BENEFÍCIO DO PRAZO
FIADORES
RENÚNCIA
PAGAMENTO PARCIAL DO CRÉDITO
MORA
NOVA LIQUIDAÇÃO
Sumário

I - Em regra, a perda do benefício do prazo por parte do devedor principal não importa idêntica perda para os respectivos fiadores (artigo 782.º do Código Civil).
II - O artigo 782.º do Código Civil é uma norma supletiva, podendo ser afastado por convenção das partes.
III - Num contrato de mútuo amortizável a prestações, tendo sido estipulado que se o imóvel hipotecado fosse alienado sem o seu consentimento a credora tinha o direito de considerar, «sem necessidade de aviso», «imediatamente vencido e exigível» o empréstimo, esta cláusula deve ser interpretada no sentido de implicar a exigibilidade imediata da obrigação de amortização do empréstimo, conducente à caducidade do benefício do prazo.
IV - Tendo intervindo no contrato fiador que assumiu, na qualidade de principal pagador, a responsabilidade por «tudo quanto viesse a ser devido à credora em consequência daquele mútuo», dando o seu acordo a ulteriores modificações dos prazos de amortização do capital e declarando estar ciente da estipulação referida em 3, deve entender-se que o mesmo renunciou ao benefício do prazo no caso de se verificar essa situação.
V - Verificada a alienação do imóvel hipotecado para garantia do reembolso do mútuo, impunha-se que a credora procedesse ao novo cálculo do capital ainda em dívida e o comunicasse ao fiador, sem o que não é lícito considerar este constituído em mora, nos termos do 805.º, n.º 3, 1.ª parte, do Código Civil.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:2196/20.6T8LOU.B.P1

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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A B…, S.A. instaurou execução para pagamento de quantia certa contra C…, D… e E…, apresentando como título executivo um contrato de mútuo em que é mutuário o 2º executado e são fiadores os restantes executados.
No requerimento executivo alegou que através do aludido contrato de 13.08.2004 concedeu um empréstimo no montante de €67.500,00, que o mutuário deixou de pagar as prestações a partir de 13.01.2010, que o imóvel hipotecado em garantia do crédito foi adjudicado à exequente pelo valor de € 51.000,00 em Junho de 2014 numa execução movida por terceiro, estando em dívida, à data de 07.08.2020, a quantia global de €30.467,53, correspondendo ao capital de €13.197,79, acrescido de juros de 13.01.2010 a 07.08.2020, no valor de €15.757,87, e comissões de €1.511,87.
Em virtude do falecimento da executada E…, foram habilitados para com eles, em substituição da executada falecida, prosseguirem os termos da execução apensa, C…, F…, G… e H….
O executado C…, por si e em representação dos demais habilitados, veio, por apenso à execução, deduzir embargos de executado, requerendo a extinção da execução contra os embargantes, alegando/peticionado, em síntese, o seguinte:
1- A prescrição do direito de crédito exequendo, uma vez que o incumprimento e o vencimento antecipado datam de 2010 e a presente execução apenas foi instaurada em 2020, sendo de 5 anos o prazo de prescrição.
2- A prescrição dos juros de mora vencidos há mais de 5 anos.
3- A inexigibilidade da obrigação exequenda aos embargantes, enquanto meros fiadores do contrato de mútuo, uma vez que, por um lado, não ocorreu a perda do benefício do prazo relativamente aos mesmos, os quais não foram interpelados para pagar a dívida vencida, e, por outro lado, é abusiva a actuação da exequente, ao demandar os embargantes mais de 10 anos depois do incumprimento e 6 anos depois da adjudicação do imóvel hipotecado.
4- A extinção da fiança, uma vez que a exequente não deu a possibilidade aos fiadores de pagarem a dívida, enquanto a sub-rogação lhes permitia adquirir a garantia hipotecária.
5- A falta de liquidação no requerimento executivo quanto aos valores peticionados a título de juros de mora e comissões.
A embargada contestou, impugnando de facto e de direito a alegação dos embargantes e alegando basicamente o seguinte:
1- Quanto se iniciou o incumprimento, em 2009, os fiadores foram informados por carta e para procederem ao pagamento dos valores vencidos até então;
2- Em 28.10.2010, no âmbito de um outro processo executivo movido por terceiro contra o mutuário, foi penhorado o imóvel hipotecado em garantia do mútuo exequendo, tendo a exequente sido citada para reclamar o seu crédito, o que fez em 18.11.2010, vindo o imóvel a ser aí vendido e adjudicado à exequente, em 18.06.2014, pelo preço de €51.000,00;
3- Após cálculo da dívida actualizado, os fiadores foram interpelados por carta, em 19.02.2015, para procederem ao pagamento do valor em falta, tendo os fiadores apresentado proposta de pagamento em prestações, sem revelarem desconhecimento da dívida e da venda do imóvel;
4- O prazo de prescrição do direito de crédito exequendo é de 20 anos, uma vez que se verificou o vencimento antecipado do capital vincendo, sendo certo que este não inclui os juros remuneratórios associados às prestações, não se aplicando, pois, o prazo de 5 anos previsto para a amortização do capital com juros;
5- O prazo de prescrição interrompeu-se com a reclamação do crédito apresentada no âmbito do processo executivo onde o imóvel hipotecado acabou por ser vendido;
6- Os fiadores renunciaram ao benefício do prazo, conforme resulta do contrato, nas alíneas a) e b) da cláusula 14ª do documento complementar da escritura pública do mútuo, onde se refere o direito de a exequente considerar o vencimento antecipado do mútuo em caso de venda do imóvel hipotecado e incumprimento de alguma obrigação contratual, sem necessidade de aviso;
7- Não é possível aos fiadores fazerem o pagamento das prestações do mútuo como se este ainda estivesse em vigor, tanto mais que já foi vendido o imóvel hipotecado e imputado o valor da venda na dívida;
8- Não existe abuso de direito da exequente, pois esta limitou-se a aguardar a venda do imóvel hipotecado, de modo a verificar o valor que ficaria em dívida, até na perspectiva de evitar executar os fiadores, sendo que estes vieram, inclusive, a apresentar uma proposta de pagamento faseado;
9- A quantia exequenda mostra-se discriminada no requerimento executivo.
Findos os articulados, o Mmo. Juiz a quo conheceu do mérito e julgou os embargos procedentes quanto à inexigibilidade imediata da dívida relativamente aos fiadores do contrato de mútuo exequendo, determinando a extinção da execução quanto aos executados C… e E… (representada pelos seus sucessores habilitados).
