IMPUGNAÇÃO PAULIANA
EXECUÇÃO DO BEM EM CAUSA
Sumário

1. - Julgada procedente ação de impugnação pauliana quanto a uma venda de um imóvel de pais a filha, com a decorrente ineficácia da transmissão em relação ao credor impugnante, pode este executar, com inerente penhora, o imóvel vendido, apesar de já ter ingressado no património da adquirente.
2. - Sendo os transmitentes e a adquirente necessários sujeitos processuais na ação pauliana (parte demandada), a decisão de procedência da impugnação pauliana, uma vez transitada em julgado, impõe-se necessariamente aos vendedores e à compradora.
3. - Não obsta à penhora da totalidade do imóvel o facto de apenas um dos vendedores ser devedor e executado na execução movida pelo credor impugnante, se o exequente, no requerimento executivo, afirmou – sem ser contrariado – a comunicabilidade da dívida à mulher do executado (a outra transmitente do bem), por se tratar de dívida contraída pelo cônjuge comerciante e em proveito comum do casal, ainda que se invoque, em contrário, a existência de posterior divórcio entre os transmitentes do prédio.
4. - Na comunhão conjugal, cada cônjuge tem direito à “meação nos bens comuns”, sendo-lhe atribuído o direito a metade do valor do património comum (incluindo ativo e passivo), sem que tenha um direito a metade de cada bem concreto do património comum – aos cônjuges assiste um único direito sobre a globalidade dos bens comuns, assim encabeçado por ambos.
5. - As decisões judiciais, enquanto tais, não violam normas ou princípios de direito constitucional, não havendo sentenças inconstitucionais, sabido que a inconstitucionalidade tem de ser reportada a concretas normas e/ou sentidos normativos – sobre que tenha versado a sentença – no plano da legislação infraconstitucional, por incompatibilidade com os ditames da Lei Fundamental.

Texto Integral









Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Á..., S. L.”, com os sinais dos autos,

intentou execução para pagamento de quantia certa contra

V..., também com os sinais dos autos,

liquidando o valor da obrigação exequenda no montante de €28.019,88, a que acrescem juros moratórios que também peticionou, e indicando à penhora, para além do mais, um bem imóvel, que identificou.

Mediante auto de penhora de 02/07/2020, foi penhorado aquele imóvel, tratando-se do prédio urbano sito na Rua ... composto por casa destinada a habitação, de cave, r/c e logradouro, inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., e constando daquele auto de penhora que o registo da penhora foi qualificado provisório por natureza por o bem se encontrar registado em nome de pessoa diversa do Executado ([1]).

Em 06/01/2021, o Executado, notificado da penhora, veio invocar o seguinte:

- foi penhorada a totalidade do imóvel aludido, cuja propriedade, porém, não é do Executado, pois há outro titular inscrito;

- assim, quer a (atual) titular inscrita, quer a ex-mulher do Executado, não são partes nestes autos de execução, razão pela qual só poderá ser penhorada metade (1/2) do dito imóvel e não a sua totalidade.

Por isso, requereu que fosse notificado o Agente de Execução (AE) para retificar o auto de penhora, procedendo apenas à penhora de metade do imóvel, com as legais consequências.

A Exequente, no exercício do contraditório, pronunciou-se pelo indeferimento do requerido e pelo prosseguimento da execução.

Na sequência, por decisão datada de 24/02/2021, foi assim determinado:

«Informe o agente de execução que não foi intentada oposição à penhora nos presentes autos.

Considerando o título executivo apresentado e o teor da descrição predial constata-se que o exequente pode executar o bem imóvel na sua totalidade em virtude da ação de impugnação pauliana, cujo dispositivo ali se mostra transcrito.

Notifique.».

É desta decisão que, inconformado, vem o Executado interpor o presente recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([2]):

...

A Exequente/Recorrida contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos – não sem que a 1.ª instância se pronunciasse sobre a arguição de nulidade da decisão, concluindo pela inexistência dos invocados vícios de falta de fundamentação e omissão de pronúncia – ao Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento da matéria recursiva, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito recursório ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([4]) –, o thema decidendum consiste em saber:

a) Se ocorre nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;

b) Se foi cometido erro de julgamento em matéria de direito, por só poder ser penhorado o direito que o Executado tinha a “metade” do prédio, e não o imóvel na sua totalidade;

c) Se resulta demonstrada violação dos invocados preceitos constitucionais.

