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FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
PRIVAÇÃO DO CONSUMO
VISTORIA
Sumário
1 - Sendo detectado pelo distribuidor do serviço de electricidade um procedimento fraudulento por parte do consumidor, poderá aquele proceder à inspecção da respectiva instalação eléctrica, através de um técnico seu, que lavrará um auto. 2 - Se tal inspecção “concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor, o distribuidor goza dos seguintes direitos: a) Interromper o fornecimento de energia eléctrica, selando a respectiva entrada; b) Ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude e dos juros que estiverem estabelecidos para as dívidas activas do distribuidor.” 3 – Se a opção do distribuidor do serviço for no sentido da interrupção do fornecimento de energia, tal direito mostra-se condicionado ao facto do distribuidor notificar previamente, por escrito, o consumidor do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o ter informado dos seus direitos, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia uma vistoria. Confere-se ainda ao consumidor o direito a obstar à interrupção do fornecimento, assumindo, por escrito, perante o distribuidor a responsabilidade pelo pagamento, no prazo que, na falta de acordo, este estabelecer, das verbas que lhe forem devidas. 4 – Nessas situações, o distribuidor tem ainda a obrigação de participar de imediato o facto à Direcção-Geral de Energia, juntando cópia do auto da inspecção realizada, bem como de toda a correspondência trocada com o consumidor. O consumidor, poderá ainda, quando entenda não ter cometido qualquer fraude, requerer à Direcção-Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação eléctrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas. 5 – Porém, nas situações em que o distribuidor do serviço opte por não exercer o seu direito a interromper o fornecimento de energia, não lhe é exigível proceder à indicada notificação ao consumidor, por escrito, do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o informar dos seus direitos, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no art.º 5.º do Decreto-lei n.º 328/90 de 22 de Outubro. 6 – O legislador prevê claramente dois tipos de situações: uma, manifestamente mais gravosa para o consumidor, que é a que decorre da possibilidade deste poder ficar privado de um bem essencial como é o consumo de energia eléctrica, hoje, fulcral para a vivência em sociedade; outra, muito menos grave, de âmbito meramente pecuniário e que implica para o consumidor a obrigação de ressarcir a distribuidora do serviço de energia eléctrica dos prejuízos por esta sofridos decorrentes da fraude. Nesta conformidade, só quanto à situação primeiramente referida o legislador impõe a notificação por escrito ao consumidor, com a informação de que poderá pedir outra vistoria à Direcção-Geral de Energia.
Texto Integral
Acordam os juízes desembargadores que integram o presente colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa,
I – RELATÓRIO
R…, Lda., veio propor a presente acção declarativa de simples apreciação negativa contra “… Distribuição - Energia, S.A.”, hoje, “E…, S.A.” pedindo que se declare a inexistência ou subsistência de qualquer direito da Ré a reclamar da A. o pagamento de 25.913,78€, bem como a inexistência de fundamento para a suspensão ou interrupção do fornecimento, ou, caso assim não se entenda, que apenas é devido pela A. à Ré a quantia de 1.984,58 €.
Para tanto alegou que a Ré lhe imputa, sem fundamento para tanto e sem que lhe tenha sido permitido contraditar a inspecção realizada, uma utilização irregular de energia eléctrica entre 01-10-2016 e 29-07-2019 no seu estabelecimento. Tal irregularidade foi verificada na auditoria técnica realizada em 29-07-2019, imputando a Ré à A. prejuízos de 25.913,78 €, correspondentes aos valores não contabilizados. Invocou a Autora que não só não há qualquer prova ou forma da Autora contraditar as conclusões da Ré, como, a ter existido alguma utilização irregular esta se cingiria aos meses de Junho e Julho de 2019, sendo inadmissível fazer retroagir a irregularidade a 2016.
Citada, veio a ré apresentar contestação e deduzir pedido reconvencional.
Alegou, em síntese, que no decurso de uma vistoria ao ponto de medição sito nas instalações da Autora foi detectada uma desconformidade na instalação, uma vez que os valores de corrente medidos no contador não eram coerentes com os medidos no P100. Ou seja, por força de uma manipulação na instalação elétrica, a energia disponibilizada para o local de consumo não era contabilizada integralmente pelo contador. Esta fraude terá alterado os consumos registados entre 01-10-2016 e 29-07-2019, cujo valor a Ré agora pretende que lhe seja pago.
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Por despacho foram fixados, o objecto do litígio e os temas da prova.
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Realizou-se o julgamento com observância do legal formalismo.
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Foi proferida sentença, onde, a final, se decidiu julgar a acção procedente e a reconvenção improcedente e, nessa medida: «- Declarar que a Ré … Distribuição - Energia, S.A., não tem fundamento para reclamar da A. R…, Lda o pagamento de 25.913,78 € ou para suspender ou interromper o fornecimento de energia pelo não pagamento daquela quantia; - Absolver a Autora do pedido contra si formulado pela … Distribuição - Energia, S.A..»
