NULIDADE DE SENTENÇA
DESCONSIDERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ALEGADA
CONTRATO DE MÚTUO
Sumário

i) A desconsideração de matéria factual alegada pela parte na decisão da matéria de facto (por não resposta à mesma) não gera uma nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, podendo originar, sim, um vício da decisão da matéria de facto;
ii) Embora um “Acordo” de reconhecimento de divida, no montante de 27.100 €, com esquema de pagamento prestacional, assinado em Fevereiro de 2018, tenha na sua génese um contrato de mútuo da quantia de 74.819,68€, emprestada ao R. pelo A. em Agosto de 1998, não resulta de tal ”Acordo” qualquer declaração negocial com o sentido de que o A. esteja a entregar, por empréstimo, dinheiro ao R., pelo que, considerando que o art. 1142º do Código Civil define contrato de mútuo como sendo aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro, aquele “Acordo”, invocado como causa de pedir pelo A., não representa a invocação de nenhum mútuo;
iii) Um facto provado plenamente, designadamente o reconhecimento de uma dívida em determinado valor, pode ser contrariado por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto (art. 347º do CC).

Texto Integral












I – Relatório

1. L..., residente em França, instaurou ação declarativa contra J..., residente na ..., peticionando a condenação do mesmo a pagar-lhe a quantia de 25.988,30€, acrescida de juros à taxa legal desde 12.7.2019 até integral pagamento.

Alegou, em síntese, solicitação dos serviços do réu para que este o representasse na venda de um imóvel de que era proprietário em Portugal, o que ocorreu, pelo valor de 15.000.000$00, que o réu não entregou ao autor. Ambos acordaram, então, que o dinheiro seria restituído no prazo de um ano, nos termos de um contrato de mútuo do autor ao réu, que subscreveram. O réu foi entregando algumas quantias, mas sem regularidade, tendo vindo a subscrever uma declaração na qual se confessava devedor do autor na quantia de 74.819,68€, a qual se comprometia a pagar em cinco prestações, o que o réu não cumpriu, continuando a fazer pagamentos ao autor sem caráter de regularidade. Por esse motivo, as partes reuniram-se, tendo ambas concluído que o réu se encontrava em divida para com o autor na quantia de 27.100€, mais acordando que tal montante seria pago em 42 prestações mensais, conforme acordo que as partes subscreveram. O réu apenas pagou 3 prestações, encontrando-se em divida, a título de capital, a quantia de 25.150€, acrescida de juros de mora.

O réu contestou, na qual, além do mais, invocou que qualquer dos documentos juntos com a petição inicial consubstanciam contratos de mútuo, os quais são nulos, por falta de forma, em virtude de não terem sido celebrados por escritura pública ou documento particular autenticado. Já restituiu ao autor a totalidade dos 15.000.000$00, que equivale a 74.819,68€, que o autor lhe emprestou, após a venda do aludido imóvel. Fê-lo através de depósitos na conta bancária do mesmo, entrega de cheques, pagamento de despesas e encargos que especificou. Em consequência, o autor até recebeu do réu, para além do aludido valor emprestado, a importância de 20.507,81€, que não lhe é devida, pelo que deverá a mesma ser restituída ao réu, acrescida de juros, à taxa legal, atenta a nulidade do mútuo. Na data aposta no acordo o réu já não devia ao autor qualquer importância. O réu assinou tal acordo apenas por ter sido pressionado pelo autor para o fazer, com a ameaça de que, se não o fizesse, avançaria com uma ação judicial contra ele, sendo que, em virtude da paralisia facial que sofreu deixou de conseguir lidar com situações de grande pressão e quando as mesmas ocorrem a tendência é pôr-lhes termo imediatamente, independentemente do modo como o faz, o que sucedeu no referido dia do acordo, para além de que momentos antes do inicio da reunião onde foi assinado o aludido documento o réu teve conhecimento da morte da sua tia com quem tinha uma forte ligação afetiva, o que o deixou profundamente consternado e psicologicamente abalado.

