DIREITO A ALIMENTOS
EX-CÔNJUGE
CESSAÇÃO
REQUISITOS
INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO
DEVER DE SOLIDARIEDADE
Sumário


I. Fixada no processo de divórcio prestação de alimentos a favor de um dos cônjuges, a cessação da prestação por desnecessidade do ex-cônjuge beneficiário depende da alegação e prova dos factos relevantes a cargo do ex-cônjuge obrigado.
II. O direito a alimentos na decorrência de processo de divórcio encontra justificação em razões de solidariedade justificadas pela preexistência do casamento. E se, em face do atual regime legal, nenhum dos ex-cônjuges pode exigir do outro uma prestação de alimentos que lhe proporcione o padrão de vida que vigorou na vigência do casamento, não é defensável que fique numa situação de penúria, dependente unicamente de apoios estatais ou de instituições de solidariedade social, quando o outro ex-cônjuge tem disponibilidades financeiras elevadas.
III. Não se verificam os requisitos da cessação da prestação alimentar num caso em que o ex-cônjuge beneficiário, entretanto declarado interdito e acolhido sucessivamente numa instituição pública de saúde e numa instituição de solidariedade social, não aufere quaisquer outros rendimentos para além do rendimento social de inserção (RSI), enquanto, em contraponto, o outro mostra desafogo económico muito superior à média.
IV. O facto de, nas circunstâncias atuais, as necessidades básicas do ex-cônjuge beneficiário se encontrarem asseguradas por via do acolhimento em instituição de solidariedade social não justifica que cesse a prestação de alimentos a cargo do ex-cônjuge, tendo em conta designadamente a necessidade de realização de outras despesas.

Texto Integral

I - AA, intentou contra BB ação comum para cessação da prestação de alimentos entre ex-cônjuges fundamentada no alegado agravamento da sua situação económica e na desnecessidade dos alimentos por parte da demandada.

Alegou que tendo sido fixada uma prestação de alimentos no âmbito do processo de divórcio, a R. já não carece dessa prestação por se encontrar internada e auferir o rendimento social de inserção.

A R. contestou.

Foi proferida sentença que julgou improcedente a ação.

Interposto recurso de apelação pelo A., a sentença foi revogada e foi julgada cessada a prestação de alimentos.

A R. interpôs recurso de revista em que no essencial questionou o juízo de desnecessidade formulado pela Relação, concluindo que deve ser revogado o acórdão recorrido e ser julgada improcedente a ação.

Concluiu a recorrente que:

III - A decisão do Tribunal a quo padece de manifesta nulidade, além de não ser uma decisão adequada e ajustada quer em face da factualidade considerada assente, quer á luz das disposições legais subsumíveis ao caso.

IV - Os factos dados como provados em sede de audiência de discussão e julgamento do tribunal da 1ª instância e o teor do acórdão não se coadunam em sede ou circunstância alguma com a aplicação dos normativos legais que regulam o direito de alimentos entre ex-cônjuges (os quais encontram o seu arrimo legal junto do Código Civil mormente sobre os arts. 2016º e ss.)

V - A Relação mal andou quando, no teor do sumário, decidiu que as despesas da R. não ultrapassam o valor mensal do rendimento social de inserção de que é beneficiária.

VI - Ora não é isso que resulta da factualidade dada como provada que redunda na especificação de algumas despesas, desde logo em alimentação que, como em sede de discussão e julgamento se afirmou, o valor atribuído a título de despesas é diminuto tendo por referência a disponibilidade económica da alimentada.

VII - Dito de outra maneira, a R., por manifesta insuficiência económica, faz as despesas conforme a sua carteira.

VIII - Resultou ainda provado que a R. foi auxiliada através de empréstimos pelo seu pai e pelo seu tutor, seu irmão, o que evidencia a sua necessidade económica em prover ao seu sustento.

IX - Não é permitida a extrapolação opinativa, desfasada de qualquer realidade ou sequer razoabilidade associando a R. a uma condição estanque, tendo assim tudo o que necessita à sua sobrevivência e para futuro.

X - Até porque resultou provado que assumindo a R. alguma capacidade financeira, a mesma pode vir a residir com a sua família, o que de resto não se trata apenas de uma hipótese, poderá ser uma exigência no cenário de a mesma ter alta hospitalar.