Inconformada com tal decisão veio a Ré recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões: «a) No âmbito dos presentes autos, foi proposta pela A., ora Recorrida, contra a R., Recorrida, uma presente acção declarativa de simples apreciação negativa, peticionando que se declare a inexistência ou subsistência de qualquer direito da Ré a reclamar da A. o pagamento de € 25.913,78 (vinte cinco mil, novecentos e treze euros e setenta e oito cêntimos), a título de indemnização, por uma irregularidade detetada na instalação elétrica particular desta última. b) Em síntese, alegou a R., ora Recorrente, em sede de Pedido Reconvencional que exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no concelho Lisboa, procedendo, nessa qualidade à ligação à rede eléctrica pública das instalações de consumo que, para tanto, tenham celebrado os respetivos contratos de fornecimento de energia eléctrica com os comercializadores que operam no mercado livre ou no mercado regulado, e bem assim, através dos seus piquetes técnicos, à fiscalização das instalações de consumo, tendo em vista despistar a existência de eventuais ligações abusivas ou manipuladas à rede eléctrica ou manipulação e adulteração dos equipamentos de contagem que são instalados nos locais de consumo. c) Nesta senda, acontece que, para o local de consumo com o n.º …7665, correspondente à instalação sita Avenida… Loja…, Lisboa, foi celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica entre um Comercializador e R…, Lda., ora Recorrida. d) O referido contrato iniciou os seus efeitos em 11.10.2014 e, à data da propositura da acção, ainda se encontrava em vigor. e) Aquando da ligação das instalações de consumo à rede eléctrica, a Recorrente instalou um equipamento de medição ou contagem, vulgo contador de electricidade, destinado a registar os consumos efectuados e procedeu à selagem do referido equipamento, para evitar a sua violação e adulteração dos registos, por parte de pessoas não autorizadas. f) Ainda, na qualidade de concessionária, a Recorrente procede à fiscalização das ligações à rede das instalações particulares de consumo, com o objectivo de despistar eventuais ligações abusivas à rede eléctrica pública ou manipulação e adulteração dos equipamentos de medida. Sucede que, g) No dia 29 de Julho de 2019, pelas 11h30, aproximadamente, foi efectuada uma vistoria ao ponto de medição nas instalações elétricas da A., local de consumo n.º …7665, sito em Avenida…, Loja…,Lisboa. h) No decurso da referida vistoria, foi detectado pelo técnico ao serviço da ora Recorrente, uma desconformidade na instalação, designadamente “(…) que os valores de corrente medidos no contador não estão coerentes com os medidos no P100 (…) intercepção entre a P100 e Caixa de TI’s (…)”. i) Concretamente, a intercepção referida supra entre a caixa P100 e a caixa de transformadores de intensidade, através de uma parede de pladur por onde passavam os cabos que ligavam as duas caixas, fazia com que a energia disponibilizada para o local de consumo não fosse contabilizada integralmente pelo contador, mas apenas parte dela. j) Assim, através da manipulação detectada na instalação eléctrica nos autos em apreço, a energia efectivamente consumida pela instalação não era considerada na sua totalidade para efeitos de facturação. k) Não obstante a detecção da manipulação no dia 29.07.2019, dada a complexidade da mesma, não foi possível ao técnico ao serviço da ora Recorrente proceder à sua correcção nesse mesmo dia, tendo, no entanto, ficado agendada nova deslocação ao local para o dia 31.07.2019, data em que se procedeu à eliminação da fraude. l) Com efeito, tendo em conta a manipulação detectada, a energia eléctrica obtida nessa instalação encontrava-se a ser consumida ilicitamente, não passando, na sua totalidade, pelo equipamento de contagem, nem sendo, consequentemente, esse consumo devidamente facturado. m) Resulta, assim, que a conduta da Recorrida, através dos seus Legais Representantes, proporcionou que, no período de 01.10.2016 a 29.07.2019, fosse consumida energia da rede pública de distribuição sem o respectivo pagamento. n) A Recorrida, através dos seus Legais Representantes, agiu e pretendeu com a sua conduta a obtenção de um benefício económico ilícito, que se traduz na apropriação de energia eléctrica da rede de distribuição sem efectuar o pagamento devido. o) À luz de tudo quanto se referiu supra, foi a Recorrente desapossada do valor da energia consumida e não paga pela Recorrida, que o fez contra a sua vontade e sem a sua autorização. p) Pelo exposto, a prática ilícita detectada permitiu que, no período que decorreu entre 01.10.2016 a 29.07.2019, fosse subtraída à Recorrente energia eléctrica, cujo valor ascende a € 21.917,90 (vinte um mil, novecentos e dezassete euros e noventa cêntimos). q) Para além do supramencionado, acresce a quantia de € 3.918,19 (três mil, novecentos e dezoito euros e dezanove cêntimos) referente ao valor da potência em horas, e a quantia de € 77,70 (setenta e sete euros e setenta cêntimos), correspondente a encargos com a detecção e tratamento da anomalia. r) A soma desses montantes perfaz o total de € 25.913,78 (vinte cinco mil, novecentos e treze euros e setenta e oito cêntimos). s) Ora, não obstante o Tribunal a quo, ter considerado como matéria provada a manipulação do equipamento de contagem (vulgo contador) – vide, neste sentido, Pontos 7 a 10 dos Factos Provados, descritos na Sentença – entendeu que a ora Recorrente não permitiu à A., Recorrida, a contraprova de tais factos, designadamente através da comunicação da possibilidade de requerer vistoria à Direcção Geral de Energia e Geologia, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-lei nº 328/90, de 22 de Outubro. t) Cumpre referir que, no caso em apreço, detectada a manipulação em 29 de Julho de 2019, procederam os Técnicos, no dia 31 de Julho de 2019, à sua correcção, não interrompendo, no entanto, o fornecimento de energia eléctrica àquela instalação. u) Vejamos, assim, o artigo 3.