EXECUÇÃO
LIVRANÇA
LIQUIDAÇÃO DA QUANTIA EXEQUENDA
SANEADOR-SENTENÇA
FUNDAMENTOS
INSOLVÊNCIA DO SUBSCRITOR DA LIVRANÇA
Sumário

I– A realização coactiva de uma prestação depende da existência de título executivo (pressuposto formal que condiciona a exequibilidade do direito) e de aquela se mostrar certa, exigível e líquida.

II– Enquanto requisito essencial da acção executiva, o título deve constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, revelando, por si só, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, sem prejuízo da possibilidade de o executado provar que apesar do título a dívida não existe.

III– A livrança, enquanto título de crédito, atentas as características de literalidade e abstracção que lhe são próprias, dispensa o exequente de invocar a relação jurídica subjacente à sua emissão, podendo ser dada à execução de per si.

IV– Quando a quantia em dívida for ilíquida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido, nos termos do artigo 716º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

V– A liquidação é dependente de simples cálculo aritmético quando se basta com o simples fazer contas, trabalhar com números, dando origem apenas a discussão sobre a exactidão desses números e dos correspondentes cálculos, podendo tais números ser provados por documentos juntos com o requerimento inicial.

VI– Nesse caso, o exequente tem apenas de enunciar as operações efectuadas, ou seja, os dados de que partiu e o resultado alcançado, elementos que serão, ainda assim, sujeitos ao contraditório a exercer através de embargos de executado.

VII– A existência de pagamentos efectuados no âmbito do processo de insolvência da sociedade subscritora da livrança não tem a virtualidade de transformar a quantia líquida nela inscrita em prestação ilíquida, pois que tais pagamentos apenas determinarão a redução da dívida exequenda na proporção do que foi liquidado.

VIII– No saneador-sentença deve o juiz, sendo caso disso, declarar quais os factos que julga provados, elencando aqueles que são tidos por relevantes (factos essenciais, em sentido amplo, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas) e que estão plenamente provados (admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão).

IX– A falta absoluta de decisão sobre a matéria de facto pode ser conhecida oficiosamente pela Relação, nos termos do disposto no artigo 662º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, pois que não pode deixar de se considerar abrangida pela expressão deficiênciaa que alude tal normativo legal, correspondendo ao grau máximo dessa deficiência.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO


A [ .... UNIPESSOAL, LDA.], com domicílio ao ... ..., nº...,  Dt.º Sala ..., L____ apresentou, em 3 de Outubro de 2019, requerimento executivo para pagamento de quantia certa contra B, contribuinte fiscal n.º 10......2, Rua dos ..., n.º ..., 2...-... - C____ da C____; C, com domicílio à Praceta ... ..., ..., - S_____ e D, com domicílio à Rua ..., ..., - S_____, com base em título executivo constituído por uma livrança, com data de emissão de 22-12-2006 e data de vencimento de 03-07-2017, com a importância inscrita de 1 488 151,15 €, subscrita pela sociedade E [ ....Urbanizações, Lda.] , constando do seu verso a aposição das menções “bom para aval à firma subscritora” seguidas dos nomes manuscritos dos executados.

A exequente alegou o seguinte no requerimento executivo (cf. Ref. Elect. 15510792 dos autos de execução):

“I– Da legitimidade da exequente
1-Por escritura pública, celebrada em 30 de Junho de 2017, a Caixa Geral de Depósitos,S.A., cedeu à Mistlegrove Issuer Holdings Designated Activity Company, um conjunto do créditos vencidos de que era titular, conforme Escritura Pública e respetivo Documento Complementar que se junta como Doc. N.º 1 e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
2-Pela escritura pública supramencionada foram cedidos à Mistlegrove Issuer Holdings Designated Activity Company vários créditos relativos à E, nomeadamente, o crédito emergente do Contrato identificado com o número PT 003..............91.
3-A mencionada cessão de créditos incluiu a transmissão, relativamente ao mencionado crédito, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a eles inerentes.
4-Uma vez que o Documento Complementar à escritura de cessão de créditos consta de 297 páginas, foi opção da aqui Requerente juntar à presente PI apenas as folhas correspondentes aos créditos da devedora, visto não relevar para a boa decisão da causa a junção de todas as verbas correspondentes a todos os créditos cedidos – cfr. Documento n.º 1 já junto.
Acto contínuo,
5–A referida Mistlegrove Issuer Holdings Designated Activity Company veio a ceder o supra referido crédito à aqui exequente, A., por escritura celebrada em 10 de Maio de 2019 – cfr. Documento que ora se junta como n.º 2.
6–Pela escritura pública supramencionada foram cedidos à Mistlegrove Issuer Holdings Designated Activity Company vários créditos relativos à E, entre os quais, o crédito emergente do Contrato identificado com o número PT 003..............91.
7–O que faz com que, presentemente, a ora Exequente seja a actual titular do crédito referido supra.
8–A sociedade acima identificada, aqui exequente, é assim parte legítima na presente acção.

II– Do Contrato, respectiva livrança e Valor em dívida
9–Por contrato de mútuo com hipoteca e fiança, celebrado em 2 de Dezembro de 2006 – cfr. Documento que ora se junta como n.º 3 - a CGD, S.A. concedeu à E, um empréstimo sob a forma de mútuo no montante de €800.000 (oitocentos mil euros).
10–Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas, a mutuária constituiu hipoteca sobre vários bens imóveis, ali melhor identificados e, que infra igualmente se discriminarão.
11–Ainda para garantia das obrigações assumidas, os aqui executados, B, C e D constituíram-se fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido, em caso de incumprimento do referido contrato.
12–Ainda para garantia das referidas responsabilidades, a mutuária e os referidos fiadores, entregaram também uma livrança subscrita pela sociedade devedora e avalizada por aqueles.
13–O referido contrato veio a ser alterado por acordo entre as partes, celebrado em Lisboa de 6 de Outubro de 2011, nomeadamente quanto ao prazo, taxa de juro, TAE, Pagamento dos juros e capital, incumprimento, tendo ainda sido aditado, em conformidade.
14–Sucede, porém, que a sociedade mutuária veio a ser declarada insolvente no âmbito do processo n.º 18267/12.0T2SNT, que corre os seus termos no Juiz 3 do Juízo do Comércio de Sintra.
15–Em face da referida declaração de insolvência veio a ser determinado o prosseguimento dos autos para liquidação dos bens apreendidos, entre os quais os imóveis sobre os quais se encontrava registada hipoteca a favor da CGD, S.A.
16–Os referidos imóveis vieram assim a ser vendidos pelos seguintes montantes – cfr. Escritura de compra e venda celebrada que ora se junta como documento n.º 5:
i)-Prédio rústico denominado “M... B...”, sito em Limites de A_____, freguesia de S_____ (São ... de ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de S_____ sob o número 2..0. da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 6... secção T, da União das Freguesias de S____ (Santa ... e São ..., São ... e São ... de ...): 170.510,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (17.051,00€), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
ii)-Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado em A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S_____ 2, sob o número 5..3 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..9: 67.677,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.767,70€), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
iii)-Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado em A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S_____ 2, sob o número 5..3 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..0: 67.677,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.767,70 €), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
iv)-Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado na A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S_____ 2, sob o número 5..5 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..1: 67.677,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.767,70 €), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
v)-Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado na A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S_____ 2, sob o número 5..6 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..1: 68.979,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.897,90 €), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
vi)-Prédio urbano denominado Lote 1, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de Sintra sob o número 5..9, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..5 – valor de €70.125, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €7.012,5;
vii)-Prédio urbano denominado Lote 2, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de Sintra sob o número 5..0, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..6 – valor de €68.000, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €6.800;
viii)-Prédio urbano denominado Lote 3, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de S_____ sob o número 5..1, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..7 – valor de €68.000, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €6.800;
ix)-Prédio urbano denominado Lote 4, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de S____ sob o número 5..2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..8 – valor de €70.125, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €7.012,5;
17–A livrança-caução, garante da operação melhor identificada supra, veio a ser preenchida antes da venda, pelo valor em dívida, no montante de €1.488.151,15, pelo que, actualmente, o valor em dívida é distinto, conforme se demonstrará no apartado da “liquidação da obrigação”.
18–A livrança emitida e subscrita pelos Executados constitui título executivo nos termos e para os efeitos do disposto no art. 703, n.º 1 al. c) do C.P.C., titulando uma dívida certa, líquida e exigível nos termos consignados no art. 716.º do mesmo diploma.
19–Sobre o valor ora peticionado são ainda devidos juros à taxa supletiva legal até integral pagamento.”

A exequente procedeu à operação de liquidação da obrigação exequenda nos seguintes termos:
“Valor líquido: 907 235,84 €
 Valor dependente de simples cálculo aritmético: 43 945,01 €
 Valor NÃO dependente de simples cálculo aritmético: 0,00€
 Total 951 180,85 €
- Data de vencimento da livrança: 03/07/2017;
- Juros de 03/07/2017 a 27/07/2018 (data da adjudicação): €63.440,09;
- Imposto de selo sobre os juros: €2.537,60;
- Valor total da adjudicação (€718.770) - Valor depositado para pagamento das custas no processo de insolvência (€71.877) = €646.893;
- €3646.893 - €63.440,09 - €2.537,60: €580.915,31;
a)-Capital em dívida: €907.235,84 (€1.488.151,15 - €580.915,31);
b)-Juros à taxa legal de 4% sobre o capital referido em a), contabilizados desde a data da adjudicação (28/07/2018), até à presente data (26/09/2019): €42.254,82;
c)-Imposto de selo sobre os juros referidos em b) supra: €1.690,19;”

Com o requerimento executivo a exequente juntou dois contratos de cessão, um contrato de mútuo e respectiva alteração (operação n.º 0786.023751.491), escritura pública de compra e venda e uma livrança.

Em 21 de Setembro de 2020, o executado B deduziu oposição à execução mediante embargos de executado com a seguinte ordem de fundamentos (cf. Ref. Elect. 17442654):

I)–Nulidade da livrança dada à execução e do seu preenchimento abusivo:
A exequente entrou na posse do título dado a execução por efeito da cessão de créditos invocada no requerimento executivo;
A livrança foi entregue à exequente sem se encontrar preenchida, nomeadamente quanto a data de vencimento e quanto ao capital ou valor nela aposto (€ 1.488.151,15), não existindo qualquer pacto de preenchimento entre aquela e os executados, nem o embargante o celebrou com a primitiva credora;
Porque não existe autorização de preenchimento a livrança é um título incompleto, sendo inválida e como tal nula;
O preenchimento foi abusivo, sendo apostos valores e menções que não foram previamente acordados com o embargante;
II) Prescrição da livrança
Porque o vencimento de todas as obrigações ocorre aquando da declaração de insolvência do devedor principal, a dívida garantida pelo título cambiário - livrança - torna-se exigível;
A devedora/mutuária Penaferrim, Lda. foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 18267/12.0T2SNT, que corre os seus termos no Juiz 3 do Juízo do Comércio de Sintra, por sentença de 13-07-2012 e a Caixa Geral de Depósitos, S. A. reclamou o crédito subjacente à livrança dada à execução em 17-09-2012, pelo que desde Julho de 2012, momento do vencimento e incumprimento da obrigação, a credora estava legitimada para proceder ao preenchimento da livrança incompleta ou em branco pelo valor em dívida, valor que se fixou no momento do vencimento da obrigação, constituindo-se assim a obrigação cambiária;
No entanto, a Caixa Geral de Depósitos continuou a contabilizar juros durante cinco anos após o vencimento e incumprimento da obrigação e ao preencher a livrança decorrido esse tempo, pretendeu, como também a exequente, afastar e protelar o prazo de prescrição da livrança, prescrição que se verificava à data do preenchimento, pois que o prazo de prescrição começa a correr logo que se verifica o incumprimento e vencimento da obrigação, ou seja, a partir da data da sentença que declarou a insolvência da devedora principal;
É censurável e excede os limites impostos pela boa fé e do fim económico do direito o preenchimento da livrança decorridos que estavam cinco anos sobre a declaração de insolvência da mutuária, o que consubstancia um abuso de direito, tal como se encontra consagrado no art.º 334º do Código Civil;

III)–Iliquidez da obrigação exequenda
A exequente refere que a livrança lhe foi entregue em branco, no âmbito de um contrato de mútuo celebrado a 22-12-2006, mediante o qual a Caixa Geral de Depósitos, S. A. concedeu à mutuária E. um empréstimo no montante de 800 000,00 €, mas não explica como foi apurado o valor de 1 488 151,15 € inserido na livrança dada à execução, não identificando o capital em dívida na data de preenchimento nem se esse valor inclui juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais;
Não especifica também a taxa de juro aplicada para apurar os juros de mora no valor de € 63.440,09 reclamados na liquidação da quantia exequenda e não demonstra o pagamento do imposto de selo que peticiona;
A exequente na liquidação deduz o valor de 646 893,00 € relativos a compensação de créditos reclamados na acção de insolvência da sociedade E mas do documento n.º 5 resulta que compensou créditos no valor de € 3.044.493,10 (3.382.770,00 – 338.276,90), não explicando por que foram apenas imputados € 646.893,00 para pagamento da dívida, pelo que há um vício de liquidação da obrigação exequenda, existindo motivo para a suspensão da execução.
Concluiu pela procedência dos embargos pedindo que se declare a nulidade ou ineficácia da livrança, com extinção da execução; a prescrição da livrança; a procedência da excepção material de preenchimento abusivo do título; a falta de liquidação da obrigação exequenda; a inexigibilidade da obrigação exequenda e absolvição da executada da instância, mais requerendo que fosse determinada a suspensão da acção executiva até que seja proferida sentença nos presentes autos.

Em 11 de Outubro de 2020 os embargos foram liminarmente admitidos e ordenada a notificação da exequente para contestar (cf. Ref. Elect. 127109306).

A exequente/embargada deduziu contestação alegando, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 17727180):
A livrança foi preenchida pela CGD, S.A., antes da venda dos imóveis sobre os quais detinha garantia real de hipoteca;
O pacto de preenchimento da livrança pode ser expresso ou tácito, verbal ou meramente consensual, sendo que o embargante entregou a livrança à CGD, S.A. para garantia do contrato celebrado, resultando o acordo/autorização para o preenchimento implicitamente das cláusulas do negócio subjacente à emissão do título, de onde decorrem os termos em que a livrança poderia ser preenchida;
A prescrição do direito de acção só deverá ser analisada por referência à data de vencimento inscrita na livrança, pelo que enquanto a letra ou a livrança não for preenchida e nela inserida a data do vencimento, não se inicia a contagem de qualquer prazo de prescrição;
Nada resultando em contrário do pacto de preenchimento e não estipulando a lei um limite temporal para o preenchimento da livrança, a mutuante, CGD, S.A., podia, mas não estava obrigada a, preencher a livrança dada à execução no prazo de três anos;
Para além de o art. 752º, n.º 1 do CPC impor que, em situação de dívida com garantia real sobre bens pertencentes ao devedor, a penhora se inicie sobre tais bens, sendo que os imóveis apenas foram vendidos em 2018, no processo de insolvência;
Quanto à operação de liquidação remete para a nota de débito junta com a contestação, referindo que o opoente tem conhecimento que a E, contraiu vários empréstimos junto da CGD, S.A., às quais foram igualmente prestadas fianças e/ou avales, pelo embargante, operações garantidas por hipotecas, sendo que apenas o montante obtido com a venda de tais imóveis pôde ser abatido ao valor em dívida por conta da aludida responsabilidade, cujo valor de venda se cifrou em 718 770,00 €, a que foi deduzida a percentagem de 10% depositada no processo para pagamento das custas judiciais e despesas e honorários do agente de execução, no montante de 71 877, 00 €, conforme indicado no requerimento executivo;
A compensação que o embargante alega, superior a 3 milhões, respeita a todas as operações peticionadas no processo de reclamação de créditos e não apenas, à que ora se executa, pelo que a obrigação é líquida, indicando ainda tabela onde efectua o resumo das operações em causa, valores de venda e valores em dívida, bem como os avales prestados por conta de cada uma.

