SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO NÃO APARENTE
USUCAPIÃO
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Sumário


I - Não é todo e qualquer local de passagem sobre um prédio alheio que pode tornar-se objeto de uma servidão de passagem por usucapião. Nos termos dos arts. 1293.º, al. b) e 1548.º, n.º 1, do CC, as “servidões” não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
II - A visibilidade e permanência do uso de determinado caminho têm de ser alegadas e demonstradas para que se justifique a limitação ao direito de propriedade do titular do prédio serviente, em nome do interesse daquele que invoca o direito à servidão de passagem. A existência de sinais visíveis e permanentes significa que a concreta configuração do caminho há-de revelar caraterísticas inerentes a um uso sedimentado ou efetivo desse caminho; caraterísticas que permitam a qualquer pessoa apreender que aquele é um local de passagem habitual.

Texto Integral




 Processo n. 426/18.3T80RM.E1.S1

Recorrente: AA

Recorridos: BB e outros

I. RELATÓRIO

1. BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, na qualidade de herdeiros e em representação das Heranças de JJ e KK, instauraram ação declarativa sob a forma comum contra AA.

Alegaram, em síntese, que as Heranças dos referidos JJ e KK são proprietárias de um prédio urbano que identificam, que teriam adquirido através do instituto da usucapião, na medida em que teriam estado na posse de tal prédio pelo período temporal suficiente para a adquirir o mesmo por essa via; que a Ré será, por sua vez, proprietária de um outro prédio que será confinante com o das heranças dos referidos JJ e KK; que foi efetuada a demarcação e a delimitação entre os dois prédios; que a Ré colocou indevidamente no local um portão a tapar uma entrada do prédio das heranças dos referidos JJ e KK; que a Ré demoliu indevidamente um muro que tinha sido construído pelos referidos JJ e KK no seu prédio; que a Ré colocou indevidamente um tubo encastrado à parede da sua casa que está virada para o prédio das heranças dos referidos JJ e KK, canalizando as águas da chuva para o mesmo; que a Ré retirou alfaias agrícolas e lenha que estavam guardadas num barracão daquele prédio; que devido ao comportamento da Ré, os AA. sofreram danos não patrimoniais, que pretendem que sejam indemnizados.

Terminaram pedindo a condenação da Ré a: reconhecer que as heranças dos referidos JJ e KK são proprietárias do prédio urbano que identificam, com a delimitação e a demarcação que constam de um levantamento topográfico que juntaram aos autos; que a Ré seja condenada a retirar o portão e o tubo que colocou no local, e ainda a reconstruir o muro que demoliu; que a Ré seja condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor diário de 5 Euros, se não cumprir a determinação de proceder à retirada do portão e do tubo, e à reconstrução do muro; e ainda a pagar uma indemnização no valor de 2.500 Euros pelos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelos AA.

2. A Ré contestou a ação. Nessa contestação invocou a existência de uma exceção de ilegitimidade do lado passivo, na medida em que o prédio referido pelos AA não pertenceria só a si, mas também à herança do seu falecido marido, NN, que dessa forma deveria intervir igualmente na presente ação.

A Ré impugnou os factos tal como foram apresentados pelos AA., apresentando uma versão diferente dos mesmos; designadamente, alegou que o portão foi colocado no local de forma legítima. Que não demoliu qualquer muro, na medida em que apenas exista no local um amontoado de pedras. E ainda que o tubo de escoamento das águas já se encontra no local desde o ano de 1954, quando foi construída a casa de habitação do prédio da R.

Além disso, a R deduziu reconvenção, alegando ser titular do direito de propriedade sobre o prédio em causa nos autos, com a delimitação e demarcação que constam de um levantamento topográfico que juntou, que se encontraria registado a seu favor, e que ela e o marido possuíram esse prédio durante o período temporal necessário para o terem adquirido através da usucapião.

Acresce que a Ré seria titular de um direito de servidão de passagem sobre um caminho que passa em parte pelo seu prédio e em parte pelo prédio referido pelos AA., e que constitui o único acesso do logradouro do seu prédio à via pública.

Termina solicitando que as exceções por si invocadas sejam julgadas procedentes e que a Ré seja absolvida da instância e do pedido; que a reconvenção seja julgada procedente e que, em consequência, os AA. sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade da R. sobre o prédio urbano que identificam, com a delimitação e a demarcação que constam de um levantamento topográfico que juntaram aos autos; e ainda que os RR. sejam condenados a reconhecer a existência da servidão de passagem que descreve e que beneficia o prédio da R.

