SENTENÇA
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
REGRA DA SUBSTITUIÇÃO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário

1.–Quando exista uma ausência da fundamentação de facto, por falta de especificação de factos provados e não provados, bem como por omissão de qualquer apreciação crítica da prova produzida, e sua subsunção ao direito aplicado, impedindo, assim, a sua sindicância, estamos perante uma situação de falta de fundamentação, o que determina a nulidade da sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.

2.–Esta nulidade apenas pode ser colmatada pelo tribunal que proferiu a sentença, porquanto a apreciação da prova produzida pelo tribunal de recurso significaria a diminuição de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.RELATÓRIO


1.Por apenso à execução contra si intentada por A e B vieram os executados C e D  deduzir a presente oposição à execução alegando a excepção de litispendência, a inexigibilidade, iliquidez e incerteza da obrigação exequenda e a extinção do crédito exequendo por compensação.
2.–Os exequentes contestaram, pugnando pela improcedência do peticionado.
3.–Foi proferido despacho julgando improcedente a excepção de litispendência, despacho saneador no qual se decidiu relegar para final o conhecimento das excepções de inexigibilidade e de compensação, e se procedeu à fixação da factualidade assente e de base instrutória.
4.–Notificados, vieram os exequentes apresentar requerimento arguindo a nulidade de tal decisão, por o tribunal não ter conhecido as aludidas excepções.

5.–Na sequência de tal requerimento foi proferido o seguinte despacho:
“A fls. 726 e ss. vieram os exequentes arguir diversas nulidades em virtude do Tribunal não ter conhecido diversas excepções dilatórias a que estava obrigado.
A parte contrária pugnou pelo indeferimento das nulidades invocadas pelos exequentes.

Cumpre apreciar e decidir.
Os exequentes perceberam bem os fundamentos da decisão proferida em 28/06/2016.
Sabem que a sentença conhece, em primeiro lugar, se for esse o caso, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância – art. 608º, nº 1, do CPC.
Também sabia que não íamos alterar um milímetro que fosse ao decidido em sede de despacho saneador, sob pena de grave atropelo do disposto no art. 613º do CPC.
Desatende-se as nulidades invocadas pelos exequentes”.