Conclui pela improcedência da oposição à execução, com o consequente prosseguimento da execução.

Em 26 de Novembro de 2020 foi proferido despacho que convidou as partes a se pronunciarem sobre a possibilidade de dispensa de realização da audiência prévia, considerando que estavam reunidos os elementos necessários para decidir a excepção de iliquidez da obrigação, no que as partes assentiram (cf. Ref. Elect. 128026212, 17929309 e 17929313).

Em 17 de Fevereiro de 2021 foi proferido despacho saneador-sentença em que, para além da apreciação da validade do título executivo e da prescrição da acção cambiária invocadas, considerou verificada a inexequibilidade do título executivo por iliquidez da obrigação exequenda, julgando os embargos de executado procedentes (cf. Ref. Elect. 129305356).

É desta sentença que a exequente/embargada recorre, concluindo assim as respectivas alegações (cf. Ref. Elect. 18508834):
A)–Em 3/10/2019, a aqui Recorrente, instaurou acção executiva contra o Recorrido e outros, tendo dado à execução uma livrança no valor de €1.488.151,15, com data de vencimento em 3/07/2017.
B)–A livrança dada à execução constituiu uma das garantias do contrato de mútuo com hipoteca e fiança, celebrado com a E, e com os executados, enquanto fiadores e avalistas.
C)–Pelo aludido contrato, a CGD, S.A., concedeu um empréstimo sob a forma de mútuo no montante de €800.000 (oitocentos mil euros), à sociedade mutuária.
D)–Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas, a mutuária constituiu hipoteca sobre vários bens imóveis e, os executados, entre os quais o ora Recorrido, constituíram-se fiadores e principais pagadores, por tudo quanto viesse a ser devido em caso de incumprimento do referido contrato.
E)–A Sociedade mutuária veio a ser declarada insolvente no âmbito do processo n.º 18267/12.0T2SNT, tendo os autos prosseguido para liquidação dos bens apreendidos, entre os quais os imóveis sobre os quais se encontrava registada hipoteca a favor da CGD, S.A. e, posteriormente, a favor da aqui Recorrente, ora cessionária.
F)–Os referidos imóveis vieram a ser vendidos em Julho de 2018, pelo valor global de €718.770, conforme resulta da escritura de compra e venda celebrada naqueles autos de insolvência e junta ao requerimento executivo.
G)–No apartado “Liquidação da Obrigação”, a exequente, ora Recorrente, discriminou todos os valores em dívida à data da instauração da execução, nomeadamente, o valor de juros vencidos e não pagos, o valor do imposto de selo em dívida, bem como o capital em dívida.
H)–Ainda no apartado “Liquidação da Obrigação”, a Recorrente indicou o valor total da adjudicação (€718.770), deduzido do valor depositado para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente, nos autos de insolvência.
I)–Por mero cálculo aritmético, a Recorrente, como lhe competia, procedeu à imputação do valor obtido com a venda dos imóveis garantes da obrigação, ao valor em dívida e que constava da livrança ora dada à execução.
J)–Sobre o valor de capital que remanesceu em dívida, calculou os juros entretanto vencidos.
K) A sentença de que se recorre entendeu, sem mais, que “a obrigação exequenda não se mostra certa nem líquida, sendo, pois, inexigível ao executado/opoente”.
L)–A sentença recorrida, assenta em três pressupostos, nomeadamente a iliquidez da obrigação constante da livrança dada à execução, a iliquidez da obrigação exequenda e desnecessidade do convite ao aperfeiçoamento.
M)–Não pode a Recorrente conformar-se com o entendimento plasmado na sentença, o qual não tem qualquer correspondência com a realidade dos factos.
N)–Inexplicavelmente, o douto Tribunal a quo, desconsiderou em absoluto os cálculos apresentados pela exequente, ora Recorrente.
O)–Igualmente desconsiderou o douto Tribunal a quo todos os documentos juntos pela exequente, ora Recorrente e que provam, quer os valores recebidos naqueles autos de insolvência, quer o montante em dívida aquando do preenchimento da livrança.
P)–Ao contrário do propugnado pelo Tribunal, a Recorrente juntou com a sua contestação a nota de débito que sustenta o montante pelo qual foi preenchida a livrança, discriminando parcela a parcela os valores devidos a título de capital, juros e despesas.
Q)–Junta a nota de débito, não se alcança o entendimento plasmado na douta sentença, quando refere que a exequente não liquidou a obrigação constante da livrança dada à execução.
R)–A exequente, ora recorrente, juntou todos os elementos necessários ao apuramento da dívida dos executados e procedeu à imputação discriminada do valor obtido com a venda dos imóveis garantes da presente operação.
S)–O Recorrido era não só sócio, como gerente da sociedade insolvente à data da sua apresentação à insolvência, pelo que, não poderia, legitimamente, ignorar o valor em dívida por conta da operação peticionada.
T)–O valor em causa foi integralmente aceite pelo Recorrente nos autos de insolvência, tendo ali sido reconhecido e graduado em sede de sentença de verificação e graduação de créditos.
U)–Impunha-se decisão diferente do Tribunal a quo, que face aos factos alegados e aos documentos juntos, tinha reunidas todas as condições para aferir da liquidez da obrigação constante da livrança dada à execução.
V)–A sentença de que se recorre padece da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615º do CPC, quando consigna que a exequente não alegou o “incumprimento e/ou a resolução do contrato subjacente à emissão e preenchimento do título”.
W)–O embargante, ora recorrido, em momento algum alegou a inexistência de incumprimento ou a falta de resolução do contrato.
X)–A sentença recorrida padece do vício de excesso de pronúncia já que o Tribunal utilizou, como fundamento da decisão, matéria não alegada.
Y)–O incumprimento do contrato e a sua resolução, ao contrário do propugnado na douta sentença, igualmente resultam provados nos autos.
Z)–A declaração de insolvência, nos termos do art. 91º/1 do CIRE determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente.
AA)–A exequente deixou claro que a venda dos bens dados em garantia da obrigação peticionada não foi suficiente para integralmente liquidar o valor em dívida.
BB)–No autos, mostra-se junta a carta de interpelação e resolução, remetida ao embargante, ora Recorrido.
CC)–O embargante não fez prova de ter efectuado qualquer pagamento à aqui Recorrente, por conta do valor em dívida.
DD)–Mal andou o Tribunal a quo quando se limitou a afirmar que a exequente optou por não demonstrar como alcançou o valor da obrigação exequenda.
EE)–A exequente, no apartado “Liquidação da Obrigação” do requerimento executivo, efectuou o cálculo aritmético por forma a apurar e dar conhecimento do valor da quantia exequenda.
FF)–A exequente ali discriminou o valor dos juros vencidos até à data da venda ocorrida no mencionado processo de insolvência, bem como o respectivo capital em dívida, indicou o valor da adjudicação e, considerando estes valores, efectuou o cálculo aritmético, por forma a apurar o valor que permaneceu em dívida.
GG)–O valor obtido no apartado “Liquidação da Obrigação” é aquele que foi indicado como quantia exequenda.
HH)–O Embargante, ora Recorrido, nos seus embargos, suscita questões sobre o valor peticionado, arguindo que os cálculos que lhe subjazem estão errados (ainda que não o demonstre matematicamente como lhe competia).
II)–Não podem duas realidades antagónicas sobrevir no mesmo processo. A sentença ora recorrida limita-se a dizer que a recorrente não efectuou o cálculo para determinação da quantia exequenda, no entanto, o próprio embargante questiona o cálculo efectuado pela exequente.
JJ)–Salvo o devido respeito que é muitíssimo, a sentença recorrida é, quanto a este apartado, absolutamente ininteligível, o que se reconduz à nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615º do CPC, já que não se alcança que cálculos ou explicações, para além dos apresentados, pretendia o MMº Juiz a quo.
KK)–Tem sido entendimento pacífico na jurisprudência e doutrina que “uma obrigação ilíquida não é aquela que não está determinada mas sim aquela que não pode ser determinada de forma simples por cálculo aritmético.”
LL)–Resulta à evidência demonstrado que a obrigação exequenda é determinável por simples cálculo aritmético, o qual foi desde logo apresentado no requerimento executivo.
MM)–Impunha-se assim apreciação diversa pelo douto Tribunal a quo, que poderia ter suscitado questões sobre os cálculos apresentados pela exequente ou até sobre os mesmos pedir esclarecimentos (o que não fez), mas não poderia limitar-se a julgar verificada a iliquidez da obrigação, sem mais.
NN)–Entendeu ainda o MMº Juiz que não haveria obrigação do Tribunal ao convite ao aperfeiçoamento.
OO)–Ao contrário do plasmado na douta sentença, reitera-se, a exequente não só deixou cabalmente explícitos os montantes que consubstanciaram o preenchimento da livrança, como igualmente demonstrou matematicamente os cálculos que conduziram à determinação da obrigação exequenda.
PP)–Subsistindo quaisquer dúvidas ao Tribunal, impunha-se ao MMº Juiz proceder ao convite ao aperfeiçoamento, ao contrário do propugnado na aludida sentença.
QQ)–O convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do art. 590º do CPC, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual.
RR)–A omissão do convite ao aperfeiçoamento, influindo no exame e decisão da causa, como in casu sucedeu, implica a nulidade da sentença nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 195º do Código de Processo Civil.
SS)–Não se alcança o motivo pelo qual o Tribunal desconsiderou em absoluto os cálculos apresentados pela aqui Recorrente, limitando-se a alegar que o Requerimento exectivo era, quanto aos mesmos, omisso.
TT)–Em momento algum a sentença recorrida afirma que a liquidez da obrigação exequenda não está dependente de simples cálculo aritmético, aliás, como resulta à evidência demonstrado que está, pelo que se impunha ao Tribunal o dever de convidar a exequente a esclarecer ou aperfeiçoar os elementos que considera em falta ou que não fossem claros.
Termina as suas alegações pugnando pela revogação da sentença e sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos pela quantia peticionada.

O embargante/recorrido contra-alegou sustentando a manutenção da decisão recorrida.

Simultaneamente, o embargante/recorrido interpôs recurso subordinado concluindo as suas alegações do seguinte modo:
a)-A Recorrente não demonstrou o direito a que se arroga, nomeadamente a existência do crédito reclamado e a sua correta liquidação;
b)-A obrigação reclamada pela Recorrente não se mostra assim certa, líquida e exigível pelo que têm de proceder os embargos apresentados pelo ora Recorrido;
c)-Também não há lugar ao convite da Embargada pelo Tribunal “a quo” para aperfeiçoar o requerimento executivo porque esta poderia tê-lo feito em sede de oposição aos embargos de executado;
d)-A Recorrente optou por não alegar factos ou juntar provas que demonstrassem a correta liquidação da quantia Exequenda e a liquidez do título executivo;
e)-Termos em que indeferindo-se, por não provado, o recurso apresentado pela Recorrente se fará a acostumada justiça;
f)-Caso se entenda que a decisão deve ser anulada e substituída por outra, deverá o Tribunal considerar procedente o presente recurso subordinado apresentado pelo ora Recorrido e, por efeito do mesmo, declarar-se a procedência dos embargos de executado;
g)-O ora Recorrido nunca subscreveu ou acordou com a Recorrente qualquer pacto de preenchimento da livrança;
h)-O Embargante também não autorizou a Caixa Geral de Depósitos, nem as cessionárias do crédito a preencher a livrança;
i)-A livrança dada execução pela Recorrente é uma assim letra incompleta porque não preenche os requisitos exigidos pelo art.º 75º números 1, 2 e 3 da L.U.L.L. porque não tinha a “promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada”, “a época do pagamento”, “a indicação do lugar em que se deve efetuar o pagamento” e encontra-se desacompanhada do referido pacto de preenchimento;
j)-A livrança dada a execução é assim inválida nos termos do art.º 76º da L.U.L.L. e deverá considerar-se o título executivo nulo;
k)-Se assim não se entender, terá que se considerar o título dado a execução como ineficaz nos termos do art.º 76º da L.U.L.L.
l)-O título dado a execução tendo sido abusivamente preenchido pela Recorrente, apondo-lhe valores e menções que não tinham sido previamente acordadas é também nulo;
m)-Deverá assim este Tribunal declarar a nulidade ou a ineficácia do título dado a execução pela Recorrente e determinar procedentes os embargos de Executado e a consequente extinção da execução por falta de título executivo;
n)-Andou mal a sentença recorrida por não ter declarada a invalidade e a ineficácia do título dado à execução, pelo que deverá ser anulada, nessa parte, e substituída por outra que declare a nulidade e invalidade do título dado à execução;
o)-Dado o carácter de execução universal do processo de insolvência e que acarreta o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva, estava a credora legitimada, em condições, de preencher as livranças que tinha em seu poder;
p)-Com a declaração de insolvência do devedor principal, a dívida garantida pelo título cambiário - Livrança - tornou-se imediatamente exigível;
q)-A Recorrente encontrava-se legitimada e obrigada ao preenchimento da livrança incompleta ou em branco pelo valor em dívida, valor esse que, como é natural se fixou no momento do vencimento da obrigação, constituindo-se assim a obrigação cambiária;
r)-A Caixa Geral de Depósitos só preencheu a livrança quando estavam decorridos mais de 5 anos sobre o vencimento da obrigação;
s)-O direito cartular da Recorrente aquando do preenchimento da livrança e da interpelação do Embargante encontrava-se assim prescrito, atento o disposto no artigo 70.° ex vi artigo 77° da L.U.L.L.
t)-Perante o exposto, deverá reconhecer-se a prescrição do direito cambiário invocado pela Recorrente e da livrança dada a execução;
u)-A inércia no exercício de tal direito também é censurável, porque contrária aos ditames da boa-fé e à proteção legal conferida pelo legislador, atento o disposto no artigo 762.° n.º 2 do Código Civil;
v)-O comportamento da credora consubstancia um abuso de direito tal como se encontra consagrado no art.º 334º do C. Civil porque se destina a afastar a aplicação do prazo de prescrição de 3 anos previsto no art.º 70º, nº 1, aplicável por remissão do art.º 77º ambos da L.U.L.L.
w)-Pelo que deverá também declarar-se a prescrição da livrança dada a Execução pela Recorrente anulando-se a decisão recorrida nessa parte;
x)-Mesmo que se entenda que a decisão recorrida deva ser anulada por se considerar a obrigação certa, líquida e exigível, deverá declarar-se a procedência dos embargos de executado declarando-se a nulidade ou a ineficácia da livrança dada à execução, a exceção material de preenchimento abusivo do título e sua prescrição.

Sustenta a improcedência do recurso interposto pela embargante, ou, assim se não entendendo, pela procedência do recurso subordinado e procedência dos embargos de executado.

Em 22 de Outubro de 2021 foi proferido despacho de admissão do recurso, considerando-o tempestivo, por ter sido comprovado o pagamento da respectiva multa (cf. Ref. Elect. 133458441).
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II–OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.

É sabido que tendo ambas as partes ficado vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, caso em que o recurso pode ser independente ou subordinado – cf. art. 633º, n.º 1 do CPC.

