COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
TRIBUNAIS DO TRABALHO
ACIDENTE DE TRABALHO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

1. - A competência material do tribunal afere-se perante a pretensão trazida a juízo na petição inicial, tendo em conta a causa de pedir e o pedido da ação.
2. - Os tribunais do trabalho são os competentes para conhecer do litígio entre trabalhador e empregador fundado na ocorrência de acidente de trabalho, de que aquele tenha sido vítima, e decorrente indemnização, também por danos não patrimoniais causados pelo acidente, no caso de responsabilidade agravada da entidade empregadora em virtude de incumprimento causal das normas de segurança no trabalho.
3. - Ainda que, em termos complementares, laterais ou acessórios, tenha sido invocada na petição inicial a existência de factos culposos do empregador posteriores ao acidente – omissão de auxílio, pressão para não contar o sucedido, coação e ameaças para não exercer o direito de queixa –, estes não influem na determinação da competência material, tanto mais que o pedido indemnizatório, atenta a natureza e grandeza dos danos invocados, não se filia, causalmente – no que essencialmente releva –, nos factos posteriores, mas sim no acidente e decorrentes lesões.

Texto Integral

          






  Recurso próprio, nada obstando ao seu conhecimento.

Ao abrigo do disposto no art.º 656.º do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, segue decisão sumária, face à simplicidade da questão a decidir.

                                      I – Relatório

J..., com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, contra

A..., também com os sinais dos autos,

pedindo, na procedência da ação, por forma a:

«a) Ser o R. condenado a pagar ao A. a quantia de €30,40 (trinta euros) a título de indemnização de natureza patrimonial, acrescida dos juros legais a contar da data da citação até efectivo e integral reembolso;

b) Ser o R. condenado a pagar ao A. a quantia de €145.000,00 (cento e quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização de natureza não patrimonial, acrescida dos juros legais a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento.

c) Ser o R. condenado a pagar ao A. indemnização a título de dano patrimonial futuro/dano biológico, e por este dano não poder ser determinado e quantificado nesta data, requer-se que a sua liquidação seja remetida para execução de sentença (cfr. arts. 564.º, n.º 2 e 569.º do CC e 556.º, n.º 1, al. b), e n.º 2 e 358.º do CPC);

d ) Ser o R. igualmente condenado a suportar todos os custos e encargos com todo o tipo de tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso que o A. venha a necessitar, requerendo-se que a sua liquidação seja remetida para execução de sentença (cfr. arts. 564.º, n.º 2 e 569.º do CC e 556.º, n.º 1, al. b), e n.º 2 e 358.º do CPC).».

Alegou, para tanto, em síntese, que:

- O R., empresário em nome individual que se dedica à atividade de empreitadas de construção civil, admitiu ao seu serviço o A., para trabalhar sob a sua autoridade, direção e fiscalização, exercendo este as funções de pedreiro e recebendo, como contrapartida do trabalho prestado, determinada retribuição mensal;

- foi nesse âmbito que, no dia 10/05/2018, o A. – no exercício das suas funções –, quando transportava dois baldes vazios na mão, a mais de três metros de altura, através de uma escada móvel, deu a volta em cima do degrau e escorregou, caindo no chão, com o que sofreu «um acidente de trabalho» (art.º 10.º da petição inicial, doravante p. i.);

- após a queda, o R. transportou o A. para a residência deste, deixando-o dentro da sua casa, e chamou os bombeiros, não sem antes lhe ordenar que não contasse a verdade;

- «em consequência do acidente referido», «o A. ficou gravemente ferido, tendo sofrido (e continua a sofrer), danos físicos e morais que a seguir se discriminam e peticionam» (art.º 21.º da p. i.);

- por força das lesões sofridas, o A. foi hospitalizado, bem como submetido a cirurgias, tratamentos, análises, exames e consultas, recebendo prolongada assistência, padecendo de incapacidade permanente global de 63%, sujeita a agravamento futuro, «em virtude de deficiência resultante do acidente de trabalho», sabendo que «nunca recuperará totalmente, fisicamente nem psicologicamente das mazelas provocadas no seu corpo» (art.ºs 28.º e 30.º da p. i.);

- o A. suportou diversas despesas por efeito do aludido acidente, de que deve ser indemnizado, deixou de poder trabalhar, por efeito da incapacidade de que é portador, e é certo que o R. não cumpriu as normas de segurança e higiene no trabalho, não acionou o seguro de acidentes de trabalho, nem participou o mesmo à ACT, tal como não declarou o trabalho do A. junto da Segurança Social, antes o tendo abandonado em situação de especial vulnerabilidade, continuando o demandante a carecer de tratamentos, a sentir dores e a passar por sofrimentos, devendo, pois, ocorrer reparação, com inerente condenação a título de danos patrimoniais e morais.

Citada a contraparte, veio esta invocar a incompetência material do tribunal – Juízo Central Cível de Leiria –, contrapondo o A., por sua vez, que o mesmo é o competente.

Seguidamente, em despacho saneador (datado de 25/06/2021), conheceu-se desta matéria de exceção, nos seguintes termos:

«A presente ação, tal como configurada pelo autor, visa responsabilizar o réu pela ocorrência de um acidente de trabalho (cf. arts. 2º a 6º e 10º da petição). O único fator de responsabilização do réu, segundo o autor, é a existência de um acidente enquanto o autor trabalhava para o réu. Ou seja, segundo o autor, não foi o réu a causa do acidente, visando responsabilizá-lo, unicamente, pelo facto de ter sofrido o acidente, descrito em 9º da petição, enquanto prestava trabalho remunerado para o réu, em suma, pelo simples facto de ser o seu empregador. Não alega o autor que a causa dos danos tenha sido a conduta do réu depois do acidente antes a imputando ao acidente que qualifica como de trabalho (cf. art. 21º da petição:

… em consequência do acidente referido em 9.º, o A. ficou gravemente ferido, tendo sofrido (e continua a sofrer), danos físicos e morais que a seguir se discriminam e peticionam).

Nos termos constantes do art. 117.º da LOSJ, compete os juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00.

Por seu turno, dispõe o nº. 1 do art. 126.º do mesmo diploma, que:

1Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:

a) (…);

c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;

(…)

Como se sabe, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial. No caso, como referimos, o autor não alega qualquer facto gerador de responsabilidade extracontratual para o réu, mas sim, e unicamente, responsabilidade contratual, resultante da alegada existência de contrato de trabalho. É, assim, evidente, para nós, que o autor funda a presente ação na ocorrência de um acidente de trabalho. E, como já vimos, todas as questões emergentes de acidente de trabalho são da competência material dos tribunais do trabalho. Pelo que há que declarar a incompetência absoluta deste tribunal para apreciar a presente ação.

Trata-se de uma incompetência absoluta, em razão da matéria, que uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e que implica a absolvição da instância, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 96º, alínea a); 97º; 99º, ns 1 e 2ª parte, e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

Pelo exposto, declaro este Juízo Central Cível da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação e, em consequência, absolvo o réu da instância.» (destaques retirados).

Desta decisão vem o A. interpor recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([1]):

...

Não foi oferecida contra-alegação de recurso.   

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, constata-se que o thema decidendum, incidindo exclusivamente sobre a decisão de matéria de direito, consiste em saber, somente, qual o tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão materializada na ação: se os tribunais cíveis (Juízo Central Cível de Leiria), como defende o Apelante, ou os tribunais do trabalho, como sustenta o Tribunal a quo.

III – Fundamentação

         A) Materialidade fáctica e dinâmica processual

         A materialidade fáctica e a dinâmica processual a considerar são as enunciadas no antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

         B) Aspeto jurídico do recurso

         Como dito já, a única questão a resolver na apelação é a da aferição do tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer da ação interposta, tendo em conta a pretensão formulada, perspetivada esta perante o pedido deduzido e a causa de pedir trazida aos autos, o que tudo consta da p. i., pelo que é este o articulado de referência a considerar no plano recursivo ([2]), cuja materialidade foi desenvolvidamente refletida no relatório antecedente.

Para tanto, cumpre, de antemão, formular sintético esclarecimento quanto à normação jurídico-processual a atender/aplicar para enquadramento e adequada decisão da questão de competência suscitada.

É consabido que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211.º, n.º 1, da Constituição).