Mais requereu a condenação do autor como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a 13.500€ (sendo 10.000€ de danos morais e 3.500€ de danos patrimoniais).

Por requerimento nos autos, o autor requereu a condenação do réu como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor.

*

A final foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

1) Condenar o R. a pagar ao A. a quantia de 24.500€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;

2) Absolver o A. do pedido de condenação como litigante de má-fé;

3) Absolver o R. do pedido de condenação como litigante de má-fé.

*

2. O R. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

...

3. O A. contra-alegou, concluindo que:

...

II – Factos Provados

...

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objetivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes:

- Nulidade da sentença.

- Impugnação da decisão da matéria de facto.

- Existência de contrato de mútuo e sua nulidade.

- Abuso de direito do R. ao invocar a nulidade do contrato de mútuo e correlativa impugnação da decisão da matéria de facto.

- Pagamento integral do reclamado pelo A. por parte do recorrente.

2. Defende o recorrente a nulidade da decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, d), do NCPC, por omissão de pronúncia, por o tribunal não ter respondido á factualidade por si alegada, na sua contestação, sob os arts. 48º a 74º (cfr. conclusões de recurso 1ª a 7ª).

Na realidade, o tribunal a quo não respondeu a tal factualidade, mas isso não importa nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do apontado preceito e alínea, sua 1ª parte, pois esta só se reporta a questões.

Ora, como ensina Lebre de Freitas (em A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., pág. 334) só se produz tal nulidade quando o juiz deixe de conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é de todos os pedidos deduzidos, e de todas as causas de pedir e excepções invocadas (e de todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer). 

No nosso caso, o tribunal recorrido conheceu da existência ou não de mútuo e sua eventual nulidade – conforme transcrição efetuada infra no ponto 4 -, pelo que é patente que a arguida nulidade não se verifica.

O que pode eventualmente verificar-se é um vício da decisão da matéria de facto, face a tal não resposta, que cabe analisar abaixo, no ponto 3. 

3. Como se acabou de dizer a aludida falta de resposta à mencionada factualidade (arts. 48º a 74º da contestação) pode representar vício da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 662º, nº 2, c), do NCPC. O recorrente propugna a anulação da decisão de facto, por deficiência, ou, porventura, introduzindo o tribunal ad quem as modificações que considere adequadas a tal decisão, face à confissão do A. (cfr. conclusões de recurso 8º e 9º). 

Não iremos levar a cabo tal atividade, pois mesmo perante a alegada confissão a mesma acaba por ser, parcialmente, irrelevante para a decisão da causa. A parte que seria relevante, já está, contudo, dada por provada sob o facto 8. (que resultou dos documentos nºs 72 a 79 juntos pelo réu com a contestação, os quais consubstanciam comprovativos de depósito, em numerário, na conta do autor, das seguintes quantias, todos de datas posteriores ao acordo de Fevereiro de 2018: 500 € em 9.5.2018; 150 € em 9.5.2018; 500 € em 4.6.2018; 150 € em 4.6.2018; 500 € em 21.9.2018; 150 € em 21.9.2018; 500 € em 8.3.2019; 150 1€ em 8.3.2019).

O que justificaremos no ponto 6. infra.

4. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Conforme resulta da matéria de facto provada, e atinentes à matéria em objeto nestes autos, pelas partes foram subscritos, pelo menos, três documentos, a saber:

* Em 31 de agosto de 1998 autor e réu subscreveram um documento escrito, intitulado “contrato de mútuo (empréstimo)”, junto como documento nº1 da petição inicial, nos seguintes termos:

(…).

* Em 20 de março de 2009 o réu subscreveu um documento escrito, intitulado “Declaração”, junto como documento nº2 da petição inicial, nos seguintes termos:

(…).

* Em 28 de fevereiro de 2018 autor e réu reuniram-se com o intuito de procederem ao apuramento das quantias ainda em divida, tendo ambos subscrito um documento escrito, intitulado “Acordo”, junto como documento nº 3 da petição inicial, nos seguintes termos:

(…).

Todos esses documentos foram assinados pelo réu, conforme reconhecido pelo próprio nos autos.