O recurso independente é aquele que é proposto em primeiro lugar e segue um curso próprio e autónomo, independentemente da posição que venha a ser assumida pela parte contrária. O recurso subordinado ou dependente é aquele que é interposto depois da admissão do recurso principal, possuindo uma existência subsidiária da do recurso independente ou principal, já que apenas subsistirá enquanto este se mantiver – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pp. 423-424.

Tal justifica-se porque o recorrente (subordinado), inicialmente conformado com a decisão, confrontado com a interposição do recurso pela contraparte, deve poder interpor recurso quanto à parte da decisão que lhe tenha sido desfavorável, prevenindo assim a possibilidade de o recorrente principal poder ver alterado em desfavor do recorrente subordinado a decisão recorrida.

Note-se que a dependência do recurso subordinado em relação ao recurso principal situa-se ao nível do procedimento e aspectos formais, pois que apreciado o objecto do recurso principal, julgando-o procedente ou improcedente, o tribunal de recurso deve apreciar também o recurso subordinado. Ou seja, a circunstância de ser negado provimento ao recurso principal não obsta ao conhecimento do recurso subordinado.

Assim, como refere António Abrantes Geraldes, in op. cit., pp. 87-88:
“Ultrapassados os requisitos de ordem formal relacionados com a admissibilidade ou com a tramitação do recurso, o tribunal ad quem confrontar-se-á, no momento da decisão, com ambas as pretensões recursórias, sem que o resultado decretado quanto a uma influa necessariamente no sucesso da outra.
Por exemplo, julgado improcedente o recurso principal, por razões de mérito ligadas à sua sustentação, nada obsta a que seja julgado procedente o recurso subordinado, alcançando o respectivo interessado, deste modo, um efeito que, por sua exclusiva iniciativa, não obteria. Por outro lado, assegurada a cognoscibilidade do objecto de qualquer dos recursos, cumprirá ao Tribunal Superior averiguar por que ordem os mesmos devem ser conhecidos, pois que o resultado de qualquer deles poderá repercutir-se no outro independentemente da sua natureza subordinada ou autónoma.
Por isso, se o recurso subordinado se fundar numa excepção dilatória determinativa da absolvição da instância, terá naturalmente, em regra, prioridade sobre o recurso principal que porventura incida sobre o mérito da causa. […]
Na mesma linha, se improceder o recurso principal tendo por objecto o decidido quanto ao pedido do autor, nada obsta a que se julgue procedente o recurso subordinado que tenha por objecto o decidido quanto ao pedido reconvencional.”
Daqui decorre que, desde que se conheça do mérito do recurso principal, ainda que este improceda, deve conhecer-se do recurso subordinado – cf. no mesmo sentido, José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, pág. 27 – “o recurso subordinado só deve ser apreciado pelo tribunal se este conhecer do objecto do recurso principal, julgue-o procedente ou improcedente”, apud acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26 de Maio de 2010, processo n.º 09/10[2]; Francisco Ferreira de Almeida, op. cit., pág. 426; Luís Filipe Espírito Santo, Recursos Civis - O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Actividade Judiciária, pág. 155 – “Passada a fase formal da admissibilidade do recurso principal e do recurso subordinado, o tribunal superior aprecia-os com total autonomia e sem a menor influência recíproca. Ou seja, sendo apreciado o recurso principal (e independentemente da sua sorte), o tribunal superior tomará conhecimento do recurso subordinado (sem qualquer especialidade de regime relativamente ao recurso independente). Ainda que o recurso principal venha a ser julgado improcedente, nada obsta ao conhecimento e inteira procedência do recurso subordinado.”

Assegurada a inexistência de obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso principal deduzido pela embargada, cumpre determinar qual a precedência que deve ser observada no conhecimento do objecto dos recursos (independente e subordinado).

Assim, dado que no recurso independente está em causa, essencialmente, a liquidez da obrigação exequenda e considerando que esta integra, juntamente com a certeza e exigibilidade, os pressupostos processuais específicos da obrigação exequenda (cf. art.º 713º do CPC), conduzindo a sua falta, se não sanada ou suprida, à inexequibilidade do título executivo, o que dá lugar à recusa do requerimento executivo ou ao seu indeferimento, com a consequente extinção da acção executiva, iniciar-se-á o conhecimento do objecto do recurso com a apreciação dessa questão e, subsequentemente, apreciar-se-ão as suscitadas validade do título e prescrição da acção cambiária que, a serem procedentes, conduzem à absolvição do pedido exequendo – cf. art.ºs 724º, n.º 1, h), 725º, n.º 1, c), 726º, n.º 4, 729º, e), 731º e 732º, n.º 6 do CPC.

Assim, perante as conclusões dos recursos, principal e subordinado, interpostos, respectivamente, pela embargada e pelo embargante, há que apreciar as seguintes questões:
a)-Da nulidade da decisão;
b)-Da liquidez da obrigação exequenda;
c)-Da existência de título executivo válido, do preenchimento abusivo da livrança e da prescrição do direito de acção do portador da livrança.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III-FUNDAMENTAÇÃO

3.1.–FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1.- Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia e ininteligibilidade
A recorrente principal suscitou nas suas alegações a nulidade da decisão por excesso de pronúncia com fundamento no facto de o embargante não ter invocado na petição inicial que não existiu incumprimento do contrato ou que este não foi resolvido, pelo que não podia o tribunal consignar, como fez, que a exequente não alegou o incumprimento e/ou a resolução do contrato subjacente à emissão e preenchimento do título, porque tal questão não foi suscitada pelas partes.
Nas contra-alegações apresentadas o executado/recorrido não se pronunciou sobre tal nulidade.
Aquando da admissão do recurso o senhor juiz a quo tomou posição sobre a questão nos seguintes termos (cf. Ref. Elect. 133458441):
“Entendeu-se no despacho recorrido que nem do requerimento executivo nem da contestação resultam especificados os componentes incluídos nas quantias inscritas na livrança, de forma a espelhar, parcela a parcela, os valores relativos ao capital, juros remuneratórios, comissões, juros de mora, eventuais penalizações, imposto de selo, etc., sendo que o exequente teve, in casu, oportunidade de alegar os concretos factos e de juntar os documentos necessários que, juntamente com o título executivo, permitiriam alcançar o valor em dívida.
Não o tendo feito, entendeu o Tribunal não ser possível apurar o valor da dívida dos executados/opoentes, porquanto os autos são omissos quanto a elementos essenciais para a respetiva determinação, pois, como atrás se deixou dito, a exequente, nem no requerimento executivo nem na contestação à oposição, alegou os factos que permitiriam ao executado e ao Tribunal alcançar a natureza do valor peticionado, quer no respeita ao valor inscrito nas livranças e consequentemente no que respeita ao valor da obrigação exequenda, embora, quanto a esta última, também não resulte demonstrado em que medida foi imputado o valor do produto da venda dos imóveis no âmbito do processo de insolvência (a capital e a que valor de capital; a juros e a que valor de juros; a comissões; a penalizações; etc.).
Também se entendeu no despacho recorrido que não haveria lugar, nestes autos, a prolação de despacho a convidar o exequente a aperfeiçoar do requerimento executivo, uma vez que o exequente optou por dar à execução duas livranças apoiando-se nas características da literalidade e abstração que lhe são próprias, bem sabendo que não resultava de um dos títulos o valor da obrigação exequenda.
Confrontado com a oposição deduzida pelos executados/opoentes manteve a intenção de se fazer valer da natureza do título sem demonstrar a forma como alcançou os valores inscritos nas livranças bem como sem demonstrar como alcançou o valor da obrigação exequenda no que à livrança dada à execução concerne.
Em face do que se deixou exposto na decisão recorrida entende o Tribunal que não se verifica qualquer das nulidades apontadas.
Por um lado, o facto de que não resulta, desde logo, alegado o incumprimento e/ou a resolução dos contratos subjacentes à emissão e preenchimento dos títulos constitui mera constatação do Tribunal após análise das peças processuais apresentadas pelo exequente que em nada contraria o eventual ou efetivo incumprimento, nomeadamente por confissão da contraparte. Uma coisa é haver incumprimento outra é o mesmo estar concretamente alegado, sendo certo que a questão suscitada em nada altera a decisão proferida por este Tribunal.
Por outro lado, a decisão mostra-se clara quanto aos cálculos que, no entender do Tribunal, deveriam constar concretizados na alegação e operação de liquidação da obrigação exequenda do requerimento executivo.
Por fim, tendo o recorrente alegado que não se alcança que cálculos ou explicações, para além dos apresentados, parece-nos que qualquer despacho de aperfeiçoamento ter-se-ia mostrado inútil. No entanto, a falta de convite ao aperfeiçoamento foi uma opção clara do Tribunal como, aliás, resulta expresso da decisão sindicada, por entender que, in casu, o mesmo não tinha lugar.”

As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do Código de Processo Civil.

Dispõe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a)- Não contenha a assinatura do juiz;
b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.
No que tange ao excesso de pronúncia, tal ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objecto do litígio.

Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2012, processo n.º 469/11.8TJPRT.P1.S1, só há excesso de pronúncia para efeito de nulidade da sentença, se o tribunal conheceu de pedidos, causas de pedir ou excepções de que não podia tomar conhecimento, ou seja, à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada.
Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões suscitadas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados por estas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade.
A discordância da parte relativamente à subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou à decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.
A doutrina e a jurisprudência têm entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objecto questões a decidir na sentença, e não propriamente factos ou argumentos jurídicos, conforme acima já se deixou explanado – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015, processo n.º 185/14.9TBRGR.L1-2 – “A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.”

A simples leitura da decisão recorrida permite constatar que a menção em referência, atinente à afirmada falta de invocação do incumprimento do contrato ou sua resolução teve lugar no contexto da apreciação de questão expressamente suscitada pelo embargante, ou seja, a inexequibilidade do título por falta de liquidez da obrigação, o que, depreende-se, foi utilizado para reforçar o entendimento de que o valor inscrito na livrança não bastava para demonstrar o valor do crédito exequendo, por estar em causa o incumprimento do contrato de mútuo e as vicissitudes posteriores à declaração de insolvência da sociedade subscritora, referindo-se, entre parêntesis, que, não obstante isso, tal incumprimento não foi alegado.

Nessa senda, o tribunal concluiu que a liquidação da obrigação exequenda depende de elementos exteriores ao próprio título, conforme se retira da seguinte passagem da decisão (folhas 21-22):
“Ora, a forma como a exequente configura a presente execução e liquida a obrigação exequenda remete-nos necessariamente para a relação subjacente à emissão e preenchimento da livrança dada à execução enquanto garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquela (relação subjacente). Ou seja, a definição do crédito exequendo encontra-se dependente das obrigações emergentes do contrato e respetivo (in)cumprimento, assim como das respetivas vicissitudes.
O que está verdadeiramente em causa será o incumprimento do contrato celebrado em 2006 e objeto de alteração em 2011 (dizemo-lo, nós, porquanto o incumprimento por parte dos executados não vem alegado em momento algum do requerimento executivo), os efeitos/consequências desse incumprimento, bem assim as vicissitudes ocorridas posteriormente, nomeadamente no âmbito do processo de insolvência da sociedade devedora, no qual o executado/opoente não é, sequer, parte.
Pois, o executado/opoente não só coloca em crise a quantia titulada pela livrança dada à execução, como impugna a liquidação da obrigação exequenda, sendo que esta não decorre, sequer, do valor inscrito na dita livrança que, como vimos, está dependente de elementos exteriores ao próprio título.”
E mais adiante, a folhas 26:
“No caso dos autos, como vimos, nem do requerimento executivo nem da contestação resultam especificados os componentes incluídos na quantia inscrita na livrança, de forma a espelhar, parcela a parcela, os valores relativos ao capital, juros remuneratórios, comissões, juros de mora, eventuais penalizações, imposto de selo, etc. Não resulta, desde logo, alegado o incumprimento e/ou a resolução do contrato subjacente à emissão e preenchimento do título.
O exequente teve, in casu, oportunidade de alegar os concretos factos e de juntar os documentos necessários que, juntamente com o título executivo, permitiriam alcançar o valor em dívida.
Não o tendo feito, não é possível apurar o valor da dívida do executado/opoente, porquanto os autos são omissos quanto a elementos essenciais para a respetiva determinação, pois, como atrás se deixou dito, a exequente, nem no requerimento executivo nem na contestação à oposição, alegou os factos que permitiriam ao executado e ao Tribunal alcançar a natureza do valor peticionado […]”.

Daqui se retira que a menção à falta de alegação do incumprimento do contrato ou sua resolução surge como argumento adicional para justificar a conclusão de que os dados aduzidos no requerimento executivo e na contestação aos embargos de executado se revelavam insuficientes para determinar o valor em dívida, e não como um novo fundamento ou invocação de uma nova excepção para sustentar o não prosseguimento da execução.

Não ocorre, pois, a apontada nulidade por excesso de pronúncia.
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A apelante invoca ainda a nulidade da decisão por ininteligibilidade, o que faz referindo que, no parâmetro do requerimento executivo “Liquidação da obrigação”, efectuou todos os cálculos e indicou os valores em causa, de modo a determinar a quantia exequenda, identificando o valor dos juros vencidos e o capital e, bem assim, o valor da adjudicação ocorrida no processo de insolvência, pelo que o tribunal recorrido podia discordar dos cálculos indicados ou suscitar questões sobre estes, mas não podia dizer que a exequente não indicou de que modo alcançou o valor peticionado, o que, aliás, está em contradição com o facto de o executado/embargado ter, ele próprio, invocado erro nos cálculos, o que significa que o cálculo existe, pelo que não podia a sentença considerar que não foi demonstrado como se alcançou o valor da obrigação exequenda.

“A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.” – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 738.
“A obscuridade da sentença é a imperfeição desta que se traduz na sua ininteligibilidade; a ambiguidade verifica-se quando à decisão, no passo considerado, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes.” - cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, volume III, 3ª edição, 2001, pp. 196 e 197; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2012, processo n.º 95/08.9EACBR.C1.S1.
Cumpre notar que o haver-se decidido bem ou mal, de forma correcta ou incorrecta, em sentido contrário ao preconizado pelo recorrente, é algo inteiramente distinto da existência de obscuridade ou ambiguidade da decisão.
Conforme referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3], “No regime actual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.”