6.–Inconformados, os exequentes recorreram desse despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª)-O douto despacho recorrido violou por erro de aplicação o artº 6º nº 4 da Lei Preambular de aprovação do CPC, Lei nº 41/2013, de 26/6, porque a versão do CPC, anterior ao início de vigência dessa lei, se aplica desde o início até ao fim do apenso declarativo de oposição à execução.
2ª)-A regra geral do conhecimento das nulidades no processo civil é o de que as nulidades devem ser apreciadas, logo que sejam reclamadas (artº 206º nº3 do CPC, versão anterior), pelo que ao não as apreciar resultou violada a citada disposição legal.
3ª)-O caso julgado apenas abrange o despacho saneador que julgue o mérito da causa (artº 671º nº 1 do CPC, na versão anterior) e conheça de excepções dilatórias ou peremptórias que conduzam respectivamente à absolvição da instância ou do pedido, o que resulta violado por ser considerado esgotado o poder jurisdicional para não proceder a qualquer alteração do despacho, violando-se por erro de interpretação e aplicação a citada disposição legal.
4ª)-Violou-se igualmente o artº 510º nº 1 alínea a) do CPC na versão anterior),. nos termos do qual, o tribunal tem um poder-dever de pugnar pela regularidade processual, conhecendo de todas as excepções dilatórias, o que não sucedeu no caso concreto.
5ª)-De entre as excepções dilatórias, não foram declaradas, a da ilegitimidade e a do litisconsórcio necessário, quanto aos pedidos da oposição, que visam indemnizações a compensar com a quantia exequenda, em violação dos artigos 847º, 1 e 851º, 2, do CC e art.º 28º, 2, do CPC.
6ª)-O despacho que recusou o conhecimento das nulidades arguidas, mantém a preterição da forma processual e contende com a inadmissibilidade dos pedidos, já arguidas, tudo nos termos dos artigos, 45º, 1, 199º, 2, 468º, 493º, 2, 494, al. b), 495º, art.ºs 202º, 196º, 288º, 1, al. b),do CPC.
7ª)-As violações descritas nos pontos anteriores, grosso modo, residem no facto de os opoentes (marido e mulher), em processo executivo, em que estão a ser executados, como responsáveis solidários, pelo pagamento do preço da cedência de quotas de duas sociedades, terem vindo pedir indemnizações (cujo valor é à escolha do tribunal, conforme formulação a final), decorrentes de, a) incumprimento de contrato-promessa, designado A, em que dois dos promitentes-cedentes e um dos promitentes-adquirentes, não são partes no processo; b) incumprimento de outro contrato-promessa, designado B, que nada tem a ver com o título executivo, em que 4 dos promitentescedentes não são partes do processo.
8ª)-Nesses pedidos de indemnizatórios pretende-se a condenação em valor superior à quantia exequenda e a compensação, ao arrepio, ainda, de não haver coincidência entre devedores, credores nos créditos e contracréditos, compensantes.
9ª)-Além do mais resulta, a oposição não ser a forma processual correcta, não só por estarmos no domínio da acção executiva, como também por o valor das indemnizações, mesmo as que são à escolha do tribunal, exigirem, a forma do processo ordinário, como supra se expôs.
10ª)-Em virtude da oposição se limitar a esses pedidos ilegais, deveria a mesma improceder, por inadmissibilidade de tais pedidos.
11ª)-Quanto à decisão em crise, nos termos do artº 510º nº 3 do CPC na versão anterior), o despacho saneador só constitui caso julgado formal quanto às matérias de que conheceu, não quanto às matérias que o tribunal estava obrigado a conhecer e omitiu.
12ª)-Quanto ao caso julgado material este só se poderia ter formado se se conhecesse do mérito da causa, o que não sucedeu (artº 671º nº 1 do CPC na versão anterior).
13ª)-Ao impedir o exercício do contraditório por parte de pessoas afectadas pela decisão e que não são partes no presente processo violou a decisão o despacho o disposto nos artºs 3º e 3º-A do CPC (versão anterior à Lei nº 41/2013) e artº 20º nº 1 da CRP.
14ª)-Como na oposição, não é permitido o chamamento à oposição de outras partes, não pode a ilegitimidade e a preterição de litisconsórcio, necessário ser sanada e a oposição terá de improceder.
15ª)-O douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que, em resultado do provimento dado ao recurso, declare, a nulidade da forma processual, a violação do direito de defesa, e a verificação das demais excepções dilatórias, improcedendo a oposição, assim se fazendo JUSTIÇA!”

7.–Os executados defenderam a improcedência deste recurso, o qual foi admitido a subir com o primeiro recurso que venha a ser interposto da decisão prevista na al. a), do nº 1, do art. 644º e com efeito devolutivo – arts. 629º, 637º, 638º, 644º, nº 3, 645º, nº 1, al. a), 647º, nº 1, 852º e 853º, nº 1, todos do CPC.

8.–Realizou-se a audiência de discussão de julgamento, após o que se proferiu sentença julgando procedente a oposição e determinando a extinção da execução.

9.–Os exequentes recorrem desta sentença, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