XI - É bom lembrar que o rendimento social de inserção é um apoio destinado a proteger as pessoas que se encontrem em situação de pobreza extrema o que de per si revela a necessidade dos alimentos.

XII - Ora, com este rendimento e a escassez de ajuda da sua família que tem vindo de há 8 anos a esta parte emprestando dinheiro à R., esgotando assim a sua disponibilidade financeira, empréstimos estes que se justificam tendo em consideração a circunstância do incumprimento do pagamento da prestação de alimentos a que o seu ex-cônjuge está obrigado, e que não cumpre pelo menos desde o ano de 2013 como o próprio atestou em sede de discussão e julgamento.

XIII - A R. gasta o que tem, nada mais podendo consumir/despender do que aquilo de que é pecuniariamente beneficiária, daí a parca mas preocupante despesa pela qual se pronunciou.

XIV - Importava que o Tribunal a quo fizesse um juízo sobre que mais despesas poderia enfrentar a recorrente se na sua génese não tem disponibilidade financeira para tal.

XV – Aliás, negligencia-se não raras as vezes o tratamento dos dentes, a higiene básica, e uma alimentação mais composta, desfadigando assim todos aqueles que tenham o entendimento de que a R. não experiência despesas superiores ao valor do RSI.

XVI - Ora, não sendo as despesas fixas e percebendo que até pelo envelhecimento da recorrente os cuidados necessariamente acompanham esta tendência, procura-se junto do Supremo um juízo sobre esta evidência, até por forma a desfazer o erro que o Tribunal a quo em total violação da lei e principalmente em total alheamento à condição humana determinou.

XVII – Aliás, a imutabilidade da condição de vida da recorrente que o acórdão da Relação procura instigar é definitivamente errada, até porque decorriam já as sessões de audiência e julgamento, dá-se pela circunstância de a R. ter integrado uma nova instituição, designadamente em ..., na Casa de Saúde do ....., instituição esta com procedimentos substancialmente diferentes.

XVIII - Procedimentos distintos, desde logo, porque incumbe ao usuário assacar a responsabilidade pelo pagamento da sua medicação, do serviço de lavandaria, da compra de fraldas entre outros, o que facilmente se depreende que o rendimento social de inserção não dá resposta a estas necessidades.

XIX - Também por essa razão não foi acertado o juízo do Tribunal a quo tomar uma decisão para futuro quando o mesmo se encontra em aberto e em constante mutação.

XX - E todos estes factos encontram-se provados, nem sequer se pode assumir surpresa pelo estado de a R. ao dia de hoje enfrentar mais despesas e condicionantes na sua vida.

XXI - No mais, a R. nunca trabalhou, ocupando-se das lides domésticas e do tratamento das suas filhas e esposo, labuta esta que de per si se consubstancia num trabalho.

XXII - Contudo compreende-se a circunstância invocada pelo Tribunal acerca do estado de saúde da R., porém não lhe é permitido a nosso ver que se imiscua na vida das partes para além da aplicação do direito, o que se acaba de dizer funda-se na circunstância de a R. nunca ter trabalhado por decisão do casal, ocupando-se esta, como se disse, das lides domésticas.

XXIII - É assim penalizada a R. pela decisão tomada há umas décadas atrás que se fosse outra a decisão poderia agora sobreviver por conta de uma pensão ou reforma.

XXIV - Atira assim a Relação a R. para uma condição de sobrevivência parca, o que nos parece de per si, invocar tal apelo de justeza junto do TEDH.

XXV - Não é passível de aceitação que o Tribunal rejeite a inexistência de carência da prestação alimentícia, ora a mesma encontra-se visível, sendo absolutamente beluíno considerar o contrário.

XXVI - Ainda na senda da aplicação da lei, importaria ao Tribunal a quo valorar a condição económica do A., que dispensa qualquer descrição pormenorizada atento o seu conforto financeiro proveniente do seu rendimento mensal que vem a crescer de ano para ano como atendendo a todos os bens móveis e participações financeiras de que é titular.

XXVII - Assim, o Tribunal a quo, ao arrepio de qualquer aplicação da lei, violou de forma grosseira, ao ignorar os requisitos dos arts. 2012º ou 2013º do CC.

XXVIII - Ora não sobejam dúvidas de que não se pode concluir que a situação económica do A. tenha sofrido uma alteração substancial no sentido de ter piorado, pelo contrário manifesta-se uma condição de soberba notória.