Ora, a própria argumentação recursória da apelante revela, desde logo, que não se está perante uma situação de ininteligibilidade da decisão, mas de pura discordância quanto ao resultado alcançado.
Com efeito, a recorrente entendeu cabalmente qual o sentido da decisão no que à questão da falta de liquidação da obrigação diz respeito, estando, contudo, convicta que tal decisão é incorrecta por, conforme argumenta, ao contrário do que ali se entendeu, ter procedido aos cálculos que se imponham para determinação do pedido exequendo, claramente espelhado no requerimento executivo, não vislumbrando que outros cálculos deveria ter efectuado.
Por outro lado, a ambiguidade que conduz à ininteligibilidade da decisão deve emergir dela própria e não, como pretende a recorrente, no confronto com a tomada de posição da contraparte nos respectivos articulados.
Se o embargante/recorrido se pronunciou sobre os cálculos e considerou que estes existiam, tendo apenas deles discordado, tal não significa que a decisão do tribunal, ao considerar que a liquidação da obrigação não apresenta a especificação dos componentes que integram a quantia inscrita na livrança e, bem assim, o valor em dívida, seja ambígua, por passível de lhe serem atribuídos dois sentidos diferentes, mas apenas que concluiu de forma distinta. Ao fazê-lo, o tribunal pode ter incorrido em erro de julgamento, mas não emitiu uma decisão ininteligível.
Não ocorre, assim, a invocada nulidade da sentença.
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3.2.2.- Da Liquidez da obrigação exequenda
A embargada/recorrente insurge-se contra a decisão recorrida na parte em que esta considerou que a obrigação exequenda não se mostra certa e líquida, sendo inexigível, o que fez nos seguintes termos:
“O documento particular dado à execução constitui, formalmente, título executivo à luz do disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do CPC, assim como já constituía aquando da respetiva emissão (22.12.2006), à luz do revogado artigo 46.º do CPC.
O título executivo é o documento que pode segundo a lei, servir de base à execução de uma prestação, já que ele oferece a demonstração legalmente bastante do direito correspondente (cfr. Castro Mendes, Lições de Direito Civil, 1969, pág. 143).
Do ponto de vista formal, o título é o documento em si próprio e, do ponto de vista material, é a demonstração legal do direito a uma prestação (cfr. o mesmo Autor, A causa de Pedir na Acção Executiva – Rev. Fac. Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVIII, págs. 189 e segs).
O Processo Executivo visa realizar coercivamente um direito já afirmado.
Como “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva” – artº. 10º, nº 5 do CPC – facilmente se percebe que aquela afirmação deve necessariamente constar do título executivo.
E também só essa prévia afirmação do direito permitirá entender o comando do art. 53º, nº 1 do mesmo Código: “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figura como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tinha a posição de devedor”.
Não se questiona, assim, que “a acção executiva pressupõe a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui na acção executiva o seu ponto de partida” – Prof. Lebre de Freitas, “A Acção Executiva, Depois da reforma da reforma”, 5.ª Ed., Coimbra Editora, pág. 20.
Vale isto por dizer que a pretensão material está “acertada”, no sentido de sobre ela não dever ter lugar mais nenhuma controvérsia no processo executivo. E é porque o título executivo contém esse acertamento que dele se diz constituir a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da acção executiva» (art.º 10.º-5), isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade activa e passiva para ela” e, sem prejuízo de poder ter que ser complementado (art.ºs 714.º a 716.º), em face dele se verificando se a obrigação é certa, líquida e exigível (art.º 713.º) – Prof. e ob. citados, págs. 35/36.
O título é condição necessária e imprescindível à instauração da acção executiva não oferece reserva, uma vez que, efectivamente, não há execução sem título. Já quanto à configuração do título como condição suficiente da acção executiva, trata-se de afirmação sem valor absoluto, ainda quando interpretada no sentido de dispensar “qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere” – Anselmo de Castro, “A acção executiva singular, comum e especial”, Coimbra 1973, pág. 14 citado por Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 71.
Com efeito, se daqui decorreria, parece, a impossibilidade de o juiz não poder conhecer oficiosamente da desconformidade entre o título e o direito que se pretende executar, tal afirmação sofre ampla excepção, nomeadamente no que se reporta ao título negocial sob apreciação.
Na verdade, a desconformidade manifesta entre o título e o direito que se pretende fazer valer e, bem assim, a ocorrência de factos modificativos ou extintivos posteriores à execução, devem ser conhecidas pelo juiz “desde que a sua causa seja, também ela, de conhecimento oficioso e resulte do próprio título, do requerimento inicial de execução, da acção de oposição à execução ou de facto notório ou conhecido pelo juiz em virtude do exercício das suas funções” (Prof. Lebre de Freitas, na obra que vimos seguindo, a pás. 73.).
Tendo presente tudo quanto se deixou referido, assentemos em que a suficiência do título traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida. Numa outra formulação, o título executivo há de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda; trata-se do documento capaz de, por si só, revelar, com um grau de razoável segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, isto sem prejuízo da possibilidade do executado fazer prova de que, apesar do título, a dívida não existe -ou porque a obrigação, apesar da aparência, nunca se chegou a constituir, ou porque se extinguiu ou modificou, assim contrariando a aparência do direito que resulta do título.
Por assim ser, o assim denominado “princípio da auto-suficiência do título executivo obriga a alguma cautela e ponderação na análise de quais os documentos particulares, assinados pelo devedor, que são susceptíveis de preencher os requisitos da al. c) do n.º 1 do preceito -parecendo indispensável que- devendo a constituição ou reconhecimento da dívida exequenda resultar directamente do título, tal documento -podendo ser complexo- não pode resultar de uma aleatória conjugação de diversos documentos particulares” (Assim advertia já o Ex.mº Sr. Conselheiro Lopes do Rego no seu Comentários…, vol. I, pág. 83). Isto se diz sem prejuízo da possibilidade de o exequente fazer prova complementar dos pressupostos processuais específicos de exequibilidade da obrigação, nos termos consagrados no art.º 804.º (atual 715.º), disposição com alcance geral, conforme sem dissêndio [sic] vem sendo reconhecido (Prof. Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 94 e na jurisprudência). Todavia, sublinha-se, o que esta actividade probatória complementar não pode suprir é a ausência no próprio título da demonstração da obrigação exequenda.
Esta, por seu lado, deve obedecer a determinados requisitos.
Com efeito, a ação executiva tem como principal objetivo obter o cumprimento coercivo de uma obrigação em falta. No entanto não basta a existência dessa obrigação para que a ação se inicie. Há alguns requisitos inerentes à mesma que tem de estar presentes para que tudo corra de acordo com a lei.
Nos termos do artigo 713.º do CPC, a execução principia com as diligências, requeridas pelo exequente, que se tornem necessárias e se destinem a tornar a obrigação certa, líquida e exigível caso não o seja em face do título executivo.
Em termos gerais, estes três requisitos constituem pressupostos da ação executiva.
No entanto, José Lebre de Freitas sustenta que a obrigação exequenda não constitui pressuposto da ação uma vez que o próprio título executivo já prova a existência da obrigação – A Ação Executiva – À Luz do Código de Processo Civil de 2013. 6ª ed. Coimbra Editora S.A., 2014, p.97.

Vejamos.

A obrigação considera-se certa quando está concretamente determinada em relação à sua qualidade e se diferencia de todas as outras obrigações.
O objeto da prestação deve estar “perfeitamente delimitado ou individualizado de modo a que se saiba precisamente o que se deve” – GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2016, p.134.

De acordo com o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Julho de 1997, “certeza da obrigação constitui requisito de exequibilidade intrínseca da pretensão e também do título e como tal, essa obrigação deve encontrar-se qualitativamente determinada no momento da sua constituição de forma a diferenciar-se das outras”.

A liquidez da obrigação traduz-se no facto de a obrigação se encontrar determinada em relação à sua quantidade (GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2016, p.144, utiliza a expressão “quantum debeatur”de modo a definir “liquidez”como uma quantidade facilmente determinável através de uma operação de simples cálculo aritmético baseado em elementos constantes do título executivo apresentado).

No entanto, a liquidez enquadra-se também nas situações em que a obrigação consegue ser quantificada e determinável através de simples cálculo aritmético com base em elementos constantes do título executivo apresentado.
A liquidação da obrigação pode estar ou não dependente de uma operação que a lei denominou de simples cálculo aritmético e, segundo o artigo 716.º do CPC, se estiver em questão uma obrigação cuja liquidação dependa de factos jurídicos que estão bem assentes no título executivo, não sendo necessário averiguar mais factos, o exequente poderá expor no requerimento executivo detalhadamente os valores pertencentes à obrigação e deverá apresentar um pedido líquido.
No caso em apreço, como vimos, o exequente deu à execução uma livrança.
A livrança é um título de crédito pelo qual o devedor promete pagar ao credor uma determinada quantia pecuniária mediante a aposição no documento da seguinte formula “Por esta livrança, pagarei a V.ª Ex.ª ou à sua ordem…” – GONÇALVES, Marco Carvalho – Lições de Processo Civil Executivo. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2016, p.80 e ANTUNES, José A. Engrácia – Os Títulos de Crédito – Uma Introdução. Coimbra Editora, 2012.
As livranças encontram-se legalmente previstas na Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças mais precisamente nos artigos 75.º a 78.º e segundo o artigo 77.º aplicam-se-lhes as disposições relativas às letras na parte em que não sejam contrárias a sua natureza.
Relativamente aos requisitos das livranças, têm de ser igualmente cumpridos escrupulosamente de modo a que a sua validade formal não seja afetada e possa produzir os seus efeitos naturalmente.
Em observância do artigo 75.º da LULL, as livranças têm de respeitar os seguintes requisitos: (i) A palavra livrança, no texto do título; (ii) A promessa pura e simples do pagamento de uma quantia determinada; (iii) A época do pagamento; (iv) A indicação do lugar onde se vai efetuar o pagamento; (v) O nome da pessoa a quem se vai efetuar o pagamento; (vi) A indicação da data e lugar de passagem da livrança; (vii) A assinatura do subscritor
Em suma, a livrança institui uma relação cartular entre dois sujeitos nomeadamente o subscritor e o tomador e é normalmente utilizada como instrumento de garantia. O seu regime jurídico aproxima-se ao regime jurídico das letras de câmbio com a exceção de situações mais particulares que digam respeito à obrigação cartular.
Como tem vindo a entender a jurisprudência dos tribunais superiores, “uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai” – Ac. RE, de 28.6.2017, relatado por Isabel Peixoto Imaginário (in www.dgsi.pt).
“Porque a obrigação cambiária é uma obrigação literal e abstracta, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respectivo pagamento não carece de invocar no requerimento executivo a sua causa (a relação subjacente ou fundamental), podendo limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação, correspondendo esta obrigação cambiária à causa de pedir da acção executiva onde se exige o seu cumprimento” – Ac. RG, de 12.04.2018, relatado por Alcides Rodrigues (in www.dgsi.pt).

Por esta razão se afirma, no Ac. RE, de 25.01.2018, relatado por Elisabete Valente, que:
I- Na acção executiva, não tem cabimento falar em causa de pedir, pelo menos com o sentido em que é utilizado na acção declarativa, quando se trata de executar títulos que têm como características da incorporação, literalidade, autonomia e abstração, sendo desnecessária a alegação de qualquer relação extra-cartular ou causa de pedir.
II- Embora actualmente (com as alterações legais ao elenco dos títulos executivos) se defenda que a causa de pedir na ação executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo uma livrança, o instrumento documental privilegiado da sua demonstração, não tem que haver alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.
III- Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.”

Porém, no caso em apreço, a livrança dada à execução não vale, por si só, como título executivo, ou seja, não se mostra autossuficiente para demonstrar o valor da obrigação exequenda. Note-se que a livrança tem inscrito o valor de €1.488.151,15 e o pedido exequendo é de €951.18,85.

Daí que o exequente tenha, in casu, invocado a relação subjacente à emissão da dita livrança:
“(…)
9– Por contrato de mútuo com hipoteca e fiança, celebrado em 2 de Dezembro de 2006 – cfr. Documento que ora se junta como n.º 3 - a CGD, S.A. concedeu à E, um empréstimo sob a forma de mútuo no montante de €800.000 (oitocentos mil euros).
10– Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas, a mutuária constituiu hipoteca sobre vários bens imóveis, ali melhor identificados e, que infra igualmente se discriminarão.
11– Ainda para garantia das obrigações assumidas, os aqui executados, B, C e D constituíram-se fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido, em caso de incumprimento do referido contrato.
12– Ainda para garantia das referidas responsabilidades, a mutuária e os referidos fiadores, entregaram também uma livrança subscrita pela sociedade devedora e avalizada por aqueles.
13– O referido contrato veio a ser alterado por acordo entre as partes, celebrado em Lisboa de 6 de Outubro de 2011, nomeadamente quanto ao prazo, taxa de juro, TAE, Pagamento dos juro e capital, incumprimento, tendo ainda sido aditado, em conformidade.
14– Sucede, porém, que a sociedade mutuária veio a ser declarada insolvente no âmbito do processo n.º 18267/12.0T2SNT, que corre os seus termos no Juiz 3 do Juízo do Comércio de Sintra.
15– Em face da referida declaração de insolvência veio a ser determinado o prosseguimento dos autos para liquidação dos bens apreendidos, entre os quais os imóveis sobre os quais se encontrava registada hipoteca a favor da CGD, S.A.
16– Os referidos imóveis vieram assim a ser vendidos pelos seguintes montantes – cfr. Escritura de compra e venda celebrada que ora se junta como documento n.º 5:
i)- Prédio rústico denominado “M... B...”, sito em Limites de A_____, freguesia de S_____ (São ... de ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de S____ sob o número 2..0 da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 6... secção T, da União das Freguesias de S_____ (Santa ... e São ..., São ... e São ... de ...): 170.510,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (17.051,00€), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
ii)- Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado em A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sintra 2, sob o número 5..3 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..9: 67.677,00 €, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.767,70€), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
iii)-Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado em A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S____ 2, sob o número 5..3 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..0: 67.677,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.767,70 €), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
iv)- Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado na A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S____ 2, sob o número 5..5 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..1: 67.677,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.767,70 €), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
v)- Prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado na A_____, descrito na Conservatória do Registo Predial de S_____ 2, sob o número 5..6 da freguesia de Rio de ..., inscrito na matriz da freguesia de Rio de ... sob o artigo 10..1: 68.979,00€, tendo sido depositado 10% do valor oferecido (6.897,90 €), para pagamento das custas e despesas da Massa Insolvente;
vi)-Prédio urbano denominado Lote 1, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de S____ sob o número 5..9, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..5 – valor de €70.125, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €7.012,5;
vii)-Prédio urbano denominado Lote 2, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de S____ sob o número 5..0, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..6 – valor de €68.000, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €6.800;
viii)-Prédio urbano denominado Lote 3, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de S____ sob o número 5..1, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..7 – valor de €68.000, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €6.800;
ix)-Prédio urbano denominado Lote 4, sito em A_____, freguesia de Rio de ..., descrito na 2ª Conservatório do Registo Predial de S_____ sob o número 5..2, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10..8 – valor de €70.125, tendo sido depositada para pagamento das custas o montante de €7.012,5;
17– A livrança-caução, garante da operação melhor identificada supra, veio a ser preenchida antes da venda, pelo valor em dívida, no montante de €1.488.151,15, pelo que, actualmente, o valor em dívida é distinto, conforme se demonstrará no apartado da “liquidação da obrigação”.

Ora, a forma como a exequente configura a presente execução e liquida a obrigação exequenda remete-nos necessariamente para a relação subjacente à emissão e preenchimento da livrança dada à execução enquanto garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquela (relação subjacente). Ou seja, a definição do crédito exequendo encontra-se dependente das obrigações emergentes do contrato e respetivo (in)cumprimento, assim como das respetivas vicissitudes.

O que está verdadeiramente em causa será o incumprimento do contrato celebrado em 2006 e objeto de alteração em 2011 (dizemo-lo, nós, porquanto o incumprimento por parte dos executados não vem alegado em momento algum do requerimento executivo), os efeitos/consequências desse incumprimento, bem assim as vicissitudes ocorridas posteriormente, nomeadamente no âmbito do processo de insolvência da sociedade devedora, no qual o executado/opoente não é, sequer, parte.

Pois, o executado/opoente não só coloca em crise a quantia titulada pela livrança dada à execução, como impugna a liquidação da obrigação exequenda, sendo que esta não decorre, sequer, do valor inscrito na dita livrança que, como vimos, está dependente de elementos exteriores ao próprio título.

