POLUIÇÃO
Sumário

O artigo 280 do CP95, ao remeter para os comportamentos do nº 1 do artº 279, deixa de fora o elemento "em medida inadmissível".

Texto Integral

Processo comum com intervenção do tribunal singular n.º ..../98.9TAVFR, do ...º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira

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Acordam, em audiência, os juízes da 1.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação do Porto
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No processo supra identificado, foram pronunciados B..... e C....., pela prática, como autores materiais, na forma consumada, cada um deles, de um crime de poluição, p. e p. pelo art. 280.º, n.º 1, al. a), conjugado com o art. 279.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal.
O tribunal decidiu julgar o despacho de pronuncia improcedente e, em consequência absolveu os arguidos, com o fundamento de não constando dos autos qualquer cominação da administração pública quanto à prática dos crimes previstos nos artigos 279.º e 280.º do CP, ao arguido não pode ser imputado o ilícito penal típico pelo qual vem pronunciado, por falta de preenchimento daquele elemento objectivo típico de provocar ruído em medida inadmissível.
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Da sentença interpuseram recurso o Ministério Público e os assistentes D..... e esposa, na parte que absolveu o arguido B...... circunscrito à matéria de direito, sustentando que este arguido deve ser condenado como autor material do crime pelo qual vem pronunciado.
Conclusões da motivação do Ministério Público:
1- No crime de poluição com perigo comum, previsto e punido no art. 280.º do Código Penal, os bens jurídicos directamente tutelados com a incriminação são a vida, a integridade física de outrem ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
2- Assim, só de forma indirecta é protegido o bem jurídico ambiente, pelo que neste caso a tutela penal já não pode estar sujeita aqui ao princípio da oportunidade administrativa, ou seja, condicionada à ausência ou não de eventuais desobediências a normas ou ordens da administração.
3- Estamos, por isso, no caso do art. 280.º do Código Penal, perante um crime autónomo e não perante um crime qualificado relativamente ao crime de poluição, p. e p. no art. 279º do mesmo diploma.
4- Dessa forma, a remissão efectuada pelo art. 280.º para as condutas descritas no n.º 1 do art. 279.º do Código Penal é apenas para as alíneas aí previstas e não também para a exigência típica do elemento " medida inadmissível".
5- Encontra-se, pois, excluída da previsão típica do crime previsto no art. 280º do Código Penal o elemento da desobediência a normas ou ordens da administração.
6- O legislador ao efectuar a remissão no art. 280º do Código Penal para as condutas descritas no n.º l do art. 279.º do mesmo diploma e ao querer incluir, nessa remissão a exigência do elemento "medida inadmissível", então, deveria ter feito menção expressa ao n.º 3 do art. 279.º, o que claramente não aconteceu.
7 - Por outro lado e sendo o crime previsto no art. 280.º do Código Penal um crime de perigo comum, não é configurável com a sua natureza a componente de desobediência.
8- Pelo exposto, considerando que o crime previsto no art. 280.º do Código Penal é um crime autónomo e que, por isso, não faz parte da sua previsão normativa o elemento poluição em "medida inadmissível", deveria a M.ª Juíz a quo ter enquadrado jurídico- penalmente os factos dados como provados naquele crime e ter condenado o arguido B..... como seu autor.
9- Violou, por isso, a M.ª Juíz a quo, na D. sentença recorrida o disposto nos arts. 280.º e 279.º, n.º l, al. c), ambos do Código Penal.
Pelo exposto, deverá a D. sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido B..... pela prática do crime de poluição com perigo comum, previsto e punido no art. 280.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, com remissão para o art. 279.º, n.º 1, al c) do mesmo diploma.
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Conclusões da motivação dos assistentes:
Primeira: Os factos provados são suficientes para condenar o arguido B..... .
Segunda: O arguido vinha pronunciado pela prática do crime de poluição com perigo comum, p. p. pelo art. 280º. CP., que tutela os bens jurídicos ligados à vida, à integridade física e os bens patrimoniais alheios de valor elevado. Trata-se de um crime autónomo e não um crime qualificado relativamente ao crime de poluição p. p. no art. 279.º CP, conforme foi entendido na sentença proferida.