XXIX - Como resulta ainda que a R. não deixou de precisar dos alimentos, pelo contrário a situação é de tal ordem paupérrima e escassa que passou a ser beneficiária do RSI.

XXX - Dito de outro modo, o valor arbitrado a título de pensão de alimentos que se cifra em € 500,00 e que não é devidamente pago pelo menos desde o ano de 2013 passou a ser substituído pelo valor do RSI no valor de €189,66 o qual como amplamente se demonstra é manifestamente insuficiente e desproporcional face aquele que foi arbitrado em primeiro juízo.

XXXI - Pelo exposto é forçoso concluir que, caso viesse a ser indeferida a pretensão da R., a pensão de alimentos determinada ao invés de ser declarada cessada pelo menos poderia ser reduzida, por forma a não atirar à sorte a vida da recorrente.

XXXII - Ante tudo quanto ficou exposto, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que confirme a sentença do tribunal da 1ª instância, porquanto não logrou o A. demonstrar observados os requisitos do art. 2013º, nº 1, al. b), do CC, na parte que incide sobre “as necessidades do alimentando” de modo a justificar a cessação dos alimentos.

O A. prescindiu da apresentação de contra-alegações.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

1. No dia …-11-79, o A. e a R. contraíram, entre si, casamento civil.

2. Na constância do sobredito casamento as partes tiveram duas filhas:

- CC, nascida a …-6-89

- DD, nascida a …-7-93

3. Por sentença proferida a …-5-02, foi decretado o divórcio entre ambos

4. Por acordo homologado na aludida sentença, entre outras cláusulas, as partes convencionaram o seguinte:

“A título de alimentos, o requerente obriga-se a pagar à requerente, a quantia mensal de 100.000$00…”.

“GUARDA: As menores CC e DD, ficam entregues à guarda e cuidados dos avós paternos …”

“ALIMENTOS: Dado que as menores estão a viver com o pai na casa dos avós paternos, estando estes a suportar as respetivas despesas, não fixam quaisquer alimentos do pai às menores…”

A casa de morada de família, fica atribuída à requerente … propriedade do Sr. Dr. AA”.

5. No proc. judicial nº 75/17...., que correu termos pelo J-... do Juízo Local Cível de ..., foi proferida sentença, em ...-9-18, transitada em julgado em 22-10-18, que decretou a interdição da requerida, por anomalia psíquica, com início da incapacidade em 17-1-14 e nomeou seu tutor EE (irmão da interdita).

6. Entre outros factos, consta da aludida sentença, no segmento factos provados, o seguinte:

“5. A requerida devido ao seu estado de saúde nunca teve profissão remunerada.

7. A requerida é acompanhada em consulta de psiquiatria no Centro Hospitalar ..., desde o ano de 2002, com diagnóstico de esquizofrenia paranóide.

8. A requerida teve três internamentos completos no Serviço de Psiquiatria do CH...., respetivamente nos anos de 2001, 2002 e 2016 e três internamentos parciais no Hospital de Dia do CH...., ocorridos em 2005, 2009 e 2016, por descompensação psicopatológica.

9. Em ...-6-16 foi realizada uma avaliação psicológica à requerida no Centro Hospitalar de ...., na qual se concluiu que esta demonstra “perda cognitiva em todos os domínios avaliados … quadro de deterioração mental capaz de interferir e comprometer, significativamente a autonomia e as suas atividades da vida diária (básicas e complexas)”.

10. Devido à presença de um quadro de deterioração mental com interferência significativa na autonomia e capacidade de realização das atividades da vida diária (básicas e complexas) a requerida foi integrada na Unidade Residencial de Transição de Psiquiatria para Doentes Crónicos.

11. Em ...-11-16 a requerida foi enviada a consulta em psiquiatria no Centro de Saúde ......, por alteração do comportamento, hipertensão arterial, diabetes, dislipedemia, glaucoma, antecedentes de oclusão venosa ocular, problemas cardíacos e atraso mental.

12. A requerida frequentou um Centro de Dia, desde 2014 e, em 11-8-16, ingressou na Residência de Transição do Centro Hospitalar de ......

13. A requerida encontra-se orientada no espaço, sabe o mês e o ano em que se encontra, mas não sabe o dia do mês.

14. A requerida não consegue sair de casa sozinha porque se perde, necessitando do auxílio de outra pessoa para a orientar.