Estando as partes no âmbito das relações imediatas – é o próprio exequente quem alega que os executados intervieram no contrato na qualidade de fiadores, o que, aliás, decorre do teor do contrato e respetiva alteração juntos com o requerimento executivo – podia, como pode, o executado/opoente impugnar a liquidação da obrigação nos termos em que é apresentada pelo exequente.

Estando a liquidação da obrigação exequenda dependente de elementos exteriores ao próprio título, deixa, a referida livrança, de valer, por si só, para efeitos de demonstração da obrigação exequenda que, por isso, não se presume.

Temos, assim, duas questões a resolver.

A primeira prende-se com a liquidação da obrigação constante da livrança dada à execução; a segunda prende-se com a liquidação da obrigação exequenda. Pois, uma não sobrevive sem a outra.

Ora, o requerimento executivo é completamente omisso quanto à forma como foi alcançado o valor inscrito na livrança dada à execução. Confrontada com a impugnação da liquidação da obrigação exequenda, a exequente limita-se a alegar, na contestação, o seguinte:
“(…)
III – Da alegada iliquidez da obrigação exequenda
57º- Vem ainda o embargante alegar que a exequente não cuidou de explicar o cálculo do valor peticionado, nem assim inscrito na livrança.
58º- Quanto a esta questão importa antes de mais referir que a livrança constitui uma promessa de pagamento.
59º- Com efeito, o aval é o negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar e por função a garantia desse pagamento.
60º- O aval é um valor de "per si" autónomo da realidade que lhe subjaz.
61º-Para Oliveira Ascensão “o aval funciona como uma obrigação autónoma e não como garantia, dado que pelo aval o avalista contrai uma responsabilidade (jurídica) distinta da do avalizado, não estando, sequer, dependente da validade da obrigação garantida "nem mesmo da obrigação do afiançado".
62º- Não obstante e, para que dúvidas não restem, remete-se para a nota de débito já junta como doc. N.º 1.
63º- Como o opoente bem sabe e não pode ignorar, a E, contraiu vários empréstimos junto da CGD, S.A., às quais foram igualmente prestadas fianças e/ou avales, pelo aqui embargante.
64º- As referidas operações encontravam-se garantidas por várias hipotecas sobre vários imóveis, algumas em segundo grau.
65º- Com efeito e, conforme também já por demais explicado no requerimento executivo, o empréstimo contraído, ao qual corresponde a operação PT 003..............91, encontrava-se garantido por hipoteca voluntária sobre os 8 bens imóveis, ali melhor identificados.
66º- Pelo que, apenas o montante obtido com a venda de tais imóveis pôde ser abatido ao valor em dívida por conta da aludida responsabilidade.
67º- Valor de venda esse que cifrou-se em €718.770, valor este, que deverá ser deduzido dos 10% depositados no processo para pagamento das custas judiciais, e despesas e honorários do I. Sr. AI, no montante de €71.877 (cfr. Apartado “liquidação da obrigação” do requerimento executivo).
68º- Pelo que, o valor de €646.893 que o executado questiona, corresponde ao efectivo valor recebido pela exequente por conta da venda dos bens imóveis já melhor identificados no requerimento executivo. 69º Inexiste assim qualquer dos vícios assacados pelo embargante, já que a liquidação da obrigação resulta inequívoca do explanado no requerimento executivo, ao contrário do que aquele pretende fazer crer.”

Encontrando-nos no domínio das relações imediatas (o executado interveio na celebração do contrato e respetiva alteração), ao executado é dada toda a liberdade para discutir a relação subjacente. Note-se que, não obstante a ocorrência da cessão do crédito em causa nestes autos, os devedores cedidos podem impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as exceções a que teria podido recorrer face ao cedente, uma vez que “a lei impede que a modificação da obrigação quanto ao credor prejudique ‘a posteriori’ os meios de defesa de que o devedor podia ter lançado mão, sempre considerando este como um terceiro em relação ao contrato de cessão e, por isso, não poder ver a sua situação agravada pela transferência do direito de crédito”.–ver, neste sentido, Ac. STJ, de 04.07.2017, relatado por Sebastião Póvoas (in www.dgsi.pt).

Assim sendo, embora no caso de se socorrer de um título cambiário o exequente nada tivesse, em tese, que alegar no requerimento executivo para obter a satisfação do seu direito – e já vimos que até tinha, como teve –, a partir do momento em que os executados, em sede de embargos à execução, invocam a relação subjacente e o preenchimento abusivo da livrança, impugnando expressamente a dívida, o exequente tem o ónus de justificar o montante nela por si aposto, alegando discriminadamente os valores que a compõem, de modo a poder ser questionado pela contraparte e aferido pelo tribunal – Ac. RC, de 07.02.2017, relatado por Maria João Areias (in www.dgsi.pt).
Não sendo o título executivo uma sentença, o executado está perante o requerimento executivo na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente ação declarativa. Consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação àquela ação – pode alegar nos embargos matéria de impugnação e matéria de exceção (cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina 11ª ed., pág. 186)

Assim, no caso em apreço, o executado podia deduzir embargos de executado, invocando a inexistência de título executivo ou da obrigação exequenda, ou a sua extinção por qualquer meio, por via de impugnação ou de exceção perentória.
Uma vez assente que o executado/opoente pode aqui discutir a existência da obrigação reconhecida pelo título executivo e o montante que através dela se pretende cobrar, questão diferente passará por determinar, uma vez impugnada a existência ou o montante da obrigação exequenda, como se distribuiu pelas partes o ónus da prova: é sobre o executado que impende a demonstração de que a obrigação não existe, ou mantem-se de pé a regra geral de que é sobre o credor que recai a prova dos factos constitutivos do seu direito?
O título cambiário, tal como qualquer outro título executivo, faz presumir a existência da obrigação exequenda, sendo que, no caso, até nem faz.
A obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida, presunção que pode ser ilidida mediante embargos de executado, movidos com essa finalidade – José Lebre de Freitas, “A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 6ª ed., pág. 90.
Assim, a afirmação de que o título é condição necessária e suficiente da ação executiva tem o sentido de que, não só, não há execução sem título, como a sua existência dispensa “qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere” – Anselmo de Castro, “Ação Executiva Singular, Comum e Especial”, Coimbra Editora, 1977, pág. 14.
Como defende Lebre de Freitas, para além da eficácia própria do documento que o consubstancia, o título executivo constituiu base da presunção da existência (e titularidade) da obrigação exequenda e não apenas da existência do facto que a constituiu.
Assim sendo, sobre o executado/opoente impende a elisão da presunção de existência da obrigação estabelecida a partir do título executivo.
Os embargos de executado, assumindo o carater de uma contra ação, tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo ou da ação em que nele se baseia, quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo, cujo escopo é obstar ao prosseguimento da ação executiva mediante a eliminação, por via indireta, da eficácia do título executivo enquanto tal – Neste sentido, José Lebre de Freitas, A Ação Executiva (…), págs. 212 e 213. Rui Pinto fala em reconhecimento da atual inexistência do direito exequendo, ou da falta de um pressuposto, específico ou geral da ação executiva, aludindo à posição de vários acórdãos que defendem tratar-se de uma ação de simples apreciação negativa da obrigação exequenda, de um pressuposto processual ou de uma condição da execução – “Manual da Execução e do Despejo”, Coimbra Editora, pág. 396.
No caso de oposição de mérito à ação executiva, o pedido deduzido nos embargos de executado é de verificação da inexistência, total ou parcial, do título exequendo, configurando-se como uma ação de simples apreciação negativa – José Lebre de Freitas, “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil”, Coimbra Editora 2002, págs. 454, 456 e 457.

Nos embargos de executado (tal como nas ações de simples apreciação negativa), as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, e que se baseia em normas de direito substantivo, não se alteram (não se modificando pela diferente posição ocupada pelo credor e devedor nos autos - como autor ou réu, ou pelo executado/embargante e pelo exequente/embargado): o titular do direito continua sempre a ter de provar os factos que o constituem, enquanto o titular do dever correspondente tem o de provar os factos que impedem, modificam ou extinguem os efeitos dos primeiros (artigo 342º CC) – Cfr. José Lebre de Freitas, “A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, págs. 206 e 207, nota (31), e “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil”, pág. 458 e 459. Neste sentido, cfr. ainda, Acórdão do STJ de 09.02.2011, relatado por Lopes do Rego, e Acórdão do TRC de 28-06-2011, relatado por Teles Pereira, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Aparentemente em sentido contrário, Miguel Teixeira de Sousa, defendendo embora o não afastamento das regras gerais sobre a matéria, pronuncia-se no sentido de que cabe ao executado embargante a prova dos fundamentos alegados (artigo 342º, nº1, CC), dado que estes são factos constitutivos da oposição deduzida – “Acção Executiva Singular”, LEX Lisboa 1998, pág. 177.

Face à posição aqui assumida quanto à amplitude dos meios de defesa na execução baseada em título executivo diferente de sentença e quanto à distribuição do ónus da prova em embargos de executado, a dedução de embargos por parte deste, à execução que com base na livrança lhe é movida, coloca o executado, nesta sede, na exata posição em que estaria para se defender em sede de ação declarativa.

Ou seja, impugnando, o opoente, o montante aposto na livrança (v.g. por excessivo), é ao embargado/exequente que, em primeiro lugar, incumbe a alegação do modo como chegou a tal valor.

No caso dos autos, como vimos, nem do requerimento executivo nem da contestação resultam especificados os componentes incluídos na quantia inscrita na livrança, de forma a espelhar, parcela a parcela, os valores relativos ao capital, juros remuneratórios, comissões, juros de mora, eventuais penalizações, imposto de selo, etc. Não resulta, desde logo, alegado o incumprimento e/ou a resolução do contrato subjacente à emissão e preenchimento do título.

O exequente teve, in casu, oportunidade de alegar os concretos factos e de juntar os documentos necessários que, juntamente com o título executivo, permitiriam alcançar o valor em dívida.
Não o tendo feito, não é possível apurar o valor da dívida do executado/opoente, porquanto os autos são omissos quanto a elementos essenciais para a respetiva determinação, pois, como atrás se deixou dito, a exequente, nem no requerimento executivo nem na contestação à oposição, alegou os factos que permitiriam ao executado e ao Tribunal alcançar a natureza do valor peticionado, quer no respeita ao valor inscrito na livrança quer no que respeita ao valor da obrigação exequenda, na medida em que, quanto a esta última, também não resulta demonstrado em que medida foram imputados o valor do produto da venda dos imóveis no âmbito do processo de insolvência (a capital e a que valor de capital; a juros e a que valor de juros; a comissões; a penalizações; etc.).

Nesta conformidade, a obrigação exequenda não se mostra certa nem líquida, sendo, pois, inexigível ao executado/opoente.
E nem se diga que tem lugar, nestes autos, à prolação de despacho a convidar o exequente a aperfeiçoar do requerimento executivo. O exequente optou por dar à execução uma livrança apoiando-se nas características da literalidade e abstração que lhe são próprias, bem sabendo que não resultava do título o valor da obrigação exequenda. Confrontado com a oposição deduzida pelo executado/opoente manteve a intenção de se faze valer da natureza do título sem demonstrar a forma como alcançou o valor inscrito na livrança bem como sem demonstrar como alcançou o valor da obrigação exequenda.

Como atrás se deixou dito, a afirmação de que o título é condição necessária e suficiente da ação executiva tem o sentido de que, não só, não há execução sem título, como a sua existência dispensa “qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere”.

Ora, estando em causa a definição do direito subjacente e prévio à constituição do direito de crédito que se pretende executar, assim como a definição desse mesmo direito após o preenchimento da livrança dada à execução (dependente, de todo o modo, do primeiro), não é esta a sede própria para o discutir, sem prejuízo do direito poder ser apreciado em sede de ação declarativa.
Procede, assim, a exceção invocada.”

A recorrente insurge-se contra o assim decidido argumentando o seguinte:
A exequente juntou todos os elementos necessários ao apuramento da dívida, tendo apresentado com a contestação a nota de débito emitida pela cedente, Caixa Geral de Depósitos, S. A., de onde decorre, parcela a parcela, o valor em dívida, o que baseou o preenchimento da livrança (capital, juros, juros de mora e comissões), o que já resultava do conteúdo da reclamação de créditos apresentada no processo de insolvência da mutuária, conforme documento junto pelo próprio executado/opoente;
No requerimento executivo, a exequente procedeu à liquidação da obrigação, tendo efectuado todos os cálculos e indicado os valores em causa, tendo discriminado o valor dos juros vencidos até à data da venda ocorrida no processo de insolvência e o respectivo capital e mencionou o valor da adjudicação, apurando o montante em dívida, contabilizando depois os juros entretanto vencidos, pelo que não podia o tribunal recorrido afirmar que a exequente não indicou o modo como alcançou o valor peticionado;
Ainda que assim não fosse, e ao contrário do sustentado na decisão recorrida, competia ao tribunal, se dúvidas existissem quanto à cabal liquidação da obrigação, proceder ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento executivo para esclarecimento dos elementos considerados em falta, por se tratar de um dever a que está sujeito e cujo incumprimento determina a nulidade da sentença.

O embargante/recorrido pugnou pela manutenção da decisão recorrida, no que a esta questão concerne, reiterando que o valor indicado na livrança não corresponde ao capital contratado e mutuado, não tendo sido explicado como foi apurado esse valor, para além de o pedido exequendo não corresponder ao valor aposto na livrança, estando em causa as vicissitudes ocorridas no âmbito do processo de insolvência, pelo que a livrança deixou de valer, por si só, como título executivo, não tendo a recorrente invocado factos susceptíveis de demonstrar o seu crédito, não havendo lugar a convite ao aperfeiçoamento.

A oposição à execução por embargos constitui um incidente de natureza declarativa, enxertado no processo executivo e dele dependente, através do qual o executado requer ao tribunal a improcedência total ou parcial da execução, mas não deixa, contudo, de tomar o carácter de uma contra-acção destinada a impedir a produção dos efeitos do título executivo, sendo estruturalmente autónoma, ainda que funcionalmente ligada à acção executiva.

O art. 10º, n.º 4 do CPC estatui: “Dizem-se «ações executivas» aquelas em que o autor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida.”
E o n.º 5 deste normativo legal acrescenta: “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.”

Por norma, a acção executiva prescinde da apreciação sobre a existência ou configuração do direito exequendo, daí que a realização coactiva duma prestação devida dependa de dois tipos de condição:
a)-a existência de título executivo – o dever de prestar tem de constar de um título, constituindo este pressuposto formal que condiciona a exequibilidade do direito, conferindo-lhe o grau de certeza que se entende suficiente para admitir a execução (exequibilidade extrínseca);
b)-a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida - certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material (exequibilidade intrínseca).

José Lebre de Freitas qualifica a certeza, exigibilidade e liquidez como “condições da acção executiva, enquanto características conformadoras do conteúdo duma relação jurídica de direito material”, que, porém, só constituirão requisitos autónomos da acção executiva “quando não resultem já do título executivo (art. 802); caso contrário, diluem-se no âmbito das restantes características da obrigação e a sua verificação é, tal como elas, presumida pelo título […]” – cf. A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª edição, pág. 26.

A acção executiva pressupõe o incumprimento da obrigação que emerge do próprio título dado à execução e que o direito nele inscrito esteja definido e acertado.

É certa a obrigação cuja prestação se encontra qualitativamente determinada (ainda que esteja por liquidar ou individualizar) e, contrariamente, não o é aquela em que a determinação (ou escolha) da prestação, entre uma pluralidade, esteja por favor (cf. art.º 400º do Código Civil).