4. Os AA. apresentaram resposta à contestação, impugnando as exceções invocadas pela R. e a reconvenção por ela deduzida. Terminaram solicitando que as exceções invocadas pela Ré fossem julgadas improcedentes; que a reconvenção fosse julgada improcedente, e que se decida como se requereu na p.i. Além disso, os AA invocaram a nulidade da reconvenção apresentada pela Ré por ineptidão da mesma.

5. Os AA. e a Ré vieram a deduzir pedido de intervenção provocada dos chamados OO e PP, tendo sido admitida a sua intervenção nos autos em representação da Herança do falecido marido da Ré, NN.

6. Foi elaborado despacho saneador em que se indeferiu a exceção de ilegitimidade invocada pela Ré e a exceção de nulidade por ineptidão da reconvenção deduzida pelos AA.

7. A primeira instância julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

«1-) Condenar a R. e a herança do seu referido marido, NN, representada pelos chamados, OO e PP, em reconhecerem que as heranças dos referidos JJ e KK, representadas pelos AA., são titulares do direito de propriedade sobre um prédio urbano, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área total de 1.044 m2, composto por uma casa de habitação, com rés-do-chão e 1º andar, um barracão, destinado a arrumos, assente em quatro pilares com cerca de 2 metros de altura, e logradouro, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...16.

2-) Condenar a R.:

a-) A proceder à entrega aos AA. de uma chave do portão, referido no ponto 16) dos factos dados como provados, que se encontra fixado na parede da casa que faz parte do prédio mencionado em 7), dos factos dados como provados, na parte que confina com a Rua de ..., na entrada do caminho mencionado em 18), dos factos dados como provados, permitindo assim aos AA. a passagem por essa entrada e o acesso livremente àquele caminho.

b-) A retirar do local um tubo de escoamento das águas pluviais que implantou na parede norte da casa que faz parte do prédio referido no ponto 7) dos factos dados como provados. Tubo esse que se encontra descrito no ponto 17) dos factos dados como provados.

Por outro lado, decide-se declarar improcedente, por não provada, a restante parte da ação principal e, dessa forma, indeferir os restantes pedidos formulados pelos AA. nos presentes autos.

Consequentemente, decide-se absolver a R. e os chamados de todos estes outros pedidos.

Custas pelos AA., por um lado, e pela R., pelo outro, quanto à parte da ação principal, em razão do decaimento (cfr. artigo 527°, do Código de Processo Civil). Fixa-se a proporção da responsabilidade dos AA. nas custas da ação principal em 60% e a proporção da responsabilidade da R. nas custas desta parte da ação principal em 40%.

Por outro lado, decide-se julgar parcialmente procedente, por provada, a reconvenção deduzida pela R., na qualidade de reconvinte.

Em consequência, decide-se condenar os AA. nos seguintes pedidos reconvencionais:

 A-) A reconhecer que a R. e a herança de seu falecido marido, NN, representada pelos chamados, são os titulares do direito de propriedade sobre um prédio urbano, sito na Rua de ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto por casa com r/c destinado a arrecadação, e 1º andar destinado a habitação, com a área da superfície coberta de 141,7 m2, e logradouro com a área de 758,30 m2, e com a área total de 900 m2, confrontando a norte com herdeiros de JJ, sul com QQ, do nascente com estrada e do poente com RR, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...97, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n. ...56, da freguesia de ....

B-) A reconhecer que o prédio urbano, sito na Rua de ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto por casa com r/c destinado a arrecadação, e 1º andar destinado a habitação, com a área da superfície coberta de 141,7 m2, e logradouro com a área de 758,30 m2, e com a área total de 900 m2, confrontando a norte com herdeiros de JJ, sul com QQ, do nascente com estrada e do poente com RR, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...97, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n. ...56, da freguesia de ... beneficia de um direito de servidão de passagem que onera o prédio urbano, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área total de 1.044 m2, composto por uma casa de habitação, com rés-do-chão e 1º andar, um barracão, destinado a arrumos, assente em quatro pilares com cerca de 2 metros de altura, e logradouro, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...16. Esta servidão foi construída por usucapião.