Terceira: No art. 280.º apenas existe remissão para as condutas do n.º 1 do art. 279.º e não há existe a menor referência ao que dispõe o n.º 3, o que quer dizer que neste tipo de crime se encontra excluído o elemento da cominação prevista no n.º 3 do art. 279.º .
Quarta: O n.º 1 do art. 279.º CP estrutura o crime de poluição, sem haver o recurso ao n.º 3 para que tal crime exista.
Quinta: O n.º 3 do art. 279.º CP limita-se a esclarecer que sempre que se verifiquem as condições que ali se prevê se está perante «poluição em medida inadmissível».
Sexta: Além dos casos previstos no n.º 3 do art. 279.º CP, haverá poluição «em medida inadmissível» (conceito indeterminado) quando a situação de poluição é «grave».
Sétima: Tendo-se provado que o ruído propagado pela actividade da fábrica E...... atingiu os assistentes e sua família, por forma a afectar a sua saúde, e que tal ruído excedia largamente o máximo legalmente permitido, com conhecimento do arguido, estamos perante um caso de poluição grave em medida inadmissível, não sendo por isso de exigir qualquer advertência da autoridade administrativa.
Oitava: A decisão recorrida violou o disposto nos art. 279.º, n.º 1, al. c) e 280.º do Código Penal e Dec.-Lei 251/87, de 24 de Junho.
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O arguido B......, notificado da interposição do recurso, para os efeitos do art. 413.º, do Cód. Proc. Penal, na resposta defende a tese sustentada pela sentença recorrida de que a remição do art. 280.º, do CP para o n.º 1 do art. 279.º do CP contempla a poluição em medida inadmissível.
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Nesta Relação o Ex.mo Procurador-geral Adjunto subscreve integralmente a tese expandida na motivação de recurso do Ministério Público, não havendo deste modo lugar à notificação a que alude o art. 417, n.º 2, do CPP.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre-nos decidir.
Vejamos pois a factualidade dos autos.
Factos provados
1. O arguido B...... é sócio-gerente e legal representante da empresa "F......, Lda." e da empresa "E....., Lda.", enquanto o arguido C..... é apenas sócio-gerente e legal representante da primeira.
2. Estas empresas encontram-se sediadas no Lugar de ....., ...., Santa Maria da Feira, laborando há mais de 20 anos em espaços diferenciados, com instalações fabris próprias, embora num prédio - parque industrial - comum, servindo-se ambas, e pelo menos, da mesma entrada e de parte do logradouro.
3. Contiguamente ao referido prédio vivem os ofendidos D......, G......, H....., I...... e o menor J...... .
4. A empresa "E......, Lda." dedica-se à serração, enquanto a empresa "F....., Lda." se dedicava ao fabrico de tacos, parquet e artefactos de madeira.
5. Ao longo dos anos estas empresas foram crescendo, aumentando o número e porte das máquinas industriais.
6. Segundo medição de ruídos efectuada em Outubro de 1995, pela empresa "L.....", a solicitação do Sr. M......, no interior da habitação do Sr. D......, o valor da diferença entre o nível sonoro e o nível de ruído de fundo chega a atingir 24.4d8(A).
7. Segundo medições de ruídos efectuadas nos dias 10, 15 e 16 de Janeiro de 1996 pelo "Instituto de Ambiente e Desenvolvimento", na mesma habitação, a solicitação do Tribunal de Santa Maria da Feira, na sequência do processo n.º 80/94, em 89% das medições o valor da diferença entre o nível sonoro e o nível de ruído de fundo é superior a 15dB(A).
8. Esta medição foi realizada ao ruído produzido pela unidade industrial da firma "E......, Lda.", e com as portas e janelas da casa dos ofendidos fechadas.
9. A unidade industrial da empresa "E......, Lda." era a principal fonte responsável pelo ruído.
10. O ruído acontecia não só durante o dia (horário normal de trabalho), mas algumas vezes para além das 18 horas e de segunda a sábado, havendo certas alturas em que o ruído era de tal forma intenso que não permite ou dificulta conversar, ouvir música ou ver televisão em casa dos ofendidos.
11. O ruído da maquinaria era um barulho com um fundo contínuo e cavo, mas com estridências e súbitos aumentos de frequência sonora e de intensidade.