A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende de simples interpelação ao devedor, seja por acordo das partes ou por força da regra supletiva do art.º 777º, n.º 1 do Código Civil; contrariamente, não será exigível a prestação quando, não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação, como sucede com a obrigação de prazo certo em que este ainda não decorreu (cf. art.º 779º do Código Civil).

A obrigação é ilíquida quanto tem por objecto uma prestação cujo quantitativo ainda não está apurado – cf. José Lebre de Freitas, A Ação Executiva…, pp. 100-102.

O título executivo contém a definição da relação jurídica, constituindo a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva – cf. art. 10º, n.º 5 do CPC.

“Temos assim que a relevância especial dos títulos executivos que resultam da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo o que permite dispensar a prévia indagação sobre se existe ou não o direito de crédito que consubstancia e faz presumir a existência e exigibilidade da obrigação exequenda. O título constitui condição da acção executiva e a prova legal da existência do direito nas suas vertentes fáctico-jurídicas. Nesta conformidade o título executivo é condição necessária e suficiente da acção. Necessáriaporque não há execução sem título. Suficiente porque, repete-se, perante ele, deve ser dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere. Efectivamente a obrigação exequenda tem de constar no título o qual, como documento que é, prova a existência de tal obrigação. O título executivo é um pressuposto da acção executiva na medida em que confere ao direito à prestação invocada um grau de certeza e exigibilidade que a lei reputa de suficientes para a admissibilidade de tal acção.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9-10-2018, processo n.º 154/17.7T8ALD.C1.

Determinando o fim da execução e definindo os seus limites, atenta a sua função documentadora da obrigação, o título executivo “deve definir de forma rigorosa o fim e os limites da execução, não sendo, por isso, permitido ao exequente apelar à relação causal ou a uma hipotética obrigação implícita para, através dessa via, procurar suprir as eventuais insuficiências ou imprecisões do título. Do mesmo modo, uma vez que a obrigação exequenda deve estar consubstanciada no próprio título, é irrelevante tudo aquilo que o exequente alegue no requerimento executivo e que extravase o âmbito do título.” – cf. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2ª Edição Revista e Aumentada, pp. 54-55.

Neste enquadramento pode entender-se que, sendo requisito essencial da acção executiva, o título deve constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, ou seja, reitera-se, deve, por si só, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, constituindo prova do acto constitutivo da dívida, sem prejuízo da possibilidade de o executado provar que apesar do título a dívida não existe (a obrigação nunca se constituiu ou foi extinta ou modificada posteriormente) – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-11-2013, relator Fonte Ramos, processo n.º 3381/12.0TJCBR.C1.

Nos autos de execução de que os presentes embargos constituem apenso a exequente apresentou como título executivo uma livrança subscrita por P______ – Construções e Urbanizações Lda. e avalizada, entre os demais, pelo executado/opoente.

Os títulos de crédito, como é o caso da livrança, constituem títulos executivos passíveis de basearem uma execução, atento o estatuído no art. 703º, n.º 1, c) do CPC.

A mencionada alínea c) do n.º 1 do art. 703º do CPC decompõe-se em duas normas com previsões distintas, quais sejam: à execução podem servir de base títulos de crédito e à execução podem servir de base títulos de créditos, meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

Quanto à primeira previsão estão em causa “documentos que incorporam certo direito de crédito – o crédito não existe sem o título-,caracterizados pela literalidade,autonomiae abstração. Eles valem nos estritos limites objetivos e subjetivos do que enunciam e independentemente das vicissitudes que afetem a relação subjacente que lhes dá causa. Por isso […] a causa de pedir da sua execução consiste no facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária – cambiária, diga-se – e não a relação subjacente (causa debendi) correspondente a esse direito.” – cf. Rui Pinto, A Acção Executiva, 2019 Reimpressão, pág. 193.

No campo da segunda previsão caem os “títulos de crédito” que não reúnem os requisitos legais ou estão prescritos, isto é, que não podem servir para a acção cambiária, como aqueles que foram apresentados a pagamento fora de prazo ou sem subsequente protesto, situação em que o exequente fica obrigado a alegar no requerimento executivo a relação jurídica subjacente à entrega desse título (obrigação causal), alegando os factos concretos que permitam determinar o tipo de relação jurídica que foi estabelecida entre as partes.

Uma das características do negócio cambiário, para além da formalidade, é a sua abstracção, ou seja, embora pressupondo uma relação jurídica anterior (subjacente ou fundamental), e podendo desempenhar uma diversidade de funções económico-jurídicas[4] é independente da sua causa, da função determinada que visa.

No entanto, embora seja abstracto, o negócio cambiário radica sempre numa causa, sucedendo, apenas, que esta é separada daquele, decorrendo não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extracartular, sendo que os vícios de que esta padeça não poderão ser opostos ao portador mediato de boa-fé, mas já o poderão ser ao portador imediato.

Nas relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que se fundamentam nessas relações pessoais.

O art. 75º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças[5] estabelecida pela Convenção internacional assinada em Genebra em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23 721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de Confirmação e Ratificação, no suplemento do “Diário do Governo”, n.º 144, de 21 de Junho de 1934 enuncia os requisitos essenciais da livrança.

A livrança é uma promessa de pagamento que o emitente deve cumprir, mas não é, contrariamente à letra, um título aceitável, dado que não admite a figura do sacado.

A pessoa que emite ou passa a livrança chama-se emitente, subscritor ou passador.

Na livrança também existem o tomador, os endossantes, os endossados, os avalistas e o portador.

Enquanto título de crédito, a livrança incorpora um direito de crédito o que implica que este direito não pode ser exercido sem a posse do documento. Assim, o crédito incorporado na livrança existe independentemente do crédito causal que lhe serve de base e pode transmitir-se separadamente (autonomia do direito cartular).

Sucede que esta autonomia nem sempre é total no âmbito dos títulos de crédito, pois variará conforme o tipo de título.

O art. 78º, primeiro parágrafo do LULL estipula que “O subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra.

Daqui decorre que o emitente da livrança é um obrigado principal, pelo que o tomador da livrança tem direito a haver do seu subscritor a respectiva importância, acrescida de juros e despesas, a não ser que tenha ocorrido qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação assumida com a subscrição desse título de crédito.

Nas letras e livranças, o art. 17º da LULL permite que ao portador que surge a cobrar o título possam ser opostas excepções decorrentes da relação subjacente que correlacione o demandado com o demandante.

Por força da promessa de pagamento em que se resolve a declaração cambiária de subscrição, a mutuária E – sociedade subscritora - obrigou-se a pagá-la ao portador no vencimento, isto é, a entregar-lhe a quantidade de espécies pecuniárias nela inscrita – cf. art. 28º ex vi art. 78º da LULL.

No caso em apreço, a exequente instaurou acção executiva contra os avalistas da livrança, invocando a qualidade desta como título de crédito, alegando dela ser portadora e indicando o respectivo valor, a data de vencimento e o seu não pagamento.
Além disso, preencheu o formulário electrónico de requerimento executivo onde, após justificar a sua legitimidade enquanto portadora da livrança, aludiu ao contrato de mútuo celebrado entre a sociedade mutuária e a Caixa Geral de Depósitos e os executados, enquanto fiadores, as garantias prestadas, as vicissitudes do contrato e sua alteração, a declaração de insolvência da mutuária, com a consequente apreensão dos imóveis hipotecados em garantia desse mútuo, o preenchimento da livrança pelo valor em dívida, que difere do pedido por força da imputação do valor arrecadado na insolvência, tendo efectuado, a final, a liquidação da obrigação, com enunciação dos juros vencidos desde a data do vencimento da livrança até a data da venda dos imóveis na insolvência, o imposto de selo, o valor alcançado com a venda e abatido ao valor em dívida, o capital em dívida, os juros sobre este capital contabilizados desde a data da adjudicação até a data de 26-09-2019 e o imposto de selo sobre estes juros, concluindo pelo montante exequendo que entende estar em dívida.

Atente-se, assim, que sendo o título executivo constituído por uma livrança, está em causa uma relação cartular.
Ainda que se trate de livrança emitida “em branco”, que deve ser acompanhada por um pacto de preenchimento, por via do qual o credor fica autorizado a completá-la com os elementos em falta (designadamente, quanto à determinação do montante em dívida e à data do vencimento) antes de a apresentar a pagamento, não está o exequente obrigado a juntar ao requerimento executivo o pacto de preenchimento, dado que o título executivo é a livrança e não o pacto.
Ademais, tal como decorre do acima exposto, por força dos princípios da abstracção e da incorporação, a livrança, enquanto título de crédito, dispensa o exequente de invocar a relação jurídica subjacente à sua emissão, pois que no negócio abstracto os respectivos efeitos são separados da sua causa, daí que uma livrança, enquanto título de crédito, possa ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.

Com efeito, a literalidade (é o que consta no título que delimita o conteúdo do direito nele incorporado) e a abstracção (a obrigação cambiária não depende da validade ou regularidade da obrigação subjacente) da livrança, enquanto título de crédito, justificam a desnecessidade de invocação pelo exequente da relação jurídica subjacente – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-10-2020, processo n.º 18694/19.1T8LSB-A.L1-2 e de 22-10-2019, processo n.º 1666/17.8T8ALM-A.L1-7; do Tribunal da Relação de Évora de 16-01-2020, processo n.º 4922/17.1T8STB-A.E1 e de 28-06-2017, processo n.º 172/15.0T8CBA-A.E1; do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-04-2018, processo n.º 133/14.6TBBCL-A.G1.

Cabe, nestas circunstâncias, ao executado, no âmbito da relação imediata, o ónus de alegar e de provar factos concretos e objectivos que sejam susceptíveis de colocar em crise a validade, eficácia ou existência da relação fundamental subjacente à livrança, o que sucede, por exemplo, quando o executado alega que a livrança foi emitida em branco e que o credor procedeu ao seu preenchimento de forma abusiva, em violação das convenções estabelecidas entre as partes no respectivo pacto – cf. Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pág. 95.

Estando em causa nos autos a apresentação à execução de uma livrança enquanto título de crédito, não se descortina qual a razão de ser para se ter afirmado na decisão recorrida que tal título dado à execução não vale, por si só, como título executivo, não sendo suficiente para demonstrar o valor da obrigação exequenda (cf. segundo parágrafo de folhas 19 da sentença).

Ao que se depreende, essa afirmação parece advir da circunstância de o valor do pedido exequendo não coincidir com o valor inscrito no título.
Sucede que esta divergência se traduz na dedução de um pedido de valor inferior àquele que resulta dos limites constantes do título executivo, de modo que, não os excedendo, nunca se estaria perante uma situação de falta de título que conduzisse a um indeferimento parcial da execução – cf. art.º 726º, n.º 3 do CPC.
Aliás, não se alcança por que razão não poderia a exequente pedir um valor inferior àquele que o título que apresenta à execução corporiza, sem necessidade de qualquer justificação. Estando o valor do pedido compreendido nos limites do título, este não deixa de, por si só, fazer presumir a obrigação.
Mas, note-se, a exequente fez mais do que isso, como o próprio tribunal recorrido reconhece na sua decisão.
Com efeito, a recorrente, para além de apresentar a livrança, invocou a relação subjacente à sua emissão para justificar precisamente essa divergência de valores e demonstrar em que medida o valor arrecadado no processo de insolvência da sociedade subscritora serviu para satisfazer parcialmente a obrigação exequenda.
Ao contrário do sustentado pelo senhor juiz a quo, o que está em causa não é o incumprimento do contrato de mútuo celebrado com a sociedade subscritora da livrança, mas antes o apuramento do valor que, declarada a insolvência desta, subsiste ainda em dívida, sendo essa a razão que justificou toda a alegação inerente à relação subjacente vertida no título executivo.
De acordo com o disposto no art. 728º do CPC o executado pode opor-se à execução, sendo que, quando esta não se baseie em sentença, pode alegar, para além dos fundamentos enunciados no art. 729º do mesmo diploma legal, quaisquer outros que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração - cf. art. 731º do CPC.
Na situação em apreço, independentemente da existência e cumprimento de pacto de preenchimento da livrança entregue em branco, o embargante suscitou a iliquidez da obrigação vertida no título argumentando que não foi explicada a diferença de valores entre o capital mutuado (800 000,00 €) e o valor inscrito na livrança (1 488 151,15 €), assim como não teriam sido especificadas as diversas parcelas que integram a quantia peticionada (capital, juros, comissões, entre o demais), não tendo também sido esclarecida a compensação efectuada com base nas vendas ocorridas no âmbito do processo de insolvência da sociedade subscritora.

Assim, não obstante a literalidade, a abstracção e a autonomia da livrança, o embargante, confrontado com o pedido exequendo, teve a iniciativa de ampliar a discussão para além dos factos não inscritos no documento, vindo colocar em crise a liquidação efectuada pela exequente, ou melhor, sustentando que esta não explicou como chegou ao valor peticionado, que não é coincidente com o valor inscrito na livrança.

Nos termos do art. 716º, n.º 1 do CPC, sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido.
Uma qualquer liquidação implica um cálculo aritmético, mas necessariamente um cálculo aritmético juridicamente relevante, quanto aos factos em que se baseia e, bem assim, aos efeitos que dela decorrem.

Tendo em conta o tratamento processual a conferir aos factos, o regime da liquidação distingue-se em liquidação dependente de simples cálculo aritmético e liquidação não dependente de simples cálculo aritmético.

A primeira tem lugar por referência a factos que estão claramente definidos no título executivo ou que podem ser oficiosamente conhecidos pelo Tribunal e agente de execução, tais como os factos notórios, de conhecimento resultante do exercício das suas funções ou cujo próprio regime permite esse conhecimento, como sucede na execução de juros moratórios, em que os factos são o montante do capital mutuado, a data de celebração do contrato, o prazo decorrido e a taxa de juro convencionada ou quando a liquidação da prestação remete para o saldo de uma conta corrente.

Já na liquidação não dependente de simples cálculo aritmético há também lugar a um cálculo aritmético mas que contende com matéria de facto que não está abrangida pela segurança do título executivo, ou factos que não são notórios ou de conhecimento oficioso e que, como tal, são susceptíveis de discussão, como quando se pede em execução de sentença o pagamento compulsivo do capital e juros de um empréstimo, além de despesas judiciais e extrajudiciais, cujo montante global foi calculado em quantia certa na petição inicial, mas a execução depende do apuramento de factos e consequente apreciação valorativa, por exemplo, quanto aos montantes das amortizações efectuadas e sua imputação (se ao capital, se aos juros), à discriminação das despesas da execução e modo de liquidação, questões que devem ser apreciadas judicialmente, num processo declarativo acessório, que é o incidente de liquidação – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 446

Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-03-2019, processo n.º 5576/17.0T8LSB.L1-1:
“… A liquidação dependerá de simples cálculo aritmético quando a mesma possa realizar-se exclusivamente com base no que consta do título executivo e, por isso, sem recurso a quaisquer elementos a ele estranhos, como sucederá, por exemplo, nos casos da liquidação da obrigação de juros…”.
Castro Mendes considera que ainda nos encontramos no domínio do simples cálculo aritmético quando este se “baseie em números que possam ser provados por documentos juntos com o requerimento inicial”.
Por seu turno “a liquidação que não depende de simples cálculo aritmético, embora implique também, por definição, um cálculo aritmético, assenta em factos (i.e., em matéria de facto) que, por não estarem abrangidos pela segurança do título executivo, não serem notórios ou não serem do conhecimento oficioso, são passíveis de controversão”.
Em face do exposto temos que a distinção entre depender ou não de simples cálculo aritmético assenta fundamentalmente na ideia de que a liquidação se basta ou não com o simples fazer contas, trabalhar com números, em que a controversão possível é apenas relativamente à exactidão desses números e dos correspondentes cálculos. E daí que adiramos à posição expressa por Castro Mendes, pois que nesses casos não estamos perante uma indagação factual (susceptível de controversão e produção de prova) necessária a apurar um valor necessário para o cálculo mas apenas perante a mera obtenção de um valor numérico cuja exactidão pode ser imediatamente verificada.”
Na liquidação por simples cálculo aritmético o exequente deve especificar no requerimento executivo os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir por um pedido líquido – cf. art.ºs 724º, n.º 1, h) e 716º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Nesses casos, o exequente terá apenas de enunciar as operações efectuadas, ou seja, os dados de que partiu e o resultado alcançado, sendo que tais elementos serão, ainda assim, sujeitos ao contraditório a exercer através de embargos de executado – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II – Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, 2020, pág. 47.
Tal sucede, designadamente, como é o caso dos autos, quando continuam a vencer-se juros, situação em que o exequente deve enunciar no requerimento executivo a liquidação dos juros vencidos, de acordo com o título executivo e a natureza da obrigação, sendo os vincendos liquidados a final pelo agente de execução –cf. art.º 716º, n.º 2 do CPC.