Do assim decidido, a embargada interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do saneador-sentença que julgou procedentes os embargos deduzidos pelo executado C…, por si e em representação dos executados/habilitados F…, G… e H… e, em consequência, determinou a extinção da execução quanto aos mesmos, com fundamento na falta de exigibilidade da quantia exequenda.
2. A Recorrente deu entrada da presente acção executiva contra D…, C… e E… para a cobrança da quantia de € 30.467,53, tendo dado à execução contrato de mútuo com hipoteca e fiança celebrado em 13 de agosto de 2004, em que o primeiro é mutuário, e os segundo e terceiro fiadores.
3. Para garantia do pagamento do capital mutuados, respectivos juros e despesas, foi constituída uma hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra “U” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Paços de Ferreira sob o n.º 385, o qual foi adjudicado à exequente B…, S.A., em Junho de 2014, pelo valor de €51.000,00.
4. O contrato de mútuo com hipoteca e fiança apresenta uma situação de incumprimento desde Janeiro de 2010, encontrando-se o valor em dívida, à data de 7 de agosto de 2020, da quantia de € 30.467,53, tendo sido junto com o requerimento executivo a respectiva nota de débito.
5. A Exequente invocou a venda judicial do bem imóvel hipotecado, bem assim como o incumprimento das obrigações resultantes do referido contrato de mútuo, a interpelação para cumprimento dos devedores e o vencimento antecipado da totalidade da dívida.
6. A fiadora E… faleceu e foram habilitados os seus sucessores, tendo sido deduzida oposição à execução mediante embargos onde, entre outros fundamentos, foi invocada a inexigibilidade da obrigação exequenda por falta da perda do benefício do prazo.
7. Na contestação apresentada, a exequente invocou que, de acordo com o teor do contrato de mútuo, o vencimento antecipado do empréstimo ocorria perante a alienação do bem imóvel hipotecado sem o seu consentimento ou perante a falta de cumprimento de uma das obrigações resultantes do contrato.
8. Apesar da factualidade dada como provada, o douto tribunal a quo entendeu que não se verificou quanto aos embargantes, na qualidade de fiadores, a perda do benefício do prazo, razão pela qual julgou procedentes os embargos de executado e determinou a extinção da execução quanto aos executados/embargantes.
9. O tribunal a quo entende que, para que se tenha por incumprida a obrigação e verificada a responsabilidade do fiador pelo incumprimento, seja pela mora seja por indemnização fundada no incumprimento culposo do devedor principal, não é necessária a sua interpelação.
10. Contudo, no que respeita à perda do benefício do prazo, o tribunal a quo entende que, ainda que se verifiquem os respectivos pressupostos relativamente ao devedor principal, podendo o credor exigir a totalidade da dívida, tal não significa que se estenda essa exigibilidade aos demais co-obrigados e garantes, a não ser que exista uma estipulação contratual em contrário, o que, em seu entendimento, não existe no caso em apreço.
11. Concordando-se que não é necessária qualquer interpelação dos devedores/fiadores, somos do entendimento que o tribunal a quo não fez uma correta aplicação do direito ao caso em apreço.
12. Os executados C… e E… assumiram a responsabilidade como fiadores e principais pagadores no contrato de mútuo com hipoteca peticionado nos presentes autos.
13. Nos termos do n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil, é fiador o terceiro que assegura com o seu património o cumprimento de uma obrigação alheia, ficando pessoalmente responsável perante o respectivo credor, sendo que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal, moldando-se pela mesma e abrangendo tudo aquilo a que o devedor principal está obrigado nos termos dos artigos 631.º e 634.º do Código Civil.
14. Uma das excepções ao artigo 634.º do Código Civil é a perda do benefício do prazo, uma vez que, de acordo com o artigo 782.º do Código civil, a mesma não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.
15. A perda do benefício do prazo encontra-se expressamente contemplada nos artigos 780.º e 781.º do Código Civil, sendo que, neste último artigo, encontra-se previsto o respectivo regime jurídico para a dívida liquidável em prestações.
16. No caso em apreço estamos perante uma dívida liquidável em prestações, uma vez que, no contrato de mútuo peticionado nos presentes autos foi acordado um prazo para a amortização do empréstimo, a qual seria efectuada através do pagamento de prestações mensais constantes.
17. Nos termos do artigo 781.º do Código Civil, se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas, consistindo a perda do benefício do prazo consiste na possibilidade do credor exigir antecipadamente o cumprimento da totalidade da obrigação.
18. O artigo 782.º do Código Civil afasta, no entanto, a aplicação do regime constante do artigo 781.º aos co-obrigados do devedor, nomeadamente aos fiadores que garantem o cumprimento da obrigação.
19. O regime constante dos artigos 781.º e 782.º do Código Civil é meramente supletivo, vigorando o princípio da liberdade contratual, pelo que as partes podem afastar o regime jurídico ali constante, contemplando a aplicação aos fiadores da perda do benefício do prazo.
20. Na jurisprudência, existe um forte sector que defende que o regime constante do artigo 781.º do Código Civil, que determina o vencimento antecipado da obrigação em virtude do incumprimento de uma prestação, depende necessariamente da interpelação prévia dos devedores, afastando o tribunal a quo de tal regime ao entender que não há uma obrigatoriedade de interpelação dos devedores e/ou fiadores.
21. Considerando que se trata de um regime meramente supletivo, as partes podem acordar no vencimento antecipado da dívida pelo incumprimento de uma prestação mensal, independentemente da prévia interpelação dos devedores e dos fiadores.
22. Nos termos das alíneas a) e b) da Cláusula 14.ª do documento complementar do contrato de mútuo peticionado nos presentes autos, a credora B…, S.A. tem o direito de considerar o empréstimo vencido se o imóvel hipotecado for alienado, sem o seu consentimento, ou se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato, “sem necessidade de aviso”.
23. As partes contratuais aceitaram o vencimento antecipado dos empréstimos, independentemente de interpelação, no caso de venda do bem imóvel garantido ou no caso de incumprimento de uma obrigação contratual, como seja a do pagamento das prestações mensais.
24. Tendo os artigos 781.º e 782.º do Código Civil uma natureza supletiva, os mesmos foram expressamente afastados pelas partes, pelo que a exequente não tinha qualquer obrigação de proceder à interpelação dos devedores ou dos fiadores nos casos de incumprimento contratual ou de venda do bem imóvel garantido.
25. O douto tribunal a quo entende, no entanto, que a referida cláusula contratual não tem aplicação ao fiador, mas apenas quanto ao devedor principal.