º do DL 328/90, de 22 de Outubro que prescreve o seguinte: “3º - 1 – Se da inspecção referida no artigo anterior se concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor, o distribuidor goza dos seguintes direitos: Interromper o fornecimento de energia elétrica, selando a respetiva entrada (…)” v) Por seu turno, o artigo 4.º do mesmo diploma prescreve que: “1 – O direito consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 3º só pode ser exercido depois de o distribuidor ter notificado, por escrito, o consumidor do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o ter informado dos seus direitos, nomeadamente o de poder requerer à Direção Geral de Energia a vistoria prevista no artigo seguinte”. w) E, por fim, o art.º 5º prescreve que: “1 – Sempre que o distribuidor use do direito de interromper o fornecimento de energia elétrica, participará de imediato o facto à Direção Geral de Energia (…) 2 – Sempre que o consumidor entenda não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direção Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação elétrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas. 3 – Se, em virtude da vistoria referida no número anterior, a Direção Geral de Energia concluir pela inexistência de qualquer procedimento fraudulento, ordenará ao distribuidor o imediato restabelecimento do fornecimento de energia elétrica, tendo, neste caso, o distribuidor o dever de indemnizar o consumidor pelos prejuízos causados”. x) Ora, de tal conjugação de preceitos, resulta claro que a vistoria por parte da Direcção Geral de Energia pode ser requerida pelo Consumidor (in casu, a Recorrida) quando o distribuidor use, ou pretenda usar, do direito de interrupção do fornecimento de energia à instalação. y) Faculdade essa que a Recorrida não exerceu. z) Por outro lado, da interpretação dos normativos legais referidos supra, igualmente se retira que, a Recorrente, enquanto Operador da Rede de Distribuição de Energia Eléctrica, apenas se encontra obrigada a informar o Consumidor de que pode requerer à DGE a vistoria à instalação eléctrica particular quando pretenda gozar do direito de interromper o fornecimento de energia eléctrica a um determinada local de consumo – o que, uma vez mais se refira, não se verificou, in casu, pois nunca procedeu a Recorrente à interrupção do fornecimento de energia eléctrica à instalação. aa) Porquanto, tratando-se de uma instalação com contrato de comercialização de energia activo, no qual foi detectada uma adulteração no equipamento de contagem, foi essa corrigida, sem qualquer interrupção no fornecimento. bb) A este respeito, atente-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 10/05/2016, proferido no âmbito do Processo n.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), no âmbito do qual o douto Tribunal se baseia para proferir a presente sentença, refere-se, especificamente, a uma situação de exercício do direito de interromper o fornecimento de energia à instalação: “IV - Por consequência, em caso de haver sido excepcionado procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica, não tendo a ré cumprido o ónus de provar ter entregue de imediato cópia do auto de vistoria à autora e que a informou dos seus direitos, nomeadamente de poder requerer à direcção geral de energia outra vistoria, procede o pedido, formulado na acção, de inexistência do direito de a ré interromper o fornecimento de energia eléctrica.”. cc) Até porque não poderia ser de outra forma! dd) Veja-se, neste sentido, o firmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede do mesmo acórdão anteriormente referido, considerando que “Apenas no caso de o consumidor não se conformar com a existência da anomalia e, bem assim, com a reparação é que o deve ser notificado do direito que lhe assiste em solicitar vistoria da Direcção Geral de Energia. A vistoria da Direcção Geral de Energia do Ministério, prevista no n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-lei n.º 328/90 de 22 de Outubro de 1990 só se justifica nos casos em que os consumidores optem por não permitir a correcção da anomalia. Porque se os consumidores permitem, como permitiu a Recorrida, que seja feita a correcção é evidente que qualquer vistoria se mostra desnecessária porque irá concluir pela inexistência de qualquer anomalia, porque a mesma já foi reparada! Nos presentes autos não resultou provado que durante a diligência levada a cabo pelos técnicos a Recorrida tivesse colocado em causa a realização e resultado da vistoria realizada, nem a rectificação da anomalia verificada. Não tendo colocado em crise a realização e resultado da vistoria realizada e permitindo a sua correcção da anomalia o Decreto-lei n.º 328/90 de 22 de Outubro de 1990 não prevê nem obriga que a Recorrente tivesse notificado a Requerida, por escrito, do direito que lhe assistia de requer a vistoria à Direcção Geral de Energia porque a anomalia tinha sido rectificada! (Sublinhado e destaque da responsabilidade da ora Recorrente) ee) Ora, tendo em conta as considerações do Supremo Tribunal de Justiça, para que dúvidas não restem quanto à conformação da A., ora Recorrida, quanto ao resultado da vistoria às suas instalações, repare-se que, o Auto de Vistoria, elaborado pelos Técnicos ao serviço da Recorrente no local de consumo nos autos em apreço, se encontra devidamente assinado pelo responsável da Recorrida que acompanhou os trabalhos de verificação. ff) Mais se refira, por outro lado, que, o n.º 2 do artigo 5.