Ora, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-10-2012, processo n.º 2073/10.9T2AVR.C1, “para que se possa falar em obrigação ilíquida é necessário que o seu valor não esteja apurado ou não seja conhecido das partes (ou, pelo menos, do devedor), quer porque está dependente de factos ou operações adicionais que ainda não ocorreram ou não foram realizadas, quer porque esses factos ou operações ainda não foram levados ao conhecimento do devedor, de tal forma que este não está em condições de saber qual o exacto conteúdo da sua obrigação”.
Não é o que sucede na situação sub judice.
Quanto ao valor inscrito na livrança, a exequente, confrontada com a oposição deduzida pelo executado/embargante, não deixou de realçar a natureza literal, abstracta e autónoma do título de crédito e a similar natureza do aval prestado, remetendo, contudo e ainda assim, para o conteúdo da nota de débito que juntou com a contestação (documento n.º 1[6]), para aferição dos valores que conduziram à aposição da quantia inscrita na livrança.[7]
Por sua vez, quanto à divergência entre o valor inscrito na livrança e o valor peticionado, a embargada não deixou de explicar, quer em sede de requerimento executivo, quer posteriormente na contestação aos embargos, as vicissitudes ocorridas no processo de insolvência da sociedade subscritora, designadamente, o facto de nem todos os valores ali apurados poderem ser imputados no capital em dívida inscrito na livrança ora dada à execução, referindo quais os imóveis que garantiam o seu pagamento, o valor obtido, o montante assegurado para pagamento das despesas e o valor abatido na dívida, remetendo ainda para o conteúdo da reclamação de créditos apresentada no processo de insolvência, documento junto, aliás, pelo embargante como documento n.º 1 junto com a petição inicial[8].
Em face do supra exposto, parece seguro que perante os factos alegados quer no requerimento executivo quer na contestação aos embargos de executado e documentos juntos com tais peças processuais, é de reconhecer que, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, o Tribunal a quo dispunha dos elementos de facto necessários para aferir da liquidez do direito de crédito titulado pela livrança dada à execução.
Retome-se a ideia de que a obrigação ilíquida é aquela que existe mas cujo montante ainda não pode ser determinado ou determinável por mero cálculo matemático.
No caso em apreço, os dados necessários para o cálculo, seja do capital em dívida, seja dos juros vencidos, se não constam do próprio título, constam dos documentos que foram juntos com o requerimento executivo, designadamente do conteúdo do contrato de mútuo onde se consignaram as taxas aplicáveis e se discriminaram as prestações de reembolso de capital e de juros e, bem assim, da nota de débito junta com a contestação, onde se dá conta dos dados de que a exequente partiu para chegar ao valor do pedido exequendo.
Atente-se, novamente, que não carecia a exequente de justificar o valor inscrito na livrança, estando em causa a relação cartular.
Quanto ao valor do pedido, foi suficientemente indicado o motivo por que não é coincidente com o valor inscrito no título, sendo certo que não é por via do que se passou na insolvência que a obrigação vencida e liquidada deixa de o ser.

Neste sentido, refere-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-07-2020, processo n.º 1710/16.6T8OVR-A.P1:
“[…] parece seguro que a instauração da insolvência não pode provocar que uma obrigação vencida e liquidada assuma ex novo a natureza de ilíquida.
Desde logo, porque estabelece o n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que "as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra (…) os terceiros garantes da obrigação".
Por causa disso, "seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra (…) terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário" - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, pág. 724. Resulta daí, pois, que a instauração e pendência desse processo não afectam os direitos da exequente/embargada contra os avalistas dos insolventes. […]
[…] o cumprimento nos autos falimentares só tem efeitos liberatórios quando a quantia é efectivamente posto na disponibilidade do credor. […]
Uma obrigação ilíquida não é aquela que não está determinada mas sim aquela que não pode ser determinada de forma simples por cálculo aritmético.

Nesta medida, por exemplo, o Ac da RL de 06/12/2011 nº 7303/06.9TBALM.L1-7 considerou: “o n.º 3 do artigo 805º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que o crédito só é ilíquido quando, à data em que deve ser efectuado o pagamento, não for possível proceder à sua liquidação, ou seja, saber qual a quantia em dívida” sendo que “…para que o crédito se considere ilíquido não basta que o devedor impugne a obrigação de pagar ou alegue que a quantia pedida não é (total ou parcialmente) devida”.

E, o Ac do STJ de 29/11/2005, nº 05B3287 decidiu que: “Para efeito da aplicação do princípio in illiquidis non fit mora constante da 1ª parte do nº3º do art. 805º C.Civ. só releva a iliquidez objectiva, e esta só se verifica quando o devedor não estiver em condições de saber quanto deve”; “O princípio referido não tem cabimento quando, dispondo o devedor dos elementos necessários para saber o montante do seu débito, ocorra, afinal, iliquidez tão só aparente ou subjectiva”.

Ora, a embargante é filha do insolvente, tem conhecimento dos autos falimentares e pode ter acesso a estes ou em último caso pedir neles essa informação. Logo, se isso fosse de facto essencial poderia facilmente saber qual o montante que foi efectivamente entregue ao seu credor, caso este não actualizasse o valor em dívida quando pretendesse liquidar a prestação.”
Serve isto para dizer que a circunstância de terem ocorrido pagamentos no âmbito do processo de insolvência e de o embargante impugnar a correcção do valor abatido ao pedido exequendo não transmuta a obrigação líquida inscrita na livrança em obrigação ilíquida, sendo que o efeito reflexo que eventuais pagamentos ocorridos terão na dívida exequenda, titulada pela livrança, é a sua redução na proporção do que foi liquidado, operação que a exequente claramente efectuou no requerimento executivo – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8-02-2018, processo n.º 2338/13.8TBSTB-A.E1.
Em face do explanado, outra conclusão não se pode alcançar que não a de que, diversamente do sustentado pelo tribunal recorrido, a quantia exequenda mostra-se quantificada no título executivo, sendo que a divergência entre o valor inscrito e o valor peticionado é susceptível de ser apurada com base nos demais documentos juntos aos autos.
Acresce, além disso, que na petição inicial de embargos o embargante se limitou a impugnar o valor da dívida, referindo não terem sido especificadas as diversas parcelas que nesta estão incluídas, assim como não teria sido explicado por que razão apenas foi imputado o valor de 646 893,00 € para pagamento da dívida, visando colocar em crise, desse modo, a liquidação da obrigação efectuada pela exequente.
Ora, como se viu, o título de crédito enquanto título executivo faz presumir a existência da dívida, pelo que não cabe à exequente alegar (ou provar) a dívida subjacente ao valor inscrito na livrança.
Pelo contrário, compete ao embargante demonstrar o contrário, isto é, alegar o pagamento ou o preenchimento abusivo da livrança, no caso de ter intervindo no pacto de preenchimento, hipótese em que terá de, com base nos termos do contrato celebrado entre a exequente e a subscritora da livrança e fiadores (como é o caso), demonstrar que a exequente estaria a incluir na livrança valores acima do crédito devido, ou seja, cabia-lhe alegar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito de crédito da exequente titulado nas livranças, nos termos do art. 342º, n.º 2 Código Civil.
Não foi isso o que o embargante/recorrido fez, posto que se limitou a invocar um desconhecimento quanto à correcção dos cálculos efectuados pela exequente, não tendo alegado factos concretos relevantes que permitam aferir ou basear essa alegada incorrecção.
Ainda que a livrança tenha sido emitida e assinada pelo avalista/oponente em branco, quando a execução foi instaurada, encontrava-se devidamente preenchida, apresentando todos os requisitos definidos pelos art.ºs 75º e 76º da LULL, podendo servir de base à execução.
E como se disse acima, face à presunção de existência do direito contido num título executivo, o executado/oponente não pode assentar a sua defesa em afirmações conclusivas ou genéricas, referindo apenas não dever ou desconhecer se o valor aposto no título de crédito corresponde ou não ao valor em dívida ao exequente, pelo que os factos alegados se afiguram até, numa primeira análise, insuficientes para afastar a sua responsabilidade quanto ao pagamento da livrança exequenda – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 9-04-2013, processo n.º 199/12.3YYPRT-A e de 14-05-2020, processo n.º 1775/18.6T8LOU-A.P1.
Não se acolhem, pois, as dúvidas enunciadas na decisão recorrida, sendo certo que importa não confundir a certeza da obrigação com a sua liquidez ou exigibilidade, sendo seguro que, in casu, a obrigação está determinada, sendo certa, está vencida, e por isso é exigível e está quantificada, sendo a redução ocorrida passível de ser matematicamente confirmada com os dados objectivos que os documentos revelam.
De todo o modo, ainda que assim não fosse, se o tribunal recorrido considerava insuficientes os factos alegados pela exequente, dado que os acima enunciados têm de se ter necessariamente como concretizadores da liquidação da obrigação, ainda que eventualmente carecidos de melhor explicitação, estava aquele obrigado a proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Com efeito, entendendo o tribunal recorrido que a obrigação se não apresentava líquida em face do título e demais documentos juntos, nem os seus cálculos se apresentavam devidamente demonstrados, deveria proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento, por estar em causa uma irregularidade – eventual falta de promoção de incidente declarativo inicial (cf. art.ºs 713º a 716º do CPC) – do requerimento inicial passível de ser suprida – cf. neste sentido, A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código…, Vol. II, pág. 74.
Não ocorre, assim, iliquidez da obrigação susceptível de inquinar a exequibilidade do título, pelo que se impõe, nessa parte, a revogação da decisão recorrida, considerando demonstrados os pressupostos da obrigação exequenda de certeza e liquidez, sem prejuízo de o tribunal recorrido entender necessário um eventual aperfeiçoamento da liquidação efectuada pela exequente para efeitos de apreciação da impugnação deduzida nos embargos de executado.
***

3.2.3.- Da validade do título e da prescrição do direito de acção cambiária – Da falta de fixação dos factos
O embargante veio interpor recurso subordinado visando alcançar a modificação da decisão recorrida na parte em que esta apreciou as questões suscitadas na petição de embargos de executado quanto à nulidade da livrança, à falta do pacto de preenchimento, à prescrição da acção cambiária e ao abuso de direito, reiterando que não autorizou a Caixa Geral de Depósitos nem as cessionárias do crédito a preencher a livrança, pelo que a entrega da livrança em branco dá origem a uma livrança incompleta, logo inválida, questão sobre a qual o tribunal recorrido não se pronunciou, posto que apenas aludiu à existência de um acordo, expresso ou tácito, presumindo este último, sem que tenha sequer sido alegado pela embargada, mais sustentando a tese da prescrição do direito cambiário por a exequente não ter efectuado o preenchimento da livrança com a brevidade necessária após o incumprimento, sendo que sempre se verificaria com a demora uma situação de abuso de direito.
Antes de se proceder à apreciação das questões objecto do recurso subordinado há que atentar no seguinte aspecto que importa considerar.
A decisão recorrida corporiza um despacho saneador-sentença proferido logo que findos os articulados, tendo o tribunal recorrido consignado estarem reunidos os pressupostos para a sua prolação referindo: “Considerando a forma como as partes configuraram as respectivas pretensões e atentos os elementos juntos aos autos, julga-se o Tribunal habilitado a proceder ao saneamento do processo nos termos que se seguem.”

Tendo assim avaliado o estado dos autos, o senhor juiz a quo passou de imediato a pronunciar-se sobre o mérito da causa, enveredando desde logo pela fundamentação de direito e omitindo por completo a especificação/discriminação dos factos que serviriam de suporte à apreciação jurídica que conduziu à decisão final sobre as mencionadas questões/excepções deduzidas.

Significa isto que a sentença evidencia uma total ausência da fundamentação de facto.

Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).

Esta regra, no que à enunciação dos factos provados diz respeito, não é afastada quando está em causa a apreciação do mérito no momento da prolação do despacho saneador.

Com efeito, no saneador-sentença, o juiz deve, quando seja caso disso, declarar quais os factos que julga (plenamente) provados[9], elencando os factos tidos por relevantes (factos essenciais, em sentido amplo, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas – cf. art. 5.º do CPC), que estão plenamente provados (admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão) – cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 3-12-2020, processo n.º 4711/18.6T8LRS-A.L1-2 e de 6-06-2019, processo n.º 21172/16.7T8LSB.L1-2.

A nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC consistente na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito tem sido uniformemente entendida pela jurisprudência como abrangendo apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente ou o desacerto da decisão.
“As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º […] ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos […] Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) […].” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-06-2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1.

A figura da nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui, assim, uma figura de muito difícil verificação, dado que a doutrina e a jurisprudência têm salientado que tal só se verifica em situações de falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência ou laconismo, se deve considerar a fundamentação deficiente. Nesse sentido, o Prof. José Alberto dos Reis esclarecia que por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto - cf. Código de Processo Civil Anotado, V Volume, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 140.

Significa isto que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, relator Pereira Rodrigues, processo n.º 2/08.9TTLMG.P1.

A nulidade surge, pois, como efeito da violação do dever constitucional de fundamentação das decisões que decorre do estatuído no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, do disposto no art.º 154º do CPC, e ainda do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Na situação sub judice não existem dúvidas de que se está perante uma ausência total da fundamentação de facto, pois que não foram, de todo, discriminados os factos dados como assentes, pelo que a fundamentação de direito empreendida no texto da decisão recorrida assenta numa realidade factual apenas conjecturável (tanto mais que nem sequer se divisa no texto da decisão uma análise da prova documental carreada para os autos ou uma remissão para o seu conteúdo), porquanto não elencada pelo tribunal recorrido, em manifesta violação do prescrito pelo art.º 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC.

O desrespeito do dever de fundamentação, na vertente da fundamentação de facto, impede as partes de sindicar a base factual considerada pelo senhor juiz a quo, assim como obstaculiza o exercício por parte desta Relação das competências legais que lhe estão atribuídas, designadamente, no âmbito do controlo sobre a bondade da decisão.

Na verdade, tendo a 1ª instância considerado que os autos forneciam, desde já, os elementos de facto necessários e suficientes para conhecer do mérito das questões suscitadas nos embargos de executado, não cuidou, todavia, de discriminar os fundamentos de facto que considerou já assentes e nos quais se terá louvado para apreciar tais questões.