Nulidades da decisão recorrida
1.ª-Entendendo o tribunal que é de proferir sentença a extinguir a execução, com fundamento em compensação, cumpria decidir definitivamente o pleito, ou seja, decretando a compensação e não, ao invés, indicando que a compensação há-de ser feita.
2.ª-Por outro lado, impunha-se definir o «quantum» dos juros da execução a compensar, de modo a que a compensação, em si fosse determinada em termos quantitativos (art.ºs 2º, 1, artº 608º, 2, art.º 609º, 2, do CPC)
3.ª-Tais violações legais determinam a nulidade da sentença nos termos do art.º 615º, 1, al. d), do CPC.
4.ª-Como supra se referiu, a sentença omite qualquer decisão sobre a compensação das custas da execução da responsabilidade dos executados (art.º607º, 6 e art.º 5º, 2 e 3, do CPC), matéria suscitada nos requerimentos de pronúncia sobre a liquidação provisória do Agente de Execução.
5.ª-Existe um dever legal de decisão sobre essa questão, pelo que, não o cumprindo, incorre a sentença na nulidade prevista no art.º 615º, 1, al. d)- 1ª parte, do CPC.
6.ª-A decisão de considerar que os embargos procederam, quando nunca foram objecto de decisão judicial nesta acção, faz enfermar de nulidade a decisão recorrida.
7.ª-O tribunal não fundamenta a decisão dos embargos terem procedido, o que constitui nulidade nos termos do art.º 615º, 1, al. b), do CPC.
8.ª-Existe também neste ponto excesso de pronúncia por previamente não se ter procedido à selecção de matéria de facto relevante, provada e não provada e omissão de julgamento, ou seja aplicação das normas jurídicas às questões de Direito e aos factos provados (art.ºs 615º, 1, al., d) e e), art.º 607º a 609º, do CPC).
9.ª-A simples menção factual que em outro processo, com o nº 193/07.6TVLSB foi proferido decisão com trânsito em julgado de que os Réus deveriam indemnizar os Autores não tem conexão lógica com a decisão da procedência dos embargos nesta execução.
10.ª-Assim, tal facto não afasta as nulidades arguidas quanto a esta decisão de considerar os embargos procedentes.
11.ª-Existe também na questão do trânsito em julgado da decisão do processo nº 193/07.6TVLSB, a omissão de julgamento do facto - a data em que ocorreu o trânsito em julgado da decisão.
12.ª-A data do trânsito em julgado da decisão final do processo 193/07.6TVLSB é facto concretizador dos factos alegados pelas partes, pelo que o tribunal ao deixar de considerar tal matéria incorre em nulidade de sentença, de acordo com os art.ºs 5º, 2, al. b) e art.º 615º, 1, al. d) do CPC.