Ora, analisados os autos, cumpre não olvidar que o valor peticionado pelo autor nos presentes tem por base o acordo de reconhecimento de divida subscrito pelo réu em 28 de fevereiro de 2018, no qual o réu se reconhece devedor do autor, naquela data, da quantia de 27.100,00€.

É verdade que tal acordo de reconhecimento de divida tem por base a declaração assinada pelo réu em 20/03/2019 - na qual se reconhecia devedor ao autor da quantia de 74.819,63€ - declaração essa que, por sua vez, dizia respeito à quantia de 74.819,68€ (15.000 contos) entregue ao réu pelo autor em 31 de agosto de 1998, tendo por base o contrato de mútuo celebrado entre as partes nessa data.

Sucede que, pese embora tais decorrências, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o documento intitulado “Acordo”, subscrito por ambas as partes em 28 de fevereiro de 2018 e no qual o autor se funda para reclamar do réu a quantia peticionada nestes autos, não consubstancia qualquer contrato de mútuo, mas apenas um reconhecimento de divida – no montante de 27.100,00€ - e um plano de pagamento de tal valor.

Isto é, pese embora tal declaração recognitiva de divida tenha na sua génese um contrato de mútuo, não resulta da mesma qualquer declaração negocial com o sentido de que o autor esteja a entregar, por empréstimo, dinheiro ou outra coisa fungível ao réu.

Senão vejamos.

O artigo 1142º do Código Civil define contrato de mútuo como sendo aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

É, pois, na sua essência –e conforme expende João Redinha, no seu estudo “Contrato de Mútuo”, in Direito das Obrigações, Menezes Cordeiro, 3º Vol., 2ª ed., AAFDL, pág. 189 -, “um contrato pelo qual uma parte cede temporariamente a outra um valor patrimonial.”

Ora, analisado o clausulado do documento intitulado “Acordo”, junto como documento nº3 da petição inicial e ao qual é feita alusão no ponto 7) da matéria de facto provada, verifica-se que nenhuma cedência (no caso de dinheiro) é efetuada por quem quer que seja, nomeadamente pelo autor, a favor do réu.

O que dele dimana, isso sim, é que o réu – em virtude de um empréstimo pretérito entre ambos – se acha em débito para com o autor na importância de 27.100,00€ - que expressa e inequivocamente assume, montante esse que se propõe, nos termos indicados, regularizar.

Trata-se, pois, de um ato de reconhecimento ou confissão de dívida e não de um contrato de mútuo, i.e., de uma declaração certificativa ou de ciência e não constitutiva ou negocial (cfr., A. Varela, in “Manual de Proc. Civil”, 2ª ed., C. Editora, pp. 79 e 553).

Sendo que não obsta à classificação de tal documento como declaração confessória o facto de tal reconhecimento de divida ter na sua génese um contrato e, neste caso, um contrato de mútuo, uma vez que essa declaração tem, também, em vista, o estabelecimento de um esquema de pagamento da quantia que se reconhece estar em divida.

Não sendo, pois, o conteúdo declarativo do documento em apreço – junto como documento nº3 da petição inicial - consubstanciador –em nosso modesto entender - de um contrato de mútuo, mas sim de um acordo integrado por um reconhecimento de dívida e respetiva aceitação por parte do credor (aqui autor), bem como do atinente plano de pagamento, há assim que se concluir, sem mais, pela validade de tal acordo, subscrito em 28 de fevereiro de 2018 e, consequentemente, pela improcedência da sua nulidade, invocada pelo réu.”.

O recorrente discorda, pois entende que estamos perante um contrato de mútuo, o de 1998, com as alterações de 2009 e 2018, e que o dito contrato e as referidas alterações, são formalmente nulos (cfr. conclusões de recurso 12ª a 31ª).

Não se acompanha a argumentação do R./recorrente. Vejamos então.

Não há dúvida que o contrato de empréstimo de Agosto de 1998 é nulo, formalmente, como aponta o recorrente.