15. A requerida não faz por si as atividades básicas e instrumentais da vida diária, necessitando de ajuda, designadamente para realizar a sua higiene pessoal.

16. A requerida embora reconheça facialmente o dinheiro não é capaz de o gerir, designadamente para governar a casa.

17. Atualmente a requerida apresenta alterações psicopatológicas compatíveis com o diagnóstico de “Psicose Esquizofrénica, Paranoide” 295.3 da C.I.D.9, com défice cognitivo”.

18. A etiologia, de ordem funcional, apresenta agravamento desde o ano de 2014.

19. Não é conhecida cura para a patologia evidenciada pela requerida, sendo a sua evolução mais provável a de uma degradação progressiva.

20. A requerida não representa perigo para si ou terceiros.

7. O A. é ..., trabalha na ..., auferindo uma média mensal de € 6.000,00, de remuneração base (cf. doc. junto a fls. 12)

8. Do recibo de vencimento de fls. 12, consta uma penhora no montante de € 1.043,82, à ordem do proc. nº 10093/17.... (por falta de pagamentos da pensão de alimentos devida à ex-mulher, a ora requerida).

10. Em data não concretamente apurada, mas há 20 anos, o A. passou a habitar e a trabalhar em ..., pagando entre os meses de fevereiro de 2015 e janeiro de 2019, uma renda média mensal de € 800,00, até ter comprado casa.

11. O A. passou também a habitar aos fins de semana, em ..., para estar com a companheira, com quem vive em união de facto.

12. Em finais de 2018, o A. comprou uma casa em ..., ..., sita nos arredores de Lisboa, contraindo para o efeito dois empréstimos na União de Créditos Imobiliários, S.A., no montante de € 206.000,00 e de € 51.000,00, para a sua amortização pagando uma mensalidade de € 362,12 e de € 359,22.

13. O A. em água, gás, seguros, impostos, alimentação, assistência médica, medicamentosa, higiene, vestuário, viagens e deslocações, gasta uma quantia mensal não concretamente apurada.

14. O agregado familiar do A. é composto pelo próprio e pela companheira.

15. A companheira é ... na ….

16. O A. possui 3 veículos automóveis em seu nome e 2 em nome da companheira.

17. A filha CC, que tem atualmente 27 anos de idade, não estuda, trabalhando como ..., sendo auxiliada economicamente pelo pai em quantia não concretamente apurada.

18. O A. declarou rendimentos:

- no ano de 2016, no valor global de € 165.555,25 (cf. declaração IRS de fls. 49 ss. e nota de liquidação de fls. 43).

- no ano de 2017, no valor global de € 166.745,53 (declaração de IRS de fls. 45 ss. e nota de liquidação de fls. 47 e 48);

- no ano de 2018, de € 179.431,51 (cf. declaração de IRS e nota de liquidação de fls. 37 e ss.).

19. Possui em comum com a companheira uma casa em ... e outra casa própria.

20. A R. foi auxiliada pelo seu pai e pelo tutor, seu irmão, entretanto já falecido.

21. Nos anos de 2016, 2017 e 2018, a R. não apresentou quaisquer rendimentos (cf. declarações de IRS juntas a fls. 71 a 74 e respetivas notas de liquidação de fls. 56 a 58).

22. Desde data não concretamente apurada que a R. aufere o valor de € 189,66, a título de rendimento social de inserção (cf. fls. 164).

23. A R., que está internada numa unidade hospitalar de transição, foi recentemente deslocada para uma instituição em ....

24. Na constância do matrimónio, a R. não trabalhou, para além do referido em 6., ocupando-se das lides domésticas e das filhas.

25. Desde 2001 que a R. é acompanhada no Centro Hospitalar Universitário de ......., E.P.E., H. ......., com quadro clínico compatível com psicose esquizofrénica, tipo paranoide (F. 20.0 da CID-10) (cf. declaração de fls. 66 e decisão referida em 6.).

26. A R., entre outras, não concretamente apuradas, tem despesas em montante não concretamente apurado, mas que, pelo menos, ascendem:

- € 10 a € 30 mensais em vestuário e calçado;

- € 30 a € 50/mês em alimentação, lanches que faz no bar da instituição onde se encontra a residir;

- € 40/mensais em estomatologia, pasta de dentes e sobretudo em cola para a placa;

- 40 €/mês, no cabeleireiro e em artigos de higiene;

- € 4 a € 6 por semana, em revistas e jornais.