Restantes Conclusões
13.ª-Atenta a nulidade da sentença arguida, se por hipótese fosse correcto decidir-se pela extinção da execução pela compensação, teria de ser efectuada a compensação entre €115 180,69 - a quantia exequenda e acrescidos à data da sentença, e o crédito dos executados de €218.633,85.
14.ª-O valor de €115.180,69 decorreria dos cálculos supra efectuados.
15.ª-A compensação de créditos necessita de ser efectuada por declaração perante o credor que pretende compensar (art.º 848º, 1 do CC).
16.ª-Na sentença recorrida decide-se, erroneamente, que se verificou a declaração de compensação na petição de oposição e que esta veio a ser julgada procedente.
17.ª-Como supra se referiu, a propósito das nulidades, a oposição não foi julgada e, por outro lado, a declaração de compensação não pode ser considerada efectuada na oposição. (art.º 847º,1, al. a), do CC)
18.ª-O pedido de compensação formulados na oposição não reúne as condições legais para ser admitido.
19.ª-Primeiro, pede-se a compensação entre o preço em dívida pela aquisição de quotas e créditos dos Exequentes sobre as sociedades Rede A (cfr. al. 3) do pedido da oposição) e indemnização a favor dos executados ou das sociedades, no montante de 656.577,21€ ou 916.270,78€, se considerados x, ou y (cfr. al. 2) dos pedidos).
20.ª-A declaração de compensação, para ser eficaz como tal, tem de invocar a titularidade dum crédito dos declarantes e não de terceiro (art.º 851º, 1, 2, art.º 847º, 1 , do CC), não pode ser condicional (art.º 848º, 1, do CC) e contra o crédito exigível invocado não podem proceder excepções, peremptórias ou dilatórias de direito material (art.º 847º, 1, al. a), do CC).
21.ª-Resulta do teor da oposição que à data dessa petição não tinha existido julgamento no processo n.º 193/07.6TVLSB e a decisão proferida nesses autos não deu provimento ao pedido de compensação formulado nestes autos, nem os Autores obtiveram vencimento total dos seus pedidos.
22.ª-Assim, contra o crédito de indemnização invocado no pedido da oposição existiam excepções de cariz material que impediam a compensação, uma vez que houve contestação a impugnar a pretensão e o mesmo não foi apreciado nestes autos (art.º 847º, 1. al. a) do CC ).
23.ª-Por outro lado, após o Acórdão do STJ que mandou prosseguir a execução pelo valor de 60.000,00 €uros, o pedido formulado na oposição para compensação deixaria de ter eficácia para estes autos, uma vez que aí se pedia para compensar indemnização com o preço da cessão das quotas de Rede A e foi considerado não existir título executivo no processo contra os executados pelo preço das quotas de Rede A.
24.ª-Assim, que o processo prosseguiu pela quantia exequenda de 60.000,00€ - o preço de cessão de quotas de outra sociedade - Rádio Clube de G_____.
25.ª-a declaração de compensação tem de ser inequívoca quanto à titularidade dos créditos, quanto ao montante de que o declarante se arroga titular, sem que este esteja sujeito a condições.
26.ª-Ora, conforme resulta do pedido da oposição onde se invoca a compensação, a final, os créditos tanto podem ser dos executados como das sociedades que não são parte da acção, e podem ser num montante, ou noutro montante, caso sejam considerados, ou não certos valores.
27.ª-Mais, à data do início da execução em 2009 a quantia exequenda comportava juros vencidos que constam do requerimento executivo e não ocorre no pedido formulado na oposição, a final que o executado reconheça a totalidade do crédito dos exequentes, o que viola o art.º 848º, 1 e 2, do CC.
28.ª-E tal posição verifica-se até ao momento presente, pelo que não se pode dizer que os executados tenham alguma vez reconhecido o crédito dos Exequentes, para que se pudesse operar a compensação.
29.ª-Igualmente, a sentença entende, erroneamente, que o executado pode pedir a compensação do valor da indemnização fixado na acção 193/07.6TVLSB aos Exequentes, porque estes ficaram obrigados solidariamente com outros a indemnizar o executado.
30.ª-Por fim, a indemnização aí fixada foi-o a favor dos Autores, ou seja, do executado nestes autos, de José ..... e Rede A e o executado nunca poderia pedir aqui a compensação de créditos de terceiros (art.º 851º, 2, do CC).
Nestes termos, deverá a sentença recorrida ser substituída por Acórdão em que declare inadmissível a compensação e ordene o prosseguimento da execução, ou, na hipótese de assim não se entender, que considere a compensação nos termos e nos montantes acima indicados, ou seja, com juros até ao momento, e que decida não ter existido provimento da oposição”.

10.–Em contra-alegações, os executados pugnaram pela improcedência do recurso.

II.–QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, são:
- da inexistência de conhecimento de nulidades;
- da nulidade da sentença recorrida;
- da verificação da compensação.