Mas também é verdade, que perante um contrato ineficaz ou inválido se podem pôr hipóteses de aproveitamento ou conservação dos negócios jurídicos, como a ratificação, a convalidação, a confirmação, a redução e a conversão. Sendo que relacionadas com a convalidação, ainda se podem encontrar outras figuras, como a novação ou reiteração do negócio, a sua renovação, a sua consolidação, a convalescença, a sua regularização ou a revalidação do mesmo. Acrescentando-se, ainda, que a revalidação de acto jurídico nulo, por vício formal, parece não ser possível (vide sobre o tema Oliveira Ascensão, em Dir. Civil Teor. Ger., Vol. II, 2ª Ed., págs. 408/431 e Mota Pinto, T. G. Dir. Civil, 1ª Ed., pág. 471 e 474).  

Todavia, o A. não demandou o R. com fundamento em tal contrato de mútuo nulo. A causa de pedir é efetivamente outra.

Como se assinala, e bem, na decisão recorrida, o valor peticionado pelo A. tem por base o “Acordo” de reconhecimento de divida subscrito pelo R. em Fevereiro de 2018, no qual este se reconhece devedor daquele, naquela data, da quantia de 27.100€, e que nesse dia de 28.2 fixaram em tal montante. Tanto é assim, que o A. alegou na p.i. ter recebido apenas 3 das prestações mensais devidas e abateu-as ao valor restante que reclamou.  

É verdade que tal “Acordo” de reconhecimento de divida tem por base a declaração assinada pelo R. em Março de 2009 (na qual se reconhecia devedor ao A. da quantia de 74.819,63 €), declaração essa que, por sua vez, dizia respeito à quantia de 74.819,68 € (15.000 contos) emprestada ao R. pelo A. em Agosto de 1998.

Porém, embora tal declaração recognitiva de divida tenha na sua génese um contrato de mútuo, não resulta de tal ”Acordo” qualquer declaração negocial com o sentido de que o A. esteja a entregar, por empréstimo, dinheiro ao R. Na realidade, considerando que o art. 1142º do Código Civil define contrato de mútuo como sendo aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro (ou outra coisa fungível), ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, não se divisa no clausulado do dito “Acordo”, tais elementos legais, constitutivos do mencionado mútuo, pois verifica-se que nenhuma cedência de dinheiro é efetuada pelo A. a favor do réu.

Trata-se, pois, de um acto de reconhecimento ou confissão de dívida, com esquema de pagamento temporal, e não de um contrato de mútuo, isto é, de uma declaração certificativa e não constitutiva de qualquer contrato de mútuo.

Consequentemente, inexiste qualquer mútuo nulo por vício formal, por mútuo não existir, ao invés do invocado pelo R.

Não procede, por isso, esta parte do recurso.

5. Face ao que acabámos de expor fica prejudicado o conhecimento da 4ª acima elencada.

6. Deixou-se escrito, ainda, na sentença recorrida, que:

“Assim sendo, e reclamando o autor o pagamento da quantia em divida reconhecida pelo réu nesse documento – com exceção dos montantes entretanto liquidados pelo réu por conta desse valor – cabia ao devedor, aqui réu, o encargo/ónus de demonstrar que tal quantia, reclamada pelo autor, já se mostra paga, o que salvo o devido respeito não logrou fazer.

(…)

Conforme resultou demonstrado, em 28 de fevereiro de 2018 autor e réu reuniram-se com o intuito de procederem ao apuramento das quantias ainda em divida, tendo ambos subscrito um documento escrito, intitulado “Acordo”, junto como documento nº 3 da petição inicial, nos seguintes termos:

(…)

Na apreciação do valor probatório do aludido documento importar reter que o réu, sem impugnar a assinatura do mesmo, antes reconhecendo ter sido por si subscrito, alega, no entanto, não corresponder à verdade a declaração que dele consta no sentido de se encontrar, em divida, nessa data, ao autor, da quantia nele indicada, uma vez que, nessa data, já nenhuma importância o réu devia ao autor.

Estando em causa um documento particular simples que se mostra assinado pelo declarante, e cuja assinatura, imputada ao réu, foi por este reconhecida, é a mesma tida como verdadeira, nos termos do n.º 1 do artigo 374.º do Código Civil.

Pelo que, assim estabelecida a autoria do documento, o seu valor probatório é o que resulta do disposto no artigo 376.º: nos termos do n.º 1 do preceito faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, encontrando-se deste modo plenamente provado que o aqui réu declarou quanto consta do mesmo, no sentido de dever ao autor, em 28 de fevereiro de 2018, a quantia de 27.100,00€.

Diz-se confissão o reconhecimento que a parte faz da realidade da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cf. artigo 352.º do Código Civil).

A confissão extrajudicial, di-lo o n.º 2 do artigo 358.º, do Código Civil, em documento autêntico ou particular -cuja autoria e genuinidade estejam estabelecidas, como se verifica no caso dos autos - considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária, tem força probatória plena.

Urge, assim, concluir, que a documento denominado “Acordo” junto aos autos pelo autor como documento nº3 da petição inicial, datado de 28 de fevereiro de 2018, traduzindo-se numa declaração confessória do réu, nos termos e para os efeitos dos artigos 352º e 358º, nº2, do Código Civil – uma vez que as declarações nele constantes são desfavoráveis ao confitente - e tendo tal confissão sido feita à parte contrária (no documento), tem força probatória plena, a qual só pode ser afastada mediante a prova de algum vicio da vontade juridicamente relevante, podendo ainda o autor contrariar a prova plena mediante demonstração da inverdade do facto confessado, conforme prevê o artigo 347.º do Código Civil.

Vejamos.

Começando pela inverdade do facto confessado.

Alega o réu que já restituiu ao autor quantia superior ao montante que aquele lhe emprestou, cifrando o montante restituído em 95.327,49€, sendo que, em 28 de fevereiro de 2018, aquando da assinatura do documento denominado “Acordo” já o réu não devia qualquer importância ao autor.

Ora, como vimos, em 28 de fevereiro de 2018, o réu reconheceu dever ao autor a quantia de 27.100,00€, tendo-se comprometido a pagar a mesma em 42 prestações mensais, sendo 41 prestações no valor de 650,00€ (seiscentos e cinquenta euros) e a última no valor de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros), sendo que a primeira prestação teria vencimento no dia 31 de março de 2018 e as restantes até ao último dia dos meses subsequentes, ocorrendo o vencimento da última prestação no dia 31 de agosto de 2021.

Conforme resulta da documentação bancária junta pelo réu com a contestação – uma vez que a documentação junta pelo autor reporta-se, apenas, ao período que mediou entre janeiro de 1998 e dezembro de 2007 – após 28 de fevereiro de 2018 o réu apenas entregou ao autor a quantia total de 2.600,00€, procedendo aos depósitos, em numerário, na conta do autor, das seguintes quantias:

- 500,00€ em 09/05/2018;

- 150,00€ em 09/05/2018;

- 500,00€ em 04/06/2018;

- 150,00€ em 04/06/2018;

- 500,00€ em 21/09/2018;

- 150,00€ em 21/09/2018;

- 500,00€ em 08/03/2019;

- 150,00€ em 08/03/2019.

Não resulta dos autos, nem resultou da prova produzida, que mais alguma quantia tenha sido entregue ao autor, pelo réu, após 28 de fevereiro de 2018, para além do aludido valor de 2.600,00€.

(…)

Pelo que o réu não logrou contrariar a prova plena mediante demonstração da inverdade do facto confessado.

(…)

Urge, assim, concluir que, confessando o réu, em 28 de fevereiro de 2018, dever ao autor a quantia de 27.100,00€ e tendo resultado demonstrado que, após essa data, o réu apenas entregou ao autor a quantia de 2.600,00€, verifica-se que o réu se encontra em divida para com o autor na quantia de 24.500,00€, quantia essa que o réu será condenado a pagar ao autor.”.

O apelante contesta tal conclusão, pois entende que tudo já está pago ao A. e que até tem dinheiro a mais a receber, por força da totalidade dos pagamentos que fez (cfr. conclusões de recurso 10ª, 11ª, 32ª a 36ª). Não se concorda com a posição do R./apelante.

Na verdade, como já se viu mais atrás, o documento denominado “Acordo” (datado de 28.2.2018), traduz uma declaração de reconhecimento de dívida, com valor probatório pleno.  A qual podia ser afastada mediante a demonstração da inverdade do facto confessado, conforme prevê o art. 347º do Código Civil. O que não aconteceu.

Embora o R. réu alegue que já restituiu ao A. quantia superior ao montante que aquele lhe emprestou, cifrando o montante restituído em 95.327,49€, sendo que, em 28.2.2018, aquando da assinatura do “Acordo” já não devia qualquer importância ao A., a verdade é que nesse documento reconheceu dever a quantia de 27.100€, a pagar em 42 prestações mensais, sendo 41 prestações no valor de 650 € e a última no valor de 450 €, sendo que a primeira prestação teria vencimento no dia 31.3.2018.

Ora, o que é certo é que após 28.2.2018 o R. apenas entregou ao autor a quantia total de 2.600 € - facto 8. -, procedendo aos depósitos, em numerário, na conta do autor, das seguintes quantias: 500 € em 9.5.2018; 150 € em 9.5.2018; 500 € em 4.6.2018; 150 € em 4.6.2018; 500 € em 21.9.2018; 150 € em 21.9.2018; 500 € em 8.3.2019; 150 € em 8.3.2019.

Pelo que o réu não logrou contrariar a prova plena mediante demonstração da inverdade do facto confessado.

É certo que o R. juntou, com a sua contestação, inúmeros documentos para comprovar o pagamento do que devia, e advoga a sua comprovação face à confissão do A. em julgamento. Todavia, a esmagadora maioria desses documentos, e a adjuvante confissão do A., reportam-se a pagamentos ocorridos antes de 28.2.2018, data em que as partes consolidaram a dívida nos indicados 27.100 € (cláusula 1. do “Acordo” provado sob 7.)

Daí que sejam irrelevantes face ao “Acordo” celebrado. E daí que tivéssemos feito tal afirmação no ponto 3 supra, agora sendo perceptível a circunstância de não termos levado a cabo a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto.

A minoria esmagadora daqueles documentos juntos com a contestação foram aqueles 8 depósitos, já referidos, todos datados posteriormente a 28.2.2021, e que deram azo à resposta positiva do facto 8.  

Por conseguinte, confessando o R. em 28.2.2018, dever ao autor a quantia de 27.100 e tendo resultado demonstrado que, após essa data, o réu apenas entregou ao autor a quantia de 2.600 €, é de concluir, como na sentença apelada, que o réu teria de ser condenado na quantia em que o foi, não se tendo demonstrado, por isso, ao contrário do que defende que já pagou a totalidade do devido e ainda tem dinheiro a receber.

Não procede, pois, esta parte do recurso.

7. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A desconsideração de matéria factual alegada pela parte na decisão da matéria de facto (por não resposta à mesma) não gera uma nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, podendo originar, sim, um vício da decisão da matéria de facto;

ii) Embora um “Acordo” de reconhecimento de divida, no montante de 27.100 €, com esquema de pagamento prestacional, assinado em Fevereiro de 2018, tenha na sua génese um contrato de mútuo da quantia de 74.819,68 €, emprestada ao R. pelo A. em Agosto de 1998, não resulta de tal ”Acordo” qualquer declaração negocial com o sentido de que o A. esteja a entregar, por empréstimo, dinheiro ao R., pelo que, considerando que o art. 1142º do Código Civil define contrato de mútuo como sendo aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro, aquele “Acordo”, invocado como causa de pedir pelo A., não representa a invocação de nenhum mútuo;

iii) Um facto provado plenamente, designadamente o reconhecimento de uma dívida em determinado valor, pode ser contrariado por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (art. 347º do CC).

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

                                                                            Coimbra, 15.12.2021

                                                                            Moreira do Carmo

                                                                            Fonte Ramos

                                                                            Alberto Ruço