III – Decidindo:

1. Cumpre apreciar se se verificam as condições que justifiquem a declaração de cessação da prestação alimentar que, por acordo judicialmente homologado, foi estabelecido entre o A. e a R. aquando do decretamento do divórcio.

Para o efeito importa sobremaneira o disposto no art. 2013º, nº 1, do CC, segundo o qual “a obrigação de prestar alimentos cessa … quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles”.

Releva também o disposto no art. 2012º do CC: “se, depois de fixados os alimentos pelo tribunal ou por acordo dos interessados, as circunstâncias determinantes da sua fixação se modificarem, podem os alimentos taxados ser reduzidos ou aumentados, conforme os casos, ou podem outras pessoas ser obrigadas a prestá-los”.

Mas uma vez que se trata de uma prestação de alimentos fixada no âmbito de um processo de divórcio, importa ter ainda em consideração o disposto no art. 2016º que determina que “cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio” (nº 1). Por outro lado, embora se reconheça que “qualquer dos cônjuges tem direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio”, prevê-se ainda que “por razões manifestas de equidade, o direito a alimentos pode ser negado”.

Finalmente, releva o disposto no art. 2016º-A:

1 - Na fixação do montante dos alimentos deve o tribunal tomar em conta a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade e estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, um novo casamento ou união de facto e, de modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e as possibilidades do que os presta.

2 - O tribunal deve dar prevalência a qualquer obrigação de alimentos relativamente a um filho do cônjuge devedor sobre a obrigação emergente do divórcio em favor do ex-cônjuge.

3 - O cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio.


2. Perante este quadro legal, concluiu a Relação:

“Parece assim claro, que atenta a infeliz situação da Requerida que se encontra internada numa instituição por causa da evolução negativa da sua doença, a qual não tem cura conhecida, sendo a expectativa provável de contínuo degradamento (pontos 17º a 19º), alterou-se desde a data em que foram fixados os alimentos (cf. ponto 18º que fixa em 2014 o agravamento da doença).

E, bem assim (certamente que derivado do facto desta se encontrar institucionalizada) a mesma Requerida tem despesas pessoais muito reduzidas.

Do mero confronto do montante das suas despesas mensais com o valor que a Requerida recebe de RSI se conclui que a mesma aufere um subsídio que é suficiente para custear a totalidade das mesmas” (sic).

E foi a partir desta justificação que decidiu revogar a sentença de 1ª instância que julgara improcedente a ação, determinando a cessação da obrigação de alimentos a cargo do A.

A realidade que transparece da matéria de facto provada de maneira alguma justifica que seja declarada a cessação da prestação de alimentos quando, mantendo-se o elevado nível económico do obrigado, se constata que a beneficiária se encontra numa situação de inequívoca necessidade. Além de ter justificado que lhe fosse atribuída uma módica prestação social de cerca de € 190,00 a título de rendimento social de inserção, a beneficiária dos alimentos encontra-se alojada num estabelecimento de apoio social pelo facto de padecer de uma doença crónica do foro psiquiátrico cuja gravidade determinou o decretamento da sua interdição.

Na realidade, não fora o apoio prestado por terceiros (pai e irmão, entretanto falecidos) e por instituições de saúde ou de apoio social, a R. encontrar-se-ia num estado de penúria ou de indigência que a prestação social correspondente ao rendimento social de inserção não conseguiria colmatar.

Neste quadro circunstancial grave que rodeia a beneficiária (falta de rendimentos, incapacidade absoluta para os obter, incapacidade para reger a sua vida autonomamente) para o qual nem sequer existe qualquer responsabilidade da sua parte, não encontra justificação, nem na lei nem nos juízos de razoabilidade que devem orientar as decisões judiciais a solução decretada pela Relação.

Solução tanto mais incompreensível quanto é certo que a situação económica do A. se mantém estável e num patamar que pode considerar-se muito elevado no quadro da nossa sociedade, na medida em que apresenta rendimentos que, numa média mensal, atingem cerca de € 15.000,00.

E se, como alegou o A., se disponibiliza a ajudar economicamente uma das filhas que tem atualmente 27 anos de idade, mais razões de ordem legal e de justiça material existem para se manter a prestação alimentícia que acordou com a R. na ocasião em que ambos se divorciaram.