III.–APRECIAÇÃO DO RECURSO
Face ao teor das alegações de recurso e às questões a decidir, importa iniciar a sua análise de forma lógica, o que se passa a efectuar.
A.-Do recurso interposto do despacho de indeferimento da arguição de nulidades:
Antes de iniciar a análise das questões suscitadas nesta apelação, cumpre salientar que a mesma incide unicamente sobre o despacho que indeferiu a arguição de nulidades constantes do despacho saneador e não sobre esta peça processual.
Com efeito, e tal como os apelantes referem no seu requerimento de interposição de recurso, o mesmo visa “o despacho de 19/10/2016, que decidiu a arguição de nulidades”.
Donde, não cumpre apreciar as nulidades por aqueles invocadas no seu requerimento de 14/07/2016, mas tão somente a discordância relativamente ao despacho que recaiu sobre tal requerimento e que, recorde-se, desatendeu as nulidades invocadas.
Retornando ao despacho recorrido, defendem os apelantes que o mesmo deveria ter conhecido as nulidades invocadas, já que as nulidades devem ser devem ser apreciadas, logo que sejam reclamadas.
Mais alegam que não existe caso julgado, pelo que esse despacho deveria ter conhecido as excepções de ilegitimidade e a do litisconsórcio necessário, quanto aos pedidos da oposição, que visam indemnizações a compensar com a quantia exequenda.
Por forma a melhor apreender a questão trazida a juízo, importa recordar que o despacho recorrido, ou seja o despacho de 19/10/2016, que decidiu a arguição de nulidades, foi proferido na sequência de um requerimento apresentado pelos exequentes, no qual estes invocavam a existência de nulidades, terminando tal requerimento dizendo “Em conclusão, o juiz, não conheceu das diversas excepções dilatórias a que estava obrigado, e, em vez de se abster de conhecer do pedido nos termos do art.º 288º, 1, al. b), declarou no despacho saneador ir conhecer desses pedidos, levou a matéria à especificação e ao questionário. Quer as decisões, quer as omissões, acima indicadas, são nulidades por violação da lei que influem na decisão da causa”.
Ora, da leitura do despacho recorrido extrai-se que o mesmo aprecia as nulidades invocadas pelos apelantes, referindo a sua inexistência, sendo questão diversa a concordância dos apelantes com a decisão tomada.
Verifica-se, pois, que não há qualquer violação do art. 206º, nº 3 do CPC anterior a 2013 e invocado em alegações, porquanto o tribunal recorrido, ainda que de forma rudimentar, apreciou as nulidades invocadas no momento da sua arguição, desatendendo-as, ou seja, concluindo pela sua inexistência.
Por outro lado, não se pode concordar com os apelantes quando referem que este despacho “violou por erro de aplicação o artº 6º nº 4 da Lei Preambular de aprovação do CPC, Lei nº 41/2013, de 26/6, porque a versão do CPC, anterior ao início de vigência dessa lei, se aplica desde o início até ao fim”, na medida em que a menção feita a normas do actual CPC em nada desvirtua a decisão, nomeadamente face à semelhança de tais normas face às anteriores, de igual teor, admitindo-se a existência de um lapso de escrita e que em nada abala o sentido da decisão tomada.
Entendem ainda os apelantes que o tribunal recorrido interpretou de forma errada o disposto no art. 671º, nº 1 do CPC anterior a 2013 (actual art. 613º do CPC), já que o caso julgado apenas abrange o despacho saneador que julgue o mérito da causa.
Têm toda a razão os apelantes quando referem a inexistência de caso julgado, sendo certo que a arguição de nulidades travaria qualquer caso julgado.
Ainda assim, impõe-se salientar que o tribunal recorrido não refere a existência de caso julgado, apenas manifesta a sua intenção de não modificar o despacho saneador proferido. Mais, o despacho saneador havia já tomado posição sobre as nulidades invocadas pelos exequentes, seja referindo a sua inexistência, seja relegando para final essa apreciação, sendo, pois, esse o sentido a dar ao despacho recorrido quando refere a existência de caso julgado.
Importa ainda referir que as concretas razões relativas ao não conhecimento de excepções dilatórias, bem como o conhecimento destas excepções, estão arredadas do âmbito do presente recurso, já que o despacho recorrido não se pronunciou sobre essa matéria.
Acresce que o despacho saneador que não conheça do mérito da causa ou que, por falta de elementos, relegue para final o conhecimento de matéria que cumpra conhecer não é recorrível, não podendo os apelantes pretender com o presente recurso a apreciação dessas questões, quase como permitindo a apreciação de questões que, de outro modo, não seria possível.
Ainda assim, sempre se dirá que, tendo o despacho saneador conhecido tabelarmente a existência de nulidades e excepções dilatórias, nada obsta a que essa decisão venha a ser revertida, porquanto não se formou quanto a essas questões caso julgado formal, cfr. art. 510º, nº 3 do CPC anterior.
Do que se vem de expor resulta que todas as questões que os apelantes entendem que não foram apreciadas podem vir a ser conhecidas em momento posterior, porquanto o despacho saneador deixou em aberto essa hipótese.
E, essa opção do tribunal recorrido não constitui qualquer nulidade que o despacho recorrido devesse sanar.
Com efeito, tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência que a possibilidade de conhecimento do mérito da causa e, para o que os autos interessa, de excepção peremptória assume natureza excepcional, já que raramente o estado do processo permitirá conhecer do mérito da causa logo após o final da fase dos articulados, sem que se proceda à instrução do processo.
Assim, apenas atendendo às várias soluções plausíveis da questão de direito aplicável ao caso concreto se poderá aferir da possibilidade de prescindir do julgamento da causa e, dessa forma, decidir sobre o mérito da causa, sendo também este o entendimento maioritário na jurisprudência. Nesse sentido, vide ampla jurisprudência no Ac. TRE supra citado e ainda o Ac. TRL, de 14-12-2006, relator Fátima Galante, proc. 9662/2006-6; Ac. TRC, de 21-09-2010, relator Carlos Gil, proc. 445/09.0T2OBR.C1; Ac. TRL, de 14-11-2013, relator Tibério Silva, proc. 866/11.9TBOER.L1-2 e Ac. TRG, de 10-07-2014, relator Filipe Caroço, proc. 741/13.2TBVVD.G1.
Donde, para que se possa conhecer do mérito da causa ou de excepção peremptória em sede de despacho saneador é imperioso que não existam factos controvertidos sobre a matéria, ou que os factos provados relativos à questão em apreço sejam relevantes para todas as soluções plausíveis de direito.
Ora, foi esse o caso dos autos quando se decidiu relegar para final o conhecimento das excepções de inexigibilidade e de compensação, sendo que todas as questões suscitadas pelos apelantes no seu requerimento de arguição de nulidades se subsumem a componentes dessas duas excepções.
Tendo o tribunal apreciado essas questões, não há qualquer nulidade no despacho em apreço, não estando o despacho recorrido eivado de qualquer irregularidade que cumpra sanar.
Concluindo, entende-se que não existem quaisquer motivos para a revogação do despacho recorrido, assim improcedendo a apelação.
As custas devidas por esta apelação ficam a cargo dos apelantes, cfr. art. 527º do CPC.
***