º do DL 328/90 dispõe que, “2 – Sempre que o consumidor entenda não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direção Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação elétrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas”. gg) Com efeito, é notório que o preceito legal supracitado dispõe que, após o Consumidor requerer a vistoria à instalação eléctrica à Direcção Geral de Energia, esta dispõe de 48 horas para a sua realização. hh) Assim, da normativo legal não se infere, de forma alguma, que a Recorrente, na qualidade de Operador de Rede, tem a obrigação de comunicar ao Consumidor que dispõe do prazo de 48 horas para requerer à Direcção Geral de Energia vistoria à instalação, após a inspecção em que se verificou a manipulação. ii) Nesta senda, considerando o exposto, uma vez que, detectada a manipulação na instalação eléctrica da Recorrida, a ora Recorrente apenas e somente corrigiu a anomalia, não tendo, em momento algum, procedido (ou mesmo manifestado a intenção de proceder) à interrupção do fornecimento de energia ao local, é notório que sobre esta não recaía a obrigação de informar aquela sobre o direito de requerer uma vistoria Direcção-Geral de Energia. jj) Em suma, salvo melhor e mais douto entendimento, considerando todo o exposto, não se verifica a violação de qualquer dever por parte da Recorrente, não podendo, assim, ter sido julgado pelo Tribunal a quo como improcedente o Pedido Reconvencional. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. Ilustres e Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, doutamente suprirão, requer-se que seja dado provimento ao presente recurso sendo revogada a douta decisão recorrida e, em consequência, deverá ser proferido Acórdão determinando o prosseguimento do processo, seguindo-se os ulteriores termos do processo. Só assim se fazendo a acostumada Justiça!»
A A. veio apresentar contra-alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões: «1. A decisão proferida deve ser mantida integralmente, em virtude de não padecer de qualquer vício na aplicação do Direito, devendo pelo contrário louvor por aplicar de modo sábio e correcto o Direito ao caso concreto, contribuindo para a justiça, certeza e clareza do mesmo; 2. Alega, sucintamente a Recorrente que a obrigação de informar o consumidor do direito de requerer uma vistoria, em 48 horas, à Direcção Geral de Energia, quando acusada de ter manipulado a instalação elétrica, apenas existe quando a Recorrente pretende suspender o fornecimento de energia. 3. Considera a Recorrente que, caso apenas pretenda cobrar o valor da energia, alegadamente consumida de modo fraudulento, tal dever de informação do consumidor deixa de existir. 4. Sem grande necessidade de delongas, bastará para tanto verificar o ponto II do sumário, do mencionado Acórdão, onde se lê “Os deveres inscritos e cominados no preceito citado [entenda-se nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei 328/90] constituem-se como um amplexo de valorações e inculcas advenientes de uma ideia (presumida) de que numa relação entre um particular/consumidor e uma entidade organizada colectiva e empresarialmente para prestar serviços a um lote muito alargado de pessoas, o encargo de fornecer informação sobre o conteúdo do contrato e dos direitos que lhe advém, quando ocorrem distúrbios no programa contratual, incumbe à parte que é mais forte e àquela que detém um manancial de meios para poder conferir à relação contratual um veio e espelho de transparência, de lisura, equivalência e equilíbrio (relativo) da respectiva posição contratual.” – sublinhado e itálico nosso. 5. De onde resulta que, o dever de informar o consumidor, neste caso a Recorrida, dos seus direitos não está dependente de decisões ou opções da Recorrente, perante desvios ao programa contratual, mas antes do seu dever de equilíbrio contratual. 6. Não tendo qualquer razão de ser a tese aduzida pela Recorrente, face ao douto entendimento do Supremo Tribunal de Justiça. 7. Contudo, a argumentação expandida nas alegações de recurso da Recorrente não é nova, já tendo sido objecto de pronúncia, em caso similar, de onde resultou o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 21.11.2019, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê, no ponto I do sumário: “I – O direito do consumidor ser informado que pode requerer à Direcção-Geral de Energia uma vistoria (de forma a funcionar como contra-vistoria) justifica-se não só no caso de interrupção de energia eléctrica ab initio, como quando o distribuidor opte por primeiro exigir o pagamento do consumo de energia facturado, uma vez que o disposto no 4º nº1 do Decreto Lei 328/90 de 22.10, está interligado com o preceituado no seu artigo 5º para o qual remete.” – sublinhado e itálico nosso. 8. Sendo certo que o douto Tribunal da Relação de Guimarães, no mesmo Acórdão conclui, de modo cristalino que: “Com este comportamento omissivo, a Ré inibiu o autor de produzir um meio de prova que, em abstracto, poderia colocar em crise a conclusão da Ré de que teria sido o autor a manipular o quadro ou, mais importante, de que essa manipulação realmente ocorreu. A preterição desse direito essencial do consumidor (autor leia-se) faz soçobrar o direito da ré de cortar o abastecimento de energia eléctrica e de exigir a quantia (supostamente) em dívida na medida em que privou o autor de fazer uso de uma ferramenta fidedigna e isenta (rectius, sem qualquer interesse na relação comercial em causa) que permitisse aferir com rigor o facto ilícito imputado pela Ré.” – sublinhado e itálico nosso. 9. Ora, na correcta aplicação do Direito e da solução do caso concreto, foi este mesmo entendimento que sustentou e suportou a douta sentença do Tribunal a quo. 10. Pelo que se renova, a obrigação de informar o consumidor do Direito de requerer uma vistoria à Direção Geral de Energia, não tem qualquer relação com a opção da Recorrente de proceder ou não ao corte de fornecimento de energia. 11. Quer a Recorrente pretenda proceder ao corte de fornecimento de energia, ou meramente exigir o preço da energia alegadamente consumida, está sempre obrigada a informar o consumidor do direito de proceder à contra vistoria. 12. Não o fazendo, como in casu, priva o autor da sua defesa e deixa de poder exigir qualquer pagamento. Nestes termos e nos demais de Direito, que V.Exa. doutamente suprirá, deverá a presente apelação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, com todos os efeitos legais.»