3. Contrariando frontalmente o juízo decisório da Relação, entendemos que a realidade que é refletida pela matéria de facto provada é daquelas que, para além de reclamar a existência de uma prestação de alimentos a cargo do cônjuge divorciado, torna injustificada a cessação ou até qualquer redução da prestação de alimentos.

Repare-se que nos anos de 2016, 2017 e 2018, a R. não apresentou quaisquer rendimentos; foi auxiliada pelo seu pai e pelo tutor, seu irmão, entretanto já falecido; aufere apenas o RSI no valor mensal de € 189,66; foi declarada interdita; esteve internada numa unidade hospitalar de transição e foi, entretanto, alojada numa instituição.

Em contraponto, verifica-se que o A., ..., aufere uma média mensal de € 6.000,00, de remuneração base, mas no ano de 2016, apresentou rendimentos no valor global de € 165.555,25 que aumentaram para € 179.431,51 no ano de 2018. Possui 3 veículos automóveis em seu nome e 2 em nome da companheira e possui em comum com a companheira uma casa em ... e outra casa própria.

Neste quadro, não se compreende como pôde a Relação extrair a conclusão de que o rendimento social de inserção que a R. aufere no valor de € 190,00 é suficiente para colmatar as suas despesas cujo valor global nem sequer foi quantificado.

O facto de a R. estar institucionalizada não determina, por si, a desnecessidade de manter alguma disponibilidade financeira que lhe assegure o pagamento de outras despesas não essenciais à sua sobrevivência, mas relevantes para a sua qualidade de vida, pois se é verdade que o internamento numa instituição assegura a habitação, a alimentação ou o vestuário essencial, como qualquer outra pessoa nas suas condições outras necessidades básicas existirão ou poderão vir a existir e cuja satisfação não pode estar dependente da generosidade ou da caridade alheia.

O direito a alimentos, mesmo quando invocado pelo cônjuge divorciado, não pode ser encarado como incluindo apenas o mínimo de subsistência, devendo ser considerado, dentro dos parâmetros que a lei agora prescreve (cf. Ac. do STJ, de 6-6-19, 3608/07, em www.dgsi.pt), outras despesas que permitam uma vida condigna.

No caso, deve ter-se como ponto de referência o que à beneficiária era proporcionado na pendência do casamento com o A. que gozava e continua a gozar de um estatuto sócio-económico acima da média. O facto de ter cessado a relação conjugal permite limitar a responsabilidade pela manutenção do mesmo estalão de vida, ainda assim sem embargo de outra solução sustentada em juízos de equidade, mas não apaga todos os vestígios de um casamento que perdurou durante alguns anos e de que nasceram filhas que a beneficiária cuidou, embora agora se encontra numa situação de total dependência de terceiros.

A propósito de uma situação semelhante invoca-se aqui o que foi decidido no Ac. do STJ 23-10-14, 2155/08, em www.dgsi.pt, relatado pelo ora relator e de cujo sumário ficou a constar que:

1. A obrigação de alimentos entre ex-cônjuges encontra justificação no princípio da solidariedade pós-conjugal, devendo ser fixada em montante situado entre o indispensável à subsistência do credor e o padrão de vida decorrente do casamento entretanto dissolvido.

2. Tanto para efeito da fixação da prestação alimentícia como para efeito da sua alteração, devem ser globalmente ponderadas quer as necessidades do alimentando, quer as possibilidades do obrigado.

3. A obrigação de alimentos entre ex-cônjuges encontra justificação no princípio da solidariedade pós-conjugal, devendo ser fixada em montante situado entre o indispensável à subsistência do credor e o padrão de vida decorrente do dissolvido casamento. Se tal não justifica que a obrigação de alimentos constitua para o cônjuge beneficiário um seguro de bem-estar, também não se justifica uma descida radical do estatuto económico que era garantido pelo casamento.

Já na ocasião se considerou que era neste sentido que apontava a jurisprudência deste Supremo Tribunal, o que foi exemplificado com a menção dos seguintes acórdãos deste Supremo:

- Ac. do STJ, de 20-2-14, 141/10, de  www.dgsi.pt: na medida dos alimentos devem ser consideradas todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe alimentos e as possibilidades daquele que os presta, como o sejam a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal, a idade, o estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, um novo casamento ou união de facto;

- Ac. do STJ, de 22-5-13, 8695/08: o direito a alimentos de divorciado, com arrimo no art. 2016º do CC tem natureza alimentar, não nascendo por mero efeito de verificação do pressuposto da culpa previsto no nº 1 de tal artigo de lei e não tem como finalidade assegurar ao impetrante o mesmo padrão de vida que usufruía na vigência do casamento, sem embargo do padrão de vida do ex-casal dever ser um dos parâmetros a ponderar, à luz do exarado no nº 3 do predito artigo de lei.