B–Do recurso interposto da decisão final:
Defendem, antes de mais, os apelantes que a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, als. b), d) e e) do CPC, por não ter decretado a compensação mas antes indicar que a compensação há-de ser feita, por não ter definido o «quantum» dos juros da execução a compensar, por omitir decisão sobre a compensação das custas da execução da responsabilidade dos executados, por não ter procedido à selecção de matéria de facto provada e não provada e por não ter fundamentado a decisão de procedência dos embargos.

Foi proferido o despacho a que alude o art. 617º do CPC.

Vejamos.

Nos termos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Esta nulidade, por se traduzir na inobservância das regras de elaboração da sentença, é um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.

Nas palavras de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V Volume, Coimbra, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.

Ou, como refere Tomé Gomes, in Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf:
“Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo.
A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão”.
Donde, só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do art. 615º, mas já não a errada decisão no âmbito do erro de julgamento. Neste sentido, vide Acs. STJ, de 15-12-2011, relator Pereira Rodrigues e de 02-06-2016, relator Fernanda Isabel Pereira., onde se pode ler “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento..

Questão diferente da falta de fundamentação é a existência de uma insuficiente fundamentação da resposta à matéria de facto e que leve a deficiências no entendimento do raciocínio lógico que levou aos factos provados e não provados.

Nos termos do art. 662º, nº 2, al. d) do CPC, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, deve a Relação determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. Ou seja, quando a decisão de algum facto essencial para o julgamento da causa não se mostre devidamente fundamentada deve o processo baixar para inserção da motivação em falta e ainda que para tanto seja necessário repetir a produção de prova.