26. No contrato de mútuo, os fiadores responsabilizaram-se “como fiadores e principais pagadores, por tudo o que venha a ser devido à B… credora em consequência do empréstimo aqui titulado, dando desde já o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extracto da conta e aos documentos de débito seja também aplicada à fiança. Que conhecem também perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar, pelo que é dispensada a sua leitura.”
27. O referido contrato de mútuo com hipoteca e fiança foi celebrado por escritura pública, sendo que os embargantes intervieram, na qualidade de fiadores, na outorga do documento complementar da escritura pública dos mútuo dada à execução em que foi estipulada a cláusula 14.ª acima transcrita, tal como intervieram, nessa qualidade, na outorga da referida escritura, em que ficou consignado que o empréstimo se regia pela cláusula constante dessa escritura, bem como pelas cláusulas do respectivo documento complementar.
28. No documento complementar ficou estipulado que era reconhecido à credora o direito de considerar o vencimento do empréstimo em caso de o imóvel hipotecado ser alienado sem consentimento dela ou perante o não cumprimento de uma das obrigações.
29. Perante uma assunção dos fiadores peremptória em relação a ulteriores modificações dos prazos de amortização, afigura-se que, entre “tudo quanto venha a ser devido à B… Credora” em consequência daquele empréstimo, não se poderá deixar de incluir o devido pelo estipulado direito da credora a considerar o vencimento imediato dos empréstimos em caso de alienação do imóvel hipotecado sem o seu consentimento ou de não cumprimento de uma das obrigações.
30. Ao contrário do que resulta da sentença recorrida, a cláusula contratual que prevê o vencimento antecipado da obrigação, independentemente de interpelação, é aplicável aos embargantes, na qualidade de fiadores.
31. Estamos perante documentos autênticos que atestam o conhecimento de todos os contraentes do conteúdo das cláusulas acordadas, dado que o contrato de mútuo foi celebrado por escritura público constituindo documento autêntico com força probatória plena, onde os embargantes/fiadores declararam “que conhecem também perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar, pelo que se dispensa a sua leitura”.
32. O regime constante dos artigos 781.º e 782.º do CC foi afastado pelas partes, sendo que os embargantes/fiadores assumiram também contratualmente a responsabilidade pela amortização dos empréstimos no caso da sua exigibilidade imediata em virtude da alienação do imóvel hipotecado sem consentimento da credora ou de não cumprimento das obrigações do contrato.
33. No caso em apreço, temos duas situações que configuram o vencimento antecipado previsto contratualmente, sendo, por um lado, o vencimento antecipado por incumprimento de uma obrigação contratual e, por outro, o vencimento antecipado por alienação do bem imóvel hipotecado sem o consentimento da credora.
34. O vencimento por incumprimento reconduz-se às situações de falta de pagamento de uma divida liquidável em prestações, previstas no ao regime contemplado no artigo 781.º do CC, o qual, como vimos, um sector da jurisprudência exige a interpelação dos devedores, enquanto outro sector dispensa qualquer interpelação, onde se inclui a posição do tribunal em quo.
35. No caso em apreço, foi dada como provada a interpelação dos embargantes/fiadores, sendo certo que, independentemente de qualquer interpelação (que o tribunal a quo considera inócua), o contrato de mútuo em causa afastou a necessidade dessa interpelação ao contemplar a possibilidade de vencimento antecipado da dívida “sem necessidade de aviso”.
36. Foi dado como provado em 10, 11 e 12 a interpelação da exequente aos fiadores por duas vezes, bem assim como a proposta de pagamento apresentada pelos fiadores, o que originou várias negociações que acabaram por adiar a instauração da presente acção judicial.
37. O contrato de mútuo peticionado nos autos entrou em incumprimento a partir de Janeiro de 2010, preenchendo-se o pressuposto da falta de cumprimento das prestações acordadas.
38. No vencimento por alienação do imóvel hipotecado sem o consentimento da credora, a perda do benefício do prazo fica dependente precisamente da alienação do imóvel hipotecado sem o consentimento da credora, nada se relacionando com a falta de pagamento das prestações.
39. Trata-se de uma cláusula de perda do benefício de prazo numa situação particular de diminuição das garantias do crédito, consistente na alienação do bem hipotecado sem o consentimento da credora, alheada da sua imputação ao devedor, a qual, como vimos, é aplicável aos fiadores.
40. O imóvel hipotecado referido na escritura foi adjudicado à B… em 18 de Junho de 2014, no âmbito do processo executivo n.º 9552/09.9TBMAI, pelo valor de €51.000,00, pela que a Exequente B…, S.A. considerou igualmente vencido o empréstimo garantido, dado que se encontra numa situação de alienação do bem imóvel hipotecado sem o consentimento da Credora.
41. Assiste à ora exequente o direito de considerar vencido o empréstimo nos termos da cláusula 14.ª do documento complementar da escritura dada à execução, tratando-se de obrigações por que são responsáveis os embargantes, na qualidade de fiadores solidários dos mutuários, nos termos acima expostos.
42. O empréstimo deixou de se considerar em vigor com a venda do bem imóvel que garantia o respectivo cumprimento, tendo neles sido aplicado o produto da respectiva venda, ocorrendo uma verdadeira transformação da relação jurídica existente, uma vez que, através da venda do bem imóvel garantido e da aplicação do produto da respectiva venda, o plano de pagamento inicialmente previsto deixou de estar em vigor.
43. Não é possível os fiadores fazerem o pagamento de prestações mensais que já não se encontram em vigor face à venda do imóvel garantido e à aplicação do produto da respectiva venda, desde logo, porque o plano inicialmente acordado dependia de diversas circunstâncias como seja o facto de existir um bem imóvel dado de garantia.
44. Não faz qualquer sentido a observação tecida pelo tribunal a quo no sentido de manter um regime distinto de pagamento para o devedor/mutuário (quanto à totalidade da dívida) e, ainda assim, permitir o pagamento das prestações mensais aos devedores/fiadores.
45. Deve reconhecer-se a perda do benefício do prazo de amortização do remanescente do empréstimo ajuizado e da sua eficácia em relação aos fiadores, ora embargantes.
46. A título meramente exemplificativo veja-se o sumário do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 6 de Dezembro de 2018, o qual defendeu a aplicação aos fiadores do regime do vencimento antecipado da dívida contemplado no contrato de mútuo, onde se inclui a alienação do bem imóvel hipotecado sem o consentimento da credora.