III – Fundamentação fáctico-jurídica

A) Nulidades da decisão recorrida

1. - Da falta de fundamentação

Invoca o Apelante, nas suas conclusões recursivas (cfr. pontos 24 a 34), que a decisão recorrida incorreu no vício de falta de fundamentação (de facto e de direito), com a decorrente violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv., pelo que deve ser julgada nula.

Cabia, por isso, ao Apelante mostrar onde se encontra consubstanciado aquele vício gerador de nulidade da decisão judicial, o que devia ser feito nas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

E dispõe o art.º 615.º, n.º 1, al.ª b), do mesmo Cód. [anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª b), do CPCiv. revogado] que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

O Apelante invoca, neste âmbito, que faltou uma fundamentação exaustiva, por o decisor ter omitido os fundamentos de facto e de direito em que se alicerçasse a decisão proferida.

Que dizer?

Dir-se-á, desde logo, que a eventual omissão de fundamentação – ou deficiente justificação – da convicção probatória (perante factos e provas) não cabe na figura jurídico-processual da nulidade da sentença.

Trata-se antes de vício que, a ocorrer, se enquadra no âmbito da “modificabilidade da decisão de facto”, a que alude o art.º 662.º do NCPCiv..

Quer dizer, se houver deficit de fundamentação da convicção no âmbito da decisão da matéria de facto, por total ou parcial omissão de fundamentos, a consequência legal não será a da nulidade da sentença (à luz do normativo do art.º 615.º do NCPCiv.), mas sim a da anulação da decisão, por deficiente ou obscura (ou contraditória) pronúncia sobre ponto(s) determinado(s) da matéria de facto [nos moldes do n.º 2, al.ª c), do art.º 662.º do NCPCiv.], ou da determinação ao Tribunal recorrido para que proceda à fundamentação em falta (quanto a “algum facto essencial para o julgamento da causa”), tendo em conta as provas produzidas, de harmonia com o disposto nos n.ºs 2, al.ª d), e 3, al.ªs b) e d), do mesmo art.º 662.º.

Em suma, num tal caso não se trataria de nulidade da sentença, mas de anulação da decisão quanto à matéria de facto, convocando diversas ferramentas processuais, pelo que o vício seria, diversamente, objeto de sanação, não pela própria Relação (cfr. art.º 665.º, n.º 1, do NCPCiv., através da regra da “substituição ao tribunal recorrido”), mas pelo Tribunal a quo, com aditamento da fundamentação da convicção em falta.

Donde que, nesta parte, inexista nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Mas faltarão os factos de suporte?

Ora, neste particular cabe dizer que não estamos perante uma sentença, a que houvesse de ser aplicada, com rigor, a disciplina a que alude o art.º 607.º do NCPCiv., mormente quanto ao quadro fáctico – o provado e o não provado – da causa.

Na verdade, trata-se apenas de um despacho, que incidiu sobre um requerimento de uma das partes, em cujo âmbito o Executado pedia, com base em “Certidão da Conservatória junta aos autos”, que se reconhecesse que “a propriedade do imóvel penhorado não é do Executado, pois há outro titular inscrito”, assim peticionando, sem invocação de qualquer quadro legal específico, a retificação do auto de penhora, procedendo-se “apenas à penhora de metade do referido imóvel” (cfr. fls. 47 v.º e seg.).

Foi perante um tal requerimento, formulado, de forma avulsa, no processo executivo – nem sequer no quadro do incidente de oposição à penhora (cfr. art.ºs 784.º e seg. do NCPCiv., tal como, no CPCiv. revogado, os art.ºs 863.º-A e seg.) –, que, observado o contraditório, o Tribunal se pronunciou.

Assim, tendo em conta o caráter avulso e a simplicidade de elaboração do requerimento formulado, entendeu o Tribunal a quo que não se justificaria exuberante fundamentação (fáctica e jurídica) para a decisão que haveria de incidir sobre tal requerimento.

O que, aliás, se compreende, perante a dita simplicidade do requerimento apresentado, numa lógica de proporcionalidade e simplificação de atos processuais e decisões judiciais (cfr. art.º 9.º-A do NCPCiv.).

Obviamente, simplificação de linguagem e de atos processuais não significa deficiente fundamentação das decisões do Tribunal.