Essa servidão de passagem incide sob um caminho que tem início numa estrada pública, situada do lado nascente em relação aos prédios referidos em 2) e 7), denominada Rua de ..., que ocupa parte desses prédios referidos em 2) e 7), e atravessa os mesmos, no sentido nascente - poente, que passa numa faixa de terreno existente entre as paredes das casas que fazem parte dos imóveis mencionados em 2) e 7), em seguida passa por baixo do barracão referido em 4), entre os pilares que o suportam, prosseguindo até chegar aos logradouros desses prédios. Este caminho tem uma largura de 2,70 metros na faixa de terreno situada entre as paredes das duas casas, e tem uma largura de cerca de 3 metros, na restante parte.

Declara-se ainda que a referida servidão de passagem foi constituída há 30 anos, altura em que se iniciou a posse sobre a mesma.

Por outro lado, decide-se declarar improcedente a restante parte da reconvenção em relação aos outros pedidos reconvencionais formulados pela R nos presentes autos.

Consequentemente, decide-se indeferir e absolver os AA. dos outros pedidos reconvencionais formulados pela R nos presentes autos.

Custas pela R., de um lado, e pelos AA., de outro, quanto à parte da reconvenção, em razão do decaimento (cfr. artigo 527°, do Código de Processo Civil). Fixa-se a proporção da responsabilidade da R. nas custas quanto à reconvenção em 15%, e a proporção da responsabilidade dos AA. nessas custas da reconvenção em 85%.»

8. Inconformados com essa decisão, os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o TR.. decidido o seguinte:

«Por todo o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:

1. Altera-se a sentença recorrida nos seguintes termos:

A) Condena-se a Ré a remover o portão a que se alude no ponto 16 dos factos dados como provados, revogando-se a condenação de proceder à entrega aos AA. de uma chave do mesmo portão;

B) Julga-se improcedente o pedido formulado na reconvenção de “reconhecimento de uma servidão de passagem junto da confrontação norte do prédio dos RR/ reconvintes e a sul do seu prédio que começa no início dos pilares da barraca, vai-se desenvolvendo, ocupando os prédios dos AA e dos RR, entre o muro da casa dos RR e a casa dos AA e vai desembocar na Rua de ...; possui a largura de 3 metros em toda a sua extensão e cerca de 28 metros de comprimento”, absolvendo-se os apelantes/reconvindos do mesmo, e revogando-se o segmento decisório inserto na alínea B) da página 118 e 119 da sentença.

2. Mantém-se o demais aí decidido

9. Inconformada com tal decisão, a ré veio interpor recurso de revista, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões

«1. A complexidade da situação ficou patente no facto de a fundamentação patente no Acórdão do Tribunal da Relação rumar em sentido diferente da exarada na da primeira instância, no que concerne a existência de servidão de passagem.

2. O Tribunal da Relação de ... manteve inalterada a matéria de facto, e proferiu decisão completamente diversa, sobre o pedido formulado na reconvenção, quanto á existência da servidão de passagem.

3. A interpretação do Tribunal da Relação de ... é inadmissível, ilegal e incorreta e consubstancia uma interpretação extensiva inconstitucional dos juízos de prognose, pois não existem argumentos que excluam e contrariem a existência de uma servidão de passagem entre os dois prédios, como consta na matéria de facto dada como provada e na decisão em primeira Instância.

4. O Tribunal de primeira Instância fez a inspeção judicial ao local e constatou a existência de uma servidão de passagem entre os dois prédios.

A dita servidão inicia-se na Rua de ..., com a largura de 2,70 metros e após as casas 3 metros, numa extensão de 28 metros.

Possui um leito composto de terra batida e encontra-se calcado.

Tal caminho – que sempre se encontrou com trilho duro e perfeitamente demarcado, em terra batida e calcada – constituiu-se, como acesso que permitia a entrada e saída de pessoas, bens e animais, do terraço e do logradouro da Recorrente, à vista de toda a gente e dos próprios AA e seus antecessores, na convicção de que não lesavam direito alheio, jamais tendo tal utilização sido colocada em causa, por quem quer que fosse.

5. Ora, o Acórdão da Relação de ... não procedeu á alteração da matéria de facto, dada como provada na decisão em primeira instância; está provada a existência de um caminho.

6. Dessa feita, o Tribunal da Relação não pode proferir um acórdão em completo desacordo, com a decisão da primeira instância e com a matéria de facto dada como provada; apenas e tão só nesta questão; rejeitando o pedido reconvencional formulado pela Ré, neste ponto específico.

7. Assim, o acórdão da Relação está em manifesta contradição com a matéria de facto.

8. Pois, provada nos autos a existência de uma servidão, com as características acima referidas, existente há mais de 30 anos; não pode o Tribunal da Relação pura e simplesmente decidir pela inexistência de servidão.

9. Os sinais da existência da referida servidão de passagem, são visíveis e permanentes; desde logo, a própria dimensão desta; é composta de terra batida e encontra-se calcada, revelando sinais claros e inequívocos de passagem.

10. Não pode o Tribunal da Relação proferir um acórdão em total contradição com os factos que foram dados como provados; como tal, o acórdão é nulo.

11. Pois, o Tribunal da Relação de ..., ao julgar que não foi produzida prova nos autos que permita afirmar, ao contrário do que consta na Douta Sentença dos autos, que há sinais visíveis e permanentes de servidão, viola a Lei substantiva, por erro na sua interpretação e aplicação, bem como como viola e aplica erradamente a lei do processo.

12. Caso o TR.. tivesse entendido, e não o fez, que a sentença proferida em primeira Instância não estava bem fundamentada, deveria como dispõe o artigo 662.º n.º 2 alínea d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª Instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

13. Caso, o Douto Tribunal da Relação de ... considerasse que tal facto não está devidamente fundamentado, tinha, como se impunha, de determinar que o tribunal de 1ª Instância o fundamente, até porque na dita Douta Sentença é referido que foi valorizado o Depoimento das Testemunhas, a inspeção judicial ao local, entre outros. O TR.., viola, também aqui, a lei do processo.  

14. No Douto Acórdão recorrido é referido que: “tribunal não pode falar que não estão reunidos os pressupostos necessários para o reconhecimento daquela servidão de passagem” quando o Tribunal de primeira instancia, deu como provada “a existência de uma servidão de passagem”; em violação do que determina o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte do C.P.C

15. O douto acórdão sub judice excede manifestamente os limites de cognição/pronúncia expressamente consignados no art. 608.º n.2, parte final: E, tendo em consideração toda a prova produzida nos autos, constitui uma verdadeira decisão-surpresa e traduz um volte face inesperado na presente acção, colocando em crise os princípios da confiança e segurança, constitucionalmente consagrados nos artigos 2.º da CRP.

16. Considerando o iter processual e a posição expressa pelas partes ao longo do processo conclui-se que a decisão do Tribunal da Relação de ... afronta o princípio do "due process of law" - cfr. artigo 20.º n.º 4 da CRP.

17. Acresce que não havendo alteração da factualidade, não pode o TR.. julgar improcedente o pedido formulado na reconvenção de “reconhecimento de uma servidão da passagem”; quando tal facto, foi dado como provado, pelo Tribunal de primeira instância.

18. Assim, o douto acórdão nulo nos termos e para os efeitos previstos no artigo 195.º do CPC, nulidade que desde já se invoca para os devidos efeitos legais

19. E como tal, deveria, pois, o acórdão recorrido ter mantido na integra a decisão do Tribunal de Primeira Instância.

Pelo exposto, dúvidas não restam que deve ser mantida a decisão da primeira instância, e bem assim, ser revogado o acórdão do Tribunal da Relação de ....

Assim se fazendo a sua acostumada JUSTIÇA!»

10. Os Autores contra-alegaram, sintetizando a sua posição nos seguintes termos:

«1- Deverá pugnar-se pela manutenção do D. Acórdão da Relação de ..., não sofrendo este de qualquer vício e/ou nulidade.

2- Os Réus, não invocaram sinais visíveis e permanentes da alegada existência de uma servidão de passagem.

3- Quem invocou “alguns” desses sinais, foi o Mº juiz da primeira instância, nomeadamente dizendo que existe um caminho em terra batida e calcada.

4- Pelo que, decidiu em conformidade com o por si carreado para o processo, condenando os Autores no pedido reconvencional apresentado pelos Réus, à revelia daqueles.

5- Não o poderia ter feito, nos termos do artigo 615º, n. 1, al. d), pelo que, excedeu os seus poderes de julgador, pelo que é nula a sentença então proferida.