47. A sentença proferida pelo tribunal a quo deve ser revogada, determinando-se o prosseguimento da execução contra os embargantes face ao demonstrado vencimento antecipado da dívida.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão proferida pelo douto tribunal a quo que declarou a extinção da instância executiva, com todas as consequências, conforme é de Justiça.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i- Se os embargantes continuam a beneficiar do prazo estipulado no contrato de mútuo para o reembolso da quantia mutuada, caso em que podem opor à exequente a inexigibilidade da quantia exequenda.
ii- Se pode ser exigido aos fiadores o pagamento dos juros de mora anteriores à sua citação para a execução.
iii- Face à resposta àquelas questões, qual o valor em dívida.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. A exequente deduziu execução, na forma ordinária, em 10.08.2020.
2. Alegando o que consta do requerimento executivo, que aqui se dá por reproduzido.
3. E apresentando, como título executivo, a escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança junta com o requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, outorgada em 13.08.2004, na qual o executado D… figura como segundo outorgante e mutuário, a exequente figura como terceira outorgante e mutuante, e os executados C… e E… figuram como quartos outorgantes e fiadores, contendo as cláusulas constantes de tal documento, com o respectivo documento complementar associado.
Do título da escritura pública constam, além do mais, as seguintes cláusulas:
«Disseram, depois, os segundo e terceiro outorgantes, nas referidas qualidade, que a B…, S.A., adiante designada apenas por B… ou credora, concede ao segundo outorgante, adiante designado por parte devedora um empréstimo da quantia de sessenta e sete mil e quinhentos euros, (Regime geral), pelo prazo de quarenta anos, para aquisição da referida fracção, importância de que este se confessa desde já devedor. Tal empréstimo reger-se-á pelas cláusulas da presente escritura e das constantes do documento complementar …»
«Pelos quartos outorgantes foi dito: “Que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores, por tudo quanto venha a ser devido à B… credora em consequência do empréstimo aqui titulado, dando desde já o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extracto da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança. Que conhecem também perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar, pelo que se dispensa a sua leitura”
Do documento complementar, também assinado pelos executados embargantes, constam, além do mais, as seguintes cláusulas:
«7.ª (Prazo)
O presente empréstimo vigorará pelo prazo de quarenta anos, a contar de hoje.
8.ª (Pagamento dos juros e do capital)
1- O capital do empréstimo será amortizado em prestações mensais constantes, de capital e juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da celebração deste contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes.
2- O montante das prestações será oportunamente comunicado pela credora.
3- No caso de virem a ser alterados o regime da amortização, o prazo de duração do empréstimo ou a taxa de juro, e no caso de a parte devedora proceder antecipadamente ao reembolso parcial do empréstimo a credora fará novo cálculo das prestações a pagar, cujo montante comunicará à parte devedora.
14.ª (Vencimento Antecipado)
A parte credora poderá, sem necessidade de aviso, considerar imediatamente vencidas e exigíveis todas as responsabilidades garantidas e executar a constituída hipoteca:
a) Quando a parte devedora deixe de cumprir qualquer das cláusulas deste contrato, designadamente quando vencida e não paga qualquer das prestações referidas e não haja prorrogação, renovação, reforma ou substituição permitida pela parte credora;
b) Quando o bem ora hipotecado vier a ser objecto de execução, arresto, penhora ou de outra forma de apreensão judicial, alienado, locado, objecto de consignação de rendimentos ou, de algum modo, onerado ou desvalorizado, sem que para tanto haja autorização da parte credora. (…)»
4. As prestações do contrato corporizado pela aludida escritura pública deixaram de ser pagas em 13.01.2010.
5. No âmbito do processo executivo n.º 9552/09.9TBMAI, em que era exequente I…, S.A. e era executado D…, foi penhorado o imóvel hipotecado referido na acima aludida escritura pública.
6. Vindo, nessa sequência, a ora exequente a, por ofício de 28.10.2010, ser aí citada, na qualidade de titular de hipoteca sobre o imóvel penhorado, para reclamar o seu crédito, conforme ofício junto como doc. 33 da contestação.
7. Nesse seguimento, a ora exequente apresentou nessa outra execução requerimento de reclamação de créditos, com data de 18.11.2010, conforme requerimento junto como doc. 44 da contestação, com o teor que aqui se dá por reproduzido, reclamando o crédito decorrente do mesmo contrato corporizado na acima aludida escritura pública.
8. Considerando a exequente antecipadamente vencidas as prestações vincendas.
9. O imóvel hipotecado referido na escritura foi adjudicado à B… em 18 de Junho de 2014, no âmbito do processo executivo n.º 9552/09.9TBMAI, pelo valor de €51.000,00, nos termos do título de transmissão junto como doc. 55 da contestação, com o teor que aqui se dá por reproduzido.
10. No dia 15.07.2009, a exequente dirigiu aos executados C… e E…, que receberam, o escrito junto como doc. 22 da contestação, cujo teor se dá por reproduzido.
«Dada a situação de incumprimento do empréstimo referido, no valor de 956,70€, que corresponde a 3 prestações em atraso e na qualidade de fiador(a) do mesmo, informamos que o processo foi transferido para esta Direcção de Recuperação.
A fim de procedermos à sua regularização, solicitamos que no prazo máximo de 8 dias a contar da data de recepção da presente carta proceda à liquidação integral das verbas em atraso ou, sendo impossível, nos apresente uma solução viável para ambas as partes e aplicável ao empréstimo em assunto, nomeadamente plano de pagamento, alargamento do prazo, alteração de regime ou diferimento da dívida, por forma e evitar a cobrança judicial, custos diversos e despesas de Tribunal
11. No dia 19.02.2015, a exequente dirigiu aos executados C… e E…, que receberam, o escrito junto como doc. 66 da contestação, cujo teor se dá por reproduzido.
«Empréstimos em atraso nº PT ……………..
Mutuários: D…
Assunto: Remessa de processo ao Tribunal
Ex.mos Senhores:
A B…, minha constituinte, solicitou-me a instauração de execução judicial para cobrança coerciva do remanescente da dívida dos empréstimos em epígrafe após a venda judicial do imóvel dado de hipoteca. Admito, todavia, que V. Exas. possam, na qualidade de fiadores e principais pagadores, evitar a cobrança contenciosa desde que liquidem a referida dívida ou me apresentem um plano de recuperação que mereça a aquiescência da B…. Assim, permito-me a convidar V. Exa a apresentar tal plano ou a liquidar a dita dívida no prazo de 10 dias (contados da recepção desta carta) sob pena de sem mais aviso proceder à instauração de acção judicial no tribunal competente, com penhora de bens e rendimentos pertencentes a V. Exas.»
12. Em 23.02.2015, os executados C… e E… remeteram à exequente o escrito junto como doc. 77 da contestação, com o teor que aqui se dá por reproduzido.