12. Por vezes, os ruídos atingiam intensidades que se propagam ao edifício e às coisas, chegando a fazer vibrar com bastante frequência portas, janelas, candeeiros e objectos em casa dos ofendidos.
13. Quando a fábrica "E......" se encontrava em laboração, os ofendidos não podiam abrir nenhuma janela para o lado das instalações fabris desta última, sem receber os ruídos produzidos pela mesma.
14. Ao longo dos anos em que a "E......" têm laborado, o arguido B......, na qualidade de legal representante e sócios-gerente da mesma, vem permitindo que o ruído da sua actividade fabril, pelo seu elevado nível, cause impacto negativo no ambiente e na saúde da população local, designadamente nos ofendidos que se encontram muito próximo da referida fábrica.
15. De facto, em consequência do ruído provocado, os ofendidos têm sofrido ou agravado doenças várias, designadamente o ofendido D...... sofre de défice auditivo, o qual tem aumentado, bem como a perturbação cardiovascular em virtude da situação de stress repetido em que se encontra, tendo estado internado no Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra de 15/12/93 a 28/12/93 para avaliação e tratamento,
16. Também em virtude dos ruídos, a ofendida G....... apresenta, desde há vários anos, sintomas ansiosos e depressivos, insónia crónica, associados a alterações de personalidade que interferem significativamente com a sua dinâmica familiar e social, os quais têm aumentado, tendo estado internada no Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra de 07/01/94 a 21/01/94 para avaliação e tratamento.
17. Os restantes ofendidos, também em consequência dos ruídos, manifestam irritabilidade, ansiedade e sensibilidade ao ruído.
18. Todos os ofendidos têm tido necessidade de assistência psiquiátrica, mantendo-se em regime de consulta externa.
19. Ao longo dos anos, o arguido B...... tem perfeito conhecimento de que ruído provocado pela fábrica "E......, Lda", de que é legal representante, tem sido superior ao limite máximo permitido por lei, que é de 10dB(A), chegando a atingir, como acima se referiu, valores superiores a 24,4dB(A).
20. As sociedades representadas pelos arguidos foram condenadas por decisão do Tribunal de Círculo desta comarca, a 4 de Abril de 1997, na Acção Ordinária n.º 80/94, a não prosseguirem a sua actividade industrial enquanto a mesma continuar a produzir danos na saúde e bem-estar dos AA, ora ofendidos, perturbar a normal utilização do prédio destes e causar danos no ambiente envolvente realizando as obras necessárias quer para a insonorização das suas instalações fabris de forma a não emitirem ruídos que prejudiquem os segundos (ofendidos), quer para não emitirem serrim e poeiras para o prédio destes últimos.
21. Na sequência das reclamações apresentadas pelos ofendidos a Delegação Regional da Economia do Norte, a 11 de Julho de 1997, devido aos sucessivos incumprimentos por parte dos arguidos dos limites legais de ruídos e vibrações, notificou o arguido B......, na qualidade legal de representante das sociedades acima referidas, de que se não acatasse a sua ordem de suspender de imediato o trabalho de um destroçador "Palmann" instalado recentemente a cerca de 60 metros da casa dos ofendidos, incorreria na prática de um crime de desobediência.
22. Apesar de todas estas advertências, o arguido B......, na qualidade de legal representante da sociedade "E......, Lda.", permitiu que esta continuasse a provocar ruído superior ao máximo legal fixado pelo art. 14.º do Regulamento Geral Sobre o Ruído aprovado pelo Dec.-Lei n.º 251/87, de 24/06, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 292/89, de 02/09, admitindo como consequência possível da actividade poluidora da sua fábrica a colocação em perigo da saúde dos ofendidos e, não obstante, continuou a referida actividade.
23. O arguido B...... agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, não desconhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta.
24. Ao longo dos anos o arguido B...... muniu a empresa "E......, Lda." de um sistema de condução e armazenamento hermético do pó da madeira e serrim, através de um tapete transportador de resíduos e aspiração dos mesmos.
25. Procedeu à construção de uma cobertura das instalações, com barreiras junto à residência dos queixosos, impeditivas da propagação dos ruídos, procedendo ao seu isolamento e encerrado definitivamente um portão de acesso às instalações da empresa, existente junto da casa dos ofendidos.
26. Progressivamente procedeu à substituição de maquinaria por outra mais silenciosa, nomeadamente substituiu a máquina de destroçar.
27. Em Maio de 1992 procedeu ao encerramento de um sector situado mais próximo dos prédios dos queixosos.
28. A sociedade "F....., Lda" actualmente encontra-se dissolvida.
29. As instalações da empresa "F......, Lda" desde inicio até ao seu encerramento foram licenciadas pelo Ministério da Indústria.
30. Segundo medições efectuadas em Janeiro de 1999 e em Maio de 2004, o ruído produzido pela empresa "E......, Lda." era inferior ao limite legal.
31. O arguido B...... aufere o rendimento mensal médio de € 750; a esposa é doméstica; tem três netos a seu cargo, de 17, 15 e 6 anos de idade, respectivamente, estudantes; tem a 4.ª classe de escolaridade.
32. O arguido C...... aufere € 911 de subsídio de desemprego; a esposa aufere € 947 mensais; tem a 4.ª classe de escolaridade.
33. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.
34. Os arguidos são pessoas respeitadas e consideradas por todos quantos os conhecem.
Facto não provado:
Com interesse para a decisão da causa não se provou que:
O ruído produzido pela empresa "F......." fosse superior a 10 Db.
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O Direito:
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Questão a decidir:
Apreciar se face à matéria de facto dada como provada estão ou não reunidos os elementos constitutivos do crime de poluição, p. e p. pela conjugação dos art. 279.º, n.º 1, al. c) e 280.º, n.º 1, al. a), do CP, designadamente se é exigível o elemento objectivo típico de provocação de ruído em “medida inadmissível”, cuja ausência foi considerada e que serviu de fundamento para a absolvição do arguido B..... .

O arguido recorrente foi pronunciado, como autor material, na forma consumada, pela prática de um crime de poluição, p. e p. pelos art. 279.º, n.º 1, al. c) e 280.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
O tribunal decidiu absolvê-lo com o fundamento de não constando dos autos qualquer cominação da administração pública quanto à prática do crime previsto nos artigos 279.º e 280.º do CP, ao arguido não pode ser imputado o ilícito penal típico pelo qual vem pronunciado, por falta de preenchimento daquele elemento objectivo típico de provocar ruído em medida inadmissível.
Analisemos pois as normas incriminadoras dos art. 279.º e 280.º, do CP.
E para perceber a questão em análise importa saber se estamos perante dois crimes distintos, designadamente quanto aos seus elemento típicos objectivos ou se o crime do art. 280.º é apenas a agravação do crime do art. 279.º.
Pratica o crime de poluição, p. e p. pelo art. 279.º, n.º 1, al. c), do CP "quem, em medida inadmissível: provocar poluição sonora mediante utilização de aparelhos técnicos ou instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos, de qualquer natureza”, cuja moldura penal abstracta é pena de prisão até 3 anos ou pena de multa até 600 dias.
O n.º 3 do mesmo preceito esclarece que "a poluição ocorre em medida inadmissível sempre que a natureza ou os valores da emissão ou da imissão poluentes contrariarem prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente em conformidade com disposições legais ou regulamentares e sob a cominação de aplicação das penas previstas neste artigo".
Incorre na prática do crime de poluição com perigo comum, previsto no art. 280.º, do Cód. Penal "quem, mediante uma conduta descrita no n.º 1 do artigo anterior, criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado…”.
Tendo em conta a inserção sistemática destes ilícitos penais, no Código Penal, os mesmos inserem-se nos crimes contra a vida em sociedade, no capítulo III, dedicado aos crimes de perigo comum.
Porém, os artigos 279.º e 280.º, do CP, pretendem acautelar realidades bem diferentes.
Não comungamos do entendimento perfilhado na sentença recorrida quanto à exigência de “em medida inadmissível” o agente provocar poluição sonora, criando assim perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Não é pacífica a questão.
Como a própria epígrafe do artigo do 279.º, do CP, indica este preceito contempla a punição de várias formas de poluição. Estamos pois perante um crime ecológico puro, em que o legislador se desinteressa da protecção de bens jurídicos individuais.
Aqui a poluição “é a actividade poluidora, em si mesma, ou a mera criação de um perigo A poluição é a acção de afectação negativa da saúde, bem-estar e diferentes sistemas de vida – o que não é necessariamente dano material, mas apenas uma contribuição para o efeito (art. 21.º da Lei de Bases do Ambiente). Poluir é introduzir nas águas, no solo, no subsolo ou na atmosfera efluentes, resíduos radioactivos e outros produtos que contenham substâncias ou micro-organismos que, segundo o legislador, possam alterar as características ou tornar impróprios para as suas aplicações aqueles componentes ambientais e contribuam para a degradação do ambiente (art. 26.º da mesma Lei de bases)”- Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2.º vol., 1997, Ed. Rei dos Livros, pág. 865.
Com esta incriminação do art. 279.º do CP visa-se proteger directamente o ambiente e, por isso, o crime está configurado como crime de desobediência.
É assim que, dispõe o n.º 3 do mesmo preceito sobre o que se deve entender por medida inadmissível, remetendo para a necessidade de contrariar prescrições ou limitações impostas pela administração, com a cominação de aplicação desta incriminação penal, como verdadeira condição objectiva de punibilidade -vide neste sentido José Albuquerque, Considerações sobre o crime de poluição, in Boletim de Interesses Difusos, n.º 11, P.G.R., p. 25.
A expressão "medida inadmissível" não tem, pois, a ver com aspectos quantitativos, mas sim com a inobservância de prescrições ou limitações impostas pela administração.
Por sua vez, no crime de poluição com perigo comum, previsto no art. 280.º do CP visa-se sim a protecção de bens jurídicos individuais, não sendo o ambiente o bem jurídico directamente protegido com a incriminação.
Relembremos o corpo da redacção do art. 280.º:
“Quem, mediante uma conduta descrita no n.º 1 do artigo anterior, criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado…”.
Mas para o preenchimento deste tipo de ilícito, cuja descrição normativa remete para o preenchimento de qualquer uma das condutas previstas no n.º 1 do art. 279.º, tem também de se verificar a medida inadmissível?
Ou remete apenas para um dos comportamentos previstos numa daquelas alíneas?
Considerando os tipos de ilícito distintos entendemos que o legislador apenas quis remeter para um dos comportamentos previstos no art. 279.º, n.º 1, do CP.
Trata-se de um crime de perigo comum - cria perigo para um número indeterminado de pessoas - sendo construído pelo legislador como crime de perigo concreto, ou seja, o perigo faz parte do tipo legal, tem de se concretizar num dos bens jurídicos protegidos pela norma.
A criação de perigo é, de facto, um elemento do tipo que tem de se verificar, pois estamos perante um crime de resultado de perigo.
É, pois, necessário que se produza o resultado típico de criação de perigo previsto na norma, sem o qual o crime não se consuma, ficando pelo estádio da tentativa.
Estamos perante um tipo de ilícito autónomo, que visa a protecção de bens jurídicos individuais, pelo que aqui a tutela penal já não fica sujeita à oportunidade administrativa. Caso contrário, o que continuaria a ser objecto imediato de protecção seria o ambiente, agravando-se a punição quando a poluição constituísse perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado, constituindo assim o art. 280.º um crime qualificado.
Não se trata de um crime qualificado, desde logo porque para qualificar um crime o legislador nunca utilizou tal técnica.
O corpo do art. 280.º, do CP remete apenas para as condutas descritas no art. 279.º, n.º 1 e não para o elemento "medida inadmissível". Remete para os elementos descritivos daquela norma, mas não para os valorativos, pelo que para efeitos do preenchimento do tipo de crime previsto no art. 280.º não é necessário que ocorra poluição em medida inadmissível, até porque, caso contrário, o art. 280.º teria de fazer referência ao n.º 1 e 3 do art. 279.º.
Neste sentido, pode ler-se Anabela Miranda Rodrigues, in Comentário Conimbricence do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, em anotação ao artigo 280.º, pág. 982, a qual cita no mesmo sentido Teresa Quintela de Brito, Souto Moura e Leonês Dantas.
Escreve ainda a mesma penalista, in ob. cit., pág. 980:
“Quanto a este tipo de perigo, embora possa tratar-se de um perigo para uma pessoa concreta, só se pode falar de perigo comum se se coloca em perigo um grande número de pessoas. Assim, a pessoa concretamente ameaçada surge não apenas como vítima do crime, mas verdadeiramente como representante da comunidade. Ela só é, no fundo, individualizável, enquanto concretização do perigo para a sociedade que decorre da conduta. Entretanto, trata-se também de um perigo concreto, pelo que é necessário fazer prova em cada caso de um perigo para uma multiplicidade de pessoas representativas da comunidade. Feita esta prova, verificar-se-á o perigo comum mesmo que só uma pessoa tenha sido, de facto, posta em perigo”.
Resulta dos autos, conforme matéria dada como assente, que a empresa "E......, Lda", da qual era representante legal o arguido B......, nos anos de 1995 e 1996 a actividade tinha uma emissão de ruído superior a 10 Db.
Resulta ainda que os ofendidos têm sofrido ou agravado doenças várias, designadamente o ofendido D..... sofre de défice auditivo, o qual tem aumentado, bem como a perturbação cardiovascular em virtude da situação de stress repetido em que se encontra; a ofendida G....... apresenta, desde há vários anos, sintomas ansiosos e depressivos, insónia crónica, associados a alterações de personalidade que interferem significativamente com a sua dinâmica familiar e social, os quais têm aumentado; os restantes ofendidos também em consequência dos ruídos manifestam irritabilidade, ansiedade e sensibilidade ao ruído.
A poluição sonora provocada pela empresa "E......, Lda" era susceptível de criar perigo para a integridade física dos queixosos.
Em conclusão diremos que o corpo do art. 280.º, do CP remete apenas para as condutas descritas no art. 279.º, n.º 1 e não para o elemento "medida inadmissível".
Nestes termos, encontram-se preenchidos todos os elementos constitutivos, de ordem subjectiva e objectiva do crime p. e p. pelo art. 280.º, al. a), com referência ao art. 279.º, n.º 1, al. c), ambos do CP, não sendo exigível que ocorra poluição em medida inadmissível para preenchimento do tipo legal.
Impõe-se pois a condenação do arguido B...... .
A moldura penal abstracta do crime é de 1 a 8 anos de prisão.
Porém, passará a ser de 1 a 5 anos de prisão, dado que o Ministério Público fez uso do art. 16.º, n.º 3, do CPP, razão aliás pela qual o julgamento decorreu perante tribunal singular.
Mais ainda: substancialmente o recurso interposto carece também de fundamento para sustentar a suspensão da execução da pena.
Por isso deve ser também ser julgado improcedente, com base neste fundamento.
A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP).
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac. STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194.
Quanto à determinação da medida da pena e multa, em obediência ao disposto no art. 71.º, n.º 1 e 2, do Cód. Penal atender-se-à a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal de crime deponham a favor ou contra o arguido, tendo em conta os limites definidos na lei.
Contra o arguido depõe o facto da persistência da sua conduta apesar das insistências dos ofendidos, preocupados com a cessão da poluição sonora que os afectava, tendo percorrido um autêntico calvário, para terem um ambiente a que tinham direito.
Serão levadas em conta as consequências evidenciadas e na matéria de facto dada como provada, com graves consequências para a saúde dos ofendidos.
Porém os efeitos cessaram devido a intervenção que o arguido fez na fábrica.
A favor da arguida levaremos em conta o facto de não ter antecedentes criminais e ser bem considerada no meio onde vive.
Ponderadas as circunstâncias atrás referidas entendemos ser justa e adequada uma pena de 18 meses de prisão.
Nos termos do disposto no nº 1 do art. 50º do Cód. Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Face às circunstâncias que determinaram a medida da pena cremos estarem também reunidos os requisitos, para declarar a suspensão da execução da pena pelo período de 3 anos.
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Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da 1.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação do Porto, julgar procedentes ambos os recursos interpostos, pelo Ministério Público e pelos assistentes, e, em consequência se revoga a sentença recorrida, a qual se substitui pela condenação do arguido, como autor material da prática de um crime de poluição, p. e p. pelo art. 280.º, n.º 1, al. a), conjugado com o art. 279.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
Sem custas.

Porto,15 de Fevereiro de 2006
João Inácio Monteiro
Èlia Costa de Mendonça São Pedro
António Augusto de Carvalho
José Manuel Baião Papão