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela apelante, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das que, oficiosamente, cumpra conhecer, sendo que no presente caso é apenas uma a questão suscitada pela apelante.
Prende-se ela, com o entendimento por si perfilhado, de que só existe a obrigação por parte do distribuidor do serviço de energia, de notificar o cliente beneficiário desse serviço, dos seus direitos face à inspecção por si realizada, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral da Energia a vistoria a que se reporta o art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 328/90, de 22-10, nas situações em que tenha havido interrupção do fornecimento de energia e não já naquelas em que tal serviço se mantenha e apenas se pretenda cobrar o valor da energia que foi consumida por forma fraudulenta.
III - FUNDAMENTOS
1. De facto
São os seguintes, os factos dados como provados na sentença:
1. A Autora é uma sociedade que se dedica ao fabrico e comércio de pão de todos os tipos, pastelaria e comércio dos mesmos, snack bar, restaurante, café a bares.
2. No âmbito da sua actividade a A. contratou junto da Ré os serviços de distribuição de energia eléctrica.
3. Por virtude do contrato celebrado, na qualidade de concessionária, a R. efectuou a ligação à rede eléctrica de serviço público das instalações de consumo.
4. Aquando da ligação das instalações de consumo à rede eléctrica, a R. instalou um equipamento de medição ou contagem, vulgo contador de electricidade, destinado a registar os consumos efectuados e procedeu à selagem do referido equipamento, para evitar a sua violação e adulteração dos registos, por parte de pessoas não autorizadas.
5. Ainda na qualidade de concessionária, a R. procede à fiscalização das ligações à rede das instalações particulares de consumo, com o objectivo de despistar eventuais ligações abusivas à rede eléctrica pública ou manipulação e adulteração dos equipamentos de medida.
6. No dia 08 de Junho de 2019 foi realizada uma vistoria aos equipamento da Ré tendo o técnico da Ré declarado que os selos não estavam manipulados.
7. No dia 29 de Julho de 2019, pelas 11h30, aproximadamente, foi efectuada uma vistoria ao ponto de medição nas instalações eléctricas da A., local de consumo n.º …7665, sito em Avenida …, Loja… Lisboa.
8. No decurso da vistoria, foi detectado pelo técnico ao serviço da R., uma desconformidade na instalação, designadamente “(…) que os valores de corrente medidos no contador não estão coerentes com os medidos no P100 (…) intercepção entre a P100 e Caixa de TI’s (…)”.
9. A intercepção entre a caixa P100 e a caixa de transformadores de intensidade, através de uma parede de pladur por onde passavam os cabos que ligavam as duas caixas, fazia com que a energia disponibilizada para o local de consumo não fosse contabilizada integralmente pelo contador.
10. A situação foi corrigida no dia 31.07.2019.
11. A A. foi informada pela R., que o valor da importância em dívida relativa ao período em falta era de 25.913,78 (vinte cinco mil, novecentos e treze euros e setenta e oito cêntimos), através de carta, datada de 30.08.2019.
12. A A. sempre pagou os valores dos outros consumos facturados pela R.
Factos Não provados
a) A ré informou a autora do direito que lhe assistia de requerer vistoria à Direcção Geral de Energia e Geologia no caso de não concordar com as conclusões da vistoria.
b) Os factos descritos em 7) a 10) fizeram com que no período que decorreu entre 01.10.2016 a 29.07.2019, não fosse contabilizada energia eléctrica consumida, cujo valor ascende a € 21.917,90 (vinte um mil, novecentos e dezassete euros e noventa cêntimos).
c) Bem como € 3.918,19 (três mil, novecentos e dezoito euros e dezanove cêntimos) relativos ao valor da potência em horas, e a quantia de € 77,70 (setenta e sete euros e setenta cêntimos).
2. De direito
Apreciemos agora a questão suscitada pela apelante e que se traduz, como já referimos, no entendimento que perfilha de que só existe a obrigação por parte do distribuidor do serviço de energia, de notificar o cliente beneficiário desse serviço, dos seus direitos face à inspecção por si realizada, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral da Energia a vistoria a que se reporta o art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 328/90, de 22-10, nas situações em que tenha havido interrupção do fornecimento de energia e não já naquelas em que tal serviço se mantenha e apenas se pretenda cobrar o valor da energia que foi consumida por forma fraudulenta.