 - Ac. do STJ, de 23-10-12: 320/10: o casamento não cria uma expectativa jurídica de garantia da autossuficiência, durante e após a dissolução do matrimónio, o que consubstanciaria um verdadeiro “seguro de vida”, por não ser concebível a manutenção de um “status económico” atinente a uma relação jurídica já extinta, sendo certo que cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio. O direito a alimentos, no atual quadro normativo vigente, é suscetível de ser negado, por razões manifestas de equidade, como acontece quando o carecido, por força do exercício da atividade laboral, por conta de outrem, que antes do divórcio nunca acontecera, pode prover à sua subsistência, por já não ser exigível ao outro ex-cônjuge, que tem de rendimento disponível a quantia de € 315,13, a manutenção de um estatuto económico referente a uma relação jurídica já dissolvida e extinta.

Na doutrina, então, como agora, mostra-se relevante o que é referido por Guilherme de Oliveira, “A nova lei do divórcio”, em Lex Familiae, nº 13, pág. 30, e por Maria João Tomé, “Algumas reflexões sobre a obrigação de compensação e a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Heinrich Hörster.

Tal entendimento vem persistindo, como o revela, por exemplo, o Ac. do STJ, de 22-2-17, 19199/13, em www.dgsi.pt:

II) - Mau grado em princípio os cônjuges devam ser autossuficientes após o divórcio ou separação, dever-se-á, na fixação dos alimentos, quando a eles haja lugar, considerar os fatores de ponderação do art. 2016º nº 1-A do CC, devendo salientar-se também que a extinção do vínculo matrimonial não justifica que o cônjuge impetrante seja relegado para um patamar de subsistência mínima, não sendo aceitável, sem mais, a passagem abrupta de uma situação de desafogo para outra de simples cobertura de necessidades basilares.

Também assim o Ac. do STJ, 14-1-21, 5279/17, em www.dgsi.pt:

VI. Com a Reforma de 2008, passou a vigorar um princípio de autossuficiência de cada um dos ex-cônjuges, em resultado do qual o direito a alimentos será tendencialmente temporário e subsidiário, sendo tal princípio aplicável – de acordo com a regra geral de aplicação da lei no tempo do nº 2 do art. 12º do CC – às relações anteriores entre ex-cônjuges, como é o caso dos autos.

VII. Contudo, não pode ignorar-se que a mesma reforma legislativa atenuou, em certas e determinadas situações, a diminuição da tutela do cônjuge economicamente dependente mediante uma significativa alteração do regime do crédito compensatório, consagrado no art. 1676º, nº 2, do CC, abandonando a presunção iuris tantum de que se presumia a renúncia a exigir a compensação por parte do cônjuge que contribuiu em excesso para os encargos da vida em comum.


4. No caso concreto, para além de não terem existido alterações substanciais na capacidade económica do obrigado, não está demonstrado que tenha existido uma redução das necessidades da beneficiária. Pelo contrário, o facto de se ter agravado o seu estado de saúde, o avançar na idade e os riscos de surgimento ou agravamento de outras necessidades explica por que deve manter-se a prestação de alimentos, sob pena de a mesma poder vir a cair numa situação de indigência que o precedente casamento, o acordo sobre a prestação de alimentos e as razões de solidariedade tornariam absolutamente inadmissível.

No quadro circunstancial que se nos apresenta não tem que ser o Estado ou outras instituições de saúde ou de solidariedade social a sustentar a subsistência condigna da beneficiária, sendo ajustado que o seu ex-marido continue a contribuir para a mesma, pelo menos na medida em que tal foi acordado na ocasião em que se desfizeram os laços conjugais.

E é por isso que, rejeitando a solução inaceitável que foi decretada pela Relação, se deve retomar o que foi decidido pela 1ª instância.


IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, subsistindo a sentença de 1ª instância que julgou improcedente a ação.

Custas da revista e nas instâncias a cargo do A.

Notifique.


Lisboa, 9-12-21


Abrantes Geraldes (relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo