DIVÓRCIO LITIGIOSO
REQUISITOS
RUPTURA CONJUGAL
Sumário


Traduz uma situação de ruptura definitiva a situação de a inexistência de qualquer intimidade afectiva há vários anos e a existência de um grau de conflito acentuado no dia a dia que já se estende à restante família e de forma muito negativa envolve os filhos do casal. (sumário da relatora)

Texto Integral


Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

N… (A) veio intentar a presente acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra T… (R), ambos melhor identificados nos autos, alegando, em síntese, a ruptura da vida conjugal.
Foi designada data para a realização de tentativa de conciliação, a qual resultou frustrada, ordenando-se a notificação do R para contestar a acção, o que fez.
Foi fixado valor da causa, proferido saneador tabelar e fixado o objecto do processo e temas da prova.
Realizou-se a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença, onde se julgou a ação totalmente procedente, por provada, e, em consequência, decretou-se o divórcio entre a A e o R, declarando, consequentemente, dissolvido o casamento que estes, entre si, celebraram a 10.11.1999.
Inconformado com tal decisão, veio o R interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
“1º- A prova realizada em Julgamento não permite dar por provada a matéria levada em "3." a "24." da douta Sentença de Fls, porquanto deveria tal factualidade ter sido dada por não provada, com a consequente improcedência da Acção.
2º - Ao considerar provada a matéria de "3." a "24." da douta Sentença de fls, o douto Tribunal lia quo" julgou incorrectamente a prova realizada, pelo que a douta Sentença não poderá ser confirmada.
3º - A credibilidade dos depoimentos das Testemunhas em que o douto Tribunal lia quo" fundou a sua douta convicção, está abalada, por via das más relações que têm com a pessoa do Réu, pelo que o julgado provado deveria ter sido julgado não provado, pelo que se verifica errada apreciação da prova.
4º - A factualidade considerada provada, na douta Sentença de que ora se recorre, que temos por improvada, não constitui fundamento de Divórcio, nem consubstancia, por si só, "ruptura definitiva do casamento", pelo que não deveria ter sido decretada a dissolução do casamento, mas sim a absolvição do Réu.
5º - A falta de factualidade provada, e a que, incorrectamente, foi considerada provada, deveria ter determinado a improcedência da Acção, com a consequente absolvição do Réu, ora Recorrente, o que se espera em sede do presente Recurso, que temos por merecedor de provimento, e que venha a absolver o ora Recorrente.
6º - Toda a factualidade dada por provada, erradamente valorada, nunca poderia fundamentar a dissolução do matrimónio, por se traduzir na normal vivência de um comum casal que nem sempre está de acordo em todos os assuntos que a família aborda.
7º - Ao considerar provada a matéria de facto referida supra, quando o deveria ter dado como não provado, o douto Tribunal "a quo" julgou incorrectamente a prova produzida, pelo que a douta Sentença deverá ser revogada.
8º - "ruptura definitiva do casamento" não se pode traduzir numa discórdia de um casal com mais de 20 anos de casamento, perfeitamente pontual, em que um dos elementos decide, precipitadamente, separar-se, e, igualmente, de forma precipitada, dias depois, apresentar a Petição de Divórcio, o que não cumpre o espírito do legislador, nem é fundamento de Divórcio, por não estar irremediavelmente comprometida a relação matrimonial.
9º - Ao entendê-lo diferentemente, o douto Tribunal lia quo" fez errada interpretação da prova produzida, pelo que o considerado provado na li! Instância, deve ser dado por não provado em sede do presente Recurso, que temos por merecedor de provimento.
10º - A "ruptura definitiva" impõe muito mais do que o constatado, erradamente apreciado, ... e é exactamente por essa razão, que a aI. a) do artigo 1781º do Código Civil exige a separação de facto por um ano consecutivo, ano consecutivo que a Autora decidiu ignorar, assim tendo votado ao fracasso o seu Procedimento, cuja douta Sentença proferida não deverá ser confirmada, assim merecendo provimento o presente Recurso.
11º - Salvo os factos "1." e "2. ". todos os demais deveriam ter sido dados por não provados, com a consequente absolvição do Réu, e assim não o tendo entendido o douto Tribunal lia quo", valorou erradamente a prova, havendo, por isso, que se revogar a douta Sentença de Fls.
12º - A prova realizada não permite dar por provado nenhum dos pressupostos do artigo 1781º do Código Civil, quer porque, da prova, não deverão resultar violadas quaisquer obrigações conjugais, quer porque não decorreu prazo bastante para entender esgotadas as possibilidades de manutenção da relação marital.
13º - Assim, não se verificando provada, em resultado da produção da prova, o fundamento das alíneas a) e d) do artigo 1781º do Código Civil, não deveria ter sido decretado o Divórcio, devendo a Acção ser jugada improcedente, por não provada, consequentemente se absolvendo o Réu, como se espera em sede de Recurso, que temos por merecedor de provimento, e em cujo douto Acórdão a proferir, que revogará a douta Sentença de Fls, e a substituir por outra que absolva o Réu, ora Recorrente.
14º - Os motivos alegados pela Autora não são suficientemente graves, ou excepcionais, para integrarem, como legalmente exigido, a previsão da alínea d) do artigo 1781º do Código Civil, e, não havendo um ano de separação de facto, não pode ser dissolvido o casamento, simplesmente por vontade da Autora.
15º - A vontade da Apelada, por si só, só relevaria se tivesse decorrido um ano de separação, o que não se verifica.
16º - A manutenção da exigência de separação de facto entre os cônjuges, por um ano consecutivo, como fundamento autónomo de Divórcio, limita a aplicação da válvula de segurança que a alínea d) criou, pois, apenas em casos excepcionais, ou especialmente graves, que constituam violação significativa dos deveres conjugais, um dos cônjuges pode obter o Divórcio contra a vontade do outro, requerendo-o antes de decorrido o prazo mínimo de um ano de separação de facto, o que não é o caso.
17º - Não devia ter sido decretado o Divórcio, e assim o não tendo entendido o douto Tribunal lia quo", violou o disposto no artigo 1781º ai. a) do Código Civil, pelo que, merecendo provimento o presente Recurso, se deverá revogar a douta Sentença, a substituir por outra que julgue a Acção improcedente, absolvendo-se o Réu, ora Recorrente.
Termos em que, deverá o presente Recurso merecer integral provimento, com as legais consequências, havendo, por isso, que revogar a douta Sentença ora em Recurso, e a substituir por outra que, dando por não provada a matéria de "3," a "24,", absolva o Réu, ora Recorrente.”
Nas contra-alegações, a recorrida conclui da seguinte forma (transcrição):
“I - O Recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente à matéria de facto dada como provada e a fundamentação apresentada pela Mm." Juiz "a quo" para esse efeito, não apresentando um único meio de prova que impusesse uma decisão distinta, conforme é exigido pelo artigo 640.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil. O Recorrente não cumpriu com os deveres de suscitação, motivação e identificação dos concretos pontos de "crise" da sentença recorrida, pelo que, à luz dos artigos 637.°, 639.°, nºs 1 e 2, alíneas a) a c), e 640.°, do CPC, a apelação está votada ao fracasso.
11- O Tribunal "a quo" julgou correctamente os factos 3 a 24, indicando o sentido da sua motivação, convocando uma retórica argumentativa empenhada, do caso às normas, com respeito pela força probatória de cada meio de prova e à luz de uma normal compreensão da psicologia forense dos testemunhos apresentados, sem melindrar o valor intrínseco de cada um dos demais meios de prova (ou obtenção da prova) convocados.
III - O Tribunal "a quo" julgou correctamente os factos 3 a 24, indicando o sentido da sua motivação, convocando uma retórica argumentativa empenhada, do caso às normas, com respeito pela força probatória de cada meio de prova e à luz de uma normal compreensão da psicologia forense dos testemunhos apresentados, sem melindrar o valor intrínseco de cada um dos demais meios de prova (ou obtenção da prova) convocados.
IV - As testemunhas não tinham qualquer relação de inimizade com o Réu, depuseram de forma clara, coerente e com perfeita indicação dos factos, elucidando o tribunal em termos irrepreensíveis.
V - Os factos, de per se e conjugados, configuram causa bastante de ruptura do casamento, assim justificando o decretamento do divórcio, tanto mais que existiu e existe perigo concreto para a vida e integridade física da Autora e dos seus filhos.
VI - A relação matrimonial, pela constante violação de deveres conjugais essenciais, ficou irremediavelmente comprometida.
VII - O direito ao divórcio, uma vez verificados os seus pressupostos, é um direito potestativo, permitindo à Contra-Alegante, independentemente da vontade do Réu, pela boca do Tribunal, produzir, na esfera daquele, efeitos jurídicos que se lhe impõe de um modo inelutável, apenas lhe restando o "pati", sujeição ou sofrimento de tal efeito. E, por isso,
VIII - Incumbia ao Recorrente, sob pena de rejeição imediata do recurso nessa parte, "indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes", dando assim cumprimento às formalidades estão previstas no artigo 640.°, nºs 1, alíneas a) a c) e 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
IX - Nesse sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 1092/08.0TTBRG.Gl.Sl, de 06111/2019:
«III. Não cumprem o ónus imposto pelo artº 640º, nº 1, alíneas b) e c) e n. o 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatôrios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1. a Instância ( ... )>>.
X - O Recorrente refere que a Mm." Juiz "a quo" concedeu "especial credibilidade" às Declarações de Parte da Autora e das Testemunhas por si arroladas, referindo o mau relacionamento destas com o Recorrente seria suficiente para abalar a credibilidade das mesmas.
XI - O Recorrente insurge-se contra a valoração que foi conferida às declarações de parte da Autora, mas em momento algum requereu que fossem tomadas as suas declarações para apresentar a sua versão dos factos e, eventualmente, proceder-se à acareação entre a Autora e o Réu.
XII - O Recorrente atua em manifesto "venire contra factum proprium", já que não exerceu adequadamente o seu direito ao contraditório e agora coloca em causa a decisão proferida pela Mm." Juiz "a quo".
XIII - Por outro lado, sendo se dirá que questionar a forma como o Tribunal "a quo" valorou a prova produzida não consubstancia uma verdadeira e própria impugnação de facto. Sobre esta questão, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 215/19.8T8CNT.Cl, de 21/01/2020:
<<5. - O questionar sobre a forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida não equivale, em absoluto, a uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto. Para que ocorra uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto, impõe-se - na sua plena dimensão -, que seja dado pelo recorrente o devido cumprimento aos ónus impostos pelo art. 640.º do NCPC.}}.
XIV - Assim, a Impugnação da Matéria de Facto está "condenada" ao insucesso, já que o Recorrido não observa as formalidades impostas pelo artigo 640º, nº 1, alíneas a) a c) e 2, alínea a), do Código de Processo Civil e limitando-se a questionar a valoração da prova produzida, impondo-se a imediata rejeição do recurso nessa parte.
XV - Quanto à alegada não verificação da rutura definitiva do casamento, alega o Recorrente que não estando verificada a separação de facto por um ano consecutivo, a factualidade dada como provada não é suficiente para a verificação de «quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento», conforme alínea d), do artigo 1781.°, do Código Civil.
XVI - Ao contrário do que refere o Recorrente, o supra citado disposto não exige que se verifiquem "casos excepcionais, ou especialmente grave", uma vez que as alterações introduzidas pela Lei n." 61/2008, de 31 de Outubro atribuíram especial importância ao bem-estar dos cônjuges, introduzindo a referida alínea no artigo 1781.°, do Código Civil, não obrigando os cônjuges a manter o vínculo matrimonial a qualquer custo.
XVII - A linha de pensamento do Projeto de Lei n° 509IX, que introduziu as supra referidas alterações, na respetiva Exposição de Motivos, refere expressamente que, de acordo "com o princípio da liberdade, ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade, incluindo quando considerar que houve quebra do laço afetivo".
XVIII - A matéria de facto dada como provada é elucidativa dessa quebra do laço afetivo entre o Recorrente e a Autora, ora Recorrida, mormente pela violação dos deveres de respeito (factos 12. e 15.), de cooperação (factos 21. a 24.) e do dever de coabitação (factos 6., 7. e 14.).
XIX - O Recorrente não tinha demonstrações de afeto para com a Recorrida ou a procurava pelo menos de o ano de 2012 (factos 16. e 17.) e dirigia-lhe expressões ofensivas da sua honra (factos 12. e 15), demonstrando de forma inequívoca que a situação não é passageira e já se arrasta penosamente há vários anos.
XX - Mais grave é o facto da Autora ver-se forçada a abandonar a casa de morada de família, conjuntamente com os seus filhos, pelo receio que tinham do Recorrente, pelo que jamais poderíamos considerar que não se verifica a "quebra do laço afiava", quando a Autora vivia apavorada e com receio do que o Recorrente lhe pudesse fazer a si e aos seus filhos.
XXI - No caso concreto, apesar de não se verificar a separação de facto por um ano consecutivo, a matéria de facto dada como provada demonstra de forma inequívoca que estamos perante a rutura definitiva do casamento, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 1781.°, alínea d), do Código Civil, por "quebra do laço afetivo" entre a Recorrida e o Recorrente [a título exemplificativo, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº 89921l4.6T8LSB.L1.S1, de 09/0112018 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo nº 10551l9.0T8STR.El, de 27/02/2020], devendo improceder as Conclusões de Recurso apresentadas pelo Recorrente.
XXII - A pretensão do Recorrente é «um novo casamento», isto é, ensaiar pela via do Recurso de Apelação a manutenção de um contrato que, ex vi legis, automaticamente, pela ruptura da vida comum matrimonial, já se esfumou.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EX.a DOUTAMENTE SUPRIRÁ, DEVERÁ:
I - ADMITIR AS PRESENTES CONTRA-ALEGAÇÕES DE RECURSO; E, CONSEQUENTEMENTE, SEREM CONSIDERADAS PROCEDENTES E PROVADAS;
II - IMPROCEDER O RECURSO DE APELAÇÃO, POR O RECORRENTE NÃO TER CUMPRIDO O DEVER DE SUSCITAÇÃO DOS CONCRETOS PONTOS DE "CRISE" E INDICAÇÃO DOS CONCRETOS MEIOS DE PROVA QUE JUSTIFICARIAM A ALTERAÇÃO DOS FACTOS QUE, NO CASO, NEM SEQUER INDICA OU JUSTIFICA.
III - REJEITAR DE FORMA IMEDIATA O RECURSO DO RECORRENTE, NO QUE À IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DIZ RESPEITO, POR PRETERIÇÃO DAS FORMALIDADES IMPOSTAS PELO ARTIGO 640.°, Nº 1, ALÍNEAS A) A C) E 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL;
IV - JULGAR IMPROCEDENTE O RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, POR VERIFICAÇÃO DO CIRCUNSTANCIALISMO PREVISTO NO ARTIGO 1781.°, ALÍNEA D), DO CÓDIGO CIVIL, POR "QUEBRA DO LAÇO AFETIVO" ENTRE A RECORRIDA E O RECORRIDO, CONFIRMANDO A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA.”
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Factos dados como provados na 1.ª instância (transcrição):
1. N… e T… contraíram entre si casamento civil, no dia 10 .11.1999, com convenção antenupcial estipulando o regime da separação de bens.
2. T… e L… nasceram, respectivamente, a 09.12.2001 e 3.8.2005, filhos de Autora e Réu.
3. Em 26.05.2020, por ocasião de uma comemoração familiar (aniversário do sobrinho da Autora), o Réu dirigiu-se em tom de voz e expressão facial zangado à Autora, recriminando-a pelo facto de a mesma ter trazido, para a dita festa, os pais daquele, conjuntamente com a Autora, no seu carro, já que isso iria contra as regras de prevenção no contexto da pandemia COVID-19.
4. Nessa mesma ocasião, em circunstâncias não concretamente apuradas, o Réu deu uma bofetada ao filho T…, tendo existido um desentendimento entre os familiares presentes.
5. Após o regresso da Autora com os dois filhos à casa de morada da família, os três procuraram dialogar com o Réu, mas este encontrava-se exaltado tendo, inclusivamente, nesse tom aos gritos lhes ordenado que saíssem de casa.
6. Nessa ocasião, a Autora, juntamente com os dois filhos, com receio do Réu, foram dormir num só quarto.
7. A partir dessa data o Réu passou a dormir no sofá, ou a não dormir em casa, tendo mais tarde, em data não concretamente apurada, pedido à Autora para retirar as suas coisas do quarto do casal.
8. No dia 27.05.2020, logo pela manhã, o Réu exigiu à Autora e aos filhos, aos gritos, que eliminassem os números de contacto da família da progenitora (irmão, mulher e sobrinhos) e que procedessem à eliminação de quaisquer fotografias existentes nos ditos equipamentos telefónicos, proibindo-os de falar/telefonar/comunicar com a família do lado matemo.
9. O Réu deitou fora todas as fotos da família materna, existentes em casa.
10. O Réu vinha ingerindo nos últimos tempos bebidas alcoólicas chegando a ficar embriagado.
11. Em data não concretamente apurada de Junho de 2020, o Réu pediu à Autora para assinar documentação relativa à clínica dentária, o que a Autora recusou e que deixou o Réu exaltado.
12. Nessa ocasião, tendo a Autora oferecido o carro ao Réu, como habitualmente, para este se deslocar numa viagem, este dirigiu-lhe a expressão em inglês "Guarda o filho da puta do carro minha cabra".
13. O Réu disse-lhe que se voltasse à clínica voltaria na qualidade de "senhora da limpeza".
14. Desde finais de Junho de 2020, que a Autora e os dois filhos deixaram de residir na mesma casa que o Réu, com receio deste, tendo passado a residir em casa dos progenitores da Autora.
15. O Réu dirigia à Autora "pobre pequena rapariga rica" (''poor little rich girl"), ''pobre pequena cabra rica" (''poor little rich bitch").
16. O Réu não procurava a Autora sexualmente há pelo menos 8 anos.
17. O Réu não tinha qualquer tipo de carinho para com a Autora e a cada carícia ou afecto de iniciativa desta o mesmo respondia com o afastamento.
18. Por diversas vezes, em momentos não concretamente apurados, mas reportando-se ao casamento, o Réu dirigia à Autora a seguinte expressão: "Quem está mal que se mude".
19. No dia a dia, quando a Autora interpelava o Réu este, por vezes, não respondia "aplicava o silêncio" ou fazia pouco de si, sendo por vezes os filhos que chamavam a atenção ao pai.
20. A Autora, na sequência dos comportamentos do Réu no casamento, precisou de se socorrer de apoio psicológico.
21. A Autora diariamente deixava ao Réu preparado o pequeno almoço, jantar, fruta na mesa, colocava o despertador matinal, ajudava-o nas clínicas, geria e administrava as casas do Réu, cuidava das casas com as funcionárias, fazia os pagamentos, ajudando-o a ter uma vida próspera e organizada, quer em termos pessoais, quer em termos profissionais.
22. O Réu nunca cozinhou, nunca ajudou nas tarefas domésticas nem levava regra geral os filhos à escola.
23. Numa ocasião de doença da Autora o Réu, com viagem marcada, não a assistiu tendo a ajuda sido prestada pelos pais daquela.
24. Em data não concretamente apurada, mas após referido em 3. e 8., o Réu deixou de contribuir para o sustento da família.
Não foram considerados provados na 1.ª instância (transcrição):
a) Nas circunstâncias referidas em 5. o Réu disse à Autora que esta não valia nada.
b) Após o referido em 5.º Réu dirigia-se à esposa e filhos com agressividade e má cara.
c) O provado em 15. acontecia desde sempre, mas com mais insistência no ano de 2020.
d) O provado em 16. verificava-se há 9 anos.
e) No provado em 17.º Réu invocava sempre problemas recorrentes nas costas.
f) Por diversas vezes, respondendo às invetivas de afeto da Autora, o Réu, em tom de menosprezo e repreensão, em inglês, fazia uso das expressões «coitadinha da rica cabra», fazendo troça das necessidades e apetites sexuais da Autora.

2 – Objecto do recurso.
Questões a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC:
1.ª Questão – Impugnação da matéria de facto: Saber se os factos provados dos pontos 3 a 24, devem ser considerados factos não provados.
2.ª Questão – Saber se se verifica a ruptura definitiva do casamento.

3 - Análise do recurso.

1.ª Questão – Impugnação da matéria de facto: Saber se os factos provados dos pontos 3 a 24, devem ser considerados factos não provados.

É a seguinte a fundamentação da sentença a este propósito:
“Quanto à demais factualidade provada, o Tribunal assentou a sua convicção na apreciação crítica e conjugada da prova produzida, à luz ainda das regras da experiência comum.
Desde logo o Tribunal valorizou por si só as declarações de parte da própria Autora que sustentou toda a factualidade provada. Sendo que ainda que tais declarações foram sustentadas pelos depoimentos das testemunhas, quer das arroladas pela própria como ainda por aquelas que foram indicadas pelo Réu.
A Autora prestou declarações em sede de audiência de julgamento de um modo absolutamente escorreito, circunstanciado, pormenorizado, sem hesitações, sem dificuldades de especificar mais pormenores quando instada a fazê-lo, com agilidade no discurso capaz de avançar e recuar no tempo sem se perder, estando a falar num episódio e facilmente passando para outro relacionado após o que voltava ao ponto onde tinha ficado.
Tudo isto associado a uma carga emocional e psicológica tão esmagadora das suas palavras, da sua expressão corporal, do tom da sua voz, da forma como olhava enquanto falava (como se no seu interior estivesse a ver/reviver o que nos relatava), o que trespassou à saciedade para todos os presentes que a ouviam.
No quadro das mais básicas regras da experiência comum estas declarações de parte, por si só, só são compatíveis com alguém que viveu tudo o quanto nos relatou e tem de sobre isso, a este tempo, falar, incapaz, naturalmente, de separar as emoções da descrição que efectua, muitas vezes indo até para além do quanto se encontrava alegado.
Ainda que por si só não nos fossem suficientes as declarações de parte, certo é que as mesmas foram facilmente corroboradas, como se disse, pela prova testemunhal produzida.
As testemunhas L…, A… e Au…, funcionárias que foram da clínica da Autora e do Réu, relataram ao Tribunal o quanto puderam assistir quer da relação entre o casal, quer das funções aí desempenhadas pela Autora, no que se pode concluir como uma postura sempre dedicada e submissa da Autora para com o Réu, mas sempre tentando não transparecer para os demais o sofrimento que sentia. Não obstante a cessação da relação laboral destas testemunhas, o Tribunal não duvidou em qualquer momento da sua isenção, atribuindo-lhes total credibilidade, por todas terem mantido declarações bem circunstanciadas e limitadas ao quanto puderam assistir.
As testemunhas X… e H…, mercê da sua relação familiar com as partes, irmão e cunhada da Autora, revelaram um conhecimento directo e regular da relação do casal, indo também naturalmente ao encontro do que foram as declarações de parte. A relação de proximidade com a Autora e falta de relacionamento com o Réu por via dos desentendimentos familiares, não nos criaram qualquer dúvida quanto à isenção, objectividade e credibilidade destes depoimentos, também eles com uma natural carga emotiva associada aos depoimentos, principalmente quanto a determinados assuntos, como por exemplo a ausência de manifestações de carinho entre o casal por parte do Réu ou a dedicação da Autora ao casal e aos filhos.
Não se aponte que estes depoimentos são, em algumas circunstâncias, como o relacionamento sexual, de se ouvir contar à Autora para lhes retirar a valoração. Estamos perante uma relação de casal que como se diz: "apenas quem está no convento sabe o que vai lá dentro"; e por isso mesmo não podemos deixar de atribuir valor às confidências que são feitas a elementos externos à relação, pelo menos como elemento de sustentação das próprias declarações das partes.
A testemunha N…, psicóloga da Ré, também igualmente circunstanciou o quadro depressivo da Autora, assente numa relação familiar e conjugal violenta (emocional/psicológica), perfeitamente compatível com o relato emotivo apresentado pela Autora ao Tribunal. Relatou e circunstanciou a sua intervenção em dois momentos temporais diferentes relatando o que lhe foi transmitido pela Autora e o quanto pôde avaliar enquanto profissional.
A testemunha I…, também foi mais um elemento de sustentação dos relatos da Autora.
Tendo como razão de ciência a frequência da casa do casal, pôde falar sobre a postura do Réu, dedicação da Autora, estado emocional da mesma, as circunstâncias de Maio/Junho de 2020 no que pode apurar e relatar-nos do comportamento da Autora, também não tendo o Tribunal qualquer elemento para duvidar da sinceridade e objectividade das suas declarações.
A testemunha H…, irmão do Réu, manteve um depoimento muito nervoso e ansioso, pensando muitas das vezes antes de responder, como que medindo previamente o que ia dizendo, faltando-lhe por isso alguma espontaneidade. Por vezes também foi vago nas suas respostas sem conseguir concretizar as afirmações. Ainda assim acabou por, digamos, "deixar escapar", que a Autora "podia ser rebaixada" pelo Réu, depois tentando contornar as suas palavras já sem querer especificar. Também admitindo ter ouvido algumas das expressões que a Autora afirmou que lhe eram dirigidas pelo marido. Depoimento que, manifestamente, estava condicionado pela relação familiar com o Réu, notando-se o esforço por transmitir uma imagem positiva do irmão.
Já a testemunha V…, esposa do irmão do Réu, foi muito mais espontânea e sincera. Explicou desde logo o seu afastamento forçado da Autora por o cunhado, ora Réu, "ficar magoado" se falar com aquela, sendo ainda por via do seu marido e da proximidade deste ao Réu.
Todavia, tal sinceridade traduziu-se também no quanto respondeu às perguntas que lhe foram dirigidas, sempre tendo explicado circunstanciadamente as suas repostas, transmitindo sempre factos que foram do seu conhecimento directo, por a eles ter assistido, ou ainda por lhe terem sido transmitidos pela Autora a título de confidência. A testemunha chegou a pedir desculpa à Autora presente, durante o seu depoimento, por ir contactar o que lhe tinha sido contado como confidência por aquela com expresso pedido para não o revelar.
A testemunha A… e M…, pais do Réu, contribuíram para a convicção do Tribunal, apenas em factos que presenciaram ou ouviram directamente à Autora, após se terem deslocado para Portugal na sequência da pandemia global. No mais da relação do casal, especialmente por força da distância fisica da vida do casal atento o local onde residem, pouco conhecimento de facto podiam transmitir. Ainda assim, acabaram por ir ao encontro da tristeza que patentemente se apurou que existia na vida da Autora.
A testemunha M…, empregada de limpeza do casal, ainda com ligação laboral ao Réu, na medida dos factos quer eram do seu conhecimento directo, logrou contribuir para a formação da convicção do Tribunal, especialmente o trabalho que a Autora desenvolvia, não tendo o seu conhecimento directo infirmado qualquer factualidade que resultou provada.
A testemunha A…, contabilista das partes, apenas revelou factos que tangem com a relação profissional tida com os elementos do casal, sendo coerente com a versão de tal factualidade apresentada pela Autora e demais testemunhas relacionadas com a clínica.
Por fim, a testemunha R…, trabalhadora na clínica, ainda com vinculo laboral, na medida do que era do seu conhecimento directo não corroborou, mas também infirmou, a demais prova sustentadamente produzida, não tendo contributo para a formação da nossa convicção.
Note-se que não se vê que a prova produzida tenha sido contrariada por qualquer outra prova.
Não houve qualquer prova que, mínima e sustentadamente, nos afastasse a convicção da veracidade da factualidade provada tal qual supra se expôs e, como resulta bem patente até da audição das gravações, que pelo embargos e emoção das palavras, suspiros, reticências do discurso, conseguiram apanhar um pouco o que foi a carga emocional de tudo o quanto se apurou até para além da própria factualidade carecida de prova.”
Vejamos em concreto os argumentos de discordância do recorrente:
- Alega que a matéria considerada provada em "3." a "7." da sentença não constitui fundamento de divórcio, o que não traduz uma impugnação de facto, mas sim de direito.
- Parece que acaba por aceitar que 4. Nessa mesma ocasião, em circunstâncias não concretamente apuradas, o Réu deu uma bofetada ao filho T…, mas volta a invocar que não constitui fundamento de divórcio, o que não traduz uma impugnação de facto, mas sim de direito.
- Alega que não resultou da prova realizada em Julgamento a matéria de "8." e seguintes da douta Sentença, que deveria ter sido dada por não provada, mas não concretiza e alega também que não constitui fundamento de divórcio, o que não é impugnar de facto.
- Alega que nenhuma testemunha prestou depoimento suficientemente credível, que permita dar por provado o levado a "10." mas mais uma vez não concretiza porque razão os depoimentos não são suficientemente credíveis, limitando-se a afirmá-lo.
- Alega que a matéria do ponto 11 não constitui fundamento de divórcio, o que não traduz uma impugnação de facto mas sim de direito.
- Alega que as expressões, em idioma inglês, referidas pela A e consideradas provadas em "12." e seguintes, nunca tiveram lugar, pelo que deveriam ter sido dadas por não provadas. Mais uma vez não concretiza, limitando-se a afirmar.
- Também quando refere em relação ao ponto "14.", que a A saiu de casa em finais de Junho de 2020, não pela razão falsamente invocada, mas na tentativa de conseguir o que não conseguira "em casa", e não porque o tivesse decidido, mas porque outros o decidiram, limita-se novamente a fazer uma afirmação, nada mais.
- Alega que a "falta" constante de "16" e seguintes da matéria de facto, deve-se à A, e não ao R, pois era "noutro sentido" que a A estava focada, como o demonstram os autos, pelo que deveria ter sido dado por não provado”, voltando apenas a afirmar sem concretizar.
- E o mesmo acontece quando se refere ao ponto "20."
- E nada impugna de facto no que refere quanto ao ponto "21." e seguintes, apenas interpreta.
- Também quando refere em relação ao ponto"23." e "24. " que “a Autora dispunha do apoio de sua família, consentindo que o Réu cumprisse seus compromissos, nada tendo resultado da prova, relativamente a contribuição para o sustento da família. antes pelo contrário” apenas faz afirmações sem concretizar.
Em suma:
Improcede totalmente a impugnação da matéria de facto.

2.ª Questão – Saber se se verifica a ruptura definitiva do casamento.

O cônjuge que pretenda interpor [propor] uma acção de divórcio, tem de alegar e provar a existência de uma situação objectiva e passível de constatação, que revele uma situação de ruptura definitiva do casamento (a sua falência ou fracasso).”vide Amadeu Colaço “Novo regime do divórcio” 2.ª Edição, Coimbra Almedina, 2009, página 68 e seguintes e António José Fialho, “Algumas questões sobre o novo regime jurídico do divórcio”, Revista do CEJ, n.º 14, 2.º semestre 2010, página 86.
A A requereu o divórcio com base na al. d) do art.º 1781.º do Código Civil.
A sentença recorrida entendeu que se verifica o fundamento do divórcio ruptura definitiva do casamento que resulta da concorrência dos seguintes factores: “verifica-se ter deixado de existir a comunhão de vida própria de um casamento, com evidente e irremediável quebra dos afectos e o desfazer do que representava aquele mundo comum que é um casamento.
Isto resultante do facto desde logo de há muito, pelo menos 8 anos, o Réu não procurar sexualmente a Autora, não existir qualquer tipo de iniciativa de carinho para com a Autora e a cada carícia ou afecto de iniciativa desta o mesmo responder com o afastamento (factos provados em 16 e 17). Agregado ao facto de a Autora ter passado a dormir com os filhos, o Réu no sofá ou fora de casa, o que culminou, em Junho de 2020, com a saída de casa pela Autora conjuntamente com os filhos do casal (factos provados em 6, 7 e 14).
Como se isto não fosse mais do que suficiente, porque o é, pois uma relação de união sem afecto mínimo recíproco não é um casamento que possa subsistir, temos ainda que o Réu se dirigia à Autora em termos ofensivos (cfr. factos provados em 12 e 15), e tinha comportamentos reveladores pelo menos de frustração e raiva (cfr. factos provados em 3,5,8,9, 11, 12, 13, 15, 18, 19) que são, no contexto em que decorreram (levando à necessidade de suporte psicológico da Autora e abandono do lar conjugal com os filhos), claramente indiciadores de violação de dever de respeito e de ruptura, inequivocamente definitiva, do que é uma união conjugal.
Adensa ainda esta ruptura inequívoca, a falta de cooperação do Réu com a Autora por falta de participação na vida familiar (factos 21 a 24).
Tudo isto circunstância que, objectivamente, pela sua gravidade e reiteração, e em conformidade com as regras da experiência, se conclua por uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem propósito se restabelecimento atenta a manutenção da acção por parte da Autora (independentemente da respectiva culpa). Verifica-se assim preenchido o pressuposto da al. d) do artº 1781.°, impondo-se seja o divórcio decretado, produzindo os seus efeitos nos termos do disposto no art." 1789.° n." 1 do Código Civil.
E concordamos com essa conclusão.
Vejamos:

Artigo 1781.º (CC)
Ruptura do casamento
São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.
A lei optou por utilizar este conceito vago e indeterminado de “ruptura definitiva do casamento”, que deve ser preenchido na sua aplicação.
Pretendeu-se com esta cláusula, nas palavras da Exposição de Motivos que acompanhou o Projecto de Lei n.º 509/X, apresentado à Assembleia da República, e do qual veio a resultar a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro (alterou o regime jurídico do divórcio, disponível em www.parlamento.pt) dar cabal expressão ao «sistema do “divórcio ruptura”», que «pretende reconhecer os casos em que os vínculos matrimoniais se perderam independentemente da causa desse fracasso, não [havendo] razão para não admitir a relevância de outros indicadores fidedignos da falência do casamento», para além dos que exemplificativamente constam do artigo 1781.º: separação de facto, alteração das faculdades mentais e ausência de um dos cônjuges. «Por isso, acrescentou-se uma cláusula geral que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo. O exemplo típico é a violência doméstica – que pode demonstrar imediatamente a inexistência da comunhão de vida própria de um casamento».
A doutrina, reconhecendo dificuldade na definição, tem desenvolvido bastante tal conceito, salientando:
Guilherme de Oliveira - A nova lei do Divórcio, «Lex Familiae» Revista Portuguesa de Direito da Família, ano VII, n.º 13, Coimbra, Centro de Direito da Família/Coimbra Editora, 2010, páginas 14 e 15 - defende que não devem ser considerados factos banais e esporádicos e apela à tradição jurisprudencial portuguesa com a utilização de conceitos de “gravidade” e “impossibilidade de vida em comum”, usados no regime anterior no âmbito do divórcio litigioso fundado na violação culposa de deveres conjugais, também poderiam auxiliar na concretização da referida cláusula geral e admite que possam ter relevo factos menos graves do que aqueles, sem chegar a banalizar a aplicação do artigo 1781.º, alínea d), como sejam “factos que mostrem objectivamente, e repetidamente, o desinteresse total, a falta radical de cooperação e de comprometimento na “vida da família que fundaram” (artigo 1674.º), a negligência grosseira a que se vota um cônjuge ou os filhos comuns”, isto é, casos que pela sua “reiteração”, tornam a vida em comum inexistente ou inexigível.
Entende também Rita Lobo Xavier - in “Direito ao divórcio, direitos recíprocos dos cônjuges e reparação dos danos causados: liberdade individual e responsabilidade no novo regime do divórcio", Estudos em homenagem ao Professor Doutor Heinrich Hörster, Almedina, 2012, páginas 501 e seguintes - que nos factos que baseiam a “ruptura definitiva do casamento” podem incluir-se os que envolvam o incumprimento dos deveres conjugais, referindo que, “apesar de o ilícito conjugal culposo ter perdido relevância como fundamento do divórcio, o casamento continua a ser um contrato que gera deveres recíprocos entre os cônjuges (art.º 1672.º) que representam a concretização da plena comunhão de vida a que se obrigam, nos seus vários e inesgotáveis aspectos”, mais afirmando que “a alegação e prova de que os deveres conjugais não estão a ser cumpridos pode ser um indício de ruptura da comunhão de vida, porque estes deveres são a concretização da obrigação de comunhão de vida assumida. Tais factos serão apreciados «independentemente da culpa dos cônjuges», o que significa, em meu [seu] entender, (…) que “o incumprimento dos deveres conjugais será apreciado de forma objectiva, isto é, mesmo que sejam comportamentos do cônjuge réu «desculpáveis» e, inclusivamente, que o próprio autor pode alegar e provar incumprimentos que lhe são imputáveis. Estes factos serão «objectivos», no sentido em que se provam pela demonstração da sua simples ocorrência. Os factos que «mostrem a ruptura definitiva do casamento» têm de ser objectiváveis, não pode tratar-se de simples afirmações sobre «sentimentos» ou «estados de alma»: tais «sentimentos» ou «estados de alma» terão de reflectir-se em atitudes e comportamentos comprováveis.”
Por seu lado, a propósito desta al. d) refere Amadeu Colaço - in Ob. cit., página 67 – que tal causa apresenta os seguintes elementos: i) têm de se tratar de factos; ii) têm que ser outros factos que não os previstos nas anteriores alíneas do artigo 1781.º do CC; iii) tais factos têm de ser reveladores da ruptura definitiva do casamento; iv) não depende da eventual culpa de um ou de ambos os cônjuges (a qual poderá ou não verificar-se); e v) não depende do decurso de qualquer prazo (ao contrário das restantes causas de divórcio, constantes do artigo 1781.º). Os três primeiros elementos terão necessariamente de se verificar.
Tomé d’Almeida Ramião – in O divórcio e Questões Conexas, Regime Jurídico Atual, 3.ª edição página 66 e seguintes - entende que a causa geral de divórcio prevista na alínea d) do artigo 1781.º do CC é residual, ou seja, só funciona quando não se verifica qualquer outra das causas previstas nas alíneas a) a c) do mesmo preceito. E justifica a sua posição com base na inserção sistemática dessa alínea d) e na utilização da expressão “quaisquer outros factos”, leia-se, “quaisquer outros factos que não os previstos nas alíneas anteriores, ou quaisquer outros factos para além daqueles, que constituem causas autónomas e independentes do divórcio”.
Também defende que “ao consagrar no preceito legal “quaisquer outros factos que, independentemente de culpa”, pretende significar que a ruptura definitiva do casamento, enquanto fundamento para o divórcio sem consentimento, deve assentar num juízo objectivo dos factos alegados e provados”, pelo que “a culpa é irrelevante para o efeito de decretar o divórcio, mas não como elemento de avaliação do preenchimento do conceito da “ruptura definitiva do casamento”.
Conclui o mesmo autor que, se pretendeu eliminar de forma definitiva a culpa, enquanto fundamento de divórcio e as suas consequências patrimoniais. Daí que não tenha modificado, revogado ou alterado os deveres conjugais. E conclui: “o que se pretendeu foi excluir a questão da culpa enquanto pressuposto necessário do direito ao divórcio, enquanto elemento integrante do direito ao divórcio, mas não enquanto elemento demonstrativo da “ruptura definitiva do casamento”. Tratou-se apenas de transferir a questão da culpa para o juízo de avaliação e concretização do conceito legal “ruptura definitiva do casamento”. Donde, [na opinião do autor], a questão da violação culposa ou inobservância dos deveres conjugais continua a ser relevante na apreciação da consagrada “ruptura definitiva do casamento” e que pode demonstrar a ruptura definitiva do casamento o caso em que “os cônjuges mantêm uma persistente relação conflituosa, com discussões e desentendimentos constantes, com a consequente perda da afectividade entre ambos, provocando sentimentos de mal-estar, angústia e sofrimento”.
Estes autores que supra referimos têm em comum a posição defensora de que a alínea d) é uma causa de divórcio-ruptura, sendo necessário ao cônjuge que pretende o divórcio alegar e provar factos objectivos que demonstrem a ruptura definitiva do casamento, para que o divórcio possa ser decretado.
Há, porém, uma linha doutrinal que vai mais além e defende que a Lei n.º 61/2008 pretendia consagrar o sistema do divórcio a-pedido ou de divórcio-repúdio.
Hörster - in A Responsabilidade Civil Entre os Cônjuges”, E Foram Felizes Para Sempre...? Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio – Actas do Congresso de 23, 24 e 25 de Outubro de 2008, Coordenação: Maria Clara Sottomayor e Maria Teresa Féria de Almeida, Coimbra (2010): Coimbra Editora, página 94 - é um deles.
Este autor afirma expressamente entender que a concepção que ficou consagrada no regime português foi a do divórcio-repúdio, isto é, o divórcio fica dependente da vontade unilateral e subjectiva de apenas um dos cônjuges que não quer continuar casado, não sendo necessário alegar qualquer fundamento para o pedido de divórcio. O autor justifica o seu entendimento com base nas afirmações constantes da exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 509/X, que aponta nesse sentido.
A posição de Eva Dias Costa – in A Eliminação do Divórcio Litigioso por Violação Culposa dos Deveres Conjugais - E Foram Felizes Para Sempre, página 71 e seguintes - também parece ir nesse sentido ao afirmar que “na última e genérica alínea não há qualquer menção a prazo ou gravidade” e “exige-se apenas que os factos alegados sejam susceptíveis de demonstrar a ruptura definitiva do casamento, sendo certo que da exposição de motivos do projecto resulta para nós [autora] claro que o simples facto de um dos cônjuges querer o divórcio implicará necessariamente a ruptura definitiva da vida em comum.”
Pamplona Corte-Real - in Direito da Família, Tópicos para uma reflexão crítica, 2.ª edição actualizada, AAFDL, Lisboa, 2011, página 22, defende que o divórcio-fracasso deveria aparentemente depender apenas da vontade e leitura de qualquer um dos cônjuges.
A jurisprudência também tem oscilado em posições mais ou menos amplas de ruptura definitiva, considerando ou não a culpa e as outras situações previstas nas outras alíneas do artigo, como elementos para avaliar o preenchimento do conceito em causa.
Seguimos o entendimento expresso, por exemplo, no Acórdão do STJ de 03.10.2013, relatora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1, www.dgsi.pt, onde se defende que a ruptura definitiva do casamento a que se refere a alínea d) do art.º 1781.º do Código Civil pode ser demonstrada pela prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de integrar qualquer uma das demais alíneas do demais artigo, desde que sejam graves, reiteradas e demonstrem que, objectivamente, deixou de haver vida em comum pelos cônjuges.
Como se pode ler no recente Ac. STJ de 25-02-2021, processo 1299/16.6T8TMR.E2.S1, (relator: Tomé Gomes):
”Por via desta disposição introduziu-se, na nossa ordem jurídica, o designado modelo de “divórcio-constatação da rutura conjugal”, inspirado na “conceção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio”(A este propósito, veja.se, entre outros, o acórdão do STJ de 09-02-2012, relatado pelo Juiz Cons. Hélder Roque, no processo 819/09.7TMPRT.P1.S1).
Tal previsão normativa configura uma facti species modelada sob o tipo de cláusula geral em torno do conceito indeterminado de “rutura definitiva do casamento”, o qual poderá ser preenchido por “quaisquer factos” reveladores dessa rutura.
Assim, a aferição do factualismo relevante requer a determinação do alcance do sobredito conceito indeterminado, de modo a delinear, ainda que por contornos flexíveis, os seus parâmetros, à luz da ratio legis que lhe está subjacente.
Nesta linha, tem vindo a ser entendido que a rutura definitiva do vínculo matrimonial deve ser consubstanciada em factos objetivos que, pela sua gravidade ou reiteração, impliquem, em conformidade com as regras da experiência comum, uma situação consolidada de rompimento da vida conjugal, sem qualquer propósito de restabelecimento por parte dos cônjuges, independentemente das respetivas culpas, não se bastando com factos banais ou esporádicos nem tão pouco com razões ou sentimentos de índole meramente subjetiva de qualquer dos consortes(A este propósito, vide o acórdão da Relação de Lisboa, de 23-11-2011, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Mouro, no âmbito do processo n.º 88/10.6TMFUN.L1-2, com as abundantes citações doutrinárias aí citadas).
Tem-se mesmo acentuado a necessidade de um padrão de exigência nivelado, em termos de sistemática hermenêutica, com as situações previstas nas alíneas a) a c) do citado artigo 1781.º, afora as suas especificidades, de forma a prevenir os riscos de algum voluntarismo (Vide as considerações feitas a este propósito no acórdão indicado na nota precedente).
Com efeito, na larga maioria dos casos, a situação de rutura do casamento manifesta-se através de práticas reiteradas que se prolongam no tempo, indiciadoras do rompimento da sociedade conjugal sem qualquer propósito de a restabelecer, importando assim que se demonstrem os traços fundamentais dessa reiteração, diferentemente do que dantes se exigia no modelo de divórcio-sanção baseado em violação culposa dos deveres conjugais.
Todavia, como muito bem se explicita no acórdão do STJ, de 03/10/2013, proferido no processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1[5], … enquanto que a demonstração dos casos típicos previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do CC faz presumir, iuris et de iure, a rutura definitiva do casamento, já o fundamento configurado na respetiva alínea d), sob a fórmula de cláusula geral objetiva, implica a prova efetiva dessa rutura, independentemente das circunstâncias específicas exigidas naquelas primeiras alíneas, nomeadamente o vetor de duração temporal mínima.
Nessa medida, poderá, a demonstração da rutura definitiva do casamento resultar de um núcleo fáctico único ou mais singular, desde que dotado de intensidade suficientemente reveladora de uma situação e intencionalidade que, à luz do consenso social, se mostrem inequívocas no sentido da emergência dessa rutura definitiva.”
Neste enquadramento importa fazer uma análise do caso concreto e avaliar a sua gravidade.
Por vezes, transparecem factos que ainda que possam ser pontuais, transmitem uma gravidade tal relativa à violação dos deveres de respeito ou colaboração que permitem concluir pela ruptura total e definitiva do casamento.
São sintomas da quebra dos laços mínimos necessários para o casamento.
Vejamos então o caso dos autos. Sabemos que:
“5. Após o regresso da Autora com os dois filhos à casa de morada da família, os três procuraram dialogar com o Réu, mas este encontrava-se exaltado tendo, inclusivamente, nesse tom aos gritos lhes ordenado que saíssem de casa.
7. A partir dessa data o Réu passou a dormir no sofá, ou a não dormir em casa, tendo mais tarde, em data não concretamente apurada, pedido à Autora para retirar as suas coisas do quarto do casal.
10. O Réu vinha ingerindo nos últimos tempos bebidas alcoólicas chegando a ficar embriagado.
12. Nessa ocasião, tendo a Autora oferecido o carro ao Réu, como habitualmente, para este se deslocar numa viagem, este dirigiu-lhe a expressão em inglês "Guarda o filho da puta do carro minha cabra".
13. O Réu disse-lhe que se voltasse à clínica voltaria na qualidade de "senhora da limpeza".
14. Desde finais de Junho de 2020, que a Autora e os dois filhos deixaram de residir na mesma casa que o Réu, com receio deste, tendo passado a residir em casa dos progenitores da Autora.
16. O Réu não procurava a Autora sexualmente há pelo menos 8 anos.
17. O Réu não tinha qualquer tipo de carinho para com a Autora e a cada carícia ou afecto de iniciativa desta o mesmo respondia com o afastamento.
18. Por diversas vezes, em momentos não concretamente apurados, mas reportando-se ao casamento, o Réu dirigia à Autora a seguinte expressão: "Quem está mal que se mude".
19. No dia a dia, quando a Autora interpelava o Réu este, por vezes, não respondia "aplicava o silêncio" ou fazia pouco de si, sendo por vezes os filhos que chamavam a atenção ao pai.
23. Numa ocasião de doença da Autora o Réu, com viagem marcada, não a assistiu tendo a ajuda sido prestada pelos pais daquela.
24. Em data não concretamente apurada, mas após referido em 3. e 8., o Réu deixou de contribuir para o sustento da família.”
No nosso entendimento todos estes factos – ainda que sem valorações de culpa - são sintomas inequívocos da ruptura do casamento que fundamenta o divórcio, resultando até para além do mais a inexistência de qualquer intimidade afectiva entre eles.
Trata-se de constatar um afastamento objectivo do casal quanto a um projecto comum e com sustentação em firme propósito de definitividade.
Dos factos resulta um grau de conflito acentuado que já se estende à restante família e de forma muito negativa envolve os filhos do casal, o que, mais uma vez, permite concluir objectivamente pela ruptura, que, além de refletir de forma inequívoca a quebra de alguns dos deveres dos cônjuges, revela a falência do casamento, isto é, uma manifesta ruptura definitiva do casamento e um firme propósito por parte da A de não mais reatar os laços quebrados.
Aliás, da posição do recorrente parece transparecer alguma confusão com o anterior regime, preso ao conceito de “culpa”, esquecendo o recorrente que o regime actual não faz qualquer juízo subjectivo, preocupando-se apenas em saber se cessou de forma séria e irreversível a vida comum e que a simples constatação de que assim é conduz ao divórcio.
Conclui-se, pois, pela irreversibilidade do rompimento da comunhão que é própria da vida conjugal (afastando-se a situação de mera crise passageira) e deve ser decretado o divórcio.
Assim sendo, improcede, nesta parte, a apelação, mantendo-se o decidido na decisão recorrida que decretou o divórcio entre A e R.

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 11.11.2021
Elisabete Valente (relatora)
Ana Margarida Leite
Cristina Mesquita