Na sentença, quanto a tal questão, referiu-se: «(…). O artigo 3º deste D.L prescreve os direitos do distribuidor para o caso em que da inspecção se concluir pela existência de fraude, pois nesse caso tem o distribuidor direito a interromper o fornecimento de energia eléctrica, mediante a selagem da respectiva entrada e ao ressarcimento do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude, bem como dos juros que estiverem estabelecidos para as divida activas do distribuidor. No entanto, para que o distribuidor tenha estes direitos terá que notificar o consumidor do valor do consumo irregular e alertar o consumidor de que pode requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artº 5 do mesmo Diploma. “Art. 5.º - 1 - Sempre que o distribuidor use do direito de interromper o fornecimento de energia eléctrica, participará de imediato o facto à Direcção-Geral de Energia, juntando cópia do auto referido no n.º 2 do artigo 2.º, bem como toda a correspondência trocada com o consumidor. 2 - Sempre que o consumidor entenda não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direcção-Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação eléctrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas. (…)”. Ora, no presente caso provou-se que a Autora não foi informada do direito que lhe assistia de requerer vistoria à Direcção Geral de Energia e Geologia (DGEG). Dispõe o artigo 344.º, n.º 2, do CC, que “há (…) inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado”. No caso em apreço se a Ré não informa o consumidor da possibilidade de este pedir uma outra vistoria por entidade independente, acaba por, com o seu silêncio, frustrar a possibilidade do consumidor demonstrar que ou não existe manipulação, ou que não lhe é imputável, ou que os valores apurados não são aqueles. Compreende-se que assim seja para que o consumidor se possa defender dado que sobre ele recai uma presunção ilidível da autoria da fraude. No caso, a Autora poderia requerer à Direcção-Geral de Energia, a realização de uma nova vistoria da instalação eléctrica no prazo de 48 horas. Toda esta conduta fez com que a Autora não tenha tido a possibilidade de exercer a defesa que a lei lhe permite, inviabilizando-se, por isso, uma prova segura e credível daquilo que a Ré alega – seja da autoria da manipulação, seja dos valores que permitiu subtrair ao controle do equipamento. Ou seja, no presente caso, ainda que existisse manipulação nos equipamentos eléctricos o que não se logrou apurar, porque não foi possível contraditar, foi se é imputável à Autora, e em que medida foram alterados os consumos reais. (…).»
A jurisprudência sobre esta questão encontra-se dividida, sendo que podemos encontrar, pelo menos, dois acórdãos em sentido antagónico abordando a mesma situação fáctica.
Por um lado, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-11-2019[[1]], que abraça a posição acolhida na sentença recorrida e, por outro, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-06-2021[[2]], que defende que o dever de informar o beneficiário desse serviço, dos direitos que lhe assistem decorrentes da vistoria por si realizada em que se detecta a violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor, designadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a realização por esta de uma vistoria, apenas é obrigatório quando o distribuidor pretenda interromper o fornecimento de energia eléctrica ao consumidor.
Em situações, como a que aqui se encontra em apreço, entendemos ser esta última posição a que se mostra mais consentânea com a letra e o espírito da lei.
Vejamos.
O Dec.-Lei n.º 328/90, de 22 de Outubro, surgiu no nosso ordenamento jurídico, como resulta do preâmbulo de tal diploma, visando salvaguardar as indesejáveis situações de «práticas fraudulentas assaz generalizadas (…), visando a redução dos valores facturados, com a consequente fuga ao pagamento dos consumos reais».
Visou-se com tal diploma melhorar o sistema de prevenção e de reparação de tais práticas fraudulentas.
Reconhece-se em tal preâmbulo que «estando em causa um bem essencial - a energia eléctrica - e o serviço público da sua distribuição, as práticas referidas, além de constituírem uma violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica, por fuga ao pagamento devido, configuram ainda um ilícito social.»
Por via de todo esse circunstancialismo considerou-se ser «indispensável e urgente tomar medidas que sejam adequadas à erradicação de tais práticas e, ao mesmo tempo, permitir que os distribuidores se possam ressarcir do valor dos consumos verificados durante a existência da fraude e das despesas dela emergentes.»
Podemos assim concluir que o objectivo do diploma visa fundamentalmente prevenir e reparar as condutas fraudulentas dos consumidores do serviço e, por tal via, salvaguardar também os interesses das empresas distribuidoras prejudicadas por tais condutas ilícitas.
Ora, focando-nos na questão que se encontra aqui em discussão – situações em existe a obrigatoriedade da empresa distribuidora notificar por escrito a consumidor do resultado da vistoria que detecta a fraude, informando-o de que tem o direito de requerer à Direcção-Geral de Energia a realização, por esta, de uma vistoria – teremos de ter fundamentalmente presentes os artgs. 1.º a 6.º do indicado Dec.-Lei n.º 328/90, de 22 de Outubro.
Resulta da conjugação destes dispositivos, que sendo detectado pelo distribuidor do serviço de electricidade um procedimento fraudulento por parte do consumidor (atenta a presunção prevista no n.º 2 do art.º 1.º), poderá aquele proceder à inspecção da respectiva instalação eléctrica, através de um técnico seu, que lavrará um auto “onde, sendo caso disso, se fará a descrição sumária do procedimento fraudulento detectado, bem como de quaisquer outros elementos que possam interessar à imputação da correspondente responsabilidade” (art.º 2.º, n.º 1 e 2). Tal “auto de vistoria será lavrado, sempre que possível, em presença do consumidor ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado, e deverá ser instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos; deste auto será deixada cópia ao consumidor.” (art.º 2.º, n.º 3).
Ora, se tal inspecção “concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor, o distribuidor goza dos seguintes direitos: a) Interromper o fornecimento de energia eléctrica, selando a respectiva entrada; b) Ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude e dos juros que estiverem estabelecidos para as dívidas activas do distribuidor.” (art.º 3.º n.º 1).
No entanto, tais direitos da distribuidora, mostram-se condicionados ao que se estipula no art.º 4.º do preceito, estabelecendo-se no n.º 1 do mesmo que “O direito consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º só pode ser exercido depois de o distribuidor ter notificado, por escrito, o consumidor do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o ter informado dos seus direitos, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo seguinte.”
Conferindo-se ainda ao consumidor o direito a ”obstar à interrupção do fornecimento, assumindo, por escrito, perante o distribuidor a responsabilidade pelo pagamento, no prazo que, na falta de acordo, este estabelecer, das verbas que lhe forem devidas nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º”
Acresce que o distribuidor tem ainda a obrigação, nos casos em que opta por exercer a prorrogativa de interromper o fornecimento de energia, de participar “de imediato o facto à Direcção-Geral de Energia, juntando cópia do auto referido no n.º 2 do artigo 2.º, bem como toda a correspondência trocada com o consumidor.” (art.º 5.º, n.º 1).
Por outro lado, o consumidor, quando entenda “não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direcção-Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação eléctrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas” (art.º 5.º, n.º 2), sendo que se o resultado desta vistoria for favorável ao consumidor (concluindo-se na mesma que inexistiu procedimento fraudulento) é ordenado “ao distribuidor o imediato restabelecimento do fornecimento de energia eléctrica, tendo, neste caso, o distribuidor o dever de indemnizar o consumidor pelos prejuízos causados.” (art.º 5.º, n.º 3).
Ora, do que se deixa exposto, é para nós claro que o legislador apenas estabelece a exigência da notificação, por escrito, “[a]o consumidor do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o ter informado dos seus direitos, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo” 5.º,quando opte por exercer o seu direito a “Interromper o fornecimento de energia eléctrica, selando a respectiva entrada.” (al. a), do n.º 1, do art.º 3.º).
Na realidade, afigura-se-nos que a lei é clara quanto a tal aspecto.
O legislador prevê claramente dois tipos de situações: uma, manifestamente mais gravosa para o consumidor, que é a que decorre da possibilidade deste poder ficar privado de um bem essencial como é o consumo de energia eléctrica, hoje, fulcral para a vivência em sociedade; outra, muito menos grave, de âmbito meramente pecuniário e que implica para o consumidor a obrigação de ressarcir a distribuidora do serviço de energia eléctrica dos prejuízos por esta sofridos decorrentes da fraude.
Nesta conformidade, só quanto à situação primeiramente referida o legislador impõe a notificação por escrito ao consumidor, com a informação de que poderá pedir outra vistoria à Direcção-Geral de Energia. Não só é o que resulta expresso do art.º 4.º, n.º 1, quando refere “O direito consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º…”, como também é o que se extrai da conjugação desses artigos 3.º e 4.º, com o 5.º.
Efectivamente, não terá sido por acaso que o legislador previu duas alíneas autónomas, consagrando dois direitos distintos que atribuiu à distribuidora do serviço de energia eléctrica; não terá sido também por acaso, que houve uma preocupação especial quanto a esse poder gravoso de interrupção do fornecimento de energia eléctrica, estipulando os cuidados a ter ao accioná-lo e os direitos do consumidor perante tal prorrogativa do distribuidor.
Com efeito, os artgs. 4.º e 5.º, n.º 1, visam salvaguardar essa situação (não só a necessidade de notificação do consumidor dos direitos a que já aludimos, como também o dever, por parte do distribuidor, de participar de imediato[[3]] à Direcção Geral da Energia quando interromper o fornecimento ao consumidor).
Por outro lado, não fica o consumidor impossibilitado de recorrer a tal Direcção Geral, pois que o n.º 2 do art.º 5.º permite que tal possa ocorrer, mesmo em situações em que não tenha havido interrupção do fornecimento de energia – “Sempre que o consumidor entenda não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direcção-Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação eléctrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas.”
Certo é que, se neste n.º 2 do art.º 5.º se visa abarcar todas as situações em que o consumidor pretende recorrer à aludida Direcção-Geral, por entender não ter cometido qualquer fraude, já no n.º 1 do preceito impõe-se ao distribuidor a obrigação de participar de imediato a interrupção do fornecimento de energia por si operada à Direcção-Geral de Energia, com a junção de cópia do auto de vistoria, bem como toda a correspondência trocada com o consumidor, nas situações em que tal interrupção tenha existido.