Mas este acabou, a nosso ver, por evidenciar a fundamentação bastante, seguindo até pelo caminho trilhado pelo requerimento mencionado, simplesmente adotando direção oposta em relação à pretendida pelo Requerente/Recorrente.

Com efeito, tanto o requerimento como o despacho que sobre ele recaiu elegeram como suporte fáctico e probatório um elemento documental junto aos autos, a dita “Certidão da Conservatória junta aos autos”, a que a Tribunal a quo chama “teor da descrição predial”, na sua conjugação, seja com o título executivo, seja com a certidão judicial também junta (certidão, com nota de trânsito em julgado, referente à decisão final da ação de impugnação pauliana atinente ao prédio em causa, incluindo sentença da 1.ª instância e acórdão da Relação de Évora, decisão final essa também levada ao registo).

Perante tais elementos documentais, concluiu, então, o Tribunal recorrido que a parte ora exequente pode executar o bem imóvel na sua totalidade, por a ação de impugnação pauliana – cujo dispositivo se mostra transcrito na certidão registral – o permitir.

Assim sendo, são claros os fundamentos fácticos da decisão, que tem que ser compaginada, obviamente, com os elementos documentais juntos, para que remete, mostrando-se todo esse acervo documental disponível no processo, pelo que dúvidas não podem existir quanto à factualidade de suporte.

E se assim é em termos fácticos, também é bastante, perante a dita simplicidade do requerimento a que se reporta, a fundamentação jurídica: entendeu o Tribunal recorrido que o desfecho da impugnação pauliana não pode deixar quaisquer dúvidas quanto à penhorabilidade da totalidade do imóvel.

Se é correta, ou não, esta decisão, é questão que já se prende com o mérito do decidido e com a eventual existência de erro de julgamento de direito, do que se conhecerá a jusante.

Inexiste, pois, o invocado vício de falta de fundamentação, que teria de traduzir-se numa omissão total de fundamentos ([5]).

2. - Da omissão de pronúncia

Vem ainda o Apelante esgrimir, em matéria de nulidade da decisão recorrida, que ali não se conheceu, contra pedido daquele, de questões de que deveria ter-se conhecido (cfr. conclusões 35 e segs.).

Trata-se, pois, da invocação da causa de nulidade da sentença (ou despacho decisório) a que alude o art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv. [anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª d), do CPCiv. revogado], que comina com a nulidade da decisão judicial o vício que se traduz em o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, ao invés, conhecer de questões de que não pudesse tomar conhecimento, sendo aquela primeira vertente a aqui em causa.

Na 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo NCPCiv. prescreve-se que não pode o juiz ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, questões essas que, naturalmente, deverá apreciar, a não ser que devam ter-se por prejudicadas.

Vem sendo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência o de que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda” ([6]).

E, segundo Alberto dos Reis, “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” ([7]).

Ora, no caso dos autos é patente – salvo o devido respeito – que o Tribunal conheceu da única questão suscitada no requerimento sobre que incidiu o despacho em crise: a questão da inadmissibilidade da realizada penhora (sobre a totalidade do imóvel), por só poder ser penhorada “metade (1/2)” do prédio.

E de tal modo o fez que rejeitou a pretensão do Executado/Requerente, considerando a penhora correta/admissível, por poder – na sequência da ação pauliana, deduzida para o efeito – ser executado o bem na sua totalidade.

Donde que inexista omissão de pronúncia, com referência à questão suscitada pela parte.

B) Quadro fáctico a atender

A materialidade fáctica a atender é a que consta do antecedente relatório, que se dá por reproduzido, a que se adita o seguinte ([8]):

- a aqui Exequente/Recorrida intentou ação de impugnação pauliana (Proc. ...) contra V... (ora Executado), A..., M... e C..., com referência ao imóvel aludido, declarado vender por aqueles V... e A... à sua filha M...;

- por sentença datada de 05/05/2014 foi julgada parcialmente procedente tal ação de impugnação pauliana, com a consequente declaração de que o contrato de compra e venda celebrado no dia 22/11/2011, nos termos do qual os RR. V... e A... declararam vender à R. (filha) M..., pelo preço de € 133.018,22, o mencionado imóvel, tendo esta declarado comprar-lho, com o consentimento da R. C... (também filha), é ineficaz em relação à autora Á..., S. L. que o poderá executar para cobrança coerciva do crédito de que é titular perante o réu V..., a que se refere o acordo de regularização de dívida datado de 21 de Junho de 2011, nos termos do qual a autora aceitou fixar o seu crédito sobre a sociedade Transportes A..., Lda. em €114.936,53 e o réu V... assumiu a título pessoal, nos termos do artigo 595.º do Código Civil, o pagamento de tal montante;

- esta sentença foi confirmada, com trânsito em julgado (ocorrido em 05/10/2016), por acórdão do Tribunal da Relação de Évora (TRE) de 12/07/2016, que julgou improcedente o recurso interposto pelos RR. (interposição em conjunto);

- a decisão final transitada da ação de impugnação pauliana foi objeto de registo predial.

C) Da matéria de direito

1. - Se foi cometido erro de julgamento, por só poder ser penhorado o direito que o Executado tinha a “metade” do prédio, e não o imóvel na sua totalidade

Sendo a matéria factual a que vem aludida no antecedente relatório e aditamento ora efetuado – tudo com base em inequívoca prova documental constante dos autos –, vejamos, então, se deve ter-se por demonstrado o pretendido erro de julgamento de direito, por se ter procedido a penhora para além do legalmente permitido (com ofensa de direitos de terceiros em relação à execução), isto é, ter-se avançado para a penhora do imóvel (na totalidade), quando apenas se deveria ter penhorado “metade (1/2)”, por, “quer a titular inscrita, quer a ex-mulher do Executado, não” serem “partes nos presentes autos” (cfr. requerimento de fls. 48).

Ora, é certo que, anteriormente à penhora, o imóvel em discussão havia sido transmitido pelo Executado e seu então cônjuge (A...) a favor da filha de ambos M..., tratando-se, pois, de uma venda de pais a filha, com o consentimento da outra filha, C...

Por isso, foi intentada pela credora e ora Exequente/Recorrida a mencionada ação de impugnação pauliana, deduzida, aliás, contra todos os intervenientes na escritura de transmissão/venda, razão pela qual foram ali RR. aquelas quatro pessoas (o Executado, a aludida A..., enquanto transmitentes, a adquirente, M..., e a sua irmã C...).

Nessa ação pauliana, a decisão final foi favorável à dita credora (ali A.) e ora Exequente, como claramente resulta da certidão do Ac. TRE de 12/07/2016, transitado em julgado em 05/10/2016, que confirmou a decisão recorrida, onde se julgara parcialmente procedente a ação, com a decorrente ineficácia da venda celebrada em 22/11/2011, em que foram vendedores os ali RR. V... e A..., sendo aquirente a também R. M... (filha daqueles), ineficácia essa em relação à A., a ora Exequente, que pode, assim, executar o imóvel (na sua totalidade, posto nenhuma restrição ter sido estabelecida) para cobrança coerciva do seu crédito sobre o R./Executado, V...

Ora, no requerimento executivo alude-se à comunicabilidade da dívida à mulher do executado, por a dívida ter sido contraída na qualidade de comerciante do executado e em proveito comum do casal (cfr. fls. 3 v.º).

Bem se compreende, pois, que tenha sido nomeado à penhora, para além do mais, um bem imóvel referenciado como pertença do executado, o prédio em discussão (cfr. fls. 3).

Assim sendo, é seguro que a ação pauliana procedeu em relação ao prédio – todo o imóvel –, e não apenas a uma parte dele ou a um direito sobre o mesmo (a eventual “metade” a que alude o Executado), sendo que a ali R. mulher (ou agora ex-mulher) também era demandada, tal como ambas as filhas, nessa pauliana.

Por isso, não deve proceder, logicamente, a argumentação do Recorrente no sentido de não poder ser executada a totalidade do imóvel, posto a pauliana, precisamente, permitir essa execução pela totalidade, uma vez que a respetiva sentença, confirmada por Ac. do TRE, transitou em julgado, tendo transitado, pois, contra todos os RR., também a R. mulher (vendedora) e a filha adquirente.

Donde, pois, que a argumentação do Apelante tenha de improceder, por a decisão favorável à credora na ação pauliana ter aberto a porta, pela via da ineficácia da transmissão, a essa parte credora/exequente para a realização da penhora do imóvel, muito embora o mesmo já se encontre na esfera patrimonial de terceiro (a filha adquirente), por via da operada venda, e não na esfera dos dois transmitentes.

O Recorrente parece querer fazer tábua rasa do decidido na ação pauliana, confirmado pela Relação, com trânsito em julgado, a impor-se, assim, às partes (todas elas), incluindo as duas pessoas que o mesmo agora refere como não figurando como executadas nesta ação executiva.

Sendo certo ser ele o executado, também é líquido que aquelas (mesmo se vistas como terceiros em relação à execução) se encontram vinculadas pelo caso julgado formado na ação pauliana, onde também eram RR. e onde ficaram vencidas, estando, por isso, sujeitas à ineficácia ali decretada (do negócio celebrado/consumado), e ineficácia quanto à totalidade do imóvel, sendo ainda de notar que não resulta terem deduzido embargos de terceiro (cfr. art.ºs 342.º, 343.º e segs. do NCPCiv.).

E nem importa que, depois da venda (e mesmo, eventualmente, da decisão final da ação pauliana), tenha ocorrido o divórcio entre os vendedores (anteriores proprietários), pois esse facto superveniente em nada afeta a substancia e eficácia daquela decisão transitada, que se impõe a ambos os RR. vendedores e à co-R. adquirente ([9]).

No seu requerimento sobre que recaiu o despacho recorrido, o Executado/Recorrente referia que não é o único titular inscrito, aludindo também à ex-mulher (vendedora) e à filha compradora, as quais teriam de estar (também) na execução para que pudesse realizar-se a penhora do imóvel.

Mas não é exatamente assim, salvo o devido respeito. Depois da venda, a única titular inscrita é a filha adquirente, e já não os vendedores (os pais). O pai (Executado) não é (nem foi) titular de “metade” do prédio, mesmo que “indivisa” – designação que sempre seria, no mínimo, discutível/aleatória, ante a natureza específica da comunhão conjugal ([10]) e do inerente direito (um só, único, sem quotas) de ambos os cônjuges sobre os bens que integram o património comum ([11]) –, desde logo por ter vendido o imóvel à filha, o mesmo se podendo dizer relativamente à mãe da adquirente ([12]).

Mas a ação pauliana serviu para isso mesmo: permitir a execução apesar da venda, tornando-a ineficaz em relação ao credor/exequente, e execução sobre a totalidade do prédio, agora na esfera patrimonial de terceiro, sabido, por outro lado, que, quanto às relações entre o Executado e a co-vendedora (então cônjuge), foi tempestivamente invocada, pela parte exequente, a comunicabilidade da dívida, por esta ter sido contraída na constância do matrimónio, pelo cônjuge comerciante e em proveito comum do casal [cfr. art.º 1691.º, n.º 1, als. c) e d), do CCiv.], sem que tal haja sido, que se veja, contrariado pela contraparte no plano recursivo.

De notar ainda que o Recorrente pretende aproveitar o seu acervo conclusivo (cfr. conclusões 11.ª e 12.ª) para manifestar a sua discordância quanto a uma outra decisão, a invocada decisão – incidental – pela qual foi (terá sido) determinada a citação da (ex-)mulher (vendedora), ao abrigo do disposto no art.º 740.º do NCPCiv..

Porém, cabe dizer que não se trata, obviamente, da decisão judicial agora recorrida, posto o recurso interposto ter por objeto, somente, o despacho proferido de rejeição do requerimento de retificação do auto de penhora de imóvel (pretendida compressão/mitigação da penhora realizada).

Por essa razão, a questão da citação do (ex-)cônjuge não se insere no objeto do presente recurso, desconhecendo-se até – perante a documentação junta a estes autos de recurso em separado –, por extravasante ao objeto da presente apelação, se foi, ou vai ser, interposto recurso da respetiva decisão incidental ([13]) e que posição tomou a pessoa assim citada.

Em suma, a argumentação do Apelante em contrário tem de improceder, inexistindo violação das normas invocadas de direito substantivo.

2. - Se resulta demonstrada violação dos invocados preceitos constitucionais

Resta a questão de inconstitucionalidade agora suscitada.

Pretende o Recorrente que, por falta de fundamentação da decisão de rejeição do por si requerido, ocorre inconstitucionalidade, seja por violação do disposto nos art.ºs 202.º, n.º 2, e 205.º da CRPort., seja por infração aos art.ºs 13.º e 20.º, ambos também da Lei Fundamental.

Tudo, pois, a radicar na dita falta de fundamentação, implicando, designadamente, violação do princípio da igualdade e da proibição da indefesa, já que “a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do Recorrente, ao não fundamentar exaustivamente a sua decisão (…)”.

Ora, como visto já, não logra demonstrar-se o pressuposto de que parte o Recorrente nesta sua perspetiva de âmbito constitucional: a falta de fundamentação da decisão em crise.

Ao invés, já se viu que a decisão impugnada não padece da imputada falta de fundamentação, motivo pelo qual improcedeu a arguição de nulidade, na vertente de falta de exposição/enunciação dos fundamentos adotados.

Termos em que, mostrando-se a decisão fundamentada de forma suficiente, permitindo discernir as razões do decidido, inexistem as assacadas inconstitucionalidades, por não demonstrados os respetivos motivos no âmbito recursivo.

Aliás, não poderia ser a “decisão recorrida”, enquanto tal, a “violar” (cfr. conclusões 29.ª a 32.ª) normas ou princípios de direito constitucional, pois não há sentenças inconstitucionais – como tal, violadoras da Constituição –, sabido que a inconstitucionalidade, de matriz normativa, tem de ser reportada a concretas normas e/ou a sentidos normativos (extraídos de normas) no plano da legislação infraconstitucional, por incompatibilidade com os ditames da Lei Fundamental ([14]).

Ora, o Recorrente não mencionou quais as normas aplicadas na decisão em crise – ou quais os sentidos normativos ali adotados ou sobre que a mesma versou – que infringissem a Constituição.

Em suma, improcede totalmente a apelação, subsistindo, por isso, a decisão impugnada.

***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Julgada procedente ação de impugnação pauliana quanto a uma venda de um imóvel de pais a filha, com a decorrente ineficácia da transmissão em relação ao credor impugnante, pode este executar, com inerente penhora, o imóvel vendido, apesar de já ter ingressado no património da adquirente.

2. - Sendo os transmitentes e a adquirente necessários sujeitos processuais na ação pauliana (parte demandada), a decisão de procedência da impugnação pauliana, uma vez transitada em julgado, impõe-se necessariamente aos vendedores e à compradora.

3. - Não obsta à penhora da totalidade do imóvel o facto de apenas um dos vendedores ser devedor e executado na execução movida pelo credor impugnante, se o exequente, no requerimento executivo, afirmou – sem ser contrariado – a comunicabilidade da dívida à mulher do executado (a outra transmitente do bem), por se tratar de dívida contraída pelo cônjuge comerciante e em proveito comum do casal, ainda que se invoque, em contrário, a existência de posterior divórcio entre os transmitentes do prédio.

4. - Na comunhão conjugal, cada cônjuge tem direito à “meação nos bens comuns”, sendo-lhe atribuído o direito a metade do valor do património comum (incluindo ativo e passivo), sem que tenha um direito a metade de cada bem concreto do património comum – aos cônjuges assiste um único direito sobre a globalidade dos bens comuns, assim encabeçado por ambos.

5. - As decisões judiciais, enquanto tais, não violam normas ou princípios de direito constitucional, não havendo sentenças inconstitucionais, sabido que a inconstitucionalidade tem de ser reportada a concretas normas e/ou sentidos normativos – sobre que tenha versado a sentença – no plano da legislação infraconstitucional, por incompatibilidade com os ditames da Lei Fundamental.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

Custas da apelação pelo Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.
Coimbra, 15/12/2021

Vítor Amaral (Relator)

         Luís Cravo

         Fernando Monteiro


([1]) Da certidão registral do prédio consta inscrição de aquisição (datada de 22/11/2011), por compra, a favor de M..., sendo sujeitos passivos (transmitentes) os anteriores titulares inscritos, V... e A... (casados entre si no regime da comunhão geral), como resulta de fls. 41 v.º e segs. do processo físico destes autos de recurso em separado.
([2]) Que se deixam transcritas.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Processo instaurado em 28/01/2012 (como consta da certidão junta, quanto ao requerimento executivo e data da sua apresentação) e decisão recorrida posterior a 01/09/2013, sendo certo, em qualquer caso, que ao recurso interposto sempre se aplicaria o NCPCiv. (cfr. art.ºs 6.º, 7.º e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16). De notar, porém, que à tramitação da fase introdutória da execução, designadamente diligências tendentes à citação do executado, se aplicava o CPCiv. revogado, o em vigor ao tempo de tal fase introdutória executiva (cfr. n.º 3 do dito art.º 8.º da Lei n.º 41/2013).

([5]) É pacífico o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do dito art.º 615.º do NCPCiv. ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr. art.º 208.º, n.º 1, CRPort., e art.º 154.º, n.º 1, do CPCiv. aplicável). Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos  sobre o Processo Civil”, pág. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Também Lebre de Freitas – cfr. Código de Processo Civil, pág. 297 – esclarece que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”. Por sua vez, Alberto dos Reis já ensinava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140 – que deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.

([6]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([7]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([8]) Com base na certidão judicial junta a fls. 09 v.º e segs. e 51 v.º e segs. do processo físico de recurso em separado e, bem assim, na certidão registral de fls. 41 v.º e segs..
([9]) Não procedem, assim, as conclusões 11.ª a 13.ª do Recorrente, tendo em conta ainda o que se dirá seguidamente sobre a invocada – e não contrariada – comunicabilidade da dívida, no âmbito da comunhão conjugal, existente ao tempo da assunção/contração do débito.
([10]) Muito diversa da compropriedade (ou propriedade em comum), onde coexistem diversos direitos sobre a mesma coisa/bem, com quotas individuais (indivisas) a favor dos titulares do direito de com(propriedade), de acordo com o disposto no art.º 1403.º do CCiv., razão pela qual nenhum dos consortes é obrigado, por regra, a permanecer na indivisão (art.º 1412.º, n.º 1, do mesmo Cód.).
([11]) Cfr., a propósito do disposto no art.º 1730.º, n.º 1, do CCiv., o que referem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, ps. 510 e seg.: é atribuído “a cada cônjuge o direito a metade do valor do património comum, do activo e do passivo”, sendo, porém, que “não se trata de cada cônjuge ter um direito a metade de cada bem concreto do património comum – o que não corresponde ao conceito de património colectivo que a comunhão é”. Já o n.º 2 do mesmo art.º 1730.º alude claramente à “meação nos bens comuns” que assiste a cada cônjuge. Veja-se também, deste mesmo Coletivo, o Ac. TRC de 09-05-2017, Proc. 2440/13.6TBLRA.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt, onde se escreveu: «Quanto à natureza jurídica da comunhão conjugal, esclarece a doutrina que se trata de uma massa patrimonial (os bens comuns), com certo grau de autonomia, “que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco”, sendo tais cônjuges, ambos eles, “titulares de um único direito sobre ela”. // Nesta matéria, estabeleceu o legislador, quanto à participação dos cônjuges no património comum, a regra da metade, segundo a qual os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, tendo, por isso, cada um deles, em condições de igualdade, a sua meação nos bens comuns (…)». Neste sentido, os mencionados Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 507.
([12]) É erróneo, pois, afirmar que o bem é propriedade de A... (transmitente) ou que foi desconsiderado o regime de bens do seu casamento (conclusões 9.ª e 10.ª).
([13]) Reitera-se que o Executado/Recorrente, na esfera do recurso, não contrariou a invocação, expressamente oferecida no requerimento executivo, de comunicabilidade da dívida.
E, nas suas conclusões 11.ª e 12.ª, o Apelante apenas refere, em tom discordante, que a (ex-)mulher foi citada para os efeitos do art.º 740.º do NCPCiv. (este referente à penhora de bens comuns em execução movida contra um só dos cônjuges, por não serem conhecidos bens suficientes próprios no património do executado), considerando tal citação indevida (que não devia ter ocorrido), por já se ter alegadamente verificado o divórcio.
Trata-se, todavia, compreensivelmente, de materialidade não documentada no presente recurso em separado, que claramente não faz parte do objeto deste, não podendo dizer-se que o Recorrente pretende a intervenção da (ex-)mulher. Pelo contrário.
De salientar, por fim – sem prejuízo da disciplina do convocado art.º 740.º do NCPCiv. –, quanto aos casos de comunicabilidade da dívida, que a lei prevê um incidente próprio, com a citação do cônjuge do executado no quadro do disposto no art.º 741.º da lei adjetiva, atenta a necessidade de chamar tal cônjuge à discussão gerada pelas ditas comunicabilidade e penhora.
([14]) Assim, nunca poderia ser a própria sentença/decisão a violar um preceito ou princípio constitucional; a inconstitucionalidade apenas pode radicar em normas aplicadas ou sentidos normativos adotados na decisão judicial – ou sobre que esta versou –, sendo estes que poderão ser violadores da Constituição.