6- Os Autores, por não se conformarem com esta “decisão surpresa”, que os levou à sua condenação, à sua revelia, no reconhecimento de uma Servidão de passagem, com base em factos não carreados pelos Réus, vindo a tomar conhecimento destes “apenas” na Sentença proferida pela primeira Instância, apresentaram o seu recurso, onde, submetem à apreciação do Tribunal da Relação de ..., a nulidade da Sentença proferida, tendo em atenção que este tribunal se excedeu nos seus deveres de julgador, quando os condenou em factos não invocados pela parte que deles queria beneficiar, isto é, os Réus, conforme plasmado nos pontos, 69, 70, 71 e 72 do recurso em tempo apresentado.

7- Pelo que, o Tribunal da Relação no cumprimento da lei, “cingiu-se” em se pronunciar sobre uma questão trazida pelos Autores no seu recurso, não se excedendo nos seus limites cognitivos e de pronúncia, como quer fazer querer a Ré no Recurso de que ora se responde.

8- Vindo o Tribunal da Relação de ... a concluir que tais factos, carreados e julgados, pelo Mº juiz da primeira Instância, deverão ser tidos como não escritos, porque não trazidos ao processo pelos Réus.

9- Ao não serem provados tais factos porque não invocados pela parte, fundamentadores da existência de uma Servidão de passagem, e logo inexistentes à luz do processo que correu os seus termos, não poderá proceder o pedido formulado pelos Réus no seu pedido reconvencional, nos termos do art. 1548º n. 2, do C.C., absolvendo os Autores, no reconhecimento de uma servidão de passagem, no seu prédio.

10- Não existe qualquer contradição entre o acórdão proferido e a matéria de facto dada como provada. Existe, sim, uma consequência, pelo facto de não se poder considerar tais factos como escritos, sendo por isso, irrelevante a prova produzida quanto a estes.

11- Não havendo aqui qualquer necessidade de o Tribunal da Relação de ..., oficiosamente, convidar o Tribunal da primeira instância em fundamentar algum facto essencial, nos termos do artigo 662.º, n. 2, al, d, do C.P.C, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados, porque simplesmente não foram carreados pelos Réus, logo inexistentes aos olhos do julgador.

12- O Tribunal da Relação, em conformidade com a matéria vertida e submetida à sua apreciação, pelos então apelantes, Autores, aferiram e decidiram, que os Réus não haviam invocado, na sua contestação e ou/ contestação aperfeiçoada, quais os sinais visíveis e permanentes que comprovassem a existência de uma servidão de passagem, constituída pela usucapião.

13- Em nada se excedendo nos seus limites de cognição/apreciação, pelo que, não violando o preceituado no artigo 608.º, n. 2, in fine, não aferindo o acórdão proferido de qualquer nulidade.

14- A falta de invocação dos factos constitutivos do direito a que se queriam arrogar os Réus, ou seja, nos termos do artigo 1548º, n.2, do C.C., os sinais visíveis e permanentes, levou a que a prova produzida na primeira instância, recaísse sobre factos “inexistentes”, isto é, não se podia ter dado como provado, o que não foi invocado pelos Réus.

15-Pelo que, não havendo qualquer decisão surpresa, pelo facto do douto Acórdão da Relação de ... ter absolvido os Autores do pedido de condenação no reconhecimento de uma Servidão de passagem, não havendo qualquer violação do seu direito ao contraditório.

16- Pouco importa a prova produzida, no que a factos não invocados pelos Réus diz respeito, pelo que não havendo qualquer violação no preceituado no texto constitucional, pugnando o Douto acórdão pelo cumprimento e respeito do texto fundamental do nosso direito.

17- Na verdade, a Ré, pretende com o presente recurso que, à revelia dos Autores e às expensas da Sentença do d. Tribunal, ver suprida a falta de invocação dos factos demonstrativos da existência de sinais visíveis e permanentes, por forma a que estes sejam condenados no reconhecimento da existência de uma servidão de passagem que onera o prédio dos Autores.

18- Sendo que o Tribunal da primeira instância, não poderia ter apreciado pela existência ou não de sinais visíveis e permanentes, porque não invocados e tão pouco, contraditos (ou não) pelos Autores.

19- Nessa medida, ser a decisão proferida pela primeira instância nula, enquanto “decisão surpresa” para o Autores, porque os condena com base em factos que nunca foram carreados pelos Réus para o processo, apenas revelados pelo Mmo. Juiz, na Douta Sentença.