É assim para nós claro, repete-se, que o legislador previu duas situações distintas e tratou-as de forma diferenciada, não se nos afigurando possível extrair interpretação distinta da que deixamos exposta.
Refira-se, por outro lado, que os contributos jurisprudenciais que se adiantaram para fundamentar a posição assumida na sentença, também não nos parecem inteiramente adequados ao caso concreto.
Com efeito, há que ter presente que no âmbito do acórdão do STJ de 10-05-2016[[4]], citado na decisão recorrida, estava em causa uma situação em que se aludia expressamente à possibilidade da distribuidora interromper o fornecimento da energia[[5]], o que não ocorre aqui.
Por outro lado, no que concerne ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães apresentado pela recorrente nas suas alegações, há que ter presente que a posição aí assumida quanto à possível aplicação da Lei sobre o consumidor[[6]] não se enquadraria no cenário em apreço, atenta a noção de consumidor constante do art.º 2.º, n.º 1 do Dec. Lei nº 24/96, de 31.07, que não se abrange fornecimento de serviços destinados a uso profissional[[7]], como ocorre no caso sob análise.
Por tudo quanto se deixa dito, concluímos assim que não tendo a Ré procedido à interrupção do fornecimento eléctrico ao estabelecimento comercial da Autora, não obstante ser um direito que lhe assistia em face da verificação de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por parte desta, como resulta provado dos autos (pontos 8 e 9 da factualidade dada como provada) não se encontrava obrigada a realizar a notificação, por escrito, à Autora, contendo o valor presumido do consumo irregularmente feito e a informação dos direitos que à infractora incumbia, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no art.º 5.º do referido Dec.-Lei.
Desta forma, não se mostram violados, por parte da Ré, quaisquer direitos da Autora, nomeadamente de defesa, os quais sempre poderia exercer por via judicial, como fez, ou mesmo junto da Direcção-Geral da Energia, à luz do disposto no art.º 5.º, n.º 2 do já referenciado Dec.-Lei.
Como dissemos supra, igual entendimento foi assumido também no já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-06-2021.
Temos assim que concluir que a questão colocada pela apelante procederá, sendo assim de revogar a decisão no que concerne à procedência do pedido formulado pela Autora, que, por tal forma, terá de improceder.
Já no que concerne ao pedido reconvencional, que a apelante pretende que seja julgado procedente, dir-se-á que tal não poderá ser determinado por inexistência de matéria factual que possa sustentar tal pedido.
Com efeito, tendo presentes os factos dados como não provados constantes das alíneas b) e c) - «b) Os factos descritos em 7) a 10) fizeram com que no período que decorreu entre 01.10.2016 a 29.07.2019, não fosse contabilizada energia eléctrica consumida, cujo valor ascende a € 21.917,90 (vinte um mil, novecentos e dezassete euros e noventa cêntimos); c) Bem como € 3.918,19 (três mil, novecentos e dezoito euros e dezanove cêntimos) relativos ao valor da potência em horas, e a quantia de € 77,70 (setenta e sete euros e setenta cêntimos)» - verifica-se que não se logrou comprovar a energia eléctrica consumida e o respectivo valor, razão pela qual falece o pedido formulado pela apelante.
IV – DECISÃO
Desta forma, o presente colectivo deste Tribunal da Relação de Lisboa, acorda em julgar a apelação em parte procedente e, nessa medida, revoga em parte o decidido na sentença recorrida, assim julgando:
- improcedente o pedido formulado pela Autora, absolvendo-se a Ré do mesmo;
e
- improcedente o pedido reconvencional formulado pela Ré, assim se absolvendo a Autora do mesmo.
Custas por apelante e apelada, na proporção de ½ por cada uma delas
Lisboa, 02-12-2021
José Maria Sousa Pinto
João Vaz Gomes
Jorge Leal
_______________________________________________________ [1] Proc.º 3823/18.0T8BRG.G1, em que foi relator António Sobrinho, disponível em www.dgsi.t [2] Proc.º 558/19.0T8ETR.P1, em que foi relatora Anabela Dias da Silva, disponível em www.dgsi.pt [3] Sublinhado nosso. [4] Proc.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1, Relator, Gabriel Catarino, disponível em www.dgsi.pt [5]Tenha-se presente o seguinte segmento de tal aresto, de onde decorre a circunstância de se estar a falar de situação em que estava em causa a interrupção do fornecimento de energia eléctrica: «O dever de informação – não só relativamente das vicissitudes mecânicas que determinaram o estropiamento do equipamento, como das consequências e, “last but not the least”, quais os direitos que pode accionar para obviar as consequências (vitais e decisivas) de interrupção do fornecimento de energia eléctrica – constitui-se, em nosso como um dever infringível e que não pode ser desculpado ou descurado pela entidade que tem o dever inafastável de promover o equilíbrio de uma relação sinalagmática salutífera.» [sublinhado nosso]. [6]Onde se refere: «Todavia, tratando-se de um bem essencial - a energia eléctrica - cuja distribuição constitui serviço público, são exigíveis maiores cautelas ao fornecedor, a fim de serem assegurados os direitos do consumidor, como seja o direito à informação para o consumo, consagrado no artº 3º, al. d), do Dec. Lei nº 24/96, de 31.07.» [7]“1 - Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” [sublinhado nosso].