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PROCESSO DE INVENTÁRIO
VALOR DA CAUSA
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário
I – No processo de inventário a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção [sendo, por conseguinte, aplicável o estatuído no artigo 308.º, n.º 3, do CPC (anterior)] e é com o mapa da partilha que se fixa definitivamente o valor (processual) do inventário, sendo a esse valor assim obtido que se deve atender para efeitos de admissibilidade de recurso; II - Não tendo sido, ainda, elaborado o mapa da partilha, o valor a considerar para efeitos de recurso deve ser aquele por que foram vendidos os imóveis relacionados como fazendo parte da herança; III - Quando a norma (artigo 201.º do anterior CPC, artigo 195.º do actual CPC) se refere à prática ou omissão de acto susceptível de influir no “exame ou na decisão da causa” reporta-se à sua instrução, discussão ou julgamento; IV- Se a irregularidade cometida (falta de nomeação de curador especial a quem dele carecia, por se encontrar numa situação de incapacidade para estar, por si, pessoal e livremente, em juízo) não teve qualquer influência na tramitação do inventário e não se descortina que essa omissão tenha, efectivamente, restringido ou suprimido direitos da interessada incapaz, ou de quaisquer outros interessados, não há motivo bastante para anular quaisquer actos; V – A considerar-se que a referida omissão gera nulidade, dispunham os interessados do prazo de dez dias (artigo 153.º do anterior CPC, a que corresponde, actualmente, o artigo 149.º do CPC) para a sua arguição, sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, como é a conferência de interessados.
Texto Integral
Processo n.º 289/09.0TBSTS.P1 Comarca do Porto Juízo Local Cível de Santo Tirso (J2)
Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
Em 22.01.2009, B… requereu no, então, Tribunal Judicial de Santo Tirso (4.º Juízo Cível) inventário (agora a correr termos pelo Juízo Local Cível, J2, Comarca do Porto) para partilha da herança aberta por óbito do seu pai C…, falecido em 19.04.2001, no estado de casado, sob o regime de comunhão geral de bens, com D….
A requerente foi nomeada cabeça-de-casal e, nessa qualidade, prestou declarações em 26.03.2009, indicando como sucessores do falecido, além da viúva, os seus seis filhos: E… (falecido em 30.05.2010 e deixando como herdeiros a sua cônjuge e os filhos, netos do inventariado, F…, G… e H…), B… (a requerente), I…, J…, K… (pré-falecido, deixando como herdeiras as suas filhas, netas do inventariado, L…, M… e N…) e O… (pré-falecida, tendo deixado como herdeira a sua filha, neta do inventariado, P…).
Em 28.03.2012, realizou-se a conferência de interessados[1] (na qual não esteve presente, nem representada, a interessada/viúva D…), tendo os interessados presentes decidido que se procederia à venda extrajudicial dos imóveis relacionados (um prédio urbano e um prédio rústico), o que veio a concretizar-se pelo preço de € 36.000,00.
Em 26.04.2018, foi proferido despacho determinativo da forma da partilha que, na parte que interessa, é do seguinte teor:
«À partilha deverá proceder-se da seguinte forma: a) Determinação do valor
O valor proveniente da venda será o montante a partilhar. b) Separação de meações
A importância atrás apurada divide-se, então, em duas partes iguais.
Uma delas é a meação do cônjuge sobrevivo - a D… – a quem se adjudica.
A outra é a herança do inventariado.
c) Herança do inventariado
1. Esta última divide-se em três partes iguais, sendo uma delas a quota disponível e as outras duas a legitima dos herdeiros.
2. Na quota disponível imputa-se o usufruto da cônjuge sobreviva D…, por força do legado.
3. No caso do legado atingir a legítima dos herdeiros procede-se à redução oficiosa da liberalidade até preencher os quinhões legítimos de cada um dos herdeiros.
4. Se o legado não preencher a totalidade da quota disponível, o excesso soma-se à quota indisponível.
5. A parte correspondente à quota indisponível será então dividida em quatro partes iguais.
6. Uma dessas partes corresponde ao quinhão que cabe ao cônjuge sobrevivo do inventariado, a referida D… a quem é adjudicada - artºs 2133º, nº 1, a) e 2139º, nº 1, do CC.
7. As restantes três partes dividem-se com igualdade pelos seis filhos do inventariado, cabendo uma a cada um - artºs 2133º, nº 1, a) e 2139º, nº 1, do CC.
8. A parte que caberia ao filho E… é dividida em quatro partes, cabendo uma parte a cada um dos seus herdeiros, cônjuge e filhos, a quem é adjudicada – artº 2133.º, n.º 1 e 2139.º, do CC.
9. A parte que caberia ao filho K… é dividida em igualdade pelas suas três filhas, netas do inventariado, cabendo uma parte a cada uma – artº 2044.º do CC.
10. A parte que caberia à filha O… é adjudicada à sua filha, neta do inventariado- artº 2044.º do CC.
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O preenchimento dos quinhões efetuar-se-á de harmonia com o acordo obtido na conferência de interessados.»
Notificada deste despacho, veio a cabeça-de-casal apresentar requerimento a informar que a interessada D… havia falecido em 23.12.2017 (juntando a respectiva certidão do assento de óbito), pelo que não poderia proceder-se à partilha pela forma determinada.
Foi, então, proferido despacho a dar sem efeito o despacho determinativo da forma da partilha e, no seguimento, em 21.06.2018, ainda a cabeça-de-casal, apresentou novo requerimento (ref.ª 29499845), dizendo, em síntese, o seguinte:
A sua mãe D… sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) em 2008 e, a partir de 2010, deixou de ter qualquer capacidade cognitiva.
Não houve processo de interdição, mas a interessada estava, de facto, «fora da plenitude de suas faculdades mentais» e «não possuía o discernimento exigível para poder se pronunciar quanto ao rumo do processo de inventário».
Não constituiu mandatário judicial e estava incapaz de compreender o sentido das notificações que lhe eram enviadas e por isso incapaz de defender os seus legítimos interesses no processo.
É caso de perda da capacidade judiciária e essa incapacidade devia ter sido suprida com a nomeação de curador especial, o que não aconteceu.
A preterição dessa formalidade gera nulidade nos termos do artigo 201.º do CPC, a qual retroage à data da constatação médica da falta de capacidade cognitiva da finada interessada e bem assim da falta de capacidade judiciária.
Rematou o seu requerimento pedindo que se reconheça e declare a falta de capacidade judiciária de D… para efeitos deste processo de partilhas e que sejam declarados nulos todos os actos praticados após a perda dessa capacidade judiciária, nulidade que «atinge a própria venda do imóvel operada, por negociação particular» no âmbito deste processo.
Devidamente notificados os demais interessados, nenhum deles se pronunciou sobre esse requerimento.
Ouvidas as testemunhas indicadas, em 11.05.2020 foi proferido despacho com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgo procedente a invocada nulidade e, em consequência, declaro nulos todos os atos praticados nos autos desde 1.1.2010 que estejam dependentes da capacidade judiciária da interessada incapaz e já falecida, D….»