Ora, esta Relação só pode proceder à reapreciação da causa e conhecer do objecto do recurso subordinado se tiver conhecimento dos factos em que se fundou a sentença recorrida, aferindo da sua valia e consistência para conduzir à decisão final proferida.

Seguro é que nenhuma das partes arguiu a manifesta omissão revelada pela decisão recorrida, sabendo-se que a não especificação dos fundamentos de facto de uma decisão constitui uma nulidade que não é de conhecimento oficioso (cf. n.º 4 do art.º 615º do CPC).

No entanto, não se pode deixar de entender que quando a alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC se reporta à não especificação dos fundamentos de facto da decisão, terá em ponderação apenas a fundamentação ou motivação da decisão, no plano factual, e não a enunciação propriamente dita dos factos provados ou o julgamento dos factos necessários à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, cuja omissão constitui, ao contrário daquela, nulidade de conhecimento oficioso – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2004, processo n.º 116/2004-4.

Com efeito, essa falta absoluta de enunciação dos factos configura um vício distinto, que afecta o conteúdo da própria decisão de facto, vício que pode ser apreciado oficiosamente pela Relação, ao abrigo do regime previsto no art. 662.º, n.º 2, c) e d) do CPC.

Com efeito, não sobram dúvidas que o Tribunal da Relação pode, oficiosamente, nos termos do disposto no art.º 662º, n.º 2, c) do CPC, anular a decisão, quando, designadamente, a repute de deficiente relativamente a pontos determinados da matéria de facto, pelo que, como tem vindo a admitir a jurisprudência, poderá, por maioria de razão, fazê-lo quando a indicação da matéria de facto é totalmente omissa, pois que se estará, em última instância, face a uma situação limite de decisão deficiente, ou seja, essa omissão total corresponde ao grau máximo daquela deficiência, expressão que abrange, necessariamente, não só a falta de decisão sobre um facto essencial, como a falta absoluta de decisão sobre todos os factos essenciais – cf. Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV (Reimpressão), Coimbra Editora, Limitada, pág. 553.

Se se tem por processualmente grave a omissão de indicação das razões que levaram a considerar os factos como provados (e não provados), será tal gravidade exponencial quando se verifica uma total ausência de indicação dos factos (tidos como provados) que fundamentaram a decisão de direito.

Confrontado com a total ausência de decisão sobre a matéria de facto, não pode este tribunal de recurso sindicar ou exercer o poder censório não só quanto à própria matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável.

Tenha-se em atenção que o litígio estabelecido entre as partes e a relação material controvertida que lhe subjaz são revelados através dos factos e o direito aplica-se aos factos alegados e provados, pelo que a falta da sua enunciação se traduz na falta de um pressuposto necessário ao julgamento do recurso, inviabilizando a aferição sobre se o direito correspondente foi bem ou mal aplicado.

Acresce que a razão de ser da previsão do art.º 665º do CPC, ao estatuir que, mesmo no caso de nulidade da decisão, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação, não encontra aplicabilidade numa situação como a presente, pois que não foi intenção do legislador que o tribunal de recurso reapreciasse oficiosamente toda a prova produzida na 1ª instância, sobremaneira quando está em causa uma total omissão por parte do primeiro grau em sede de decisão da matéria de facto.

Em reforço desta posição, atente-se que o tribunal de recurso pode sempre entender necessária a ampliação da matéria de facto, mesmo quando esta foi enunciada e nela não se introduza qualquer alteração, anulando então a decisão, pelo que, também por maioria de razão, numa situação de total falta de enunciação dos factos provados, se justifica a anulação da decisão – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-03-2020, , processo n.º 713/10.9TBFIG.C2[10], com o seguinte comentário do Prof. Miguel Teixeira de Sousa[11]- “b) O disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC contém duas regras: -- A Relação pode anular a decisão da 1.ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do n.º 1 do art. 662.º CPC permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto; -- A Relação pode anular a decisão da 1.ª instância quando considere indispensável a ampliação da decisão sobre a matéria de facto.”

A entender-se que cabia à Relação substituir-se, na totalidade, à 1ª instância, proferindo a decisão sobre a matéria de facto que esta omitiu, tal implicaria a subtracção às partes da garantia de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto – cf. no sentido do conhecimento oficioso da falta de enunciação dos factos e anulação da decisão, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-02-2004, processo n.º 03B1414 e de 24-02-1999, processo n.º 98S333; do Tribunal da Relação de Guimarães de 4-06-2020, processo n.º 2134/18.6T8CHV-A.G1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-11-2017, processo n.º 3309/16.8T8VIS-A.C1 e de 19-02-2013, processo n.º 618/12.9TBTNV.C1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-03-2012, processo n.º 1359/2011.0TVLSB.L1-8, de 27-10-2009, processo n.º 3084/08.0YXLSB-A.L1.1 e de 28-04-2004, processo n.º 116/2004-4.

Além da necessidade de se consignarem os factos provados, há que ter em conta que as condições em que o art. 595º, n.º 1, b) do CPC permite que no despacho saneador se conheça imediatamente do mérito da causa, ou seja, sempre que o estado do processo autorize, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

O conhecimento do mérito da causa no despacho saneador depende de estarem adquiridas para o processo provas bastantes para tal apreciação e só deve ter lugar quando este contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo presente aquele que é o entendimento do juiz da causa – cf. J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 659.

A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe, assim, que, independentemente de estar em causa matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite essa decisão, o que sucederá, designadamente, quando:
a)-Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento;
b)-Quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que restam controvertidos (por exemplo, se os factos alegados pelo autor não preenchem as condições de procedência da acção, é indiferente a sua prova);
c)-Quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental;
d)-Quando os factos alegados pelo autor sejam inábeis ou insuficientes para extrair o efeito jurídico pretendido (inconcludência);
e)-Quando todos os factos integradores de uma excepção peremptória se encontrem já provados, com força probatória plena, por confissão, admissão ou documento.

O juiz deve guiar-se, na sua opção entre a prolação de decisão de mérito da causa ou o prosseguimento desta com a realização de audiência final, por um juízo de prognose acerca da relevância ou não dos factos ainda controvertidos – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código…, Vol. I, pág. 697; Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pág. 204.

Neste enquadramento, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, ou seja, não há que antecipar qualquer solução jurídica e desconsiderar factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção (a dificuldade será maior face à perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, caso em que a relevância dos factos alegados, ainda que controvertidos, variará em função desta ou daquela solução jurídica) – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-07-2017, processo n.º 114815/16.8YIPRT.G1.

Deverá, assim, o tribunal recorrido ponderar se se revela despicienda qualquer actividade probatória face à alegação das partes e dos elementos existentes nos autos, não descurando, designadamente, que o embargante, embora não refutando a aposição da sua assinatura na livrança dada à execução, alega não ter acordado em qualquer pacto de preenchimento (expresso ou tácito), não tendo, de todo, autorizado o seu preenchimento, pelo que para além de alegação de uso indevido da livrança, talvez não se possa afastar liminarmente a possibilidade de se estar perante Uma situação de inexistência de qualquer pacto, ou seja, de preenchimento de um título incompleto, subscrito pelo obrigado, mas sem qualquer acordo que legitime o tomador a preenchê-lo, o que talvez cumpra esclarecer.

Em consonância com o que se deixa explanado, e com base nas disposições conjugadas dos art.ºs 615º, nº 1, b), e 662º, n.º 2, c) do CPC, decide-se anular o despacho saneador-sentença, na parte em que conheceu da nulidade da livrança, da falta de pacto de preenchimento, da prescrição e do abuso de direito, determinando-se que, no caso de a 1ª instância continuar a entender que o estado dos autos permite, desde já e nesta fase, conhecer do mérito da causa, seja proferida nova decisão da qual conste a enunciação da matéria de facto provada, com discriminação de todos os factos ou elementos de facto provados com interesse para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das questões objecto do presente recurso acima elencadas.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso principal interposto pela embargada procede integralmente, pelo que as custas (na vertente de custas de parte), devem ficar a cargo do embargante/recorrido.
Por sua vez, quanto ao recurso subordinado, dado que a decisão, na parte nele impugnada, foi anulada, as custas (na vertente de custas de parte) ficam a cargo da embargada/recorrida, pois quem retirou dele tirou proveito foi o embargante/apelante subordinado, ficando aquela negativamente afectada pela decisão ora proferida - cf. neste sentido, Salvador da Costa, Custas a final pela parte vencida (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2018) e Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido (24-06-2020)[12].
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IV–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em:
a.-Julgar procedente a apelação (recurso principal) e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que considerou a obrigação exequenda ilíquida, considerando demonstrados os pressupostos da obrigação exequenda de certeza e liquidez, sem prejuízo de o tribunal recorrido entender necessário um eventual aperfeiçoamento da liquidação efectuada pela exequente para efeitos de apreciação da impugnação deduzida nos embargos de executado;
b.-Anular o despacho-saneador, na parte em que conheceu da nulidade da livrança, da falta de pacto de preenchimento, da prescrição e do abuso de direito, determinando-se que, no caso de a 1ª instância continuar a entender que o estado dos autos permite, desde já, conhecer do mérito da causa, seja proferida nova decisão da qual conste a enunciação da matéria de facto provada, com discriminação de todos os factos ou elementos de facto provados com interesse para a decisão da causa.
Custas do recurso principal a cargo do embargante/apelado.
Custas do recurso subordinado a cargo da embargada/apelada.
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Lisboa, 7 de Dezembro 2021[13]



Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro


[1]Adiante designado pela sigla CPC.
[2]Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3]In Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 735.
[4]A obrigação cambiária pode ser assumida “pro soluto” ou “pro solvendo”, com uma função de garantia ou de pagamento, com ou sem eficácia novadora, e pode ser assumida em face das mais diversas relações jurídicas: compra e venda, mútuo, etc.” – A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III Letra de Câmbio, pág. 47.
[5]Adiante designada pela sigla LULL.
[6]Documento emitido pela Caixa Geral de Depósitos, S. A., com data de 9 de Junho de 2017, onde é identificado o número de cliente o nome da sociedade Penaferrim, Lda., o montante contratado (800 000,00 €), a data de início da operação (22-12-2006), o seu número, a data de fim da operação (22-06-2012), o prazo (66 meses), a taxa de juro (7,85%), a data de entrada em incumprimento (22-12-2011), o spread (6,00%) a taxa de juro de mora (15,45%), as datas de movimento e prestações efectuadas e seus montantes, apurando a final o montante em dívida (1 488 151,15), com discriminação do capital (800 000,00), juros (62 679,53), juros de mora (625 204,62) e comissões (267,00) - cf. Ref. Elect. 17727180.
[7]“III – Da alegada iliquidez da obrigação exequenda
57º Vem ainda o embargante alegar que a exequente não cuidou de explicar o cálculo do valor peticionado, nem assim inscrito na livrança.
58º Quanto a esta questão importa antes de mais referir que a livrança constitui uma promessa de pagamento.
59º Com efeito, o aval é o negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar e por função a garantia desse pagamento.
60º O aval é um valor de "per si" autónomo da realidade que lhe subjaz.
61º Para Oliveira Ascensão “o aval funciona como uma obrigação autónoma e não como garantia, dado que pelo aval o avalista contrai uma responsabilidade (jurídica) distinta da do avalizado, não estando, sequer, dependente da validade da obrigação garantida "nem mesmo da obrigação do afiançado".
62º Não obstante e, para que dúvidas não restem, remete-se para a nota de débito já junta como doc. N.º 1.”
[8]“63º Como o opoente bem sabe e não pode ignorar, a E., contraiu vários empréstimos junto da CGD, S.A., às quais foram igualmente prestadas fianças e/ou avales, pelo aqui embargante.
64º As referidas operações encontravam-se garantidas por várias hipotecas sobre vários imóveis, algumas em segundo grau.
65º Com efeito e, conforme também já por demais explicado no requerimento executivo, o empréstimo contraído, ao qual corresponde a operação PT 0035078600237514091, encontrava-se garantido por hipoteca voluntária sobre os 9 bens imóveis, ali melhor identificados.
66º Pelo que, apenas o montante obtido com a venda de tais imóveis pôde ser abatido ao valor em dívida por conta da aludida responsabilidade.
67º Valor de venda esse que cifrou-se em €718.770, valor este, que deverá ser deduzido dos 10% depositados no processo para pagamento das custas judiciais, e despesas e honorários do I. Sr. AI, no montante de €71.877 (cfr. Apartado “liquidação da obrigação” do requerimento executivo).
68º Pelo que, o valor de €646.893 que o executado questiona, corresponde ao efectivo valor recebido pela exequente por conta da venda dos bens imóveis já melhor identificados no requerimento executivo.
69º Inexiste assim qualquer dos vícios assacados pelo embargante, já que a liquidação da obrigação resulta inequívoca do explanado no requerimento executivo, ao contrário do que aquele pretende fazer crer.
70º Saliente-se aliás, que é o próprio embargante quem junta a Reclamação de Créditos apresentada pela CGD, S.A., nos autos de insolvência e onde se encontram discriminadas todas as operações contraídas por aquela empresa e avalizadas pelo embargante.
71º Atente-se ao ali reclamado no artigo 2º, onde efectivamente se refere a contratação da presente operação, no montante de capital de €800.000.
72º Entre o art. 2º e 54º elencam-se as demais operações contratadas pela insolvente Penaferrim.
73º Acresce que, em 55º da aludida Reclamação, igualmente descreve a credora as garantias dos seus créditos.
74º Como resulta à evidência demonstrado e, em consonância com também já explanado pela aqui exequente, facilmente se depreende quais os imóveis sobre os quais impendia a hipoteca garante da operação ora dada à execução nestes autos.
75º Pelo que, a compensação que vem o embargante alegar, superior a 3 milhões, respeita a todas as operações peticionadas naquele processo e não apenas, à que ora se executa.
76º Pelo que, não se entende, os argumentos expendidos pelo embargante quanto à iliquidez da obrigação.
77º Não obstante e, por mera cautela de patrocínio, junta-se infra uma tabela resumo das operações em causa, valores de venda e valores em dívida, bem como os avales prestados por conta de cada uma: […]”
[9]Mas não já os factos que julga não provados, nem devendo/podendo especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, ou seja, apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, nos termos do art. 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, porquanto o processo não chegou à fase da instrução da causa sendo que apenas nesta sede é possível sindicar provas de livre apreciação.
[10]Com a seguinte síntese conclusiva: “a) conhecendo oficiosamente a Relação da existência do vício da deficiência de facto (art. 662 nº 2 c) CPC), tal implica a anulação do julgamento e reenvio do processo ao tribunal da 1ª instância, ainda que a prova produzida em audiência tenha sido integralmente gravada. b) Quando o nº 2 c) do art. 662 remete para o nº 1 refere-se a todos os elementos que “permitam a alteração da decisão proferida, sobre a matéria de facto”, pressupondo logicamente a respectiva individualização ou discriminação, ou seja, para o poder de substituição ou de reexame pela Relação não basta a mera gravação da prova testemunhal, sem qualquer indicação ou individualização, pois de outro modo tal exigiria uma audição integral e indiscriminada. c) Por outro lado, implicando o vício da deficiência a ampliação dos temas da prova, o reexame na Relação importaria a privação do contraditório, do direito à prova quanto aos factos omitidos e a proibição do duplo grau de jurisdição.”
[11]In Blog do IPPC, entrada de 3-09-2020, Jurisprudência 2020 (44) disponível em https://blogippc.blogspot.com.
[12]Acessíveis no Blog do IPPC em https://blogippc.blogspot.com/.
[13]Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.