«(…), vimos, por este meio, em resposta à notificação de V. Exas. solicitar que nos seja possível pagar a dívida em prestações mensais máximas de 150,00€, uma vez que vivemos somente de uma reforma e ainda estamos a pagar a nossa habitação, não nos sendo possível pagar mais que essa importância.»

IV. O mérito do recurso:
Através da execução que constitui o processo principal a exequente pretende obter o pagamento coercivo do valor de que se considera credora relativamente a um contrato de mútuo bancário que celebrou com um dos executados e onde os demais intervieram como fiadores do mutuário.
Segundo a exequente, a partir de 13/01/2010 o mutuário não pagou as prestações devidas nos termos do contrato de mútuo e, posteriormente, um terceiro instaurou contra ele uma execução na qual, ainda em 2010, o bem dado em hipoteca para garantia do crédito da exequente veio a ser penhorado e depois vendido, tendo sido adquirido pela aqui exequente em 2014, tendo esta sido citada e reclamado o seu crédito na execução onde a penhora do imóvel teve lugar.
Ainda segundo a exequente o valor em dívida à data da instauração da execução compreende €13.197,79 de capital, €15.757,87 de juros de mora de 13/01/2010 a 07/08/2020 e €1.51187 de comissões.
Os executados fiadores opuseram-se à execução sustentando, além do mais, que jamais foram notificados do incumprimento do devedor principal, designadamente para pagarem as prestações do mútuo em substituição do devedor principal, tanto mais que não renunciaram ao benefício do prazo e por isso era necessário para que lhes fosse exigível o pagamento a sua interpelação com indicação do montante da dívida, a data do incumprimento e o prazo de que o fiador dispunha para proceder ao pagamento da quantia em dívida.
Especificamente sobre a questão da perda do benefício do prazo, o Mmo. Juiz a quo entendeu que face ao disposto no artigo 782.º do Código Civil, em princípio a perda do benefício do prazo quanto ao mutuário não é extensível aos fiadores, apenas podendo a exequente exigir aos mesmos o pagamento das prestações contratuais que se venceram, de acordo com os prazos de pagamento acordados. Com atenção ao caso em apreço, mais entendeu que a cláusula 14ª do documento complementar da escritura de mútuo não contém uma renúncia dos fiadores ao benefício do prazo.
É apenas essa a questão suscitada no recurso: saber se os embargantes continuam a beneficiar do prazo estipulado no contrato para o reembolso do mútuo, caso em que podem opor à exequente a inexigibilidade da quantia exequenda (caberá depois ver em que medida).
A garantia especial das obrigações designada por fiança encontra-se regulada nos artigos 627.º e seguintes do Código Civil. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 4.ª edição, volume II, pág. 465, define a fiança como «o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor (…). O fiador, quer isto dizer, responde pela obrigação do devedor».
A fiança é assim uma garantia pessoal; através dela, o terceiro fiador presta ao credor a garantia da realização da obrigação do devedor, responsabilizando-se pessoalmente com o seu património por esse cumprimento.
Segundo Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, 2000, pág. 510 e seguintes, os elementos essenciais da declaração de fiança são «em princípio», «a identificação da divida garantida, o devedor, o credor, o tempo de vinculação» e, havendo-as, «a indicação das cláusulas que oneram a posição do fiador.
Normalmente a fiança é uma garantia pessoal com a característica da subsidiariedade. A subsidiariedade consiste na possibilidade de o fiador invocar o benefício da excussão, previsto no artigo 638° do Código Civil, obrigando o credor a executar previamente o património do devedor e só no caso de por essa via não ter conseguido a satisfação do seu crédito executar depois o património do fiador. Essa subsidiariedade da fiança opera mesmo existindo garantias reais constituídas por terceiro antes da fiança, já que o fiador tem igualmente o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real (artigo 639.º do Código Civil).
Todavia, a subsidiariedade da fiança é uma característica não essencial e o fiador pode prescindir dela (artigo 640.º do Código Civil). Não gozando do benefício da excussão, porque a ele renunciou ou porque assumiu a obrigação de principal pagador, a posição do fiador equipara-se, do ponto de vista do credor, à de um verdadeiro devedor solidário, ou seja, a obrigação pode ser exigida do obrigado principal ou do fiador ou de ambos, em simultâneo, e caso lhe seja exigida pelo credor, o fiador não poderá recusar o cumprimento.
No que concerne ao vencimento da obrigação, resulta do disposto no artigo 779.º do Código Civil que a estipulação de um prazo para o vencimento da obrigação se presume feita a favor do devedor, quando não se mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente. No entanto, casos existem em que o devedor beneficiário desse prazo perde tal benefício, podendo ser-lhe exigido o cumprimento antes de se alcançar o prazo fixado.
O artigo 780.º do Código Civil prevê duas situações de perda desse benefício: i) o devedor tornar-se insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada; ii) diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas por causa imputável ao devedor. O artigo 91.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao estabelecer que a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente, parece não representar grande novidade, uma vez que essa declaração é o reconhecimento judicial da situação de insolvência que já permitia esse desfecho por aplicação do artigo 780.º do Código Civil.
O artigo 781.º do Código Civil prevê a terceira situação de perda do benefício do prazo. Trata-se de uma disposição que tem por objecto as obrigações que puderem ser liquidadas em duas ou mais prestações, estabelecendo que a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.
Todavia, o artigo 782.º do Código Civil consagra uma excepção significativa a este regime de perda do benefício do prazo, definindo que essa perda não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª edição, 1986, pág. 33, escrevem em anotação a este artigo que «a perda do benefício do prazo também não afecta terceiros que tenham garantido o cumprimento da obrigação. A lei não distingue entre garantias pessoais e reais. É aplicável a disposição, portanto, não só ao fiador como a terceiros que tenham constituído uma hipoteca, um penhor, ou uma consignação de rendimentos. Qualquer destas garantias só pode ser posta a funcionar depois de atingido o momento em que a obrigação normalmente se venceria (..)
Já na anotação ao artigo 634.º, in loc. cit., volume I, pág. 652, os mesmos autores assinalam a propósito da obrigação do fiador que «a obrigação do devedor e a do fiador embora distintas, têm o mesmo conteúdo», razão pela qual «para que a obrigação se tenha por não cumprida e se vençam os juros moratórios contra o fiador, não é necessária a interpelação deste; basta que tenha sido interpelado o devedor, nos termos do artigo 805.º». E acrescentam: «o artigo 782.º, quanto às obrigações a prazo, estabelece um princípio que é extensivo aos co-obrigados do devedor e a terceiros que tenham constituído qualquer garantia a favor do crédito. Não lhes pode ser imposta a perda do benefício do prazo (cf. arts. 780.º e 781.º), o que traduz um desvio da regra do artigo 634.º».
Também Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 12.ª edição, 2011, págs. 1014 e seguintes, refere que a perda do benefício do prazo se traduz no facto de a lei consentir que em determinadas circunstâncias o credor possa exigir antecipadamente o cumprimento da obrigação, apesar de o devedor ser beneficiário exclusivo ou conjunto do prazo estipulado, não sendo extensiva aos garantes da obrigação, nos precisos termos do artigo 782.º do Código Civil. Segundo o autor, «a lei abrange nesta excepção mesmo os co-obrigados solidários, o que logo decorre do regime de solidariedade, «maxime» a respeito dos meios de defesa pessoais. Assim como, quanto à exclusão da eficácia da perda do benefício do prazo relativamente a terceiro que haja garantido o crédito, se não distingue entre garantias reais e pessoais».
No Comentário ao Código Civil da Universidade Católica Portuguesa, 2018, em anotação ao artigo 782.º, a pág. 1072, Ana Afonso escreve o seguinte: «A perda do benefício do prazo tem carácter pessoal, só afecta o devedor, não se comunica a co-devedores conjuntos ou solidários, nem a terceiros que tenham garantido o cumprimento da obrigação. Isto significa que, verificada uma das hipóteses de perda do benefício do prazo previstas nas normas antecedentes, o credor pode exigir ao devedor o cumprimento imediato da obrigação, mas terá dc esperar pelo tempo estipulado para reclamar a realização da prestação aos outros co-devedores ou a terceiros garantes da obrigação. (…) Esta regra geral conhece, todavia, dois tipos de desvios. No que diz respeito à pluralidade de devedores pode suceder que se verifique igualmente em relação a algum outro coobrigado a alteração da situação patrimonial que revele a impossibilidade de cumprir as suas obrigações ou que um outro seja responsável pelo perecimento da coisa dada em garantia ou de modo geral pela diminuição da garantia prestada, casos em que o credor poderá igualmente exigir junto destes o cumprimento imediato. O segundo tipo de desvio tem que ver com a prestação de garantia por terceiro, a que o devedor seja estranho, tendo a coisa, objecto da garantia, perecido por motivo imputável ao terceiro. O credor poderá exigir do terceiro a substituição ou reforço da garantia ou cumprimento imediato da obrigação (701.º, n.º 2, 2.ª parte, e 678.º). Entendendo-se que este preceito tem natureza supletiva, é ainda possível que, por convenção das partes, a perda do benefício do prazo se estenda aos coobrigados ou aos terceiros
O caso em apreço apresenta uma enorme similitude com o decido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 06-12-2018, Relator Tomé Gomes, processo n.º 4739/16.0T8LOU-A.P1.S1, in www.dgsi.pt. A exequente é a mesma em ambos os processo e as cláusulas do contrato de mútuo e do documento complementar são praticamente idênticas. A diferença entre os dois reside quase exclusivamente na circunstância de a alienação do imóvel hipotecado para garantia do crédito exequendo ter resultado naquele caso da sua apreensão no processo de insolvência do mutuário e no caso presente ter resultado da instauração por um terceiro credor de uma execução comum na qual foi penhorado o bem hipotecado obrigando a aqui exequente a ir ali reclamar o seu crédito.
Acompanhemos, pois, de perto o que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu naquele aresto:
«A perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor encontra-se regulada, supletivamente, nos artigos 779.º a 781.º do CC. Assim, o artigo 780.º, n.º 1, 1.ª parte, prescreve a perda do benefício daquele prazo quando o devedor se torne insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada (…) Outra hipótese de perda de benefício do prazo contemplada na 2.ª parte do n.º 1 do referido artigo 780.º é a respeitante à diminuição ou não prestação das garantias prometidas, por causa imputável ao devedor, (…). Por fim, no domínio das dívidas liquidáveis em prestações, o artigo 781.º estabelece que: Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.
Conforme o … entendimento doutrinário e jurisprudencial hoje largamente maioritário, tal vencimento imediato das prestações fraccionadas vincendas não opera automaticamente, exigindo-se antes a prévia interpelação do devedor para pagar a dívida remanescente, condição indispensável à sua constituição em mora quanto a esta [..].
(…) Posto isto, vejamos agora qual a consequência legal da perda do benefício de prazo por parte do devedor principal – no caso, os mutuários - em relação aos respectivos fiadores.
Como é sabido, nos termos do artigo 634.º do CC, a obrigação do fiador tem o conteúdo da obrigação afiançada e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor principal. Todavia, nos casos de perda do benefício de prazo estabelecido a favor do devedor contemplados nos indicados artigos 780.º e 781.º, o artigo 782.º estatui que: A perda do benefício não se estende aos coobrigados do devedor nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.
Significa isto, no que aqui releva, que a perda do benefício do prazo por parte do devedor principal não importa, sem mais, idêntica perda para os respectivos fiadores, sejam eles subsidiários ou solidários, que se mantêm, por isso, apenas vinculados ao pagamento das prestações vencidas e não pagas no decurso do prazo que fora estabelecido [..].
Porém, como também tem sido unanimemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência, o referido regime legal de perda do benefício do prazo reveste natureza supletiva, podendo ser afastado por convenção das partes a coberto do princípio da liberdade contratual proclamado no artigo 405.º do CC.
Nessa latitude, podem as partes estipular cláusulas atípicas de perda do benefício do prazo, estabelecer o vencimento imediato e automático das prestações fraccionadas vincendas em derrogação do disposto no artigo 781.º do CC, como também podem os coobrigados, nomeadamente os fiadores, vincular-se, desde logo, à perda do benefício do prazo por parte do devedor principal, em detrimento da norma supletiva do artigo 782.º.
Todavia, convém sublinhar, … que o facto de o fiador ter renunciado ao benefício da excussão prévia nos termos do artigo 640.º, alínea a), do CC, não importa, sem mais, que se vincule à perda do benefício do prazo do devedor em termos de afastar a norma supletiva do artigo 782.º.
Com efeito, a renúncia do fiador ao benefício da excussão prévia implica simplesmente a derrogação da regra da subsidiariedade da fiança e, nessa medida, a assunção da qualidade de devedor principal, isto é, de fiador solidário, o que não envolve qualquer vinculação deste à perda do benefício do prazo por parte do devedor principal e que não é extensível ao fiador nos termos da norma supletiva do artigo 782.º.»
A seguir o Acórdão ocupa-se de interpretar as cláusulas dos documentos complementares das escrituras dadas à execução atinentes à vinculação dos fiadores.
Nas cláusulas analisadas pelo Supremo Tribunal de Justiça estabelecia-se que a credora ficava com o direito de «considerar o empréstimo vencido se o imóvel hipotecado for alienado sem o seu consentimento ou se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato».
No nosso caso a cláusula equivalente é ainda mais expressiva. Trata-se da cláusula 14.ª, cuja epígrafe é «vencimento antecipado», e cujo conteúdo é o seguinte: «A parte credora poderá, sem necessidade de aviso, considerar imediatamente vencidas e exigíveis todas as responsabilidades garantidas e executar a constituída hipoteca: a) Quando a parte devedora deixe de cumprir qualquer das cláusulas deste contrato, designadamente quando vencida e não paga qualquer das prestações referidas e não haja prorrogação, renovação, reforma ou substituição permitida pela parte credora; b) Quando o bem ora hipotecado vier a ser objecto de execução, arresto, penhora ou de outra forma de apreensão judicial, alienado, locado, objecto de consignação de rendimentos ou, de algum modo, onerado ou desvalorizado, sem que para tanto haja autorização da parte credora. (…)».
Acompanhemos de novo o Supremo Tribunal de Justiça:
«O primeiro segmento traduz-se numa cláusula, de certo modo atípica, de perda do benefício do prazo de amortização estabelecido a favor do devedor, a qual, embora revelando alguma afinidade com as situações de diminuição das garantias do crédito por causa imputável ao devedor previstas na parte final do artigo 780.º, n.º 1, do CC, se apresenta mais específica, na medida em que faz depender a perda do benefício do prazo da alienação do imóvel hipotecado sem o consentimento da credora, mas sem alusão a “causa imputável ao devedor”. Por sua vez, o segundo segmento alcança, nomeadamente, as situações de falta de pagamento de qualquer prestação de dívida liquidável em fracções, tais como as previstas no artigo 781.º do CC e aí, supletivamente, reguladas.
(…) Quanto ao primeiro segmento, afigura-se que o alcance a dar àquela estipulação, à luz do critério de interpretação negocial plasmado no artigo 236.º, n.º 1, do CC, deve ser no sentido da exigibilidade imediata da obrigação de amortização dos empréstimos em causa no caso de ocorrência de alienação do imóvel hipotecado sem o consentimento da credora.
Desde logo, como foi referido, trata-se de uma cláusula de perda do benefício de prazo numa situação particular de diminuição das garantias do crédito, consistente na alienação do bem hipotecado sem o consentimento da credora, alheada da sua imputação ao devedor e, por isso, não inteiramente coincidente com as situações preconizadas na parte final do artigo 780.º, n.º 1, do CC.
Acresce que a expressão literal de se reconhecer o direito da credora “a considerar o empréstimo vencido”, sem qualquer ressalva de faculdade alternativa de a mesma exigir a substituição ou o reforço das garantias, conforme o previsto no artigo 780.º, n.º 2, do CC, milita no sentido de dispensa de interpelação do devedor e, por conseguinte, em sentido equivalente à caducidade do benefício do prazo.
Ademais, não se divisa que, perante a alienação do bem hipotecado sem consentimento da credora, esta mantenha qualquer interesse em optar pela exigência do cumprimento da obrigação ao longo do prazo inicialmente estabelecido, em vez do vencimento imediato das prestações vincendas.
Nesta conformidade, conclui-se que a interpretação da estipulação em foco, mais condizente com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário – no caso, os mutuários – e com que ele razoavelmente podia contar, é a de que a alienação do bem hipotecado sem consentimento da credora implicava a exigibilidade imediata da obrigação de amortização dos empréstimos, conducente à caducidade do benefício do prazo
Sublinhe-se de novo que no caso em apreço a cláusula sob análise é ainda mais expressiva. A dita cláusula acrescenta que o direito da credora será exercido sem necessidade de aviso e que esse direito é não apenas o de considerar imediatamente vencidas com ainda o de as considerar imediatamente exigíveis. Esta redacção parece querer consagrar que perante a ocorrência de uma das vicissitudes nela descritas, independentemente de interpelação, a totalidade do crédito se vence automaticamente.
Continua o Supremo Tribunal de Justiça a propósito da questão de saber se o vencimento (e, no nosso caso, exigibilidade) imediato (leia-se, antecipados, por efeito da perda do benefício do prazo) é extensível aos fiadores:
«(…) da factualidade provada colhe-se que os embargantes intervieram, na qualidade de fiadores, na outorga dos documentos complementares das escrituras públicas dos mútuos dadas à execução em que foram estipuladas as cláusulas … acima transcritas.
Ademais, os mesmos embargantes intervieram, nessa qualidade, na outorga das referidas escrituras, em que ficou consignado que os empréstimos se regiam pelas cláusulas constantes dessas escrituras, bem como pelas cláusulas dos respectivos documentos complementares.
Nesse clausulado inclui-se, pois, a estipulação de que era reconhecido à credora o direito de considerar o vencimento dos empréstimos em caso de o imóvel hipotecado ser alienado sem consentimento dela, o que dever ser entendido com o alcance acima considerado.
Ora, os embargantes, nessas escrituras, além de se responsabilizarem como fiadores e principais pagadores, declararam, literalmente, que o faziam “por tudo quanto venha a ser devido à B… Credora” em consequência daqueles empréstimos, dando até o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro, bem como às alterações de prazo ou moratórias que viessem a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extracto da conta e aos documentos de débito fosse também aplicável à fiança.
Por fim, os mesmos embargantes declararam que conheciam perfeitamente o conteúdo dos referidos documentos complementares, dispensando a sua leitura.
Perante uma assunção dos fiadores tão peremptória, absoluta e adesiva em relação, nomeadamente, a ulteriores modificações dos prazos de amortização, afigura-se que, entre “tudo quanto venha a ser devido à B… Credora” em consequência daqueles empréstimos, não se poderá deixar de incluir o devido pelo estipulado direito da credora a considerar o vencimento imediato dos empréstimos em caso de alienação do imóvel hipotecado sem o seu consentimento.
(…) No caso vertente, afigura-se que, em face dos sobreditos texto e contexto negocial, os embargantes, na qualidade de fiadores solidários, assumiram também contratualmente, em detrimento da norma supletiva do artigo 782.º do CC, a responsabilidade pela amortização dos empréstimos no caso da sua exigibilidade imediata em virtude da alienação do imóvel hipotecado sem consentimento da credora.»
Por nos merecer inteira adesão a argumentação aduzida pelo Supremo Tribunal de Justiça numa situação, repetimos, praticamente similar e cujas diferenças só reforçam aqueles argumentos, concluímos, como aliás fez o Supremo Tribunal de Justiça que os embargantes fiadores perderam igualmente o benefício do prazo de amortização do remanescente dos empréstimos ajuizados. A decisão recorrida não pode por isso ser confirmada.
Sendo assim, coloca-se de seguida a questão de saber se os executados fiadores foram avisados do valor em dívida para efeitos de poderem ser responsabilizados pela mora no pagamento do mútuo.
Como vimos, a exequente alegou no requerimento executivo que o mutuário não pagou as prestações devidas nos termos do contrato de mútuo a partir de 13.01.2010.
A ser assim é absolutamente irrelevante a carta enviada pela exequente aos fiadores em 15.07.2009, na qual aquela acusava a falta de pagamento de 3 prestações e indicava o respectivo valor. Se o incumprimento que serve de causa de pedir à presente execução apenas teve início em 13.01.2010, isso só pode significar que o atraso aludido na referida carta, necessariamente anterior a esta data, teve de ter sido sanado por algum dos responsáveis. Logo aquela comunicação é irrelevante para efeitos das prestações que depois disso ficaram em mora e, consequentemente, para efeitos do valor que é reclamado na presente execução.
A exequente alegou ainda que o valor em dívida à data da instauração da execução compreende €13.197,79 de capital, €15.757,87 de juros de mora de 13/01/2010 a 07/08/2020 e €1.51187 de comissões. Também esta alegação é incompreensível e carece de ser explicada.
Se em 2014 através da adjudicação do imóvel dado em hipoteca para garantia do mútuo a credora obteve o pagamento do valor pelo qual o bem lhe foi adjudicado (51.000€), esse valor teve de ser imputado à satisfação do mútuo, em primeiro lugar para pagamento dos juros de mora (artigo 785.º do Código Civil) e só depois para pagamento do capital. Logo, não se alcança como podem estar em dívida juros de mora relativos a período anterior à data da adjudicação do imóvel hipotecado.
Ora conforme também se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que se vem acompanhando «em face da alienação e adjudicação do imóvel hipotecado, para a determinação do capital ainda em dívida, importava que fosse apurado o valor do capital já pago por via das prestações anteriormente efectuadas, bem como pela imputação, a esse título, do valor atribuído à credora com aquela adjudicação, em ordem a calcular então o montante do capital remanescente».
De qualquer modo «verificada que foi a perda do benefício do prazo em virtude da referida alienação do imóvel dado em garantia, impunha-se que a credora procedesse ao novo cálculo do remanescente do capital ainda em dívida e o comunicasse aos fiadores» na linha, aliás, do estipulado no n.º 3 da cláusula 8.ª do documento complementar da escritura de mútuo dada à execução. «Sem uma tal liquidação, cujo ónus impendia sobre a credora aqui exequente e cuja falta não se mostra imputável aos fiadores ora embargantes, não é lícito que se considerem estes, desde logo, constituídos em mora como decorre do preceituado no 805.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC
Esta conclusão não é afectada pela circunstância de a exequente, através dos seus mandatários, ter enviado aos fiadores a carta de 19.02.2015.
Com efeito, nesta carta os fiadores apenas são convidados a liquidarem a dívida ou apresentarem um plano de recuperação que venha a ser aceite. Não existe na carta qualquer alusão ao montante em dívida e/ou à respectiva liquidação, pelo que com o recebimento da mesma os fiadores continuaram sem saber quais eram as prestações que (após a imputação do valor da venda do bem hipotecado) estavam em dívida e a partir de que data as mesmas venciam juros de mora.
Com a agravante de que como essa liquidação dependia afinal de um factor totalmente estranho ao contrato de mútuo e do qual os fiadores não tinham de ter conhecimento (a execução instaurada contra o mutuário e as vicissitudes desta), não é possível sustentar que os fiadores tivessem essa informação pela intervenção no contrato de mútuo.
A resposta dos fiadores é igualmente juridicamente irrelevante porque nela estes não confessam a dívida ou revelam conhecê-la, apenas invocam dificuldades pessoais para tentar não ficarem vinculados a um pagamento mensal superior a 150,00€.
Nessa situação, voltamos a acompanhar o Supremo Tribunal de Justiça para concluir que apesar de se dever aceitar que os fiadores perderam igualmente o benefício do prazo para pagarem o capital em dívida após a alienação do imóvel hipotecado, «não se mostra lícito considerar os mesmos fiadores constituídos em mora antes da sua citação para a presente execução, dada a falta da necessária liquidação desse capital remanescente, nos termos do … artigo 805.º, n.º 3, 1.ª parte, do Código Civil, não sendo, por isso, exigíveis os juros calculados antes dessa citação».
Haveria de seguida que apreciar as restantes questões que a decisão recorrida considerou prejudicadas.
Sucede, contudo, que a nota de liquidação apresentada com o requerimento executivo foi impugnada pelos embargantes no artigo 25.º da petição inicial dos embargos. Acresce que naquela nota não é demonstrado o modo como foi feita a imputação do valor da venda do bem hipotecado ao contrato de mútuo e tal é necessário para apurar as prestações de capital que ficaram liquidadas e as que ficaram por liquidar, sendo certo que nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2009, de 25.03.2009, publicado no Diário de República, 1.ª série, de 05.05.2009, «no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporadas».
Nesse contexto, sendo ainda controvertida a matéria da liquidação efectuada pela exequente no requerimento executivo e impugnada pelos embargantes no respeitante ao capital remanescente em dívida, juros de mora e comissões, os presentes embargos terão de prosseguir para instrução e julgamento com vista a tal apuramento, a fim de posteriormente serem apreciadas e decididas as demais questões suscitadas pelos embargantes.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e, em sua substituição, decidem:
I- Julgar os embargos improcedentes quanto à perda do benefício do prazo, considerando-se que tal perda abrangeu também os fiadores/embargantes.
II- Julgar os embargos procedentes quanto à não responsabilidade dos fiadores/embargantes por juros de mora vencidos antes da sua citação para a execução, consideram-se que os mesmos não lhe podem ser exigidos.
III- No mais, determinar o prosseguimento dos embargos para liquidação, nos termos acima expostos, do capital em dívida, juros de mora desde a citação dos executados e comissões, convidando-se previamente a exequente/embargada a explicitar os factores e a fórmula de cálculo das verbas de capital liquidadas no requerimento executivo, apreciando-se oportunamente as questões julgadas prejudicadas.
As custas da acção e do recurso serão devidas a final, na proporção do decaimento das partes.
*
Porto, 18 de Novembro de 2021.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 645)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]