Em sintonia, dispõe o art.º 64.º do NCPCiv. serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. E o art.º 40.º, n.º 1, da LOSJ – Lei n.º 62/2013, de 26-08 (Lei de organização do sistema judiciário) – estabelece que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Trata-se, então, da consagração do «princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, uma vez que ela se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais» ([3]).

Quanto especialmente ao caso dos autos, resulta do art.º 126.º da LOSJ a delimitação da competência dos juízos do trabalho, em matéria cível, aos quais cabe, relativamente ao que ora importa, conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais [cfr. al.ª c) do respetivo n.º 1].

E como lembra a jurisprudência citada ([4]):

«O art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais), considera como “acidente de trabalho” «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».

Por «questões emergentes de acidentes de trabalho», entende-se «as questões relativas a um tal evento danoso, como a sua constatação, a determinação do dano e a correspondente indemnização, com todas as suas componentes de dano à saúde e integridade física do trabalhador, ao seu património/retribuição, à sua capacidade de ganho, porque são estas as questões que, quanto a acidentes de trabalho, se reportam à relação jurídica de trabalho subordinado, pedra basilar do direito do trabalho que, por sua vez, determina a existência dos tribunais do trabalho como tribunais de competência especializada».

Assim, tais questões podem fundar os pedidos que têm como causa de pedir o acidente de trabalho, originando os processos que o CPT designa de processos de acidente de trabalho (visando a fixação de pensão, indemnização pecuniária ou prestações em espécie), incluindo os respectivos incidentes de revisão, remissão ou actualização de pensões.

Nos termos do art.º 18.º, n.º 1, da mesma lei, “[q]uando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.».

Pode, então, dizer-se que «A resolução dos litígios emergentes de acidentes de trabalho há muito que está atribuída a uma jurisdição especializada – a jurisdição do Trabalho – que aborda esta competência num quadro processual próprio – o processo dos acidentes de trabalho – que integra disciplina processual específica para a realização deste ramo do Direito, articulando a dimensão pericial da determinação das consequências do acidente, com a realização dos interesses de natureza pública que estão subjacentes à reparação da perda da capacidade de ganho.» ([5]).

Diversa é a situação em que um acidente seja simultaneamente de viação e de trabalho, caso em que há complementaridade – obviamente, sem dupla indemnização de um mesmo dano sofrido – entre a indemnização concedida na jurisdição laboral (por acidente de trabalho) e a que vier a ser fixada, em matéria de acidentes de viação, pelos tribunais cíveis ([6]).

Assim sendo, a competência atribuída aos tribunais do trabalho diz respeito a «questões que, directa ou indirectamente, emergem de acidentes de trabalho, o que significa que a existência do próprio acidente há-de integrar a causa de pedir das acções em que as mesmas sejam discutidas» ([7]).

É sabido, por outro lado, que um acidente de trabalho é um evento/acontecimento, «preenchido pelas mais diversas ocorrências que a vida possa comportar, que, ocorrido no tempo e no local de trabalho, bem como em todas as circunstâncias que a lei a tanto equipare, cause, ao menos indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte uma redução da capacidade de trabalho ou ganho, seja temporária ou definitiva, mais grave ou menos grave ou mesmo a morte» ([8]).

Âmbito este em que tem vindo a ser entendido que os tribunais do trabalho são os competentes «para apreciar o pedido formulado pela autora de reparação dos danos não patrimoniais resultantes de acidente que vitimou mortalmente o seu filho, quando este trabalhava por conta da ré e que, no entender daquela, foi devido a culpa desta, por falta de condições de segurança no trabalho e por não ter tomado as precauções necessárias para evitar o acidente». Termos em que, competindo «aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria civil, das questões emergentes de acidentes de trabalho (…), não se vislumbra razão de ser para atribuição a tribunais distintos da competência para a fixação das indemnizações a atribuir ao trabalhador e seus familiares resultantes do mesmo evento (embora possuindo estas naturezas jurídicas distintas)» ([9]).

Focado no caso dos autos, entendeu o Tribunal a quo que o A./Apelante não alegou qualquer facto gerador de responsabilidade extracontratual, confinando-se aquele à responsabilidade contratual, derivada da existência de contrato de trabalho, em cujo quadro invocou um acidente de trabalho, concluindo, por isso, a 1.ª instância pela competência material dos tribunais do trabalho, por a problemática dos autos, tal como ressuma da p. i., se esgotar em questões (de indemnização/reparação) emergentes de acidente de trabalho.

Dissente o Recorrente, invocando que alegou ter sido abandonado pelo R., o qual não lhe prestou auxílio, antes o tendo pressionado a não contar o ocorrido a ninguém, bem como coagido e ameaçado para não exercer o direito de queixa, fundamento este para responsabilidade civil por factos ilícitos. Assim, sendo certo que a causa de pedir é complexa, não deixando de abarcar factos relacionados com uma relação de trabalho subordinado, conclui que, no essencial, a factualidade alegada respeita a «actuações ilícitas», idóneas a «integrar a prática de crimes», em termos de relação «causal dos danos invocados, fazendo-o assim incorrer em responsabilidade civil extracontratual».

Daí, pois, a seguinte questão: na lógica da petição – e na economia da ação, tendo em vista o pedido e a causa de pedir, de índole indemnizatória –, essencial, como elemento produtor dos danos invocados (aqueles por que, independentemente da sua natureza, se reclama reparação), é o ocorrido acidente de trabalho? Ou os factos posteriores alegados (omissão de auxílio, pressões para não falar, coações e ameaças para não se queixar)?

Ora, olhando à pretensão formulada, é patente que o A./Recorrente pretende indemnização por danos patrimoniais – especificamente, no montante de € 30,40 (por despesas suportadas com tratamentos e obtenção de um certificado), a que acresce indemnização, a liquidar ulteriormente, a título de dano patrimonial futuro/dano biológico (por força de uma incapacidade permanente de 63%, com rebate profissional), bem como por todos os custos e encargos com tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso que venha a ser necessário –, tal como, ainda, por danos não patrimoniaisquantum de €145.000,00 (pelas dores, incómodos, sofrimentos decorrentes dos tratamentos, cirurgias, exames, falta de mobilidade, períodos de clausura, com decorrentes “agonia”, “ânsia”, “martírio”, dores essas que persistem, sem que tenha ainda recuperado do acidente, como descrito nos art.ºs 58.º a 63.º da p. i.)

Qual, então, a causalidade geradora dos danos a indemnizar?

Assim colocada a questão, patente se torna – salvo sempre o devido respeito – que na génese da apresentada pretensão de reparação está sempre o acidente de trabalho, em vez dos mencionados eventos posteriores alegados.

Com efeito, é indubitável ser o acidente de trabalho, com as lesões e sequelas alegadas daí decorrentes – maxime, «Fractura Complexa Acetabular Direita», «Apresentando coxalgia direita, com claudicação, não tolerando marcha sem canadiana», com IPG de «63%» (cfr. art.ºs 23.º a 33.º da p. i.) –, a causar (em termos de nexo de causalidade adequada) o invocado dano por despesas com tratamentos e obtenção de certificado, mas também, logicamente, o dano patrimonial futuro/dano biológico (reportado àquela incapacidade permanente de 63%, com rebate profissional), tal como, do mesmo modo, o dano referente aos custos e encargos com tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso que venha(m) a ser necessário(s).

E o mesmo tem de dizer-se a propósito dos alegados danos não patrimoniais: se os peticionados €145.000,00 se reportam a dores, incómodos, sofrimentos decorrentes dos tratamentos, cirurgias, exames, falta de mobilidade, períodos de clausura, sem recuperação do acidente, então estes «danos morais» só podem filiar-se, causalmente, no próprio acidente de trabalho sofrido e decorrentes lesões.

Não, obviamente, quanto ao que essencialmente releva, nos eventos posteriores alegados (omissão de auxílio, para além da ocorrida condução a casa, pressão para não contar o sucedido, coação e ameaças para não exercer o direito de queixa), por destituídos estes, manifestamente, da envergadura necessária para justificar a natureza e grandeza/gravidade de tais danos ([10]).

Donde que o fundamento da ação – de pendor indemnizatório (por danos patrimoniais e não patrimoniais, aos quais, e só a eles, se reporta o pedido) –, que consubstancia a causa de pedir, assente na alegação de um acidente de trabalho, sendo o mais acessório ou lateral ([11]).

Em suma, o objeto da causa é representado por direitos emergentes de acidente de trabalho, havendo um irrecusável nexo de causalidade, no âmbito alegado pelo A./Recorrente, entre os danos invocados (consequência) – cuja reparação se pretende – e o descrito acidente de trabalho (causa).

E não é, como visto, o facto de também ser pedida indemnização por danos não patrimoniais que faz desvirtuar esta caraterização e a estabelecida causalidade – os invocados «danos morais» também decorrem do acidente –, sabido que, como jurisprudencialmente acolhido, quando é invocada responsabilidade agravada ([12]) da entidade empregadora ([13]) – alegação, in casu, de que o acidente ocorreu por falta de observância (logo, incumprimento) das normas de segurança no trabalho (cfr. art.º 53.º da p. i.), com o consequente agravamento, em termos jurídicos, da responsabilidade daquela –, a responsabilidade por danos não patrimoniais, emergentes de acidente de trabalho, supondo a culpa da entidade patronal, deve ser determinada ao abrigo do Código Civil, mas sendo competentes os tribunais de trabalho, em razão da matéria, para conhecer dessa responsabilidade.

A competência destes tribunais não está confinada ao arbitramento da reparação por danos patrimoniais de acordo com a Lei dos Acidentes de Trabalho, sendo, porém, indesmentível que é a Jurisdição Laboral a que está vocacionada para conhecer dos acidentes de trabalho e das indemnizações por danos daí decorrentes.

Termos em que não pode triunfar a argumentação do Recorrente, antes havendo de manter-se a decisão recorrida, inexistindo nesta violação de lei, mormente das normas jurídicas invocadas pelo Apelante.

Improcede, pois, a apelação, cabendo, como bem decidido, a competência material aos tribunais do trabalho, com a decorrente incompetência do Tribunal a quo.

                                               ***

IV – Síntese conclusiva (cfr. art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - A competência material do tribunal afere-se perante a pretensão trazida a juízo na petição inicial, tendo em conta a causa de pedir e o pedido da ação.

2. - Os tribunais do trabalho são os competentes para conhecer do litígio entre trabalhador e empregador fundado na ocorrência de acidente de trabalho, de que aquele tenha sido vítima, e decorrente indemnização, também por danos não patrimoniais causados pelo acidente, no caso de responsabilidade agravada da entidade empregadora em virtude de incumprimento causal das normas de segurança no trabalho.

3. - Ainda que, em termos complementares, laterais ou acessórios, tenha sido invocada na petição inicial a existência de factos culposos do empregador posteriores ao acidente – omissão de auxílio, pressão para não contar o sucedido, coação e ameaças para não exercer o direito de queixa –, estes não influem na determinação da competência material, tanto mais que o pedido indemnizatório, atenta a natureza e grandeza dos danos invocados, não se filia, causalmente – no que essencialmente releva –, nos factos posteriores, mas sim no acidente e decorrentes lesões.
V – Decisão
Pelo exposto – e ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv. –, julgando-se improcedente a apelação, confirma-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo A./Apelante, ante o seu decaimento na fase recursória.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinatura eletrónica e em teletrabalho.

15/12/2021

         Vítor Amaral (Relator)


([1]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([2]) Cfr., por todos, o Ac. STJ de 13/10/2020, Proc. 483/19.5T8LRS.L1.S1 (Cons. Fernando Samões), em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação pode ler-se: «(…) conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, a aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência em razão da matéria, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada na petição inicial. // Assim, a competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, já que ela não depende nem da legitimidade das partes nem da procedência da acção.».
([3]) Cfr. ainda o aludido o Ac. STJ de 13/10/2020.
([4]) Aludido Ac. STJ.
([5]) V. Ac. TRL de 19/09/2017, Proc. 27786/15.5T8LSB.L1-7 (Rel. Cristina Coelho), em www.dgsi.pt, que segue o Ac. do STJ de 08/06/2017, Proc. 5515/15.3T8OAZ-A.P1.S1 (Cons. António Leone Dantas), também em www.dgsi.pt.
([6]) Cfr. Ac. STJ de 06/07/2017, Proc. 3559/05.2TBVCT.G1.S1 (Cons. António Joaquim Piçarra), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I - Constitui entendimento uniforme e reiterado que as indemnizações consequentes a acidente simultaneamente de viação e laboral não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário.». No mesmo sentido, por todos, o Ac. STJ de 11/12/2012, Proc. 40/08.1TBMMV.C1.S1 (Cons. Lopes do Rego), também em www.dgsi.pt.

([7]) Cfr. Ac. STJ de 14/05/2009, Proc. 09S0232 (Cons. Sousa Peixoto), disponível em www.dgsi.pt. Veja-se ainda o Ac. STJ de 01/10/2001, Proc. 02S561 (Cons. Mário Torres), igualmente em www.dgsi.pt, defendendo que a competência material dos tribunais do trabalho para julgar sobre as questões emergentes de acidentes de trabalho (e doenças profissionais), «sem distinguir o fundamento da responsabilidade accionada (objectiva ou subjectiva)», «justifica-se plenamente em razão da sua especialização, pois a apreciação da procedência da pretensão deduzida não deriva apenas da verificação dos requisitos genéricos da responsabilidade civil, mas também – e decisivamente – do apuramento do respeito, pela ré, das normas aplicáveis em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, questão para a qual os tribunais do trabalhos estão naturalmente mais vocacionados do que os tribunais cíveis».
([8]) V. Ac. TRC de 05/05/2011, Proc. 188/07.0TTCTB.C1 (Rel. José Eusébio Almeida), em www.dgsi.pt, em cujo sumário é afirmado ainda: «III - Há um número de acidentes de trabalho em que, além de haver reparação, essa reparação (as prestações que lhe correspondem) é agravada – são os “casos especiais de reparação” – artº 18º da LAT. // IV - São estes os casos de os acidentes terem sido provocados pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultarem de falta de observação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho. // V - A dita reparação culposa agravada radica na causalidade: o acidente há-de ser provocado pelo empregador (ou seu representante) ou ser o resultado (a conclusão adequadamente causal) da falta de observação (pelo empregador ou representante) das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.». Já no Ac. TRC de 12/06/2007, Proc. 966/03.9TBACB.C1 (Rel. Ferreira de Barros), em www.dgsi.pt, enfatizou-se que «a responsabilidade por danos não patrimoniais, emergentes de acidente de trabalho, supondo a culpa da entidade patronal ou seu representante, deve ser determinada ao abrigo do Código Civil (art. 496º), mas sendo competentes os tribunais de trabalho, em razão da matéria, para conhecer dessa responsabilidade. A competência dos tribunais de trabalho não está confinada ao arbitramento da reparação por danos patrimoniais de acordo com a Lei dos Acidentes de Trabalho.».
([9]) V. Ac. TRC de 27/03/2012, Proc. 1251/09.8TBFIG.C1 (Rel. Jaime Carlos Ferreira), disponível em www.dgsi.pt (com itálico aditado).
([10]) Desde logo, nunca poderiam o dano biológico e inerente incapacidade permanente – tal como os tratamentos médicos e cirurgias suportados, os supervenientes custos e encargos com tratamentos, internamentos, acompanhamento médico e medicamentoso (que venham a ser necessários) – resultar desses eventos posteriores. E o mesmo se diga de dores, incómodos, sofrimentos decorrentes de tratamentos, cirurgias, exames, falta de mobilidade, períodos de clausura, sem recuperação do acidente, que justificassem, pela sua gravidade e intensidade, uma compensação em torno dos peticionados € 145.000,00, por danos morais.
([11]) Destituído, por isso, da relevância que o demandante agora lhe pretende conferir.
([12]) Caso em que «a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais», como explicitado no Ac. STJ de 21/09/2017, Proc. 1855/11.9TTLSB.L1.S1 (Cons. Ribeiro Cardoso), em www.dgsi.pt.
([13]) Veja-se o Ac. STJ de 13/10/2016, Proc. 443/13.0TTVNF.G1.S1 (Cons. Pinto Hespanhol), em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação pode ler-se: “O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito constitucional, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais. // (…) no plano infraconstitucional, aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2010 (artigo 188.º) e regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais. // O artigo 2.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (…) estabelece que o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos naquela lei. // E o n.º 1 do artigo 18.º, intitulado «Atuação culposa do empregador», reza que, «[q]uando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais»”.