Da mesma forma, os vícios de deficiência, obscuridade, contradição ou excesso da factualidade enunciada na sentença poderão ser arguidos como fundamento do recurso de apelação ou conhecidos oficiosamente pelo tribunal superior, nas condições previstas no art. 662, nº 2, al. c), do CPC.

Quanto à nulidade por omissão de pronúncia, o art. 615º, al. d) do CPC estatui que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Relaciona-se este preceito com o disposto no art. 608º do CPC, segundo o qual a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso e que possam determinar a absolvição da instância, bem como resolver todas as questões de mérito que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras, salvo as que forem de conhecimento oficioso.

Assim sendo, na fundamentação da sentença deve o juiz pronunciar-se sobre cada uma das pretensões trazidas a juízo, bem como sobre cada um dos fundamentos que lhes são opostos em sede de contestação, seja a título de excepção dilatória e que não tenha sido antes apreciada, seja a título de excepção peremptória.

Por outro lado, “… não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito”, cfr. Tomé Gomes, ob.cit., pág. 370.

Quer isto dizer que não há qualquer omissão de pronúncia quando as questões estruturantes da posição das partes sejam implícita ou tacitamente decididas, já que a análise da argumentação das partes não se confunde com a apreciação das questões que devem ser conhecidas, esta sim essencial.

Considerando as nulidades invocadas, e face à sua eventual repercussão nos autos, entende-se que as mesmas devem ser apreciadas de modo diverso do apresentado pelos apelantes.

Com efeito, a total ausência de factos provados e não provados, seja em despacho prévio, como previa o art. 791º do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 817º, nº 2 do mesmo diploma, seja, por adequação processual, na própria sentença, impõe a apreciação de tal nulidade em primeiro lugar, pois a mesma poderá influir nas demais questões suscitadas nos autos.

Importa não esquecer que o julgamento da matéria de facto se assume como o principal objectivo do processo civil declaratório, pois dele depende o resultado da acção.

Ora, assumindo-se a oposição à execução como um enxerto declaratório no âmbito do processo executivo, tem este princípio especial relevância, na medida em que da decisão da matéria de facto pode resultar a procedência da oposição e, por essa via, a extinção da execução.

Tal como decorre do art. 607º do CPC, a sentença comporta três partes distintas: o relatório, onde se procede à identificação das partes, do objecto do litígio e das questões a solucionar; a fundamentação, com enunciação dos fundamentos fáctico-jurídicos da decisão; e a decisão ou parte dispositiva em que o tribunal julga da procedência do pedido do autor ou réu reconvinte ou absolve da instância por falta de pressupostos processuais ou outra irregularidade insanável.

Fulcral em toda a sentença é o dever de fundamentação das decisões, o qual tem consagração constitucional (art. 205º, nº 1 da CRP) e está também previsto no art. 154º do CPC.

No caso concreto da sentença, dispõe o art. 607, nºs 3 e 4 do CPC que, na fundamentação da sentença, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, devendo ainda tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência, sempre de acordo com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cfr. nº 5 do art. 607º do CPC).

Vem este preceito na decorrência do art. 659º do anterior Código e que prescrevia que
1-A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2-Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
3-Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
4-No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais; indicar a proporção da respectiva responsabilidade e determinar a aplicação das secções B ou C da tabela I anexa ao Regulamento de Custas Processuais, quando seja caso disso.
5-Se tiver sido oral a discussão do aspecto jurídico da causa, a sentença pode ser logo lavrada por escrito ou ditada para a acta”.

Já o anterior CPC referia, no seu art. 653º, nº 2, que “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 718 “Tanto na enunciação dos factos provados como dos não provados, dentro dos limites dos temas da prova que foram enunciados ou que porventura foram adicionados posteriormente, o juiz deve sinalizar cada um dos factos essenciais que foram alegados no processo por cada uma das partes, de forma a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito e evitar que, em sede de recurso de apelação, seja sentida a necessidade de anulação da audiência final para ampliação da matéria de facto (art. 662º, nº 2, al. c) in fine)”, sendo “Em tal enunciação cabe necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa) sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a ação ou a exceção proceda”.