20- Pelo que julgou bem o D. tribunal da Relação de ..., quando absolveu os apelantes/reconvindos Autores, revogando o pedido reconvencional nessa matéria, inserto na alínea B) da página 118 e 119 da Sentença, cumprindo com o preceituado na lei e jurisprudência.

21- Ao contrário do alegado pela Ré, o Tribunal da Relação não tomou uma posição decisória diferente do Tribunal a quo, no que à substância dos factos dados como provados diz respeito. O que leva a que o Tribunal da Relação não acompanhe a Sentença do Tribunal a quo, é uma questão formal e processual ou seja, ao Tribunal a quo não competia carrear para o processo factos que determinaram a decisão, condenando os Autores no pedido dos Réus.

22- Nesse sentido vide Ac. do STJ, proc. 9/2015 que veda ao Tribunal a possibilidade de, oficiosamente, sponte sua, suprir as omissões que afectem o conteúdo do pedido formulado no momento da decisão final.

23- Mas mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá, que tão pouco resultou provado, em sede de 1ª Instância, quais os sinais visíveis e permanentes que provam a transposição entre os dois prédios.

24- Como refere o douto Acórdão da Relação de ..., na sua página 38 e que ora transcrevemos: “(...) Aliás, os factos nada revelam da existência de uma passagem através do prédio serviente para o prédio dominante”.

25- Como podemos verificar no D. recurso apresentado pela Ré, na sua conclusão n. 4, o Tribunal da primeira Instância, terá constatado, que “(...) a dita Servidão inicia-se na Rua de ..., com a largura de 2,70 metros e após as casas 3 metros, numa extensão de 28 metros”.

26- Logo, para além de não indicados, não resultaram provados, que existam sinais visíveis e permanentes que digam:

1. Onde fica essa servidão, que se inicia na Rua de ..., com a largura de 2,70m, isto é, se ao meio da passagem existente entre as respetivas casas, se junto à parede da casa da Ré, ou da casa dos Autores;

2. Onde se situa a servidão, após as casas, com a largura de 3m, isto é, a sentença é omissa na localização do caminho que passa por debaixo do barracão, não dizendo se a meio do barracão, se a norte ou a sul do mesmo.

3. Onde fica a localização desse caminho no sítio onde a transposição é feita do prédio dominante para o prédio serviente, tendo em atenção que os prédios confinam entre si, numa extensão, paralela, de mais de 28 m.

27- Logo, também por isso, não poderá dar-se como provado que exista uma servidão de passagem porque, não resultaram provados quais os sinais visíveis e permanentes existentes entre a transposição dos dois prédios, nos termos do artigo 1548º do C.C., logo não sendo uma posse pública e pacífica.

28- Tão pouco, o D. Tribunal da primeira instância, na sua Sentença refere ou concretiza a localização e o traçado, por onde seria feita essa passagem e que atravessa os dois prédios, de um lado para o outro.

29 – Sendo, por isso, inexequível o então sentenciado, porque desconhecem os autores o local por onde deveriam deixar passar os réus, na sua propriedade.

30- Não sofrendo o D. acórdão da Relação de qualquer nulidade, vício, cingindo-se este a aplicar o preceituado no artigo 543º do Código Civil e 615º n.1 al. d) e a decidir em conformidade com o invocado pelos Autores aquando da apresentação do seu recurso.

Pelo exposto, fizeram justiça os senhores desembargadores do Tribunal da Relação de ..., nos termos em que revogaram a douta sentença da primeira instância, repondo a legalidade, não sofrendo o douto acórdão de qualquer nulidade, devendo por isso, manter-se o proferido, não assistindo qualquer razão aos réus no recurso apresentado, nomeadamente, no direito a que estes se arrogam de o seu prédio, beneficiar de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, dentro do prédio dos autores, os réus, porque nunca invocaram sinais visíveis e permanentes reveladoras da sua existência, tendo o tribunal da primeira instância, ido para além dos seus poderes de julgador, ao ter trazido para o processo sinais que na sua opinião fundamentavam e pugnavam pela existência da mesma, deferindo-se consequentemente o pedido formulado pelos réus e que levou à condenação dos autores no reconhecimento de uma servidão de passagem pelo seu prédio. Fazendo-se assim a já costumada justiça

11. Por acórdão de 13.02.2020, o TR.. conheceu das nulidades invocadas pelos recorrentes, concluindo que o acórdão recorrido não enfermava de qualquer nulidade.