Contra essa decisão reagiu o interessado G…, dela interpondo recurso com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que sintetizou nas seguintes “conclusões”:
«1. O presente inventário foi requerido por B… no dia 22 de Janeiro de 2009, ou seja, há já mais de 11 anos;
2. Procedeu-se então ao inventário por óbito de C…, que foi casado segundo o regime de comunhão de bens em primeiras e únicas núpcias de ambos com D…;
3. Como herdeiros legitimários, para além do referido cônjuge, deixou 6 filhos, três entretanto falecidos, pelo que se habilitaram como herdeiros os filhos dos falecidos;
4. Como cabeça-de-casal foi nomeada a filha do de cujus, a requerente do Inventário, B…;
5. No dia 21 de Junho de 2018, ou seja, mais de 9 anos após o início do inventário, inclusivamente depois de serem vendidos todos os bens da herança, veio a cabeça-de-casal B…, apresentar um requerimento nos autos, através do qual refere que a sua mãe D… havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral já em 2008 e que, nesse ensejo, nomeadamente a partir de 2010, deixara de possuir definitivamente qualquer capacidade cognitiva;
6. Junta um documento médico passado pela Dr.ª Q…, datado de 20 de Junho de 2018, através do qual aquela médica atesta que a referida D… sofreu um AVC em 2008, de que resultou hemiparesia esquerda, tendo ficado dependente;
7. Mais refere que desde então - entenda-se desde 2008 – o seu estado veio a deteriorar-se, nomeadamente a parte cognitiva sem discurso e que, aquando dos domicílios, a D… apenas demonstrava reações primárias de choro e riso e indica também quadro demencial grave desde 2010;
8. Pede então a referida cabeça-de-casal nesse requerimento que, tendo em consideração a falta de capacidade cognitiva e, consequentemente, de capacidade judiciária, deveriam ser considerados nulos todos os factos praticados após a perda de capacidade da Interessada D…;
9. O Tribunal a quo, em face do exposto, julgou procedente a invocada nulidade e, em consequência, declarou nulos todos os atos praticados nos autos desde 1.1.2010 que estejam dependentes da capacidade judiciária da interessada incapaz e já falecida, D…;
10. Decisão essa que o recorrente não se conforma e daí o presente recurso;
11. A arguição da arguição da nulidade é, desde logo e salvo melhor opinião, totalmente extemporânea;
12. As nulidades processuais propriamente ditas e respectivos regimes, efeitos e prazos de arguição, encontram-se elencadas e reguladas nos arts. 193º e ss 201º e ss do Código de Processo Civil;
13. O regime de arguição das nulidades processuais principais, típicas ou nominadas vem contemplado nos arts. 193º a 200º a 202º a 204º do CPC, sendo que as nulidades secundárias, atípicas ou inominadas - genericamente contempladas no nº 1 do art. 201º - só produzem nulidade quanto a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame e discussão da causa, possuindo o respectivo regime de arguição regulado pelo art. 205º do mesmo diploma;
14. Ora, no caso sub judice, a cabeça-de-casal veio a arguir a nulidade mais de 9 anos depois de ter conhecimento da mesma;
15. Sustentando que, mesmo sendo cabeça-de-casal, é uma pessoa humilde e de pouca instrução, com a 4ª classe no sistema de ensino antigo e que, por esse facto, não informou o processo que a mãe havia sido vítima de uma AVC em 2008 e que não tinha capacidade cognitiva para entender as notificações judiciais que lhe enviavam e que estava incapaz;
16. E que, consequentemente, deveria ter-lhe sido nomeado um curador especial;
17. E não o tendo sido, essa omissão constituía uma nulidade com todas as consequências legais;
18. Com efeito e desde logo a nulidade referida sempre seria uma nulidade atípica e secundária, pois que não teria qualquer influência no exame da causa;
19. Sendo totalmente extemporânea a sua arguição mais de 9 anos após a mesma ser conhecida;
20. Pelo que violou o Tribunal a quo, na sua apreciação dos factos, o disposto no art.º 205º de Código de Processo Civil;
21. Sem prescindir, no caso concreto e analisando o todo o processo e a tramitação do mesmo, nada seria objectivamente diferente caso a referida D… não tivesse sofrido um AVC e a cabeça de Casal não tivesse, conscientemente e com fito doloso, ocultado esse facto e passasse a representar os seus interesses, embora ocultamente;
22. Pelo que não tendo os factos se se pretender ver anulados influência da decisão da causa, não poderia essa mesma nulidade ser declarada;
23. Mas mesmo a ser verificada, sempre se teria de considerar sanada, porque todos os interessados se conformaram com ela;
24. Assim, mais uma vez, salvo o devido respeito, o Tribunal violou o regime jurídico das nulidades, ínsito nos artigos 193º a 208º do CPC;
25. Acresce que a cabeça-de-casal ocultou, consciente e dolosamente o estado de saúde da sua mãe, inclusivamente a morte da mesma ocorrida em 23 de Dezembro de 2017 e que, não pode usar essa preterição do Direito para conseguir uma vantagem para si, pretendendo ver anulado todos os actos;
26. Traduzindo-se essa actuação numa reputada má-fé e abuso de direito;
27. Na verdade, a cabeça-de-casal escondeu durante anos a fio a condição física, motora e cognitiva da sua mãe;
28. Fê-lo conscientemente, sendo que essa consciência se manifesta emfactos objetivos e concretos;
29. O facto de ter praticamente 70 anos e ter a instrução primária completa(antiga quarta classe) é uma condição académica normal e até boa;
30. É unimanamente aceite que a 4ª classe de há 50 ou 60 anos atrásequivalia, em conhecimento, à formação académica obrigatória actual;
31. Grandes empresários desde país construíram verdadeiros impérios comesse grau de instrução académico;
32. Pelo que, o argumento explanado de dizer – 9 anos depois – que é umapessoa humilde e de pouca instrução, tendo tão somente a 4ª classe dosistema de ensino antigo, não pode ter qualquer acolhimento para osefeitos pretendidos;
33. Acresce que a referida B1… foi nomeada cabeça de Casal desdeo início do inventário, em 2009, cargo que sempre manteve, nunca tendopedido a escusa pela pouca instrução que tinha;
34. Sempre demonstrou conhecimentos suficientes para perceber eentender todos os actos processuais e obrigações inerentes ao seu cargo;
35. Indicou como sua residência a Rua …, n.º .., ….-… Santo Tirso.
36. No dia 26 de março de 2009, veio a prestar declarações na qualidade decabeça de casal, identificando todos os herdeiros;
37. Nomeadamente a sua mãe, D…, quereferiu residir consigo, ou seja, na referida Rua …, n.º .., em SantoTirso;
38. Ou seja, já no dia em prestou declarações (26.03.2009) sabia que a suamãe D…, havia sofrido um AVC em 2008, do qual resultouhemiparesia esquerda, tendo ficado dependente de terceiro;
39. E sabia desde 2008 que o estado de saúde da sua mãe veio a deteriorar-se, nomeadamente a parte cognifiva sem discurso, referindo a médicaque a acompanhava que, aquando dos domicílios a D… apenasdemonstrava reaccões primárias de choro ou rido;
40. Acresce que a mencionada cabeça-de-casal, B…, sempreesteve representada em juízo por mandatário judicial;
41. Pelo que será muitíssimo provável, à luz da experiência comum, que lhetivesse falado da sua mãe, que vivia consigo, relativamente à qualrecebia as notificações do Tribunal, que era titular de metade da herançae que a mesma estava num estado demencial;
42. No dia 09 de Novembro de 2009, a mãe da Cabeça de Casal, D…, foi citada por carta registada com AR na qualidade deinteressada, para deduzir oposição ao inventário, impugnar alegitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros,impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantesdas suas declarações;
43. Essa carta de citação foi enviada para a D… pelo tribunal parao domicílio indicado pela cabeça-de-casal (que era o seu própriodomicílio) e foi recepcionada pela própria cabeça-de-casal;
44. Tal com aconteceu com todas as dezenas de notificações que tinhamcomo objectivo notificar a D… para actos processuais;
45. Que a B… ou o marido sempre recebeu em nome da suamãe que residia consigo e ocultou;
46. E não se diga que a cabeça-de-casal não entendia o que estava a fazer eas implicações dessa ocultação, pois que, para além de estardevidamente representada em juízo por Ilustre Mandatário, sempreadministrou os bens da herança, inclusivamente vendendo as árvoresdos prédios rústicos.
47. Sinal de que estava ciente das suas funções e obrigações é que no dia 30de Maio de 2010 informou o Tribunal que havia falecido o seu irmãoE…;
48. Incompreensivelmente – ou talvez não - nessa altura não relatou aoTribunal ou ao seu Advogado o estado demencial da sua mãe;
49. Nem mesmo quando a mesma faleceu;
50. Portanto a cabeça-de-casal sempre e foi lúcida e ávida a administrar osbens da herança e a oferecer aos autos todas as informações inerentesàs suas funções, sempre informando o seu Advogado e o Tribunal,excepto a do estado demencial da sua mãe, com a qual vivia, recebiacartas em seu nome e à qual sabia caber metade da herança;
51. Acresce ainda que, o presente inventário teve várias vicissitudes e porseis vezes foi realizada a conferência de interessados: a saber, no dia28.mar.2012; 12.Set.2012, 28.Nov.2012; 23:Jan.2013; 09.Abr.2013 e23.Out.2013;
52. A cabeça-de-casal esteve presente em todas as diligencias processuais esempre acompanhada pelo seu ilustre Advogado;
53. Em todas as conferências de interessados, o funcionário judicial chamavade viva voz o nome da D… que se encontravaobviamente ausente, nunca tendo a cabeça-de-casal justificado essaausência ou sequer mencionado que a sua mãe não podia estar presentepor estar doente ou em estado demencial;
54. Nem mesmo perante a M.mo Juiz que realizava as conferências deinteressados na presença de todos e verificada, juntamente comofuncionário judicial a lista de presenças e ausências;
55. Após a conferência de interessados, por várias vezes se tentou vendar osbens da herança, tendo todos interessados (incluindo a D…)sido devidamente notificados para a abertura de propostas;
56. Por outro lado, a cabeça-de-casal fez inúmeros requerimentos aos autos,inclusivamente fazendo propostas para aquisição dos bens, que foramaceites, mas das quais depois viria a desistir alegando problemas desaúde súbitos.
57. Por fim, a cabeça de casal – ao contrário do que fizera com a morte do seu irmão E… que falecera na pendência do inventário – veio a dar conhecimento aos autos do falecimento da sua mãe, ocorrido no dia 23 de Dezembro de 2017, apenas no dia 17 de Maio de 2017 (praticamente 5 meses depois), dizendo agora que ignorava as consequências dessa omissão;
58. Ora, o modus procedendi da cabeça-de-casal em todo o processo não se compadece com a circunstância de agora vir arguir a nulidade de qualquer acto, em concreto que a sua mãe estava num estado demencial e que o facto de não lhe ser nomeado um curado especial implica a nulidade de todos os actos processuais praticados desde 2010;
59. Traduzindo-se a sua conduta num claro e manifesto abuso de direito;
60. Ora, no caso concreto, existem indícios mais do que suficientes de que a B…, na qualidade de cabeça-de-casal da herança, pautou a sua actuação ou exercício dos seus direitos e obrigações de forma ilegítima por, manifestamente, exceder a boa-fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico e, como tal actuou em manifesto abuso de direito em prejuízo de todos os demais herdeiros;
61. Sendo que os restantes herdeiros não podem ver regressar todo o processo praticamente ao início – 11 anos após ter iniciado – impedindo a distribuição do dinheiro proveniente da venda dos bens de todos os bens da herança aos demais interessados;
62. Violou o Tribunal, pelo exposto, o disposto no artigo 334º do Código Civil.
63. Por fim, o Tribunal a quo, salvo melhor entendimento e com o sempre devido respeito, não poderia, após a venda e ter dado forma à Partilha pronunciar-se sobre a alegada nulidade dos actos 9 anos depois a mesma ter alegadamente ocorrido;
64. Devendo os factos ser tratados e dirimidos em acção autónoma a proporcontra os herdeiros e actuais possuidores, ante possuidores e actuaisproprietários dos bens vendidos na herança há praticamente 3 anos;
65. Devendo por isso a sentença ser declarada nula por violação do dispostona alínea d) do n.º1 do art.º 615º do CPC.»
A requerente/recorrida contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.
O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo) por despacho de 28.10.2020.
Já depois de proferido esse despacho, veio a cabeça-de-casal apresentar requerimento em que questiona a admissibilidade do recurso, porquanto o valor da causa é de € 5.000,00 e, portanto, não ultrapassa o valor da alçada do tribunal de que se recorre, um dos requisitos da admissibilidade do recurso ordinário, nos termos previstos no artigo 629.º, n.º 1, do actual CPC.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre das conclusões transcritas, o recorrente não põe em causa os factos em que o tribunal se baseou para concluir como concluiu sobre o estado mental da interessada D…, que esta se encontrava incapaz de entender e de manifestar, de forma livre e esclarecida, qualquer vontade, pelo que se impunha a nomeação de curador especial, nos termos previstos no artigo 1329.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil, aplicável à data em que essa incapacidade de facto já se verificava.
O que se questiona com este recurso são os efeitos da omissão dessa formalidade, a nomeação de curador especial à interessada, entretanto falecida, D….
Na primeira instância, acolheu-se o entendimento da cabeça-de-casal, expresso no requerimento de 21.06.2018, de que tal omissão gerava a nulidade dos actos, praticados após 01.01.2010, que dependessem da capacidade judiciária daquela interessada.
O recorrente vem defender a “extemporaneidade” da arguição de nulidade e o abuso de direito em que terá incorrida a cabeça-de-casal com essa arguição. Além disso, ao apreciar a arguição de nulidade, o tribunal teria conhecido de questão de que não podia conhecer e assim a decisão estaria afectada de nulidade com o fundamento previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
São essas as questões a apreciar e decidir – (in)tempestividade da arguição de nulidade, nulidade da decisão e abuso de direito -, mas, previamente, há que apreciar da recorribilidade da decisão.
*
O recurso foi admitido, mas a decisão não vincula este tribunal (artigo 641.º, n.º 5, do CPC).
Condição primeira da admissibilidade do recurso ordinário é a de que o valor da causa seja superior (não basta que seja igual) à alçada do tribunal de que se recorre, isto é, no caso, superior a € 5.000,00 (artigo 31.º, n.os 1 e 3, da LOFTJ).
O valor de € 5.000,00 é o valor inicialmente indicado pela requerente e não há nenhum despacho judicial a aceitar esse valor ou a fixar outro. É um valor que se aceita como provisório e que terá de ser corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários. Assim é porque no processo de inventário a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção [sendo, por conseguinte, aplicável o estatuído no artigo 308.º, n.º 3, do CPC (anterior)].
É com o mapa da partilha que se fixa definitivamente o valor (processual) do inventário e é ao valor assim obtido que se deve atender para efeitos de admissibilidade de recurso (cfr. Ac. STJ de 28-02-2008, Revista n.º 1353/07).
No caso, não tendo sido elaborado o mapa da partilha, o valor a considerar para efeitos de recurso deve ser aquele por que foram vendidos os imóveis relacionados como fazendo parte da herança (€ 36.000,00).
Improcede, assim, a questão da in(admissibilidade) do recurso suscitada pela cabeça-de-casal.
II – Fundamentação 1. Fundamentos de facto
Os factos e vicissitudes processuais relevantes para a decisão são os que constam do antecedente relatório e, ainda, os que foram considerados provados e são os seguintes:
1. D… faleceu em 23.12.2017.
2. No ano de 2008, a identificada interessada sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
3. Do qual resultou hemiparesia esquerda, tendo ficado dependente de terceiros.
4. Desde então o seu estado veio a deteriorar-se, nomeadamente a parte cognitiva.
5. A interessada D… não falava, apenas apresentava reações primárias de choro e riso.
6. Desde o ano de 2010 que sofreu de um quadro demencial grave que a impedia de expressar a sua vontade.
2. Fundamentos de direito
2.1 Nulidade e a (in)tempestividade da sua arguição
Depois de um breve apontamento sobre esse pressuposto processual que é a capacidade judiciária, na decisão recorrida discorreu-se assim:
«Ora, no caso dos autos ficou demonstrado que desde 2010, a interessada D… sofria de um quadro demencial grave, não falava, apenas apresentava reações primárias como o riso e o choro, ou seja, encontrava-se incapaz de entender e de manifestar de forma livre e consciente qualquer vontade.
De tal factualidade concluiu-se que a identificada interessada desde 2010 encontrava- se numa situação de incapacidade judiciária, pelo que deveria ter sido nomeado curador especial que a representasse, nos termos do artigo 10.º, 11.º e 1329.º, todos do Código de Processo Civil (antigo aplicável aos presentes autos).
Compulsados os autos verifica-se que não só não foi nomeado qualquer curador especial à interessada D…, que suprisse a incapacidade judiciária, como nem sequer foi dado conhecimento aos autos que aquela estava incapaz desde 2010.
Tal omissão, a de nomeação de curador especial, constitui uma irregularidade que influiu quer no exame quer na decisão da causa, pelo que, nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1 do CPC (antigo) constitui uma nulidade.
Dispõe o n.º 2 do mencionado dispositivo legal que quando um ato tenha de ser anulado anular-se-ão os termos subsequentes que dele dependam.
Em face do exposto, julgo procedente a invocada nulidade e, em consequência, declaro nulos todos os atos praticados nos autos desde 1.1.2010 que estejam dependentes da capacidade judiciária da interessada incapaz e já falecida, D….»
Como se aludiu, o recorrente não questiona o estado demencial grave em que se encontrava, pelo menos, desde o início de 2010, a interessada D…, que a incapacitava para estar, por si, pessoal e livremente, em juízo. Tal como não põe em causa a imperiosidade da nomeação de curador ad litem (como, de resto, decorre, com meridiana clareza, do disposto nos artigos, 9.º, n.º 1, 10.º, n.º 1, 11.º, n.º 1 e 1329.º, n.º 1, do velho CPC) e que a falta dessa nomeação e o consequente prosseguimento do processo com um interessado incapaz constitui uma irregularidade processual.
A questão que o recorrente submete à apreciação deste tribunal de recurso diz respeito ao regime de arguição dessa irregularidade.
O regime de arguição de nulidade da sentença está previsto artigo 615.º, n.º 4, do CPC (aplicável aos despachos por força do artigo 613.º, n.º 3, do mesmo compêndio normativo), mas não é esse regime que agora nos interessa.
É o regime de nulidade dos demais actos processuais (actos inseridos numa tramitação processual) que importa aqui ter em atenção.
O regime geral das invalidades processuais é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência.
As nulidades dos actos, em regra, não são arguidas em recurso, mas antes mediante requerimento de arguição perante a autoridade judiciária que praticou o acto (eventualmente) nulo, ou que omitiu um acto essencial, e é da decisão que recair sobre essa arguição que, em princípio, poderá recorrer-se.
O mesmo sucede em relação às irregularidades.
Nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do velho Código de Processo Civil[2], não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos 193.º, 194.º, 198.º, n.º 2, segunda parte, 199.º e 200.º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção que estiver em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
No caso, temos a omissão de um acto – a nomeação de curador especial à principal interessada no inventário (na medida em que, além de herdeira do inventariado, era meeira e, por disposição testamentária, por conta da quota disponível, aquele legou-lhe o usufruto de todos os bens) – que se impunha porque, como ficou demonstrado, esta estava incapacitada de, por si, pessoal e livremente, agir em defesa dos seus interesses no processo e não estava assistida por advogado.
Poderá afirmar-se que essa omissão teve influência no exame ou na decisão da causa?
O recorrente pronuncia-se pela negativa, argumentando que «no caso concreto e analisando o todo o processo e a tramitação do mesmo, nada seria objectivamente diferente caso a referida D… não tivesse sofrido um AVC e a cabeça de Casal não tivesse, conscientemente e com fito doloso, ocultado esse facto».
A cabeça-de-casal (requerente da arguição de nulidade) defende, obviamente, posição contrária, mas sem concretizar em que termos é que a falta de nomeação de curador ad litem influenciou o exame ou a decisão da causa, limitando-se a uma invocação abstracta do artigo 201.º do anterior CPC [«Não tendo sido este (curador especial) nomeado todos os actos são anuláveis nos termos do previsto no art.º 201.º, n.º 1 do CPC»].
Na decisão recorrida, como se vê pela transcrição efectuada, concluiu-se que a irregularidade «influiu quer no exame quer na decisão da causa», mas a conclusão não está, minimamente, fundamentada.
Quando é que pode dizer-se que a irregularidade é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa?
Antes de mais, cabe salientar que o regime de nulidades que aqui se pode invocar reporta-se a actos enquanto trâmites de um processo.
Vem isto a propósito do teor do requerimento de 21.06.2018 (sobre o qual recaiu o despacho recorrido) em que a cabeça-de-casal pretende que a declaração de nulidade atinja «a própria venda do imóvel operada, por negociação particular, ao abrigo deste processo.».
A pretensão de anulação dessa venda, ainda que fundada na incapacidade da interessada D…, só poderá ser formulada e, eventualmente, alcançada nos termos gerais e não como efeito da declaração de nulidade prevista no artigo 201.º (agora 195.º) do CPC.
Em segundo lugar, cumpre sublinhar que o regime instituído tem por escopo evitar a restrição ou supressão prática e efectiva dos direitos e interesses das partes e não para finalidades puramente formais ou dilatórias.
Em terceiro lugar, quando a norma se refere à prática ou omissão de acto susceptível de influir no “exame ou na decisão da causa” reporta-se à sua instrução, discussão ou julgamento[3].
A este propósito, Artur Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, pág. 109) escreve: «Não restam quaisquer dúvidas de que a fórmula legal – fórmula que é reprodução da já adoptada na Nova e Novíssima Reforma Judiciária -, abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório (v.g., a falta, na citação, quer da indicação do dia até ao qual pode ser oferecida a contestação, quer da cominação em que o réu se a não apresentar). Mas, para além disto, só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver».
Apesar do longo período (desde o início de 2010 até final de 2017) por que ocorreu a irregularidade, o que se verifica neste caso é que a falta de nomeação de curador especial não teve qualquer influência na tramitação do inventário e não se descortina que essa omissão tenha, efectivamente, restringido ou suprimido direitos da interessada D…, ou de quaisquer outros interessados.
Nem a requerente/cabeça-de-casal, nem a decisão recorrida identificam qualquer direito que possa ter sido afectado pela irregularidade cometida.
O único acto que poderia ter esse efeito seria o despacho determinativo da forma da partilha (a que se seguiria o mapa da partilha), mas esse despacho foi “dado sem efeito” logo que houve notícia do decesso daquela interessada.
Não há, pois, motivo bastante para anular quaisquer actos posteriores a Janeiro de 2010.
Mas o requerimento de 21.06.2018 devia ter sido indeferido, ainda, por outro motivo.
A considerar-se que a omissão produz nulidade, estaremos perante uma nulidade secundária ou atípica que só poderá ser conhecida pelo tribunal mediante reclamação do(s) interessado(s) na observância da formalidade (artigo 202.º do CPC) para o órgão que omitiu o acto.
Para tanto, para a dedução de reclamação, dispunham os interessados do prazo de dez dias (artigo 153.º do anterior CPC, a que corresponde, actualmente, o artigo 149.º do CPC)), sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele.
Ora, a cabeça-de-casal sabia, desde o início, do quadro demencial grave em que se encontrava a sua mãe e que a impedia de expressar a sua vontade.
É a própria a afirmá-lo no requerimento de 21.06.2018 quando alega que a incapacidade da interessada D… era manifesta, até porque ela não falava e, apenas, apresentava reações primárias de choro e riso.
Por isso, como a cabeça-de-casal reconhece, devia ter levado ao conhecimento do tribunal esse facto e podia tê-lo feito, pelo menos, em 28.03.2012, quando se realizou conferência de interessados, na qual esteve presente.
Não pode vir agora a cabeça-de-casal aproveitar-se da sua negligência (o recorrente alega que foi omissão deliberada…) para invocar uma nulidade que, a verificar-se, há muito estaria sanada.
Fica, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões equacionadas.
III - Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação interposta por G… e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo o processo de inventário prosseguir seus termos.
Por ter decaído, as custas do recurso serão suportadas pela requerente/recorrida
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 08.11.2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
________________ [1] Que, posteriormente, veio, por várias vezes, a ser retomada. [2] À semelhança do que dispõe o artigo 195.º do actual CPC, que reproduz, praticamente na íntegra, o artigo 201.º do anterior CPC [3] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, pág. 486.