Donde, a correcta enunciação dos factos a atender assume importância fundamental nas decisões a proferir, situação com igual relevo mesmo no caso de decisões incidentais ou interlocutórias.

No caso dos autos, é a sentença completamente omissa quanto à enunciação de quaisquer factos, seja os que advieram da discussão da causa e com relevo para a decisão total da oposição, seja os que se referem exclusivamente à compensação e que o tribunal recorrido qualificou como questão prévia no despacho em que decidiu omitir a fase da fixação da matéria de facto.

Ora, a circunstância de o tribunal recorrido ter referido dispensar a fixação da factualidade assente, passando a decidir uma questão prévia não afasta a necessidade de elencar factos provados e não provados, principalmente após a produção de prova e quando o conhecimento dessa questão prévia é feito no momento da sentença.

Isto é, a inexistência de decisão sobre a matéria de facto consubstancia uma violação do dever de fundamentação da sentença, violação esta que assume especial gravidade no caso concreto por ter sido precedida de produção de prova e não existir a indicação de quaisquer factos relativos à compensação que se conclui existir, nomeadamente a causa dessa compensação.

E não basta a menção constante da sentença recorrida de que “foi proferida decisão com trânsito em julgado no processo acima identificado, no qual se decidiu reconhecer que os réus deveriam indemnizar os autores pelo valor de € 518.633,85 mantendo o reconhecimento da obrigação de os autores pagarem aos réus a título de preço de aquisição de quotas o valor de € 300.000,00, e, procedendo à compensação dos referidos valores, condenou os réus a pagarem aos autores a quantia de € 218.633,85” ou a que “… encontrando-se o direito do executado a compensar o seu contra crédito com o crédito dos exequentes, já reconhecido na sentença/acórdão em referência, o executado tem a faculdade de invocar tal facto extintivo do direito do exequente, por força do art. 729º, al. h), do CPC”, já que estas frases não podem ser definidas como factos, mas sim como conclusões ou afirmações de contexto jurídico.

Concluindo, existe uma ausência da fundamentação de facto, por falta de especificação de factos provados e não provados, bem como por omissão de qualquer apreciação crítica da prova produzida, e sua subsunção ao direito aplicado, impedindo, assim, a sua sindicância.

Concluindo, entende-se existir a alegada falta de fundamentação, o que determina a nulidade da sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC.

Nos termos do art. 665º, nº 1 do CPC, “Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”.

Será assim, por exemplo, em caso de não conhecimento de uma excepção, que poderá vir a ser conhecida em sede de recurso. Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, págs. 336 e 337.

Não é este, porém, o caso dos autos, porquanto essa apreciação significaria a diminuição de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto. Isto é, a absoluta falta de fundamentação da sentença recorrida, nesta se englobando a falta de discriminação dos factos provados e não provados e a falta da apreciação crítica da prova produzida, apenas pode ser colmatada pelo tribunal recorrido.

Em conclusão, impõe-se a anulação da sentença recorrida, devendo os autos baixar à 1ª instância, a fim de que aí seja fixada a matéria de facto nos termos expostos e, após, seja prolatada nova sentença.

Por tudo o que se vem de decidir, fica prejudicado o conhecimento das demais questões objecto da presente apelação, nos termos do art. 608º, nº 2 do CPC.

As custas desta apelação serão pela parte vencida a final e conforme decisão definitiva que se venha a proferir sobre os embargos de executado, cfr. art. 527.º do CPC.

V.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
A–Julgar improcedente a apelação relativa ao despacho de 19/10/2016.
Custas desta apelação pelos apelantes.
BAnular a sentença recorrida, determinando, em consequência, que os autos baixem à 1ª instância, a fim de que aí seja fixada a matéria de facto nos termos expostos e, após, seja prolatada nova sentença.
Custas desta apelação pela parte vencida a final.
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Lisboa, 7 de Dezembro de 2021



Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano