíveis por quem quer que visitasse o locado:

iii) Aliás, a prova em questão foi essencialmente baseada na inspecção judicial feita ao locado e num relatório de 16.11.2018 (junto aos autos na audiência de 27.01.2020), não tendo sido realizada qualquer prova pericial e se com base em tais elementos se demonstrou que as infiltrações existiam já em 2017 é por demais evidente que estas não poderiam deixar em 2017 de ser já facilmente reconhecíveis;

iv) É inequívoco que a Ré aquando da celebração do contrato de arrendamento, como se entendeu na douta sentença da 1.ª Instância, já conhecia a situação do imóvel e as anomalias de que este padecia e que eram anteriores a 2017 (e que constam do ponto 3.3.5 dos factos provados).

v) E que, apesar de as conhecer, ainda assim aceitou celebrar o contrato de arrendamento, pois, nele declarou “que conhece o espaço e que o mesmo se adequa às suas pretensões” (cláusula 6.2. do contrato de arrendamento dado como reproduzido no ponto 3.1.5 do relatório de facto).

vi) Tal declaração tem verdadeiro valor negocial enquanto declaração de ciência e reconhecimento da verdadeira situação do imóvel.

vii) A Ré nunca pôs em causa nestes autos, invocando, por exemplo, a nulidade parcial do contrato de arrendamento.

viii) As infiltrações em questão eram facilmente reconhecíveis em 2017, o que resulta dos factos provados e Ré aquando da celebração do contrato declarou conhecer a situação do locado.

ix) Resulta da matéria provada (pontos 3.2.1 e 3.1.5 e 3.1.4) que o contrato de arrendamento apenas foi celebrado entre as partes após um período de negociações que durou, pelo menos, dois meses, pelo que a Ré teve o tempo suficiente para se aperceber da verdadeira situação do locado e das infiltrações (facilmente reconhecíveis que se referiram);

x) Resulta ainda dos factos provados com relevância para a questão que se discute (pontos 3.16 a 3.1.9, 3.1.10 a 3.1.14, 3.1.15, 3.1.16 e 3.1.17 que a Ré logo após a celebração do contrato de arrendamento iniciou obras no imóvel locado sem que tivesse obtido a necessária licença, razão pela qual essas obras foram embargadas;

xi) E face a esse embargo apresentou um processo de licenciamento em 23.02.2018, ao qual não deu sequência, tendo apenas, cerca de um ano depois, em 8.12.2018 dado entrada de novo processo (do qual veio a desistir) e apresentado, logo após, novo processo em 28.01.2019;

xii) Resulta, por fim, dos factos provados (3.1.19 a 3.1.21 e 3.3.9) que apenas um ano depois do embargo camarário e da entrada de dois processos de licenciamento para obras no imóvel, a Ré vem suscitar junto da Autora as questões que fundamentam a sua defesa pelo que, é evidente que, se apenas se tivesse apercebido da situação do imóvel após a celebração do contrato de arrendamento a Ré não teria deixado de interpelar a Autora mais cedo;

xii) E não esperaria por cerca de dez meses para o fazer, que é o período que medeia entre a apresentação do primeiro pedido de licenciamento e a interpelação da Ré ou, pelo menos, teria feito essa interpelação aquando da apresentação do primeiro pedido de licenciamento em 18.02.2018 (no qual foi assistida por técnicos como dos documentos juntos aos autos relativos a esse processo decorre), o que não fez:

xiv) Nem deixaria de o ter feito logo que foi interpelada para pagamento das rendas em dívida, em Junho de 2018, o que não fez.

xv) A conclusão da análise dos factos provados, na síntese que se fez é absolutamente clara e linear: que a Ré aquando da celebração do contrato de arrendamento, como se entendeu na douta sentença, já conhecia a situação do imóvel e as anomalias de que este padecia e que eram anteriores a 2017 (e que constam do ponto 3.3.5 dos factos provados), as quais eram, de resto, perfeitamente reconhecíveis;

xvi) Ao contrário, pois, do que se entendeu no douto Acórdão, aquando da celebração do contrato de arrendamento, os defeitos eram facilmente reconhecíveis e conhecidos pela Ré, como decorre dos factos provados e, por isso, existe fundamento para resolução do contrato, nos termos da alínea b) do n.º 2 do Art.º 1083º do Código Civil.

xvii) De qualquer modo e ainda que assim não se entendesse, “a necessidade de obras só, porventura em hipóteses muito especiais, poderá pois (..) ser tida como força maior dilatória da resolução (…) por não uso” (Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, vol. II, pag. 1075);

xviii) E na situação dos autos, não o é seguramente e desde logo, porque, as restantes anomalias, que a Ré conhecia quando celebrou o contrato e se obrigou a reparar, nunca foram por ela reparadas, por nunca ter obtido a respectiva licença camarária.

xix) Não foram as infiltrações a que se vem fazendo referência que impediram a Ré de explorar o locado, mas, bem inversamente, o embargo que sofreu por ter iniciado obras de adaptação do espaço sem a necessária licença;

xx) Aliás, a matéria constante do ponto 3.3.8 dos factos provados deve ser entendida à data da sentença da 1.ª Instância e, não à data da celebração do contrato, em que a utilização do locado, pese embora, existissem anomalias reconhecíveis e conhecidas pela Ré, esta entendeu ser possível, com uma simples adaptação, a sua exploração;

xxi) A não exploração do locado, por mais de um ano, resulta assim do comportamento da Ré que:

Iniciou obras sem o devido licenciamento e, por isso, sofreu um embargo;

Adoptou, após esse embargo, um comportamento negligente em relação aos projectos que apresentou;

xxii) De qualquer modo o comportamento da Ré encontra-se viciado por abuso de direito nos termos do Art.º 334º do Código Civil, vício de conhecimento oficioso e que resulta dos factos demonstrados no processo.

xxiii) Com efeito, segundo a Ré:

 Em 28.01.2016 foi feita pela Câmara Municipal de .... uma vistoria ao imóvel e que detectou diversas anomalias (artigo 4º da contestação) e que impedia a utilização do locado (artigo 10º da contestação);

 A Ré só teve conhecimento dessa situação quando foi notificada do embargo em 13.11.2017 (artigo 12º da contestação);

 A Ré apenas se responsabilizou no contrato de arrendamento por obras de adaptação do espaço e não por obras estruturais (artigos 18º a 20º da contestação).

xxiv) Por outro lado, resulta da matéria de facto dada como provada que:

 No contrato de arrendamento celebrado em 28.09.2017 ficou a constar que “a inquilina declara que conhece o espaço e que o mesmo se adequa às suas pretensões” (cláusula 6 – pontos 3.1.4 e 3.1.5 do relatório de facto);

 A maior parte das anomalias do locado são anteriores a pelo menos 2017 (ponto 3.3.5 do relatório de facto).

 Outras dessas anomalias são posteriores à celebração do contrato de arrendamento (pontos 3.3.6 e 3.3.7 do relatório de facto);

xxv) E demonstrou-se ainda na acção que:

  Em 2.11.2017 a Ré estava a realizar obras no locado as quais por falta de licença foram embargadas (pontos 3.1.6 a 3.1.9 do relatório de facto);

 Em 23.02.2018 a Ré apresentou um processo de licenciamento, o qual, esteve parado por falta impulso, tendo sido extinto após 8.12.2018, depois de a Ré ter apresentado novo processo do qual veio a desistir (pontos 3.1.10 a 3.1.16 do relatório de facto);

 A Ré apresentou novo processo em 28.01.2019 (ponto 3.1.17 do relatório de facto);

 Só em 6.12.2018, a Ré enviou uma comunicação à Autora fazendo referência à alegada necessidade de obras estruturais no locado (ponto 3.3.9 do relatório de facto);

xxvi) A situação é verdadeiramente anómala, pois, é a própria Ré que confessa que, pelo menos, desde 13.11.2017 ficou ciente dos problemas do imóvel em toda a sua extensão (alegação é falsa, como se demonstrou, mas que tem, desde já, relevância), mas não obstante, pese embora essa situação grave de que se apercebeu, não levou a Ré a instar a Autora a esse respeito - o que só ocorreu mais de um ano depois;

xxvii) Mais; não só, não instou a Autora, como após esse confessado conhecimento apresentou, não um, mas três processos de licenciamento destinados a permitir a realização de obras no locado, sem que deles desse, sequer, conhecimento àquela Autora;

xxviii) Curiosamente – ou não – a interpelação feita à Autora a respeito das obras, ocorre após a alteração da estrutura societária da Ré (ponto 3.1.28 do relatório de facto), a qual, por sua vez, é praticamente simultânea do pagamento do elevado valor de rendas em mora (ponto 3.2.21 do relatório de facto);

xxix) Ainda que fosse verdadeiro aquilo que invoca a Ré na contestação, ou seja, que apenas após o embargo das obras a que procedia se apercebeu da situação real do locado – e que não é, como se demonstrou na contra alegação e como se demonstrará mais adiante – esta conformou-se com tal situação, assumindo como obrigação sua a realização das obras (fossem elas estruturais ou de conservação), pois, só assim se justifica que não apenas não tenha instado a Autora, como que tenha apresentado três processos de licenciamento.

xxx) A exigência de obras à Ré, que apenas surge após os momentos referidos antes, mais de, pelo menos, um ano, desde o conhecimento da situação do prédio e em sede de reconvenção em contestação à acção de despejo, consubstancia, pois, um verdadeiro abuso de direito, situação que é de conhecimento oficioso;

xxxi) Essa interpelação para a exigência de obras, face ao momento em que ocorre e ao comportamento adoptado pela Ré – antes da alteração da sua estrutura societária – contraria frontalmente a finalidade do direito exercido e a boa fé que deve presidir ao seu exercício e a confiança depositada pela Autora no estado de coisas que se descreveu e objectivamente comprovada pelo comportamento da Ré merece obviamente tutela jurídica, actuando, esta, em manifesto abuso de direito, ainda que pudesse – o que não admite – reconhecer-se-lhe o direito a exigir a realização de obras;

xxxii) Não estabelecendo a lei qual a sanção adequada para o acto viciado por abuso de direito, haverá, que perante o caso concreto, aferir qual será essa sanção, pelo que, “uma vezes haverá lugar à reparação natural, nomeadamente, através da através da remoção do que se fez com abuso de direito” (Fernando Cunha e Sá, “Abuso de Direito, Almedina, 1997, pag. 647) e essa reparação natural que deverá ser, face a tudo quanto se invocou, adequada a sancionar o comportamento da Ré, impedindo esta de invocar a excepção prevista pelo Art.º 1032º do Código Civil;

xxxiii) A Ré, em Fevereiro de 2018, não pagou a renda relativa ao subsequente mês de Março de 2018 (ponto 3.1.19 do factos provados) apenas em 9 de Novembro desse ano depositou a quantia de € 110.000,00 na conta da Autora (ponto 3.1.21 dos factos provados);

xxxiv) É evidente que a aplicação, nessa situação, a penalização de 50% (ponto 3.1.22 dos factos provados) feita pela Autora foi perfeitamente legitima, e que, por isso, ficou ainda em dívida o valor de capital das rendas então em mora e feita essa imputação, como muito bem se faz, na douta sentença da 1.ª Instância ficaram, pois, em dívida parte da renda de Janeiro de 2019 e as rendas de Fevereiro e Março desse ano.

xxxv) Deste modo, permanecem ainda nesta data valores de rendas em dívida parte da Ré, que se encontra em mora há já mais de três meses.

xxxvi) A não realização de obras a cargo do senhorio no locado não constituiu fundamento para o não pagamento da renda, pois, não é possível nessas situações aplicar o Art.º 428º do Código Civil, por faltar desde logo, “a interdependência recíproca ou dialela das duas obrigações” (vd. a respeito de tal posição Pinto Furtado, obra citada vol. II, pag. 1030);

xxxvii) E face à legislação vigente, nomeadamente, ao n.º 5 do Art.º 1083º do Código Civil, é absolutamente claro que a situação alegada pela Ré – ainda que fosse verdadeira – apenas poderia permitir a esta operar a resolução do contrato e nunca cessar o pagamento das rendas, pois, encontram-se previstos no regime do arrendamento urbano os meios de que o arrendatário dispõe para fazer face a situações em que sejam necessárias obras no locado e o senhorio não as realize;

xxxviii) Entre esses mecanismos encontra-se aquele que é previsto pelo Art.º 1036º do Código Civil, que permite que o arrendatário se substitua ao inquilino na realização de reparações urgentes;

xxxix) E se a Ré, na qualidade de inquilino, chegasse à conclusão que afinal o locado necessitava de obras que eram da obrigação do senhorio porque extravasavam aquelas que o próprio inquilino se obrigou a realizar teria de ter avisado o senhorio de tal facto, e caso este se recusasse a fazê-las dispunha o arrendatário dos meios de acionar o senhorio - artigo 1036° do Código Civil - sendo que entre esses meios previsto naquele preceito legal, não se encontra o de não pagar a renda e teria também a referida faculdade de resolver o contrato quando não sejam realizadas essas obras;

xl) Nada disto, porém, a Ré fez, pelo que, face a este comportamento e também por existir regime especial, não pode aplicar-se à situação dos autos a excepção de não cumprimento do contrato face às rendas devidas;

xli) Sendo, a mora superior a três meses, o fundamento de despejo em causa não poderá nunca deixar de proceder, devendo o despejo ser decretado com esse fundamento;

xlii) que a Ré violou a cláusula 5.ª do contrato, a qual dava a este uma natureza “intuitu personae” é evidente até para o douto Acórdão, face à prova produzida (pontos 3.1.27 a 3.1.29 dos factos provados),

xliii) A alteração da estrutura societária da Ré, feita sem autorização da Autora, é proibida nos termos da cláusula 5.ª do contrato de arrendamento, possibilitando que outras pessoas que não aquelas com quem esse contrato foi feito, possam fruir o locado, pessoas essas que, agora, controlam totalmente a sociedade e a sua gestão;

xliv) Aliás, o método engenhoso utilizado para aceder ao capital da sociedade sempre corresponde a uma tentativa de ocultar uma cessão de quotas dos anteriores sócios, sendo, pois essa, cessão de quotas, o acto não simulado que deve ter-se por relevante;

xlv) O contrato de arrendamento em questão nestes autos é, como resulta da sua cláusula 5.ª um contrato “intuitu personae” no quadro do qual não é indiferente a pessoa do arrendatário ea operação societária efectuada pela Ré contraria frontalmente a cláusula 5.ª desse contrato e permite a resolução pela Autora, pois, de acordo com o Art.º 1083º do Código Civil “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte”, pelo que, os fundamentos que permitem a resolução não são taxativos;

xlvi) Aumentando o capital social da Ré com a entrada do novo sócio que passou a ser maioritário e alteração da gerência, quando a alteração societária está expressamente proibida na cláusula 5.ª do contrato de arrendamento e permite a resolução do mesmo;

xlvii) Entendeu-se, porém, no douto Acórdão que tal incumprimento por parte da Ré não tem a gravidade ou consequências suficientes para fundar a resolução, o que não está correcto, mas, a cláusula 5.ª do contrato é absolutamente clara: o contrato, tendo em conta a história e natureza do edifício – um antigo estabelecimento comercial bem conhecido em ... e situado em edifício que é património histórico – foi celebrado tendo em conta a estrutura social à data da celebração da arrendatária;

xlviii) E, por essa razão, a cláusula 5.ª vai mais longe do que o regime legal, estabelecendo regras mais restritivas para essas alterações na pessoa do arrendatário;

xlix) Face à economia do contrato e dentro do quadro negocial traçado pelas partes, o incumprimento em questão é grave tem sérias consequências: a Autora passará a ter um contrato com pessoa(s) diversa(s) daquelas com quem contratou;

l) Aliás, por ser reconhecida a importância desses valores no âmbito do contrato de arrendamento é que se estabelece, como causa especifica de resolução do contrato de arrendamento, aquilo que está previsto na alínea e) do n.º 2 do Art.º 1083º do Código Civil - ou seja, essas situações como é aquela dos autos, são entendidas como suficientemente graves para permitirem a resolução;

li) De qualquer modo, os factos demonstrados e, sobretudo, a sua sequência demonstram que o escopo da Ré após a alteração da sua estrutura societária, não é, obviamente, a exploração comercial do locado, pois aquando dessa aquisição da quase totalidade do capital social da Ré e da assunção do efectivo controlo desta pelos novos sócios, era manifestamente evidente qual a situação do locado (muito próxima daquela que tinha aquando a inspecção judicial que foi realizada) e qual a situação dos projectos de licenciamento que haviam sido apresentados;

lii) Essa situação não impediu os novos sócios de adquirirem a sociedade e de pagarem um elevado valor por conta das rendas em dívida, bem sabendo, de resto, a ser verdade o que é pela Ré invocado, que seria impossível explorar comercialmente o locado;

liii) A finalidade dessa aquisição de quotas, do simultâneo pagamento de rendas, da posterior interpelação da Autora para obras e da dedução do pedido reconvencional, tem um único objectivo que, ao contrário do que se possa pensar não se prende com a manutenção do arrendamento, mas, bem inversamente, com o valor que o imóvel tem no mercado imobiliário;

liv) Por essa razão, não pode deixar de relevar o fundamento de resolução ora em causa, devendo também com base nele ser decretado o despejo e ainda que os outros fundamentos alegados não procedam

lv) Como decorre do que antes se apontou, as anomalias existentes no prédio e que se verificavam à data da celebração do contrato de arrendamento, eram, de acordo com os factos provados, facilmente reconhecíveis pela Ré;

lvi) Aliás, não apenas esta não as poderia desconhecer, como também as conhecia efectivamente, como se demonstrou resultar da matéria dada como provada e como se disse – e muito bem – na douta sentença da 1.ª Instância, tendo em conta essa situação, não correspondem a incumprimento por parte da Autora e deve o contrato ter-se por cumprido;

lvii) Deste modo, o pedido reconvencional deverá ser julgado improcedente, mas, de qualquer modo, sempre esse pedido, face à procedência dos fundamentos de despejo, se revelará inútil».

Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido, julgando-se a ação procedente e a reconvenção improcedente.


8. A ré respondeu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:

«A. A Recorrente vem interpor recurso da decisão do Tribunal a quo que:

(i) Julgou a ação improcedente quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento, celebrado entre a R., ora Recorrida, e a A., ora Recorrente;

(ii)  Julgou procedente o pedido reconvencional da condenação da A., ora Recorrente, a realizar as obras para eliminação dos defeitos estruturais do prédio verificados no auto de vistoria camarária de 29.01.2016 e indispensáveis ao gozo da coisa pela R. ora Recorrente.

B. Ao contrário do que a Recorrente quer fazer parecer, o tribunal de 1.ª instância deu como provado que as anomalias registadas, e que são anteriores a, pelo menos 2017, impedem a utilização da fracção autónoma designada pela letra “A” para a actividade de comércio de restauração e bebidas.

C. Pelo que, a matéria constante do ponto 3.3.8. dos factos provados, ou seja, o impedimento de exploração decorrente das anomalias no imóvel, deve ser entendida à data da celebração do contrato, e não à data da sentença da 1.ª Instância, como refere o Recorrente.

D. A própria Recorrente reconhece que as anomalias de que padecia o imóvel e que eram anteriores a 2017 (e que são as mesmas que impedem a exploração do imóvel, conforme deu por provado a sentença), se reportam à data da celebração do contrato, caso contrário não poderia alegar que a Recorrida tinha conhecimento da situação do imóvel aquando da celebração do contrato.

E. Adiante, conforme bem fez constar a douta Sentença, em relação à declaração de conformidade do espaço com as pretensões da Recorrida, plasmada na cláusula 6.2. do contrato de arrendamento, “esta declaração em nada releva, na medida em que a mesma não expressa que a Ré tinha conhecimento das infiltrações. Destarte, não se verifica esta cláusula de exclusão da responsabilidade do Locador”.

F. Este entendimento que não foi colocado em causa pela Recorrente, em momento oportuno, nem pelo Acórdão, pelo que, não pode agora a Recorrente pretender sindicar esta matéria.

G. Quanto à questão de saber se, aquando da celebração do contrato de arrendamento, os defeitos eram facilmente reconhecíveis e conhecidos pela Recorrida, existindo fundamento para resolução do contrato, nos termos da alínea b) do n.º 2 do Art.º 1083º do Código Civil, diga-se que, em 2016, já existiam problemas/deficiências estruturais na fracção em causa, nomeadamente e, para o que para o caso releva, problemas seríssimos de infiltrações (entenda-se das chuvas).

H. A Recorrente omitiu culposamente factos muito relevantes à Recorrida, nomeadamente:

(i) que tinha ocorrido em 28 de Janeiro de 2016 uma vistoria da CM..... que detetou problemas estruturais de infiltrações;

(ii) que o respectivo auto de vitoria foi lavrado com data de 8 de Março de 2016 no qual ficou descrito um assinalável grau de degradação do imóvel;

i) que por despacho da Câmara Municipal de .... de 31.05.2017 foi notificada para a realização das respetivas obras, sendo que é concedido 60 dias para o início e 9 meses para a conclusão;

j) que por força do deste despacho de 31.05.2017 as obras teriam de se iniciar impreterivelmente a partir de dia 21.11.2017, sendo o prazo de conclusão a 21.08.2018. k) que em 20.09.2017, (oito dias antes de celebrar o contrato de arrendamento com a Recorrida) informou a Câmara Municipal de .... que tinha executado as obras de cuja notificação tinha sido objecto - “TODAS as situações (…) se encontram resolvidas”..

I. Ora, com base nesta falta grave (omissão) perante a Recorrida, a Recorrente das duas uma: (i) ou não fez qualquer obra (conclusão a que o Tribunal de 1.ª instância há de ter chegado para considerar como não provado o ponto 3.4.2.), ou (ii) foram feitas as denominadas “obras de fachada” (tese que a Recorrida defende categoricamente) como efetivamente tudo indica ter sucedido.

J. Assim sendo, como bem refere o douto Acórdão, incumbia à Recorrente alegar e provar que desconhecia sem culpa, as infiltrações estruturais que se verificaram desde o início do contrato de arrendamento, o que não fez.

K. E que, colocando-se a questão de os defeitos serem facilmente reconhecíveis, gerando a irresponsabilidade do locador, a Recorrente não invoca factualidade que nos permita chegar a essa conclusão.

L. Pelo contrário, a Recorrente alega que já haviam sido realizadas todas as obras necessárias para colmatar as deficiências verificadas no locado, o que, como vimos, não se provou, nem se verificou – pois mais não foram que “obras de fachada”.

M. Assim, como bem entendeu o douto Acórdão “é inequívoco que o fundamento de resolução invocado previsto na alínea d) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil não é sustentável: o não uso do locado por mais de um ano é consequência do A não ter cumprido o contrato, por clara violação do artº 1031 al b) e 1032, ambos do CC”.

N. Alega, ainda, a Recorrente que o comportamento da Recorrida se encontra viciado por abuso de direito nos termos do art. 334º do Código Civil, vício de conhecimento oficioso e que resulta dos factos demonstrados no processo (ponto xxii) das conclusões de recurso).

O. Ora, as obras que a Recorrida se comprometeu a realizar eram apenas as necessárias à adaptação do espaço arrendado, já por si um restaurante, para a instalação à sua medida da actividade comercial da Recorrida, também um restaurante.

P. As obras relativas às infiltrações em causa (aquelas cuja necessidade de realização, uma vez mais se diga, foram omitidas à Recorrida pela Recorrente), não restam a menor dúvida que teriam de ser executadas pela Recorrente, a quem caberia também, interpelar ou conseguir a cooperação do outro proprietário, havendo necessidade (como havia, e há de facto).

Q. Sendo que sem a realização dessas obras era impossível a Recorrida utilizar o locado para o fim da sua actividade – chove no locado -, mesmo que não tivesse visto as obras, que mais não eram que não embelezamento à sua medida que tentou realizar embargadas em virtude do regime de obras resultante da localização e possível classificação do imóvel em causa.

R. Ademais, conforme ficou dado como assente no ponto 3.3.9. dos factos provados, a Recorrida, através do seu mandatário, endereçou à Recorrente uma carta, que a recebeu a 06.12.2018, através da qual interpelou mais uma vez a Recorrente para a realização das obras respetivas, deixando a Recorrida deixou claro que não assumia fazer, por sua conta, as obras de recuperação estrutural do prédio, mas admitiu fazer tais obras compensando com as rendas vincendas.

S. Assim como os sucessivos pedidos de licenciamento efetuados pela Recorrida, com vista ao embelezamento do espaço à sua medida, foram no pressuposto de que a Recorrente iria executar as obras para reparação dos defeitos estruturais, conforme vinha solicitando à Recorrente.

T. Pelo que, salvo o devido respeito, e ao contrário do que alega a Recorrente, foi esta quem não agiu de boa-fé desde o início da relação contratual entre ambas as partes, nomeadamente omitindo todo um conjunto de problemas estruturais do imóvel, que mal começou o primeiro inverno se comeram a notar, tendo a Recorrida efetuado inúmeras tentativas para levar a bom porto o contrato de arrendamento celebrado.

U. Alega, ainda, a Recorrente que, face à legislação vigente, nomeadamente ao nº 5 do art. 1083º do Código Civil, é claro que a situação alegada pela Recorrida apenas poderia permitir a esta operar a resolução do contrato e nunca cessar o pagamento das rendas, pois, encontram-se previstos no regime do arrendamento urbano os meios de que o arrendatário dispõe para fazer face a situações em que sejam necessárias obras no locado e o senhorio não as realize.

V. Relativamente à alegada falta de pagamento de rendas, já se referiu que perante o incumprimento levado a cabo pela Recorrente na realização destas obras e até mesmo na falta de emissão de recibo/quitação por parte da Recorrente, foi legítimo à Recorrida suspender – como o fez em Março de 2018 – o pagamento das rendas (n.º 1 do art. 428.º do Código Civil).

W. Mas, ainda que não o tivesse de fazer, face ao incumprimento demonstrado pela Recorrente (na emissão de recibo e mais grave ainda na realização das obras), a Recorrida realizou o pagamento integral de todas as rendas.

X. Pelo que, conforme bem refere o douto Acórdão, “A interligação desta factualidade é inequívoca no sentido de sustentar um total desequilíbrio entre as prestações a cargo das partes; o R paga rendas para a utilização de um locado no qual não pode exercer a sua actividade. E o A recebe as rendas, quando não cumpre a sua obrigação de proporcionar à R o gozo do locado. Sem nos esquecermos que os defeitos do locado, impeditivos da utilização do locado pela R., tem origem em data anterior à da celebração do contrato de arrendamento e em data posterior. Assim, à luz das regras da boa fé não podemos deixar de concluir por legitimar a atitude da R à luz da excepção de não cumprimento do contrato, porquanto o desequilíbrio entre o signalama contratual é flagrante, bem como a legitimidade do comportamento da R em não pagar as rendas”.

Y. A este propósito, veja-se, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22.10.2020, disponível em http://www.dgsi.pt/JTRG.NSF/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/641098aadd40e5eb 80258610004bc1cd?OpenDocument), que refere não configurar abuso de direito que o locatário tenha optado pelo exercício do direito à indemnização ao invés de realizar as obras por si, já que lei confere outras vias mas não as impõe, e que, para efeitos do disposto no art. 1036º, nº 1, do Código Civil, a urgência é um estado anterior à inaptidão para o fim a que se destina a coisa, ou seja, se o locado não pode servir para o fim a que se destina no estado em que ficou, a urgência da reparação já não tem que ver com o facto de haver um perigo iminente, o que passa a estar em causa é o retorno à possibilidade de uso.

Z. Não é o caso dos autos, em que por via do sucedido a Recorrida deixou já de poder usar a fração (constituindo-se, portanto, a Recorrente em mora/incumprimento).

AA. Pelo mesmo motivo, e porque o estado do locado já impossibilita o locatário de o usar para o seu fim, sendo as obras urgentes as que visam impedir a perda, destruição ou deterioração da coisa, sem que haja tempo de recorrer à via judicial, não tinha a Recorrida a obrigação de proceder às reparações, pois tratava-se de uma situação impossibilidade de uso.

BB. Além disso, o mecanismo ao dispor do locatário no art. 1036º do Código Civil é uma possibilidade, e não uma obrigação, a lei confere essa via mas não a impõe, o mesmo valendo para a resolução do contrato.

CC. Por fim, quanto ao fundamento de resolução por alegada violação da cláusula5.ª do contrato de arrendamento, a Recorrida não realizou qualquer cessão de quotas, o que existiu foi um acto jurídico real de entrada de uma nova sócia, por aumento de capital, com vista à necessidade de um financiamento da Recorrida e ainda uma necessidade de se ter uma sócia com implementação no mercado nacional.

DD. Pelo que não resultando da cláusula 5.ª qualquer impedimento à entrada de novos sócios, nem tendo ficado estipulado em parte nenhuma do contrato de arrendamento que tal acto constituiria fundamento para a resolução do contrato, nunca poderá proceder o argumento da Recorrente também quanto a esta matéria.

EE. Ainda que assim não se considere, o art. 1083º, nº 2 do Código Civil prescreve que, para constituírem fundamento de resolução do contrato de arrendamento, os comportamentos e condutas têm de se revestir de uma gravidade ou produzir consequências que tornem inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.

FF. Ora, como bem entendeu o douto Acórdão, a violação da cláusula 5ª do contrato não tem a gravidade ou as supostas consequências para a resolução do contrato de arrendamento.

GG. Pelo que a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer censura, quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento e ao pedido reconvencional da condenação da A., ora Recorrente, a realizar as obras para eliminação dos defeitos estruturais do prédio, devendo manter-se na íntegra, não devendo ser dado qualquer provimento ao recurso interposto pela Recorrente».


Termos em que requer seja julgado improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento e ao pedido reconvencional da condenação da A., ora Recorrente, a realizar as obras para eliminação dos defeitos estruturais do prédio.


9. Igualmente inconformada com o acórdão recorrido, veio a ré interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:

«A. Entende a ora Recorrente (e R. no processo) que o Tribunal a quo incorreu em violação de lei substantiva, consistente quer em erro de interpretação, quer em erro de aplicação da lei, quer em erro de determinação da norma jurídica aplicável, cabendo, em consequência, no dispositivo do artigo 674º, n.º 1 do CPC, ao julgar improcedente o pedido reconvencional da R., ora Recorrente, de restituição de todas as quantias pagas, num total de € 242.500,00, a título de renda e que corresponderam ao período em que a ora Recorrente esteve impedida do gozo do locado.

B. Embora a Recorrida tenha pretendido demonstrar o contrário, a Recorrente realizou o pagamento integral de absolutamente todas as rendas, durante todo o período em que vigorou o contrato de arrendamento até á sua resolução no seguimento da decisão do Tribunal de 1ª instância, motivo pelo qual improcedeu o pedido da Recorrida de resolução do contrato pelo fundamento da “falta de pagamento das rendas”.

C. O douto Tribunal da Relação ....... considerou e bem que a Recorrida, não tendo provado que desconhecia, sem culpa, os vícios da coisa, não cumpriu o contrato de arrendamento a que se obrigou.

D. Em consequência, estando a A., ora Recorrida em incumprimento do contrato de arrendamento, deverá também esta ser responsável pelo prejuízo causado à locatária, ora Recorrente, nos termos do artigo 798º do Código Civil.

E. É exatamente este entendimento que resulta da sua própria fundamentação do douto Acórdão do Tribunal a quo.

F. Tendo a Recorrente realizado o pagamento integral de absolutamente todas as rendas, quando não estava obrigada a fazê-lo em virtude do incumprimento do contrato de arrendamento pela A., ora Recorrida, então outra não poderá ser a decisão que não a de condenação da Recorrida na restituição das rendas pagas durante o período em que incumpriu, (num total de € 242.500,00), a par da condenação na realização das obras.

G. nos termos do artigo 798.º do Código Civil, tendo a Recorrida faltado culposamente à sua obrigação de realizar as obras, assegurando à Recorrente o gozo do locado, é aquela responsável pelo prejuízo causado à Recorrente, tendo esta direito a receber daquela a restituição das rendas que pagou, durante o período em que a Recorrida não providenciou, e continua a não providenciar, pela feitura das obras que lhe cabia efectuar.

H. Mais: de Setembro de 2017 a Janeiro de 2018, a Recorrente efectuou o pagamento integral das rendas, no montante de € 10.000,00, sem a devida retenção na fonte de 25%, ou seja, a Recorrida recebeu indevidamente a quantia total de € 12.500,00, que a Recorrente lhe pagou, mesmo sabendo que a mesma não lhe pertencia (enriquecimento sem causa).

I. Pelo que, salvo melhor opinião, estaremos perante o instituto do enriquecimento sem causa, de acordo com o disposto nos artigos 473.º e seguintes do Código Civil, na medida em que a Recorrida enriqueceu, sem causa justificativa à custa de outrem (neste caso, da Recorrente) e que o douto Tribunal a quo poderia ter apreciado e declarado, aplicando aos factos tal norma.

J. Em face de tudo o acima exposto, o douto Tribunal da Relação ....... violou o disposto nos artigos 473.º e ss. e 798.º, ambos do Código Civil.

K. Por tudo o exposto é forçoso concluir que o pedido reconvencional deverá proceder na íntegra, revogando-se/modificando-se a decisão do douto Tribunal da Relação, sendo, afinal, a Recorrida:

Condenada a restituir à Recorrente o valor correspondente às rendas que esta pagou durante o período em que a Recorrida não providenciou, e continua a não providenciar, pela feitura dessas mesmas obras que lhe cabia efectuar, uma vez que esta deixou de poder usufruir do locado e, consequentemente, de exercer a sua actividade comercial».


Termos em que requer a revogação da decisão judicial por uma que julgue procedente o pedido reconvencional formulado pela Recorrente.


10. A autora respondeu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«i) A Autora dá por reproduzido tudo quanto alegou no recurso que interpôs do douto Acórdão e de onde decorre que os problemas que se verificavam no locado à data da celebração do contrato de arrendamento eram, de acordo com a prova produzida nos autos, facilmente reconhecíveis pela Ré.

ii) E, além do mais, de acordo com a prova produzida ficou demonstrado, que a Ré, ao celebrar esse contrato, estava perfeitamente ciente desses problemas, pelo que tem inteira aplicação à situação dos autos o disposto no Art.º 1033º do Código Civil;

iii) Dessa alegação que se dá por reproduzida, decorre ainda que mesmo que assim não se entendesse, não poderia a Ré recusar, com base na necessidade de obras, o pagamento da renda, por não poder aplicar-se a excepção de não cumprimento do contrato entre essas duas prestações;

iv) Com efeito, é de referir que a obrigação do inquilino de pagar a renda resulta do facto de lhe ser proporcionado o gozo da coisa, ou seja: obrigações correspectivas são, o dever do senhorio de proporcionar o gozo da coisa e o dever do inquilino de pagar a renda; não já o dever do inquilino de pagar a renda e o puro e simples dever do senhorio de realizar obras e, em caso de necessidade de proceder a reparações no locado, o inquilino dispõe de meios que pode accionar -artigo 1036° do Cód. Civil -, sendo que entre esses não se encontra o de não pagar a renda;

v) De qualquer modo e ainda que aplicasse à situação dos autos a excepção de não cumprimento do contrato – o que não se admite – esse mecanismo jurídico não implica a obnulição do direito à prestação cujo cumprimento se recusa;

vi) A excepção de não cumprimento não isenta o devedor que a invoque do cumprimento, mas apenas permite que este recuse esse cumprimento até que se verifique o acto em falta por parte do credor;

vii) Não pode aplicar-se às prestações que tenha já sido realizadas, as quais, sendo devidas e não sendo face a elas invocada a excepção, se mantêm válidas.

viii) A invocação de enriquecimento sem causa apenas foi feita no âmbito deste recurso, pois, nunca antes a Autora havia invocada tal instituto e os recursos visam reapreciar decisões jurídicas e não efectuar novo julgamento de questões que não até então não tenham sido suscitadas, sob pena de violação do Art.º 3º do Código de Processo Civil;

ix) A restituição com base no enriquecimento sem causa não é de conhecimento oficioso, pelo que a alegação da Ré não pode ser conhecida nesta sede;

x) De qualquer modo sempre se dirá que, o enriquecimento sem causa, qualquer que seja a natureza ou a modalidade de que se revista, está sujeito ao Art.º 474º do C.C. que determina que “não há lugar à restituição quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento;

xi) A Ré tinha outros meios para valer as suas alegadas pretensões e que não usou, pelo que, não o tendo feito, em devido tempo, não pode ser beneficiada pela sua negligência;

xii) Entre esses mecanismos encontra-se aquele que é previsto pelo Art.º 1036º do Código Civil, que permite que o arrendatário se substitua ao inquilino na realização de reparações urgentes;

xiii) E se a Ré, na qualidade de inquilino, chegasse à conclusão que afinal o locado necessitava de obras que eram da obrigação do senhorio porque extravasavam aquelas que o próprio inquilino se obrigou a realizar teria de ter avisado o senhorio de tal facto, e caso este se recusasse a fazê-las dispunha o arrendatário dos meios de acionar o senhorio - artigo 1036° do Código Civil - sendo que entre esses meios previsto naquele preceito legal, não se encontra o de não pagar a renda;

xiv) E teria também a referida faculdade de resolver o contrato quando não sejam realizadas essas obras;

xv) Para que a alegação da Ré pudesse proceder necessário seria que não existisse causa para pagamento que foi efectuado a título de rendas, sendo esse o pressuposto que melhor caracteriza o instituto de enriquecimento sem causa;

xvi) À data do pagamento das rendas, em vigor entre as partes um contrato de arrendamento, ao qual a Ré não pôs fim, tendo esta acesso ao locado;

xvii) As rendas pagas eram efectivamente devidas e são fundadas no contrato de arrendamento».


11. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.


***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:


A - Quanto ao recurso interposto pela autora:

1ª- se existe fundamento para a resolução do contrato, com base no não uso do locado por mais de um ano, nos termos da alínea d), do nº 2 do art. 1083º, do Código Civil e se a invocação pela ré da exceção prevista no art. 1032º, do mesmo código integra abuso de direito. 

2ª – se existe fundamento para a resolução do contrato, com base na falta de pagamento de rendas, nos termos do nº 3 do art. 1083º, do Código Civil;

3ª- se existe fundamento para a resolução do contrato, nos termos do disposto na alínea e) do nº 2, do art. 1083º, do C. Civil.


*


B - Quanto ao recurso interposto pela ré, se existe fundamento para condenar a autora a restituir à ré a quantia de € 242.500,00 paga a título de rendas.


***



IV. Fundamentação


Fundamentação de facto

3.1. No despacho saneador foram considerados não carecidos de prova por estarem provados por documento ou acordo e assim se mantêm os seguintes factos:

3.1.1. A 11.05.2006. a Banif Leasing SA, na qualidade de locador e a Grande Cervejaria Solmar, Lda, na qualidade de locatário, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 15-20, denominado "Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ………45" cujo integral teor se dá aqui por reproduzido. (A)

3.1.2.        No referido instrumento e na parte relativa a "Condições Gerais Contrato Locação Financeira Imobiliária "ficou a constar:

"(…)

Artigo l9 (Objecto do contrato)

1. 0 presente contrato tem por objecto a locação financeira do bem imóvel identificado no número 1.1. das Condições particulares.

(...)

Artigo 49 (Cessão de posição contratual do locatário e sublocação)

(...)

6. Em caso de sublocação, ou cedência a qualquer título do gozo do imóvel, ou de parte deste, o locatário mantém-se, em quaisquer circunstâncias o único obrigado perante o locador, pelo cumprimento de todas as obrigações decorrentes do presente contrato, não podendo nunca a sublocação ser oponível ao locador, restringindo-se os seus efeitos exclusivamente ao âmbito das relações entre o locatário e o sublocatário, que deverá tomar conhecimento destas disposições.

(...)

Artigo 159 (Utilização do imóvel, obras, reparações e benfeitorias)

(...)

2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o locatário deve efectuar todas as obras necessárias à conservação e á manutenção da integridade e estrutura, mantendo-o em bom estado de conservação.

(...)

7. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, em face da realização de quaisquer obras de alteração, reparação ou beneficiação do imóvel, é da única, total e exclusiva responsabilidade do locatário:

a) a observância de todos os procedimentos regulamentares, legais e administrativos necessários à sua execução, incluindo obtenção de autorizações, aprovações e licenças.

(-)" (B)

3.1.3. No referido instrumento e na parte relativa a "Condições particulares " ficou a constar:

" 1. Objecto

1.1. Identificação do imóvel: Fracção autónoma designada pela letra "A" , com entrada pelos números ...,..., ... e ... da Rua ...., ocupação ao nível do r/c e da sobreloja ( dos corpos central e sul do edifício),destinada a terciário, restaurante, do prédio urbano sito em ..., Rua ......, n.ºs ..., ..., ..., ... e ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ….41, freguesia de ...., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….24, freguesia de ..., concelho de ....

(...)" (C)

3.1.4. A 28 de Setembro de 2017 a Grande Cervejaria Solmar, Lda, na qualidade de senhoria e primeira contraente e a Querido Sol, Lda, na qualidade de arrendatária e segunda contraente, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 12-14v., denominado "Contrato de Arrendamento Comercial ", cujo integral teor se dá integralmente por reproduzido. (D)

3.1.5. No referido instrumento ficou consignado:

 " É celebrado de boa fé o presente Contrato de Arrendamento Comercial para o exercício da actividade de comércio de restauração e bebidas, que se regerá pelo constante das cláusulas seguintes e que ambas as partes aceitam e reciprocamente se obrigam a cumprir.

Cláusula Primeira

A primeira contraente dá de arrendamento à segunda contraente, e esta toma de arrendamento, a loja correspondente à fracção autónoma "A", com ocupação ao nível do R/C e da S/L ( dos corpos Central e Sul), com entrada pela Rua ......,..., ..., ..., ..., em ..., com salas e compartimentos para refeições, casas de banho, (...), cozinhas e arrumos, com a permilagem de 300 e área bruta privativa distribuída por 2 pisos e (...) m2, inscrita na matriz predial urbana sob o nº .....44, da freguesia de ..., concelho e distrito de ..., localizada na Rua ........, ... a ... e Calçada ....., (...) ..., fracção descrita na Conservatória do registo Predial de ... sob a ficha n...., da referida freguesia de ..., com a licença de utilização emitida em 30 de Junho de 1958 pela Câmara Municipal de .... sob o n. ... e com certificado energético n.9 (...), válido até 14/09/2026.

Considera-se fazer parte do presente contrato quaisquer direitos ligados á exploração de esplanadas e a utilização dos móveis afectos á fracção, classificados ou não, exceto no que respeita às partes comuns da fracção autónoma do imóvel ora arrendado.

(...)

4. A segunda contraente tem conhecimento de que o imóvel ora arrendado se encontra a garantir o contrato de locação financeira (leasing imobiliário) n.º .....45 celebrado com o Banif -Banco Internacional do Funchal, SA e actualmente em vigor com o Banco Santander Totta, SA (...).

Cláusula segunda

O presente contrato é efectuado pelo prazo de 7 (sete) anos, com efeitos a partir 1 de Outubro de 2017.

No fim do prazo mencionado no número anterior, o contrato de arrendamento renovar-se-á automaticamente pelo período de 2 (dois) anos caso não seja denunciado pelas partes (...)

Cláusula terceira

A renda mensal é de € 20.000,00 (..)

As primeiras doze rendas do presente contrato de arrendamento são reduzidas a 50% (..) do valor estabelecido no número anterior.

 Com a celebração do presente contrato considera-se definitiva a entrega de € 40.000,00 (..) efectuada pela inquilina à senhoria, como reserva, que fica a fazer parte da caução do presente contrato, bem como se vencem a primeira e segunda rendas, no valor de € 20.000,00 (..), entregues nesta mesma data.

As rendas subsequentes vencem-se no dia oito de cada mês.

A renda estipulada fica sujeita á actualização anual em função dos coeficientes aprovados nos termos da lei a partir da 25ª renda, inclusive.

(…)

Cláusula quinta

A segunda contraente não pode subarrendar o locado, emprestá-lo ou, por qualquer forma ou meio, oneroso ou gratuito, cedê-lo, transmiti-lo, seja a que titulo for, no todo ou em parte, designadamente através da cessão, a qualquer título, das suas quotas, sem prévio consentimento por escrito da senhoria, nem sequer possibilitar a terceiros a sua fruição temporária por cessão de exploração.

Cláusula Sexta

O locado encontra-se livre e devoluto de pessoas e bens e destina-se à actividade comercial no ramo da restauração, serviços de café e bar.

A inquilina declara que conhece o espaço e que o mesmo se adequa às suas pretensões.

A inquilina fica desde já autorizada pela senhoria a realizar as obras necessárias à adaptação dos espaços à sua actividade e instalação dos seus serviços, respeitando a estrutura e segurança do prédio, bem como o património histórico inserido na fracção, classificado ou não, e cumprindo todas as formalidades previstas na lei.

Cabe á Inquilina a integral responsabilidade das obras por si realizadas ou ordenadas obrigando-se ainda a obter as autorizações administrativas necessárias, a cumprir as leis e regulamentos aplicáveis e a suportar todos os custos inerentes ou decorrentes de tais obras, cumprindo à inquilina a concessão dos instrumentos de autorização que sejam solicitados pelas autoridades administrativas para efeitos de licenciamento do estabelecimento.

A segunda contraente declara ter conhecimento de que o espaço aqui arrendado foi objecto de " Abertura do procedimento de classificação" pela Direcção-Geral do Património Cultural (..), bem como das exigências que esta situação implica a nível das autorizações administrativas necessárias para a realização de obras.

Cláusula Sétima

1. Todas e quaisquer obras a realizar no locado pela segunda contraente durante o período de execução contratual serão sujeitas a autorização prévia, por escrito, da primeira contraente, sendo o pedido de realização de obras instruído com os respectivos elementos identificativos das obras a realizar e em cumprimento do disposto nos n.9s 3 e 4 da Cláusula anterior.

(...)

Cláusula Nona

1. A segunda contraente obriga-se, sob pena de resolução do presente contrato de arrendamento e sem prejuízo do pagamento da indemnização correspondente:

(...)

b) manter todo o património histórico contido no locado, classificado ou não em bom estado não podendo proceder á sua alteração ou retirada;

c) proceder ao pagamento antecipado da renda;

(…) (E)

3.1.6. A 02/11/2017 a Polícia Municipal de .... procedeu à fiscalização de uma "operação urbanística na Rua ..........., n.° ..., ..., ..., ... (Cervejaria ...), cujo promotor era a Querido Sol, Ld.ª:

l) operação essa definida como "obras de conservação ";

ll) tendo sido verificado que: " Aquando da fiscalização, foi verificado que decorrem obras de conservação, em imóvel Classificado-Conjunto de Interesse Público, imóvel em vias de Classificação - Cervejaria Solmar, Ldª, sem a licença administrativa emitida pela CM....., que constam do seguinte:

Foram efectuadas pinturas nos tetos. Estão a efetuar limpezas nas pedras das cantarias dos vãos das portas. Foi também verificado que a fachada se encontra revestida em placas de pedra que estão ser intervencionadas, através da sua limpeza. No interior polimento dos pisos e limpezas nas pedras das paredes.

 No passeio, junto da fachada, foi verificado a ocupação da via pública, com a colocação de um escadote/andaime, com cerca de 2,50 m de comprimento x 1,20 m de largura e 3,00 m de altura e um escadote de alumínio de apoio à limpeza da fachada, sem licença emitida pela edilidade."

c) que estavam a ser violadas as seguintes normas legais: "Infração ao disposto no art.9 49, n.º 2, al. d) do RJUE, aprovado pelo Decreto lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado pela Lei n.º 79/2017, de 18 de Agosto"; " Contra-ordenação por infração ao disposto no art.9 129, n.º 4, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com estaleiro de Obras, aprovado pela Deliberação n.º 263/AML/2014, de 21 de Outubro de 2014"

d) e sido proposto o embargo total da obra.

3.1.7. Foi proposto o embargo da obra referida em 3.1.6. pelo prazo de 12 meses, a contar da data da sua execução. (G)

3.1.8. A 08.11.2017. o Vereador do Urbanismo da CM..... determinou o embargo da obra. (H)

3.1.9. A 13/11/2017 a Polícia Municipal de .... procedeu ao embargo administrativo da obra referida em F), " por falta de licença", tendo sido verificado, na referida data, que estavam ser " efectuadas pinturas interiores, reposição de rede de esgotos, gás e electricidade e limpezas diversas...". (I)

3.1.10. A 23/02/2018 a Ré deu entrada na Câmara Municipal de .... de um processo de licenciamento n.° .../EDI/2018.(J)

3.1.11. A 13 de Novembro de 2018 o locado estava encerrado ao público. (L)

3.1.12. A 20 de Novembro de 2018 foi verificada a caducidade do embargo e que as obras referidas em 3.1.6. se encontravam paradas. (M)

3.1.13. No processo n.° .../EDI/2018, a Câmara Municipal de .... enviou á Ré o ofício junto por cópia a íls. 75v, datado de 08/03/2018, com o seguinte teor:

"Vimos por este meio informar que, após uma primeira análise, o pedido de Alteração -alterações interiores apresenta algumas incorreções, de acordo com a informação e despachos em anexo.

Para dar seguimento ao processo acima identificado deverá corrigir e/ou entregar os elementos indicados (..) no prazo de 15 dias úteis, contados a partir do terceiro dia da data do registo da presente notificação, sob pena de rejeição do pedido". (N)

3.1.14. A ré não procedeu á entrega dos elementos solicitados. (O)

3.1.15. No processo n.° .../EDI/2018, foi apresentada à Chefe da Divisão de Saneamento Liminar e Apoio ao Licenciamento do Departamento de Apoio à Gestão Urbanística a seguinte informação: "Refere-se o presente processo a um licenciamento de obras de alteração com o n. .../EDI/2018, de 23 de Fevereiro de 2018.

Consultado o sistema informático, verificou-se que deu entrada em 08/12/2018 um novo pedido de Licenciamento de obras de conservação para o mesmo local que originou o processo .../EDI/2018.

De acordo com o Código de Procedimento Administrativo (..) " O procedimento é declarado extinto quando o órgão competente para a decisão verifique que a finalidade a que ele se destinava ou o objecto da decisão se tornaram impossíveis ou inúteis."

Face ao exposto (..) propõe-se o arquivamento do presente processo por impossibilidade ou inutilidade superveniente", tendo a mesma determinado o arquivamento do processo. (P)

3.1.16. O processo .../EDI/2018 foi objecto de desistência da Ré. (Q)

3.1.17.   A 28.01.2019. a Ré deu entrada a um novo processo de licenciamento, que recebeu o n.° .../EDI/2019. (R)

3.1.18. A 12/02/2019 o locado estava encerrado ao público (S)

3.1.19. A partir de Março de 2018 (inclusive) a Ré não pagou as rendas. (T\

3.1.20. A 22 de Junho de 2018 a A., através do seu Ilustre Mandatário, enviou á Ré uma carta interpelando-a para proceder ao pagamento das rendas, acrescidas da indemnização legal, sob pena de resolução do contrato. (U)

3.1.21. A 09 de Novembro de 2018 a Ré procedeu ao depósito na conta bancária da A. da quantia de € 110.000,00. (V)

3.1.22. A A. imputou a referida quantia ao pagamento das rendas de Março de 2018 a Setembro de 2018, acrescidas da penalização de € 50%, à renda de Outubro de 2018 acrescida da penalização de 50% e a parte da renda de Novembro de 2018. (X)

3.1.23. A 08 de janeiro de 2019 a Ré depositou na conta da A. a quantia de € 15.000,00. (Z)

3.1.24. A A. imputou a referida quantia ao pagamento do remanescente da renda de Novembro de 2018 e a parte da Dezembro de 2018. (AA)

3.1.25. A 25 de janeiro de 2019 a Ré depositou na conta da A. a quantia de € 15.000,00, que a A. imputou ao pagamento do remanescente da renda de Dezembro de 2018 e a parte da penalização referente á renda de Dezembro de 2018. (BB)

3.1.26. A 05 de Fevereiro de 2019 a Ré depositou na conta da A. a quantia de € 15.000,00, a qual imputou ao pagamento da penalização relativa à renda de Dezembro de 2018 e parte da renda de janeiro de 2019. (CC)

3.1.27. Pela ap. .../20170918 foi inscrita a constituição da sociedade Ré, a qual foi matriculada sob o NIPC 514558105, tendo como capital social € 100.000,00, sócios AA e BB, cada um com uma quota de € 50.000,00 e gerentes os sócios. (DD)

3.1.28. Pela ap. .../20181114 foram inscritas alterações ao contrato de sociedade, nomeadamente o aumento do capital social de € 100.000,00 para € 600.000,00, sendo o aumento (€ 500.000,00) subscrito pela nova sócia " I......, Lda" e alterada a gerência da sociedade que passou a pertencer a CC, DD e EE. (EE)

3.1.29. Não foi solicitada autorização á A. para as alterações referidas em 3.1.28..(FF)

3.1.30. Está descrito na CRP de ..., freguesia de ..., sob a ficha ..., um prédio urbano sito na Rua ........, n.°s ..., ..., ..., ... e ..., composto de r/c, sobreloja, 1º, 2º, 3º e 4º andares (águas furtadas), cuja implantação no solo não é uniforme, tendo o corpo central, recuado a partir do 2o andar, em cada uma das extremidades norte e sul, um corpo mais elevado, recuado ao nível do 4o andar. Área coberta (...) dependência coberta para ginásio (...). Tendo pátios, recreios descobertos e logradouros com a área de (...). (GG)

3.1.31. Pela ap. ... de 2005/12/23 foi inscrita a constituição de propriedade horizontal, tendo o referido prédio passado a ser a constituído por duas fracções autónomas: A e B, sendo do uso exclusivo da fracção "B" todas as parcelas do logradouro, incluindo o recinto de jogos descoberto, a piscina com snack-bar, a mata arborizada e o restante terreno livre circundante. (HH).

 3.1.32.     A fracção autónoma designada pela letra "A" tem entrada pelos números ..., ..., ... e ... da Rua .... - ocupação ao nível do r/c e da sobreloja (dos corpos central e sul do edifício) destinada a terciário - restaurante. (II)

3.1.33. A fracção autónoma designada pela letra "B" tem entrada pelo r/c do n.° ... da Rua .... (corpo norte) - composta por uma ocupação ao nível do r/c, sobreloja, primeiro, segundo, terceiro e quarto andares - destinada a terciário. (JJ)

3.1.34. Pela ap. ... de 2018/06/26 foi inscrita a aquisição da referida fracção a favor de Ateneu Comercial de Lisboa. (LL)

3.1.35. Pela ap. ... de 2018/06/26 foi inscrita a aquisição a favor de C..., Lda. (MM)

3.1.36. A 28 de Janeiro de 2016. A Câmara Municipal de .... realizou uma vistoria ao prédio sito na Rua ....., ...-..., tendo elaborado o "Auto de Vistoria n.° .../AUT/UIT/GESTURBE/2016", datado de 08/03/2016 e junto por cópia a fls. 107-108v. cujo integral teor, dada a sua extensão, se dá aqui por reproduzido. (MM duplicado)

3.1.37. No referido Auto ficou a constar, nomeadamente, o seguinte:

" (...)

Interiormente, verificam-se as seguintes deficiências:

- Na ocupação com o n.º .../... (restaurante/pastelaria ...): no espaço correspondente à pastelaria (piso térreo) - vestígios de infiltrações, na forma de eflorescências salitrosas, numa vasta zona do teto junto ao balcão; nas cozinhas do restaurante/cervejaria ( piso térreo) - ligeiros vestígios de infiltrações salitrosas no teto da copa, vestígios de infiltrações, designadamente eflorescências salitrosas e manchas de humidade, na zona do teto junto à parede de tardoz ( presumivelmente de contenção de terras) e eflorescências e vestígios de escorrências ao longo do rodapé na mesma parede, verificando-se igualmente o alagamento de zonas do pavimento confinantes com a parede referida; na escada de acesso ao piso superior, localizada na cozinha - escada com zonas alagadas de água e elementos do revestimento dos degraus, tipo ladrilhos, fraturados e em falta; no vestiário feminino ( piso superior) – zona localizada com eflorescências salitrosas e manchas acastanhadas na parede de tardoz e paredes e teto no interior do armário da conduta de extracção de fumos integralmente enegrecidos de humidade; na copa ( piso superior) - fortes vestígios de infiltrações no teto em grandes áreas, designadamente machas acastanhadas de humidade, eflorescencias salitrosas e revestimento aluído e em risco de queda, presumivelmente provenientes da rede de águas residuais da cozinha localizada no piso superior e pertencente ao bar/restaurante denominado " ...", com acesso pelo vão de porta n. ... da Rua ....; no corredor de acesso às diversas instalações de serviço - eflorescencias salitrosas em paredes e zona do teto junto ao acesso aos balneários com fortes vestígios de infiltrações apresentando o revestimento aluído e em risco de queda, assim como o banzo inferior de uma viga metálica à vista já corroída; vestiário masculino - azulejos em falta numa zona da parede; caixilho do vão de porta de acesso à Rua particular na fachada lateral com vidro fraturado e em falta numa pequena zona; na casa de banho dos homens do restaurante/cervejaria no piso térreo -vestígios de infiltrações, na forma de eflorescencias salitrosas, numa vasta extensão da zona superior das paredes; na escada na cozinha do restaurante/cervejaria de acesso ao piso superior - parede comum com a casa de banho com vestígios de infiltrações ( eflorescencias salitrosas) presumivelmente provenientes da rede de abastecimento de água; no restaurante/cervejaria - eflorescencias salitrosas e revestimento empolado numa zona da parede comum com a pastelaria e com as copas de apoio à mesma, ao nível dos dois pisos; restante espaço da ocupação em regular estado de conservação.

(...)

- Na caixa de escada principal: fortes vestígios de infiltrações generalizadas, com desenvolvimento de fungos, de natureza pluvial provenientes da cobertura, em grandes áreas das paredes e do teto ao nível do último andar, encontrando-se o revestimento da parede confinante com o patim intermédio ( parede que se estende até ao sub-céu), aluído e em risco iminente de queda, apresentando á vista a estrutura de madeira com as tábuas costaneiras apodrecidas, assim como o fasquiado em falta e em avançado estado de apodrecimento, tendo sido colocadas placas de poliestireno expandido na zona superior da parede a substituir o revestimento aluído, as quais se encontram soltas indiciando risco de aluimento; ao nível do 29 e 39 andar também se verificam vestígios de infiltrações generalizadas de natureza pluvial nos tetos e nas paredes confinantes com o patim intermédio, no seguimento do verificado no último piso, mas menos acentuadamente; ao nível da cobertura é possível observar através de um vidro em falta no envidraçado do sub-céu, a caixilharia da clarabóia corroída e com vidros fraturados; tintas empoladas e em falta pontualmente em paredes e em tetos.

- Na caixa de escada de serviço confinante com a fachada lateral: tábuas de soalho de alguns patins fissuradas/fendidas, vestígios de infiltrações numa zona localizada na parede de fachada lateral ao nível do 4e andar e eflorescências salitrosas acompanhadas de manchas de humidade na parede ao nível do piso térreo;

- No pavilhão desportivo/campo de jogos: vestígios de infiltrações generalizadas de natureza pluvial, designadamente manchas escuras de humidade e vestígios de escorrências, na zona superior das paredes em vastas extensões, provenientes da cobertura;

- Na escada interior de ligação do pavilhão desportivo/campo de jogos com a escada anterior de acesso ao terreno de tardoz: fortes vestígios de infiltrações generalizadas nas paredes e no teto, com desenvolvimento de fungos e humidade persistente.

- No complexo da piscina ( presentemente desactivado): nos balneários e nas instalações sanitárias - em regular estado de conservação, verificando-se alguns vidros aramados fraturados; na piscina/tanque vestígios de infiltrações salitrosas numa vasta extensão do teo junto às armaduras de iluminação, pronunciando risco de curto-circuito e grelhas dos sumidouros/ralos partidos e em falta, podendo causar quedas acidentais por tropeçamento; a cobertura da piscina/tanque apresenta diversas chapas acrílicas em falta permitindo a entrada abundante de água da chuva e originando o alagamento do pavimento em grandes áreas (...)

(...)

Face ao exposto e do que foi dado observar, de que resulta insegurança e insalubridade, os técnicos emitem por unanimidade o seguinte parecer:

1 - O edifício é recuperável

2 - Os elementos estruturais que oferecem maior risco são:

2.1. - O pavimento da sala de arquivo do 4º andar (...)

2.2.- A estrutura de madeira de paredes do 4º andar (...)

3 - As causas de insegurança e de insalubridade devem-se, essencialmente, á falta de realização de obras periódicas de conservação e às fortes infiltrações ocorrem através das coberturas do edificado.

4 - Deverá ser determinado:

4.1. Reparação e consolidação dos elementos descritos nos pontos 2.1. e 2.2.

4.1.2. Reparação das coberturas do edificado, incluindo a cobertura do complexo da piscina e do pavilhão desportivo/campo de jogos, substituindo todos os elementos que se encontrem deteriorados e em falta, ao nível dos revestimentos, estruturas de suporte e dos sistemas de drenagem de águas pluviais;

(...)

8 - De acordo co as fichas de avaliação apenas, foi avaliado o estado de conservação da totalidade do edifício, tendo-se obtido os seguintes níveis de conservação:

- Edifício e outras partes comuns: Nível 2 - Mau - N.º Ficha (3030);

- Fracção Rua ......n.º .../... (restaurante…...): Nível 2 - Mau - N.º Ficha (…..21);

- Fracção Rua ...., n.º ... (…): Nível 2 - Mau - n.º de ficha (….41).

(...)" (NN)

3.1.38. A A. teve conhecimento do referido Auto de vistoria. (OO)

3.1.39. A A. não deu conhecimento á Ré do conteúdo do Auto de vistoria. (PP)

3.1.40. Por despacho de 31/05/2017 do Vereador FF, foi determinada a execução de obras de conservação do imóvel, com o prazo de 60 dias úteis para o início dos trabalhos e de 9 meses para a sua conclusão. (QQ)

3.1.41. A A. foi notificada do referido despacho e o fim do prazo para o início das obras ocorreu a 21/11/2017 e o prazo de conclusão a 21/08/2018. (RR).


**



3.2. Está ainda provado por não impugnado que:

3.2.1. A 02 de Agosto GG, na qualidade de gerente da Grande Cervejaria Solmar, Ld.a subscreveu o documento junto por cópia a fls. 152, com o seguinte teor:

"GG (...) gerente da Grande Cervejaria Solmar, Ld-, com sede na Rua Portas de Santo Antão, n.9 106-108 A, Lisboa (...) declara que reserva o imóvel acima identificado até ao próximo dia 30 de Setembro, para dar de arrendamento à senhora BB ou a empresa da qual seja sócia, para o efeito, que será outorgado e negociado até ao indicado dia 30 de setembro.

3.3. Da instrução resultou provado que

3.3.1. A fracção autónoma designada pela letra "A" é constituída por um conjunto de diversos espaços, distribuídos por um piso térreo ( sala de refeições - com um balcão situado do lado esquerdo de quem entra pela porta principal e um painel de azulejos situado em frente e do lado esquerdo do mesmo uma escada de acesso à mezzanine - e cozinha sem qualquer abertura para o exterior e situada a uma cota inferior á do terreno exterior, quer a Este quer a Sul) e outros situados no piso elevado ( mezzanine situada do lado esquerdo de quem sobe as escadas, copa, vestiários e diversas instalações de serviços e corredores interligados de forma labiríntica, muitos deles, também, sem qualquer abertura para o exterior e situados a uma cota inferior á do terreno exterior, situado quera Este quer a Sul).

3.3.2. Verificam-se infiltrações:

A) no painel de azulejos;

B) na escada de acesso á mezzanine a partir da sala de refeições e na parede que confronta com a mesma;

C) no teto da sala de refeições;

D) no teto da mezzanine;

E)  na parte superior do posto de transformação;

F) nas paredes junto ao chão da divisão que foi em tempos o escritório;

G) na cozinha;

H) em corredores, escada de acesso do piso superior à cozinha e outras instalações, cuja exacta função não foi possível identificar;

I) no nicho do quadro eléctrico.

3.3.3. As infiltrações referidas:

- nas alíneas a), b) e), f), g), h) e i), têm origem não concretamente apurada, mas que poderá ser águas da chuva infiltradas na fracção B e/ou águas impregnadas no solo exterior às paredes limítrofes da fracção A, situadas a Este e Sul;

- nas alíneas c) e d), são de água das chuvas que entraram na fracção B, situada na parte superior da fracção A.

3.3.4. Tais infiltrações provocam:

i) a existência de água:

A) no chão da mezzanine;

B) no chão da cozinha

C) no piso da escada de acesso do piso superior à cozinha;

D) no nicho do quadro eléctrico;

ii) o risco de queda do painel de azulejos, deterioração e queda do estafe dos tetos e deterioração do madeiramento de suporte do mesmo e, no que diz respeito ao quadro eléctrico, corte de energia e incêndio;

3.3.5. As situações referidas nas alíneas a), b), e), f), g), h) e i) do ponto 3.3.2. são anteriores a, pelo menos, 2017.

3.3.6. A situação referida na alínea c) do ponto 3.3.2. data de, pelo menos, finais de 2018.

3.3.7. A situação referida na alínea d) do ponto 3.3.2. verifica-se desde data não concretamente apurada, mas posterior a Setembro de 2019.

3.3.8. As situações referidas no ponto 3.3.2. impedem a utilização da fracção autónoma designada pela letra "A" para a actividade de comércio de restauração e bebidas.

3.3.9. A Ré, através do seu Ilustre mandatário, endereçou á A., que a recebeu a 06/12/2018, a carta junta por cópia a fls. 116 -116v com o seguinte teor:

" (…)

Venho mais uma vez a pedido da minha constituinte (...) "Querido Sol, Ld-" (...) interpelar Vossas Excelências no sentido de, definitivamente, tomarem posição quanto aos assuntos que se encontram pendentes de resolução no imóvel, objecto do contrato de arrendamento supra mencionado, visto este necessitar de obras estruturais, urgentes, uma vez que se pode constatar o seguinte:

Na zona correspondente á pastelaria (piso térreo) existem infiltrações de água e visualização de eflorescências salitrosas numa vasta zona junto ao tecto e pavimentos;

Nas cozinhas do restaurante/cervejaria (piso térreo) existem infiltrações de água, sendo visíveis eflorescências salitrosas no tecto da copa e na parede a tardoz;

Na escada de acesso ao piso superior, localizada na cozinha, esta encontra-se alegada na zona dos degraus e patamar existindo ainda uma grande infiltração na zona do quadro eléctrico, com águas a escorrer nas paredes do mesmo;

Na copa (piso superior) há grandes vestígios de infiltrações no tecto, em áreas muito significativas, com manchas de humidade nas paredes, revestimentos soltos e caídos, presumivelmente provenientes da rede de águas residuais da cozinha;

Na zona do salão encontram-se vestígios de infiltrações ao nível da cobertura, na zona dos pilares há falta de pastilhas de revestimento do elemento estrutural), na zona da bancada do peixe existe uma grande infiltração e escorrências nas paredes;

Na zona do balcão confinante com a bancada de peixe existe uma grande infiltração de água, em queda constante para o pavimento, para além do empolamento da pintura do tecto, onde também existem grandes bolsas de água;

A zona do painel de azulejos do salão encontra-se num estado muito degradado, com azulejos caídos, outros soltos e com eflorescências salitrosas visíveis em todo o painel, o qual tem as respectivas juntas em muito mau estado e outras zonas de azulejo completamente solto, sendo igualmente visível o descolar dos mesmos na zona de ligação à parede onde estão as infiltrações de águas.

O que se acaba de descrever é, muito resumidamente, o conjunto dos defeitos/anomalias visíveis e que impedem a utilização do imóvel ao fim a que se destina e que foi objecto do contrato de arrendamento supra mencionado.

A realização de obras estruturais é, nos termos da lei, uma competência do senhorio, sendo neste caso a sua concretização premente, uma vez que sem estas, de nada servem quaisquer outras que o inquilino possa realizar no locado.

Acresce que, desde a data da celebração do contrato de arrendamento e até ao presente momento é absolutamente inviável - pela necessidade urgente de realização de obras estruturais e também por razões legais que se prendem com a Câmara Municipal de .... - a utilização do imóvel para o fim que se encontra previsto no contrato de arrendamento, sendo certo que todas as rendas se encontram liquidadas e, consequentemente, em dia.

Porque assim é, interpelamos Vossas Excelências para a realização das obras cuja realização -como já se referiu - compete ao senhorio, concedendo o prazo de um mês para a realização das mesmas, visto ser impossível dar inicio á execução do contrato de arrendamento, prazo esse findo o qual, se nada for realizado para tornar o imóvel apto ao objecto do contrato de arrendamento em alcançado nenhum acordo com o inquilino, outra solução mão termos que não seja a execução das obras por conta do inquilino e procedendo á respectiva compensação com as rendas a liquidar mensalmente".

3.3.10. A A. respondeu, enviando à Ré, que a recebeu, a carta datada de 07/01/2019 junta por cópia a fls. 118v-119 com o seguinte teor:

"Acusamos a recepção da comunicação que nos enviou com a data de 5 de Dezembro de 2018.

Aquando da celebração do contrato de arrendamento foi feita a vistoria do locado por parte da representada de V.Exa. que comprovou a situação deste, o aceitou no estado em que se encontrava e se obrigou a realizar as intervenções necessárias para o adequar ao fim a que se destina. A responsabilidade pela manutenção das canalizações do locado é também da representada de V.exa, pelo que não lhe assiste qualquer razão naquilo que é invocado nas alíneas a) a f) da comunicação a que se responde. Mais, a existir qualquer problema no locado cuja origem esteja relacionada com as partes comuns do edifício revelar-se-á necessário fazer uma vistoria em conjunto com representantes do Condomínio, a qual iremos desde já promover.

O painel de azulejos a que se refere a alínea g) da comunicação a que se responde tem elevado valor arquitectónico pelo que, pese embora a obrigação da representada de V.Exa assumida em realizar obras no locado, como esta bem sabe, a recuperação de tal painel foi por nós excepcionada. E o seu restauro apenas não foi ainda por nós realizado porque a representada de V.exa ainda não realizou as, necessariamente prévias, intervenções a que se obrigou.

3.3.11. Não sendo feitas, em primeiro lugar, obras de impermeabilização, as eventuais obras de reparação dos danos provocados pelas infiltrações (empolamentos, eflorescências salitrosas, estuques apodrecidos, formações calcárias) e pinturas, não são suficientes para permitir a utilização do local e ficam sujeitas a rápida deterioração.

3.3.12. A A. não entregou à Ré recibo de nenhuma das quantias recebidas a título de renda.

3.3.13. A fracção autónoma designada pela letra "A" carece da realização das seguintes obras:

A) tratamento especializado do painel de azulejos tendo era vista o seu restauro e conservação;

B) remodelação das redes de infraestruturas elétrica, água e residuais;

C) injecção de fendas de desligamento das paredes de alvenaria de pedra, com aplicação de grout á base de cal hidráulica nas fissurações;

D) reforço da parede em alvenaria de pedra, com argamassa projectada constituída por cal aérea, cimento branco, areia amarela e areia lavada, incluindo camada de aderência e camada de enchimento e reforço em rede de acção electro-soldada, chumbada á parede;

E) tapagem de furos e fendas existentes nas cantarias;

F) remoção integral das betonilhas existentes e dos pavimentos construídos sobre os pavimentos originais, a manter;

G) impermeabilização da fracção, reparação dos danos causados pelas infiltrações e pinturas;

H) reposição da pedra e dos revestimentos cerâmicos em falta, nas paredes das zonas de balcão/atendimento, ou a sua substituição por peças semelhantes;

I) reparação e desoxidação da cantaria da fachada exterior;

J) limpeza de graffiti e cartazes, protecção das superfícies tratadas e manutenção das mesmas.


*


3.4. Não resultou provado que:

3.4.1. A cláusula 3ª n.° 2 do instrumento referido no ponto 3.1.5., em que ficou consignado que "As primeiras doze rendas do presente contrato de arrendamento são reduzidas a 50% (...) do valor estabelecido no número anterior.", baseou-se na previsão, pelas partes, dum período máximo de 12 meses para a realização das obras.

3.4.2. A 20 de Setembro de 2017 a A. tinha realizado obras na fracção autónoma designada pela letra "A" que resolveram as questões elencadas ponto 3.1.37., na parte relativa à "(...) ocupação com o n.° .../... (restaurante/pastelaria ...): ...".


*


Factos aditados


Em desenvolvimento dos factos provados e supra descritos 3.1.2 e ao abrigo do disposto no art. 607º, nº 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663º, nº 2 e 679º, todos do CPC, considera-se, atento o teor das atas das assembleias geras do condomínios juntas aos autos, ainda assente que: 


3.3.14. Na cláusula 6º do denominado “Contrato de Locação Financeira Imobiliária nº ..... aludido no ponto 3.1.1. dos factos provados, estipulou-se que  «Em caso de sublocação, cedência a qualquer título do gozo do imóvel, ou de parte deste, o locatário mantém-se, em quaisquer circunstâncias o único obrigado perante o locador, pelo cumprimento de todas as obrigações decorrentes  do presente contrato, não podendo nunca a sublocação ser oponível ao locador, restringindo-se os seus efeitos exclusivamente ao âmbito das relações entre o locatário e o sublocatário, que deverá tomar conhecimento destas disposições». 


3.3.15. No denominado “Contrato de Locação Financeira Imobiliária nº ..... aludido no ponto 3.1.1. dos factos provados e na parte relativa a “Condições Gerais Contrato Locação imobiliária”, ficou, para além do mais, a constar: 

"Artigo 152 (Utilização do imóvel, obras, reparações e benfeitorias)

(...)

2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o locatário deve efectuar todas as obras necessárias à conservação e à manutenção da integridade e estrutura, mantendo-o em bom estado de conservação.

(...)

7. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, em face da realização de quaisquer obras de alteração, reparação ou beneficiação do imóvel, é da única, total e exclusiva responsabilidade do locatário:

a) a observância de todos os procedimentos regulamentares, legais e administrativos necessários à sua execução, incluindo obtenção de autorizações, aprovações e licenças.»



***


3.2. Fundamentação de direito


A - Conforme já se deixou dito, o objeto do recurso interposto pela autora prende-se com as questões de saber se existe fundamento para a resolução do contrato, nos termos do art. 1083º, nº 2, al. d), do nº 3 ou do nº 2, al. e), do Código. Civil


3.2.1. Da resolução do contrato, nos termos da alínea d), do nº 2 do art. 1083º, do Código Civil e do abuso de direito.

A este respeito, decidiu o acórdão recorrido, contrariamente ao decidido na sentença de 1ª Instância, inexistir fundamento para decretar a resolução do contrato de arrendamento com o fundamento previsto na alínea d) do nº 2 do citado art. 1083º, por resultar dos factos provados que o não uso do locado por mais de um ano, por parte da ré, é consequência da autora não ter cumprido o contrato, com clara violação dos arts. 1031º, al. b) e 1032º, ambos do C. Civil.


Deste entendimento, dissente a autora, sustentando que, como decorre dos factos provados, aquando da celebração do contrato de arrendamento, a situação do imóvel  e as anomalias de que este padecia  eram facilmente reconhecíveis e conhecidas pela ré; que a necessidade de obras só em hipóteses muito especiais  pode ser tida como força maior dilatória da resolução do contrato de arrendamento por não uso e que a não exploração do arrendado por mais de um ano é imputável à ré, que não efetuou as reparações  a que se obrigara, por nunca ter obtido a respetiva licença camarária  e por  ter dado início às  obras de adaptação do espaço sem a necessária licença, o que determinou o seu embargo.


Vejamos


No caso dos autos, estamos no âmbito de um contrato, que segundo a noção que nos é dada pelo artigo 1022º do C. Civil, é um contrato de arrendamento comercial por via do qual a autora, na qualidade de senhoria, obrigou-se a proporcionar à ré, pelo período de 7 anos, com efeitos a partir de 1 de outubro de 2017, e mediante a satisfação da contrapartida mensal de € 20.000,00, o gozo temporário da loja correspondente à fracção  autónoma “ A” sita na Rua ........, ... a ... e Calçada ......, ..., descrita na Conservatória do registo Predial de ... sob  a ficha nº ..., da freguesia de ..., para o exercício  da atividade de comércio de restauração e bebidas.

Este contrato foi celebrado a 28 de setembro de 2017 e, na sua cláusula sexta, ficou estabelecido, para além do mais, que a ré « inquilina declara que conhece o espaço e que o mesmo se adequa às suas pretensões » e fica «desde já autorizada pela senhoria a realizar as obras necessárias à adaptação dos espaços à sua actividade e instalação dos seus serviços, respeitando a estrutura e segurança do prédio, bem como o património histórico inserido na fracção, classificado ou não, e cumprindo todas as formalidades previstas na lei», cabendo-lhe «a integral responsabilidade das obras por si realizadas ou ordenadas obrigando-se ainda a obter as autorizações administrativas necessárias, a cumprir as leis e regulamentos aplicáveis e a suportar todos os custos inerentes ou decorrentes de tais obras, cumprindo à inquilina a concessão dos instrumentos de autorização que sejam solicitados pelas autoridades administrativas para efeitos de licenciamento do estabelecimento».

Cabia, assim, à ré, por força do contrato de arrendamento, efetuar as obras necessárias à adaptação da mesma fracção para o fim a que se destinava, ou seja, para o exercício da atividade de comércio de restauração e bebidas.

Vale isto por dizer que a fração foi arrendada à ré no pressuposto de que serviria para o exercício do comércio de restauração e bebidas, embora necessitasse de obras de adaptação.

Todavia isso não isenta o senhorio da obrigação de, nos termos do disposto no artigo 1031º, al. b), do C. Civil, «assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que esta se destina», podendo mesmo incorrer em incumprimento contratual, nas situações indicadas no art. 1032º, do C. Civil, ou seja, sempre que a existência de vício da coisa locada não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, por carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador.

O legislador, no entanto, submete tal consequência à ocorrência de duas situações, estabelecendo, para cada uma delas, regimes distintos, conforme o vício seja inicial (já existente à data da entrega) ou surja posteriormente.

Assim, no caso de o defeito existir no momento da entrega da coisa, a alínea a) do citado art. 1032º, faz impender sobre o locador o ónus de provar que desconhecia sem culpa, o defeito, para lograr isentar-se das consequências inerentes ao incumprimento.

No caso de surgir posteriormente à entrega, impende sobre o locatário, nos termos da alínea b) do citado art. 1032º, o ónus de provar que o senhorio teve culpa no surgimento do defeito, para lograr que se considere o contrato incumprido.   

No caso dos autos, resulta dos factos dados como provado no ponto 3.3.2 que, na fracção locada, verificam-se infiltrações:

a) no painel de azulejos;

b) na escada de acesso à mezzanine a partir da sala de refeições e na parede que confronta com a mesma;

c) no teto da sala de refeições;

d) no teto da mezzanine;

e) na parte superior do posto de transformação;

f) nas paredes junto ao chão da divisão que foi em tempos o escritório;

g) na cozinha;

h) em corredores, escada de acesso do piso superior à cozinha e outras instalações, cuja exata função não foi possível identificar;

i) no nicho do quadro elétrico.

Mais resulta dos pontos  3.3.4 e 3.3.8 que  estas infiltrações provocam, para além  da existência de água no chão da mezzanine, no chão da cozinha,  no piso da escada de acesso do piso superior à cozinha e  no nicho do quadro elétrico, o  risco de queda do painel de azulejos, deterioração e queda do estafe dos tetos e deterioração do madeiramento de suporte do mesmo e, no que diz respeito ao quadro elétrico, corte de energia e incêndio e  impedem a utilização da fracção autónoma designada pela letra "A" para a atividade de comércio de restauração e bebidas.

E resulta ainda  dos pontos 3.3.3, 3.3.5, 3.3.6 e 3.3.7 que, enquanto as infiltrações referidas nas alíneas a), b) e), f), g), h) e i) do ponto 3.3.2, têm origem não concretamente apurada, mas que poderá ser águas da chuva infiltradas na fracção B e/ou águas impregnadas no solo exterior às paredes limítrofes da fracção A, situadas a Este e Sul e são anteriores a, pelo menos, 2017, as infiltrações  referidas nas alíneas c) e d) do ponto 3.3.2  são de água das chuvas que entraram na fracção B, situada na parte superior da fracção A, datando a  situação referida na alínea c) de, pelo menos, finais de 2018 e a  situação referida na alínea d)  desde data não concretamente apurada, mas posterior a Setembro de 2019.

Ora, evidenciando os autos, claramente, que as infiltrações referidas nas  alíneas a), b) e), f), g), h) e i) do ponto 3.3.2 são anteriores ao início da vigência do arrendamento ( 1 de outubro de 2017) e impedem a utilização da fracção autónoma designada pela letra "A" para a atividade de comércio de restauração e bebidas, a questão que se coloca é, pois, a de saber se estas anomalias, além de poderem constituir violação do disposto no art. 1031, al, b), do C. Civil, consubstanciam incumprimento contratual por parte da autora senhoria, à luz do estabelecido  no citado art. 1032º, al. a), o que nos remete para a necessidade de indagar se, tal como sustenta a autora, aquando da celebração do contrato de arrendamento (28 de setembro de 2017), a situação do imóvel e as anomalias de que este padecia eram facilmente reconhecíveis e conhecidas pela ré.

E a este respeito importa esclarecer que se é certo ter a ré declarado, na cláusula sexta do contrato de arrendamento, que «conhece o espaço e que o mesmo se adequa às suas pretensões», a verdade é que, daí não se pode concluir, sem mais, que a ré tinha conhecimento dos apontados vícios.

Desde logo, porque o contrato foi celebrado a 28 de setembro e a autora nem sequer alegou e, por isso, não logrou provar que, anteriormente, tivesse chovido e/ou que, na altura, tais infiltrações fossem visíveis e ainda porque há sempre que contar com a possibilidade de as condições meteorológicas dos meses de verão terem propiciado a sua ocultação. 

Desta feita, não tendo a autora logrado provar que as infiltrações referidas nas alíneas a), b) e), f), g), h) e i) do ponto 3.3.2, únicas que relevam para a solução a dar ao presente litígio, eram do conhecimento da ré (o que afasta, desde logo, a aplicação ao caso dos autos, do disposto, no art. 1033º, al. a), do C. Civil) e assente que as mesmas são anteriores à data da celebração e do início de vigência do contrato de arrendamento, dúvidas não restam estarmos no âmbito de aplicação do disposto no art. 1032º, al. a), que faz recair sobre a autora o ónus de alegar e provar  que as desconhecia, sem culpa.

E a verdade é que, não logrou fazê-lo.

Senão vejamos.

Ficou estipulado, no artigo 152º  das  Condições Gerais deste contrato de locação financeira, ( leasing imobiliário) n.º ....45 celebrado, em 11.05.2006, entre a  Grande Cervejaria Solmar, Ldª, na qualidade de locatária, e o Banif-Banco Internacional do Funchal, SA ( atualmente em vigor com o Banco Santander Totta, SA ), que a ora autora, na qualidade de locatária «deve efectuar todas as obras necessárias à conservação e à manutenção da integridade e estrutura, mantendo-o em bom estado de conservação», sendo da sua responsabilidade «a observância de todos os procedimentos regulamentares, legais e administrativos necessários à sua execução, incluindo obtenção de autorizações, aprovações e licenças.»

Ora, subsistindo as obrigações decorrentes deste contrato de locação financeira para autora, a par das obrigações decorrentes para a ora ré do contrato de arrendamento, temos por certo que ambas as partes estavam obrigadas a efetuar obras no imóvel em causa.

À autora competia, por força do contrato de locação financeira, efetuar, na fracção objeto deste contrato, todas as obras necessárias à conservação e à manutenção da integridade e estrutura enquanto que à ré, por força do contrato de arrendamento, cabia efetuar as obras necessárias à adaptação dos espaços à sua atividade de comércio de restauração e bebidas.

Só que, como resulta claramente do ponto 3.4.2 dos factos não provados, a autora não logrou provar que, a 20 de Setembro de 2017 «tinha realizado obras na fracção autónoma designada pela letra "A" que resolveram as questões elencadas ponto 3.1.37., na parte relativa à "(...) ocupação com o n.° .../... A (restaurante/pastelaria ...): (...)».

Acresce resultar dos factos dados como provados nos pontos 3.1.36, 3.1.37, 3.1.38, 3.1.39, 3.1. 40 e 3.1.41, que, na sequência da vistoria levada a cabo pela Câmara Municipal de ...., em 28.01.2016, o Vereador FF, por despacho de 31.05.2017, havia determinado à autora  a execução de obras de conservação do imóvel, que  deviam ter início a 21.11.2017 e conclusão a 21.08.2018, antes, portanto, da celebração do contrato de arrendamento com a ré.

E, apesar de  ter tido conhecimento do auto de vistoria, datado de 08.03.2016, a autora  não deu conhecimento à ré do respetivo conteúdo, do qual constava, para além do mais, que « as causa de insegurança e de insalubridade devem-se, essencialmente, à falta de realização de obras periódicas de conservação e às fortes infiltrações que ocorrem através das coberturas do edificado»; que devia ser determinado, para além  da reparação e consolidação dos elementos estruturais ( pavimento da sala de arquivo do 4º andar e estrutura de madeira das paredes do 4º andar), a « reparação das coberturas do edificado, (…) substituindo todos os elementos que se encontrem deteriorados e, em falta, ao nível dos revestimentos, estruturas de suporte e dos sistemas de drenagem de águas pluviais»  e que, avaliado o estado de conservação  da totalidade do edifício, foram obtidos os seguintes  níveis de conservação:

«- Edifício e outras partes comuns: Nível 2 - Mau - N.º Ficha (3030);

- Fracção Rua ...... n.º .../... (restaurante/...): Nível 2 - Mau - N.º Ficha (…..21);

- Fracção Rua ....., n.º ... (……): Nível 2 - Mau - n.º de ficha (…..41).

(...)».

Daí que, ante este quadro factual, seja de concluir que, impendendo  sobre a autora, na qualidade de senhoria, o ónus de provar que desconhecia, sem culpa, as infiltrações referidas nas  alíneas a), b) e), f), g), h) e i) do ponto 3.3.2, que são anteriores  ao início da vigência do arrendamento ( 1 de outubro de 2017) e impedem a utilização da fracção autónoma designada pela letra "A" para a atividade de comércio de restauração e bebidas, e não tendo a mesma feito essa prova, a ocorrência de infiltrações de água das chuvas constitui vício da coisa locada gerador de incumprimento do contrato por parte dela, nos termos do art. 1032º, al. a), do C. Civil, que ainda se mantém, pois que, apesar de interpelada pela ré,  através da carta que recebeu a 06.12.2018, para realizar as obras estruturais com vista à eliminação de tais infiltrações, a autora nada fez.

E nem se diga, como o faz a autora, que estas anomalias eram facilmente reconhecíveis e conhecidas pela ré e, como tal, geradoras da irresponsabilidade do locador, nos termos do disposto no art. 1033º, al. b), do C. Civil.

É que, mesmo não se colocando de parte essa probabilidade, certo é, como se afirma no acórdão recorrido, que a autora não alegou qualquer factualidade que nos permita concluir nesse sentido, limitando-se, antes, a alegar que, aquando da celebração do contrato de arrendamento, já se encontravam efetuadas todas as obras que colmataram as deficiências referentes à fracção arrendada, em cumprimento da intimação da Câmara Municipal de ...., o que não logrou demonstrar conforme se vê do ponto 3.4.2  dos factos não provados.

Do mesmo modo não colhe o argumento avançado pela autora no sentido de que a não exploração do arrendado por mais de um ano é imputável à ré, que não efetuou as reparações a que se obrigara, por nunca ter obtido a respetiva licença camarária e por ter dado início às obras de adaptação do espaço sem a necessária licença, o que determinou o seu embargo, pois provado ficou no ponto 3.3.11. que «não sendo feitas, em primeiro lugar, obras de impermeabilização, as eventuais obras de reparação dos danos provocados pelas infiltrações (empolamentos, eflorescências salitrosas, estuques apodrecidos, formações calcárias) e pinturas, não são suficientes para permitir a utilização do local e ficam sujeitas a rápida deterioração».

Daí nenhuma censura merecer o acórdão recorrido ao concluir que a autora não tem fundamento para obter a peticionada declaração da resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto na alínea d) do nº 2 do art. 1083º, do C. Civil, pois que o não uso do locado por mais de um ano é consequência da autora não ter cumprido o contrato, por clara violação do art. 1031º, al. b) e 1032 º, al. a), ambos do C. Civil.

Do mesmo modo não colhe o argumento avançado pela autora no sentido de que a exigência de realização de obras feita pela ré depois de ter decorrido, pelo menos, um ano desde o conhecimento da situação do prédio e em sede de reconvenção consubstancia um verdadeiro abuso de direito, que, nas circunstâncias dos autos, deve ser sancionado com a proibição à ré de invocar a exceção prevista no art. 1032º, do C. Civil.

Com efeito, consabido que, de acordo com o estabelecido no art. 334º do C. Civil,  existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, basta atentar na circunstância de a autora não ter logrado provar que os defeitos denunciados  eram do conhecimento da ré aquando da entrega do locado e no facto de estar provado que, sem a realização, em primeiro lugar, das obras de impermeabilização, as eventuais obras de reparação dos danos provocados pelas infiltrações e ou de adaptação do locado ao exercício do comércio de restauração e bebidas, não são suficientes para permitir a utilização do local, para facilmente se concluir que, sem uma tal exigência, a ré permanecerá impedida de utilizar o arrendado para o fim a que o mesmo se destina.  

Afigurar-se-nos, assim, neste contexto, que o direito que a ré pretende fazer valer não se situa fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência em termos manifestamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico, inexistindo, por isso, abuso de direito


*



3.2.2. Da resolução do contrato, com base na falta de pagamento de rendas, nos termos do nº 3 do art. 1083º, do Código Civil.

A este respeito, sustenta a autora que a não realização de obras a cargo do senhorio  no locado não constitui fundamento para o não pagamento da renda, quer porque, nestas situações, não há lugar à aplicação do regime previsto no art. 428º do C. Civil, por faltar a interdependência recíproca das duas obrigações, quer porque, neste caso, apenas é  reconhecido ao locatário o direito à resolução do contrato, nos termos do art. 1083º, nº 5, do C. Civil, ou a substituir-se ao senhorio na realização de reparações urgentes, conforme o disposto no art. 1036º.


Vejamos, então, se é legítima a invocação pela ré da exceção de não cumprimento do contrato prevista no art. 428º do C. Civil para justificar o não pagamento das rendas.

Dispõe o nº 1 do citado artigo que «Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo».

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[2], a exceptio non adimplente contractus não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.

Trata-se, no dizer de Calvão da Silva[3], de uma exceção que, não é de conhecimento oficioso, carecendo de ser invocada pelo demandado a quem se exija o cumprimento.

E trata-se, outrossim, de uma exceção de direito material, porque corolário do sinalagma funcional que a funda e legitima: «o excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento nem enjeita o dever de cumprir a prestação; pretende tão só um efeito dilatório, o de realizar a sua prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação  a que tem direito e (contra) direito ao cumprimento simultâneo…».

É de admitir essa exceptio sempre que, existindo um nexo de correspondência ou de reciprocidade entre as obrigações que, no âmbito dos contratos bilaterais, emergem para ambas as partes, ocorra um desequilíbrio injustificado e contrário às regras da boa fé, consagradas nos artigos 227º e 762º, nº 2, do C. Civil, configurando-se a exceptio como um meio de repor o equilíbrio contratual entre as prestações das partes[4]

E, conforme vem sendo posição unânime da doutrina e da jurisprudência, este desequilíbrio contratual vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento (incumprimento temporário), como para o de cumprimento parcial ou defeituoso[5], dependendo a procedência da exceptio, neste último caso, da demonstração pelo excipiens de que os efeitos da prestação realizada prejudicam, de forma relevante ou significativa, a satisfação do interesse visado no contrato[6].

De realçar ainda, como refere  João Abrantes[7],  que a exceptio non adimplente contractus só tem fundamento legal nas hipóteses de mora ( incumprimento temporário)  ou cumprimento defeituoso pelo devedor, mas já não se o devedor incorrer em situação de incumprimento definitivo, seja resultante  da impossibilidade da realização da prestação ( fortuita ou imputável ao devedor- art. 801º, nº 1 do C. Civil), da recusa inequívoca e perentória do devedor ao cumprimento ou da perda do interesse objetivo do credor na prestação em falta por via do retardamento ( art. 808º, nºs 1 e 2, do C. Civil), casos em que a exceção já não pode surtir efeito útil. 

Na expressão deste mesmo autor, a invocação da exceção de não cumprimento supõe a existência de uma tripla relação entre o incumprimento (mora; incumprimento defeituoso) do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do devedor/excipiens: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra.

«Segundo a dita relação de sucessão, não poderá recusar a sua prestação, invocando a exceptio, o contraente que se encontre, ele próprio, numa situação de incumprimento/mora; a recusa de cumprir do excipiens deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la.

Por sua vez, segundo aquela relação de causalidade, a exceptio supõe a existência  de um nexo de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação pelo excipiens, ou seja, a exceptio deve ser alegada tendo em vista compelir à execução da obrigação correspectiva por parte do outro contraente; se o comportamento objectivamente manifestado pelo excipens indicia não ser esse (…) efectivamente o motivo da sua recusa em prestar, a dita excepção será ilegítima e não poderá , assim, proceder.

Finalmente, por força do princípio da equivalência ou proporcionalidade, a recusa do excipiens deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta não assumir relevância no contexto da utilidade económica da prestação, o recurso à exceptio poderá também ser ilegítima».

Vale tudo isto por dizer, ainda segundo o referido autor[8], que «são pressupostos da excepção de não cumprimento: existência de um contrato bilateral; não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação; não contrariedade à boa-fé». 

De esclarecer, constituir entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência, que, mesmo existindo prazos diferentes para o cumprimento das obrigações, o contraente obrigado a cumprir em segundo lugar pode ainda invocar a exceptio se o contraente obrigado a cumprir em primeiro lugar o não fizer ou o fizer de forma imperfeita[9]

É que, como já ensinava Vaz Serra[10], a fórmula legal do citado art. 428º, nº 1 «pois o que a excepção supõe é que um dos contraentes não esteja obrigado, pela lei ou pelo contrato, a cumprir a sua obrigação antes do outro; se não o estiver pode ele, sendo-lhe exigida a prestação, recusá-la, enquanto não for efetuada a contraprestação… Por conseguinte, a excepção pode ser oposta ainda que haja vencimentos diferentes … apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro….».

De sublinhar, todavia,  que situações excecionais existem em que, de harmonia com o disposto no art. 429º do C. Civil, o próprio contraente obrigado a cumprir em primeiro lugar, tem  a faculdade de recusar o cumprimento da respetiva prestação enquanto o outro não efetuar a sua prestação ou não der garantias de cumprimento, se, posteriormente ao contrato, se verificar alguma das circunstâncias enunciadas no art. 780º, nº 1 , do C. Civil e que  importam a perda do benefício do prazo, ou seja, se o obrigado a cumprir em último lugar se tornar insolvente, mesmo que não judicialmente declarado, se diminuírem , por facto que lhe seja imputável, as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias convencionadas.

De referir, finalmente, que assentando a configuração dos contratos sinalagmáticos na relação de interdependência entre as obrigações que deles reciprocamente emergem para ambas as partes, impondo a justiça comutativa que o devedor de cada uma dessas obrigações só possa ser compelido a executá-la se o devedor da outra também cumprir, é bom de ver que nas relações obrigacionais complexas a exceptio abrange apenas as obrigações principais, que diretamente prosseguem o interesse do credor, e não já as obrigações secundárias, que são meramente instrumentais em relação àquelas e que têm objeto acessório ou complementar em relação à estrutura do contrato e ao escopo fundamental prosseguido pelas relações obrigacionais dele derivadas.

Ora, analisando o caso dos autos à luz destas considerações, diremos que, se é certo resultar da factualidade dada como provada nos pontos  3.1.19 a 3.1.26,  que a ré não procedeu ao pagamento de parte da renda de janeiro de 2019 e das rendas referentes aos meses de fevereiro e março do mesmo ano, seguro é também evidenciarem os factos  dados como provados nos pontos 3.1.11 e  3.3.2. a 3.3.8, que as infiltrações referidas nas alíneas a), b) e), f), g), h) e i) do ponto 3.3.2, são anteriores ao início da vigência do arrendamento ( 1 de outubro de 2017) e impedem a utilização da fracção autónoma designada pela letra "A" para o exercício da atividade de comércio de restauração e bebidas, a que o locado se destinava, pelo que, não tendo a autora feito a prova de que desconhecia, sem culpa, tais defeitos, não podemos deixar de concluir, como já se fez em 3.2.1, que a ocorrência destas infiltrações de água das chuvas constitui, nos termos do art. 1032º, al. a), do C. Civil, vício da coisa locada gerador de incumprimento do contrato e  que este incumprimento ainda hoje se mantém, pois que, apesar de interpelada pela ré, através da carta que recebeu a 06.12.2018, para realizar as obras estruturais com vista à eliminação de tais infiltrações, a autora não o  fez.

E, a nosso ver, este incumprimento é, por sua vez, gerador do correspondente direito da ré se recusar a cumprir a sua prestação pecuniária, enquanto a autora não efetuar estas obras, tanto mais que, tal como decorre do ponto 3.3.11, se não forem realizadas as obras de impermeabilização, de nada adianta efetuar as obras de reparação dos danos provocados pelas infiltrações e pinturas, nem as obras de adaptação do locado ao exercício do comércio de restauração e bebidas.

Do mesmo modo e contrariamente ao que defende a autora, não se vislumbra que, neste contexto, se possa fazer recair sobre a ré o encargo de realizar as obras da responsabilidade da autora com direito ao seu reembolso, nos termos do art. 1036º, do C. Civil, pois resulta dos factos provados nos pontos 3.1.11e 3.1.18 a 3.1.26 que a ré entregou à autora a quantia de € 155.000,00 para pagamento de rendas, não obstante o locado não poder ser utilizado para a finalidade a que a ré o destinava, tendo estado encerrado ao público em 13.11.2018 e 12.02.2019.    

Ressalta, assim, deste quadro factual, assistir razão ao Tribunal da Relação quando afirma ser manifesto «um total desequilíbrio entre as prestações a cargo das partes; o R. paga as rendas para a utilização de um locado no qual não pode exercer a sua actividade. E o A recebe rendas, quando não cumpre a sua obrigação de proporcionar à R. o gozo do locado»

E daí, considerarmos também, em consonância com o acórdão recorrido, à luz das regras da boa fé contidas no art. 762º, nº 2 do C. Civil e numa perspetiva de equilíbrio contratual e de proporcionalidade, que a conduta da ré tem fundamento na exceção de não cumprimento do contrato prevista no art. 428º, do C. Civil, o que obsta ao exercício do direito à resolução do contrato invocado pela autora.


Improcede, por isso, neste conspecto, o recurso interposto pela autora.


*


3.2.3. Da resolução do contrato de arrendamento, nos termos do art. 1083º, nº 2, al. e), do C. Civil.


Neste capítulo ficou provado que a 28 de Setembro de 2017 a Grande Cervejaria Solmar, Lda, na qualidade de senhoria, e primeira contraente e a Querido Sol, Lda, na qualidade de arrendatária e segunda contraente, subscreveram o instrumento  junto  por cópia a fls. 12-14v, denominado  "Contrato de Arrendamento Comercial ", tendo estipulado, na respetiva cláusula 5ª que «A segunda contraente não pode subarrendar o locado, emprestá-lo ou, por qualquer forma ou meio, oneroso ou gratuito, cedê-lo, transmiti-lo, seja a que titulo for, no todo ou em parte, designadamente através da cessão, a qualquer título, das suas quotas, sem prévio consentimento por escrito da senhoria, nem sequer possibilitar a terceiros a sua fruição temporária por cessão de exploração ».

Mais se provou que pela ap. .../20170918 foi inscrita a constituição da sociedade Ré, a qual foi matriculada sob o NIPC 514558105, tendo como capital social € 100.000,00, sócios AA e BB, cada um com uma quota de € 50.000,00 e gerentes os sócios  e que, pela ap. .../20181114, foram inscritas alterações ao contrato de sociedade, nomeadamente o aumento do capital social de € 100.000,00 para € 600.000,00, sendo o aumento ( € 500.000,00) subscrito pela nova sócia " I......, Lda" e alterada a gerência da sociedade que passou a pertencer a CC, DD e EE, não tendo sido solicitada autorização à autora  para estas alterações.


Perante este quadro factual e não obstante reconhecer que houve uma modificação significativa na identidade intrínseca da ré arrendatária com consequentes alterações da “vontade social” que poderão perturbar o cumprimento do contrato, nomeadamente por via da transmissão da titularidade do gozo do prédio, considerou o acórdão existir, no caso dos autos, um claro desequilíbrio entre a postura dos dois contratantes provocado pela atitude da autora, na medida em que « a atitude da A enquanto senhoria, foi de incumprimento das regras a que estava obrigada com claras e concretas consequências no gozo do prédio a que estava obrigada a ceder», enquanto que a «atitude da R. poderá ter, ou não, consequências na estabilidade na manutenção do contrato», e, neste contexto, concluiu que « a violação da cláusula 5ª do contrato não tem a gravidade ou as supostas consequências para a resolução do contrato», pelo que julgou improcedente a alegação desta causa de resolução.


Deste entendimento dissente a autora, sustentando que, demonstrando os factos provados que, aquando da aquisição da quase totalidade do capital social da ré e da assunção do efetivo  controlo desta pelos novos sócios, a situação do locado era muito próxima daquela que tinha quando  foi realizada a inspeção judicial, e atendendo à situação em que se encontravam os projetos de licenciamento, impõe-se concluir que o escopo da ré, após a alteração da sua estrutura societária, não é a exploração comercial do locado, mas, antes, o interesse que o imóvel tem no mercado imobiliário, não podendo, por isso, deixar de relevar o invocado fundamento de resolução.  


Vejamos.


Nesta matéria, dispõe o artigo 1083º, nº 1, do Código Civil, que «Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte», estabelecendo, no seu nº 2, que «É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:

[…]”.

e) «A cessão total ou parcial, temporária ou permanentemente e onerosa ou gratuita do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio».


 Em vez da previsão taxativa dos casos em que era permitida a resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio, contempla este artigo uma previsão geral e não taxativa, que permite ao senhorio, mesmo fora dos casos exemplificativamente  enunciados nas alíneas a) a e) do seu nº 2 ou noutras disposições legais (mormente administrativas) ou regulamentares (nomeadamente dos regulamentos de condomínio, no caso de prédios constituídos em propriedade horizontal), resolver o contrato.

A verdade, porém, é que a interpretação da norma contida neste nº 2 não é consensual, havendo  quem, como Jorge Henrique Pinto Furtado[11], defenda que as situações previstas nas suas  alíneas a) a e) são autênticos fundamentos de resolução do contrato que funcionam por si só, correspondendo a situações que o legislador definiu como situações de incumprimento do arrendatário que tornam inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio e não meras presunções iuris tantum da inexigibilidade ao senhorio da manutenção do contrato.

Verificadas qualquer uma daquelas situações «nenhum juízo de valor se tem de lhe acrescentar para se constituir ou afastar o direito à resolução por parte do senhorio»”, ou seja, não é necessário provar-se «que, não obstante a sua ocorrência, não será inexigível ao senhorio a manutenção do contrato, afastando-se deste modo a resolução».

Para outra corrente, que se tem por maioritária, quer na doutrina quer na jurisprudência, as situações tipificadas nas referidas alíneas só poderão constituir fundamento de resolução do contrato se preencherem a cláusula geral prevista no citado nº 2, ou seja, se a sua gravidade ou consequências tornarem inexigível a manutenção do contrato pelo senhorio.

É este o entendimento adotado, entre outros, por Maria Olinda Garcia[12] e também por Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge[13] que referem que, “ Em face da indispensabilidade do preenchimento do conceito geral de justa causa, incumbirá ao senhorio, autor na acção de despejo, o ónus da alegação e da prova (cfr. art.º 342.º do CC) de factualidade subsumível, não apenas nas diferentes alíneas do n.º 2 ou no n.º 3 do art.º 1083.º (quando seja caso disso), mas também, na cláusula geral constante da 1.ª parte do n.º 2”.

E nesta mesma linha de entendimento, afirmou o Acórdão do STJ, de 13.02.2014 ( processo nº 43/09.9TCFUN.L1.S1)[14], que face ao estipulado no nº 2 do art. 1083º, do C. Civil,  não basta ao autor invocar e provar os factos integradores de uma determinada situação de incumprimento contratual culposo, tendo ainda de alegar, em complemento desta factualidade essencial, circunstanciadamente, que tal situação de incumprimento, imputável à parte que desrespeitou a lei ou certa cláusula do contrato, tem objetivamente um relevo ou incidência na concreta constelação de interesses subjacente à relação contratual que determina a inexigibilidade de manutenção da relação contratual.

Mas, há ainda quem adote uma solução intermédia, seguida no Acórdão da Relação do Porto de 06/05/2010 (processo nº 451/09.5TJPRT.P1)[15] e que defendeu que a verificação de uma das situações tipificadas nas alíneas do citado nº 2 faz presumir a inexigibilidade da manutenção do contrato, de tal modo que o locador apenas tem o ónus de alegar e provar os factos que integrem uma dessas situações, cabendo ao arrendatário o ónus de ilidir aquela presunção, alegando e provando factos dos quais resulte que continua a ser objetivamente razoável a manutenção do contrato.

Quanto a nós, sufragamos o entendimento daqueles que defendem que as situações previstas nas diversas alíneas do nº 2 da norma citada não podem ser desligadas da cláusula geral resolutiva constante do corpo deste nº 2 – «incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento», que constitui   um pressuposto fundamental do direito à resolução do contrato.

Desde logo, porque a regra geral em matéria de contratos é a de que a resolução não se basta com um qualquer incumprimento independentemente da sua gravidade, sendo certo que, mesmo nos casos de incumprimento parcial, o art. 802º, nº 2, do CC, veda ao credor a possibilidade de resolver o contrato se este incumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância.

E porque, ainda que as situações tipificadas nas citadas alíneas correspondam a exemplos de incumprimento do arrendatário que poderão determinar a resolução do contrato, há uma grande multiplicidade de situações que, apesar de poderem ser incluídas na previsão dessas alíneas, apresentam uma gravidade substancialmente diferente e, atenta a  técnica legislativa adotada no NRAU quanto à previsão dos fundamentos da resolução do contrato de arrendamento, temos por certo não se conter dentro do pensamento legislativo a possibilidade de resolver o contrato com base em incumprimentos que, sendo pontuais e isolados, não apresentam, em termos objetivos, qualquer relevância para o senhorio.

É indiscutível, portanto, que a mera constatação de uma situação enquadrável na previsão das referidas alíneas não basta para conferir ao senhorio o direito de resolver o contrato.

A previsão dessas alíneas não pode ser dissociada do requisito geral que consta do corpo do nº 2, porque é este que permite distinguir as situações de incumprimento cuja gravidade justifica a resolução do contrato das situações de incumprimento que, pelo seu carácter isolado ou pela sua irrelevância ou insignificância, não poderão ter idoneidade, em face dos princípios gerais de Direito e das regras de boa-fé, para determinar a cessação da relação contratual.

Mas também não basta um qualquer incumprimento do contrato para determinar a resolução do contrato, exigindo-se que ele terá que revestir uma tal gravidade ou ter consequências tais que tornem inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.

Dito de outro modo e nas palavras de António Pinto Monteiro e Paulo Videira Henriques[16],  «  (…) não é qualquer infracção, tout court, de um ou mais deveres que legitima, ipso facto, a resolução do arrendamento por iniciativa do senhorio. Em primeiro lugar, a lei exige que o incumprimento imputável culposamente ao arrendatário assuma especial relevância – a qual pode ser aferida não só em função da própria natureza da infracção como do carácter reiterado da conduta irregular. (…) Em segundo lugar, é essencial que, por via dessas condutas censuráveis, não seja exigível ao senhorio a manutenção do arrendamento».  

No mesmo sentido, refere Maria Olinda Garcia[17], que, se, em geral, o credor pode resolver o contrato acima do limite da “escassa importância” do fundamento da resolução, no arrendamento urbano tal limite mínimo não será suficiente para sustentar a resolução por parte do senhorio, pois que, não obstante o nº 1 do artº 1083º, autorizar a resolução “nos termos gerais de direito”, o seu nº 2 exige que o incumprimento apresente um nível de gravidade ou consequências que “tornem inexigível à contraparte a manutenção da relação”, ou seja, exige a demonstração de uma justa causa.

Nesta mesma linha de entendimento, refere Fernando Batista de Oliveira[18]. que o corpo do nº 2 do citado at. 1083º acima transcrito constitui uma cláusula geral resolutiva que se funda em justa causa e concretiza a ideia de que «o princípio da boa fé (…) postula a exigência de um incumprimento resolutivo suficientemente grave».

E, a nosso ver, nem poderia ser de outro modo, uma vez que, sendo inaceitável, à luz do Direito e à luz das regras de boa-fé, a resolução de um contrato com fundamento em incumprimentos de escassa ou nula relevância ao nível da respetiva gravidade e das suas consequências, o exercício desse direito de resolução sempre teria que ser impedido nem que fosse por via do abuso de direito.

Vale tudo isto por dizer que, mesmo nas hipóteses previstas nas alíneas a) a e), do nº 2, do artigo 1083º, a resolução do contrato de arrendamento não opera automaticamente, verificada que esteja a factualidade objetiva integradora de cada uma daquelas situações, sendo necessário averiguar, caso a caso, se a gravidade e as consequências derivadas dessas violações contratuais se revestem de suficiente gravidade para tornarem inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

E segundo o supra citado Acórdão do STJ, de 13.02.2014 (processo nº 43/09.9TCFUN.L1.S1)[19], este conceito de “inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento”, há-se ser determinado  com base  num juízo objetivo e concreto de ponderação e proporcionalidade entre a intensidade concreta e o grau de censurabilidade da violação contratual cometida e a gravidade objetiva do efeito que lhe corresponde.

Assim, para saber se certo comportamento ilícito e culposo do inquilino deve configurar-se como idóneo para produzir, segundo um juízo objectivo e casuístico de razoabilidade e proporcionalidade, a irremediável destruição da própria relação contratual, terá o intérprete e aplicador da lei, para alcançar a justiça do caso concreto, que formular um juízo de balanceamento ou ponderação, tendo em conta, por um lado, as concretas circunstâncias envolventes, quer do contrato e do fim que lhe subjaz, quer do incumprimento das obrigações do locatário e, por outro lado, a pretensão resolutiva do senhorio à luz dos princípios ou cláusulas gerais do abuso de direito e da boa fé contratual.

Ora, analisando, à luz destas considerações, a situação dos autos, importa, assim, indagar se à autora, na qualidade de senhoria, assiste o direito à resolução do contrato de arrendamento com base no fundamento previsto na al. e) do nº 2 do citado art. 1083º.

E a este respeito, diremos que, resultando  dos factos provados e supra descritos  que houve  um aumento do capital social da ré de € 100.000,00 para € 600.000,00, a subscrição deste aumento de  € 500.000,00 por uma nova sócia, a " I......, Lda", e que a gerência da sociedade que passou a pertencer a CC, DD e EE, é inquestionável que, não obstante não haver  mudança de locatária, operou-se na ré sociedade uma alteração das posições societárias bastante  relevante, na medida em que, antes da cessão de quotas, havia apenas dois sócios, que eram também os únicos gerentes, e que podiam determinar a vontade social e agora não só existe mais um sócio a determinar a vontade societária como existe uma nova gerência.

Julgamos, porém, que este aumento de capital social, com a  consequente alteração da estrutura societária da ré, para além de não configurar uma “cessão de quotas”, segundo a noção que nos é dada pelo art. 228º do CSC, e de não implicar a transmissão do locado, pois a sociedade locatária é a mesma, não é suficiente para, por si só, configurar uma violação, ao disposto, quer na alínea e), do nº 2 do art. 1083º, do C. Civil, quer da cláusula 5ª do contrato de arrendamento em causa.

Para que isso sucedesse necessário seria que a locadora tivesse alegado e logrado provar factos concretos demonstrativos de que, por via de um tal aumento de capital, operou-se uma transmissão subjetiva do locado sem, na aparência, se violar o estipulado na referida cláusula contratual, ou seja, a proibição das transmissões, a título oneroso ou gratuito, a título temporário ou definitivo, ou a título total ou parcial do locado.

Dito de outro modo, sobre a locadora impendia o ónus de alegar e provar factos concretos reveladores de que, através do referido aumento de capital, a locatária criou um artifício para defraudar a lei [20] (o estipulado na cláusula 5ª do contrato de arrendamento e na al. e), do nº 2 do citado art. 1083º), ou, eventualmente, factos integradores dos pressupostos da figura da desconsideração da personalidade jurídica.

E porque no caso dos autos, a autora não logrou fazê-lo, não se vislumbra que, perante o comprovado aumento de capital, se possa concluir, automaticamente, pela violação do estipulado na referida cláusula contratual e no citado art. 1083º, nº 2, al. e).

Mas ainda que assim não se entendesse, ou seja, mesmo admitindo estarmos perante uma  situação suscetível de objetivamente, preencher a  previsão da alínea e), do nº 2 do art. 1083º e de integrar violação da cláusula 5ª do contrato de arrendamento em causa, na medida em que o referido aumento de capital implicou não só  novos titulares do capital social mas permitiu também o domínio da ré sociedade por pessoas novas, julgamos, em consonância com o acórdão recorrido, que nas circunstâncias concretas em que incorreu esta alteração a mesma não se reveste  de gravidade nem gere consequências que tornem inexigível à autora a subsistência do contrato de arrendamento.

Desde logo, porque não foram alegados pela autora  nem existem factos provados que nos permitam formular um qualquer juízo de ponderação, em estrita consonância com o princípio da proporcionalidade, acerca do relevo efetivo da alteração da identidade societária da ré, do seu impacto nos interesses da autora e do grau da sua afetação, ou seja, acerca da intensidade da gravidade e da relevância das consequências de uma tal atuação, exigidas pelo nº 2, al. e),  do art. 1083º do Código Civil.

E porque, seria, na realidade, violador do princípio da boa fé contratual, senão mesmo abusiva,  a pretensão resolutiva da senhoria quando ela própria incorreu em incumprimento contratual,  nos termos expostos no ponto 3.2.1., ocultando da ré a necessidade de realização de obras estruturais no locado e, desse modo, impedindo a mesma de utilizar o locado para o fim a que o mesmo se destina – comércio de restauração e bebidas - e quando, tal como se deixou dito no ponto 3.2.2. , a recusa da ré em pagar mais rendas está legitimada pelo art. 428º, do C. Civil. 

Daí que, ponderando tudo isto à luz das regras da boa fé contratual e do princípio da proporcionalidade e, tendo, sobretudo, em conta as consequências advenientes da conduta de cada uma das partes, se entenda que o incumprimento da autora, materializado na falta de realização das obras estruturais que impedem a ré de exercer no locado a sua atividade comercial, assume, no caso dos autos, uma maior intensidade e relevância do que a conduta da ré.   

Termos em que por todo o exposto, seja de concluir que os factos provados são insuficientes para, pela sua gravidade intrínseca e consequências concretas, tornarem inexigível à autora a manutenção do arrendamento, não se apurando, deste modo, a existência de fundamento para a resolução do contrato dos autos, nos termos do disposto no art. 1083º, nº 2, al. e), do C. Civil.


Improcede, por isso, também quanto a este segmento o recurso interposto pela autora.


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B - Quanto ao recurso interposto pela ré, sustenta esta que lhe assiste o direito de obter da autora a restituição de todas as quantias pagas, a título de renda, no total de € 242.500,00.

Argumenta, para tanto, que tendo a autora incorrido em incumprimento do contrato de arrendamento, sobre ela recai, nos termos do art. 798º, do C. Civil, a obrigação de indemnizar a ré pelo prejuízo sofrido que, no caso, corresponde ao valor das rendas pagas.

Mais argumenta que de setembro e 2017 a janeiro de 2018, efetuou o pagamento integral das rendas, sem a devida retenção na fonte de 25%, pelo que a autora recebeu indevidamente a quantia total de € 12.500,00, o que consubstancia um enriquecimento sem causa, nos termos do disposto no art. 473º, do C. Civil.

Começando por este último aspeto, diremos estarmos perante uma questão nova, que não foi alegada na contestação/reconvenção nem suscitada no recurso de apelação, e que, por isso, não pode ser objeto de apreciação por parte deste Tribunal de revista, por força do disposto nos arts. 5º, 608º, nº 2, 627º, 684º, nº 2 e 3, todos do C.P. Civil, posto que como é sabido e constitui entendimento unânime, quer na jurisprudência, quer na doutrina, os recursos destinam-se a reapreciar e, eventualmente, a alterar/modificar decisões proferidas sobre questões anteriormente decididas e não a decidir questões novas ou a criar decisões sobre matéria nova, não sendo, por isso, lícito às partes invocarem, nos mesmos, questões que não tenham suscitado perante o tribunal recorrido[21].

Mas, para além disso, julgamos não assistir à ré o direito à restituição das rendas já pagas.

É que se é certo, como já se deixou dito no ponto 3.2.2., assistir à ré o direito de suspender o pagamento das rendas enquanto a autora não realizar as obras a que está obrigada, certo é também que a invocação da exceção do não cumprimento não extingue o direito da autora ao pagamento das rendas, pois, como refere João Abrantes[22], estamos perante «uma medida de efeitos temporários, que não destrói o vínculo contratual, apenas produz uma suspensão dos seus efeitos».

Daí impor-se concluir, em consonância com o decidido no acórdão recorrido, que a restituição das rendas pagas não se enquadra neste instituto, não havendo, por isso, que decretar tal restituição.  


Termos em que improcede o recurso interposto pela ré


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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedente a revista interposta pela autora bem como a revista interposta pela ré, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas de cada uma das revistas ficam a cargo da autora e da ré, respetivamente.

Notifique.


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Supremo Tribunal de Justiça, 9 de dezembro de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira (parcialmente vencido conforme declaração de voto que junto)


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DECLARAÇÃO DE VOTO


Processo 3069/19.0T8LSB.L1-A.S1

Em primeiro lugar discordo da correlação que é feita entre o incumprimento da Autora e a possibilidade de resolução por parte desta. A Autora enquanto parte incumpridora não está inibida de reagir ao incumprimento da outra parte. Nem a parte cumpridora fica isenta da responsabilidade ou consequências do seu próprio incumprimento. Apesar de estar em incumprimento a Autora não está impedida de resolver o contrato no caso de incumprimento pela Ré.

Em segundo lugar, ainda que concordando com a posição de que o direito de resolução está indissociavelmente ligado à cláusula geral do nº 2 do 1083, a apreciação da verificação desses requisitos gerais não pode deixar de ser feita com base e a partir do quadro contratual estabelecido pelas partes, tendo em conta que estamos (em particular no arrendamento não habitacional, como é o caso) no domínio da liberdade contratual (art.º 405º do CCiv). De acordo com esse princípio cabe em primeiro lugar às partes estabelecer de antemão as situações que configuram como incumprimento grave que torna inexigível a continuidade do arrendamento; de, como agora se diz, ‘estabelecer as suas linhas vermelhas’. Consequentemente, na formulação do juízo de verificação da gravidade do incumprimento e da inexigibilidade da continuidade do arrendamento não pode deixar de se considerar o que nessa matéria foi estipulado pelas partes

No caso dos autos as partes estabeleceram de antemão o quão essencial era para o quadro contratual a impossibilidade de transmissão do gozo do locado sem a autorização da Autora senhoria. E enfatizando a essencialidade dessa estipulação foram ao ponto de especificarem que essa impossibilidade abrangia igualmente as situações mais comuns de efectuar indirectamente essa transmissão – cessão de quotas e cessão de exploração. A autora deixou dessa forma bem claro, e a Ré ficou bem ciente disso ao aceitar tal cláusula contratual, que queria conservar o domínio da escolha do arrendatário – aquela concreta sociedade ou outra em que ela se viesse a transformar com o seu consentimento. Ou seja, ficou desde logo bem vincado que a alteração da estrutura societária da Ré sem prévia autorização da Autora equivalia a uma transmissão do gozo do locado justificativa da resolução do contrato.

O aumento de capital da sociedade Ré (de 100.000 € para 600.000 €) efectuado através da entrada de um terceiro sócio, que assim assumiu por completo o controlo da sociedade, não pode deixar de se considerar, à luz do estipulado na cláusula 5ª do contrato de arrendamento, só por si e sem necessidade de mais circunstancialismo, uma forma indirecta de transmissão do gozo do locado que integra um incumprimento grave que torna inexigível a manutenção do arrendamento.

Pelo que nessa parte concederia a revista declarando a resolução do contrato de arrendamento.

Rijo Ferreira

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In “Código Civil Anotado”, Vol. I, pág. 406.
[3] In “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, pág. 334.
[4] Cfr.  Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, Almedina, 6ª ed., págs. 362 a 365 e Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Coimbra, 1987, pág. 329 e 330.
[5] Ou seja, quando a prestação efetuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correção e da boa fé, podendo o defeito ser quantitativo ou qualitativo. Cfr. Batista Machado, in, “Obra Dispersa”, Vol. I, pág. 169.
[6] Cfr. Antunes Varela, in “ Das Obrigações em Geral”, Vol. I, Almedina, 6ª ed., pág. 364;  Menezes Leitão, in “ Direito das Obrigações”, Vol. II, Almedina, 6ª ed., pág. 264; Menezes Cordeiro, in, anotação ao Acórdão do STJ, de 31.01.80, ROA, ano 41º , nº1, págs. 150 e segs; João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, Almedina, 1986, pág. 110 e segs e, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 27.05.2008 ( processo nº 08A1461  ); de 16.06.2015 ( processo nº  3309/08.1TJVNF.G1.S1) ; de 17.11.2015 ( processo nº 2545/12.8TCFUN.L1.S1), todos acessíveis in ww.dgsi/stj.pt. 
[7] In “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, Almedina, 1986, pág. 86.
[8] In “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, Almedina, 1986, págs. 39 e segs.
[9] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pág. 405: Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. II, Almedina, 6ª ed., pág. 263; Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Coimbra, 1987, pág. 331 e 332; Almeida e Costa, in, “Direito das Obrigações”, Almedina, 11ª ed., págs. 364 e 365.
[10] RLJ, Ano 105º, pág. 238.
[11] In “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. II, 4ª edição atualizada, págs. 1001 e 1002.
[12]  In “Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivo e Processual”, Coimbra Editora, 2012, págs. 30 e 31.
[13]  In “Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2ª edição, Quid Juris, 2007, pág. 292.
[14] Acessível in www.dgsi/stj.pt
[15] Acessível in www.dgsi. pt.
[16] In “A Cessação do Contrato no Regime dos Novos Arrendamentos Urbanos”, parecer sobre o projeto legislativo respeitante ao NRAU, publicado em “O Direito”, ano 136 (2004), II-III, pág. 294.
[17] In “O arrendamento plural. Quadro Normativo e Natureza Jurídica”, pág. 236.
[18] In “A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano”, Almedina, págs, 26, 27, 28, 29, 33, 36 e 39.
[19] Acessível in www.dgsi/stj.pt
[20] Nas palavras de Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1992, II, 337, serão fraudulentos os atos que tenham por escopo “contornar ou circunvir uma disposição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que, por essa forma, pretendem burlar a lei.”
[21] Cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 06.2.82, 16.5.72, 13.3.73, 5.2.74, 29.10.74, 7.1.75 e 25.11.75, publicados, respetivamente, no BMJ n.ºs 364, pág. 719; 217º, pag.103; 225º, pág.202; 234º, pág.-267; 240º, pág. 223; 243º, pág. 194; 251º, pág 122 e 408º, pág.521. Cfr.  ainda Castro Mendes, in “Recursos”, 1980, pág 27; Armindo Ribeiro Mendes, in, “Recursos em Processo Civil”, 1992, págs. 140 e 175 e Miguel Teixeira de Sousa, in, “Estudos Sobre O Novo Processo Civil”, pág. 395. 
[22] In “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, Almedina, 1986, págs. 127 e 128.