*

 II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso:

Sendo o acórdão recorrido desfavorável à recorrente, na medida em que revogou a decisão da primeira instância no segmento que havia reconhecido a existência de uma servidão de passagem por ela invocada, a revista é admissível nos termos do art.671º, n.1 do CPC.

 O objeto do recurso é, em geral, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, para além das questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 608º, n.2, 635º, n.4, e 639º do CPC. Todavia, apenas são atendíveis as questões que foram conhecidas pelo acórdão recorrido, sendo irrelevantes considerações sobre matérias que não integraram (nem tinham de integrar) o objeto daquela decisão.

O presente recurso tem, assim, por objeto as questões de saber:

- se o acórdão recorrido é nulo;

- se fez errada aplicação da lei substantiva ou processual ao revogar parcialmente a sentença, nomeadamente não reconhecendo a servidão de passagem que a recorrente havia invocado em reconvenção;

- se aplicou normas inconstitucionais.

 2. A factualidade provada:

Foram dados como provados os seguintes factos:

«1- Os de cujus das heranças que se encontram representadas nos autos pelos AA., na qualidade de seus herdeiros, JJ e mulher KK, faleceram respetivamente em 11 de março de 2006 e 18 de outubro de 2011.

2- Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ...,sob o artigo ..., a favor da herança de JJ, um prédio urbano, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área total de 1.044 m2.

3- Em 1953 foi construída uma casa de habitação no prédio referido em 1), com rés-do-chão e 1º andar.

4 - No ano de 1986, os referidos JJ e KK construíram um barracão, destinado a arrumos, assente em quatro pilares com cerca de 2 metros de altura, numa posição com a elevação igual ao 1º andar da casa referida em 3).

5- Na mesma altura referida em 4), os referidos JJ e KK construíram umas escadas de acesso ao barracão mencionado em 4), que foram encostadas, ressalvada a junta de dilatação, à parede de um anexo que tinha sido construído pela R. e pelo falecido marido desta, NN, anos antes ao longo do limite norte do prédio mencionado em 7).

6- O prédio referido em 2) situa-se na Rua de ..., n. ..., confronta a norte com SS, nascente com estrada, do poente com RR e do Sul com a R.

7- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n. ...56, da freguesia de ..., um prédio urbano, sito na Rua de ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto por casa com r/c destinado a arrecadação, e ... destinado a habitação, com a área da superfície coberta de 141,7 m2, e logradouro com a área de 758,30 m2, e com a área total de 900 m2, confrontando a norte com herdeiros de JJ, sul com QQ, do nascente com estrada e do poente com RR, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ..., sobre o qual existe uma inscrição de aquisição do direito de propriedade, em comum e sem determinação de parte ou direito a favor da R. AA, e dos chamados OO e PP, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de NN, através da apresentação n. ..., de 19-2-2013.

8- O prédio referido em 2) confina diretamente do seu lado sul com o prédio mencionado em 7).

9- Os falecidos JJ e KK vedaram o prédio referido em 2), do lado nascente, e colocaram um portão de correr, igualmente desse lado nascente, no sentido Norte-sul, que corria desde a parede da casa de habitação referida em 3) até à parede da casa de habitação que faz parte do prédio mencionado em 7).

10- No ano de 1988, os referidos JJ e KK mandaram colocar pilares em cimento que fixavam uma rede em arame, ao longo da extensão do limite sul do prédio referido em 2), até à extrema poente deste imóvel.

11- Desde há mais de 60 anos, os referidos JJ e KK, antes deles os seus antecessores, e depois deles, os AA., seus herdeiros, se encontram a ocupar o terreno onde se situa o prédio referido em 2).

12- Desde a data da sua construção, os referidos JJ e KK e os seus antecessores passaram a ocupar a casa de habitação referida em 3), que faz parte do prédio mencionado em 2), habitando nesta casa, nela pernoitando, entrando e saindo pela entrada a nascente, recebendo amigos e familiares, limpando, arrumando, guardando os seus pertences.

13- Desde a data da sua construção, os referidos JJ e KK, e, posteriormente, os AA., utilizam o barracão referido em 4) para aí arrumar lenha, palha e alfaias agrícolas.

14- Desde as alturas referidas em 11), 12) e 13), os falecidos JJ e KK, antes deles os seus antecessores, e posteriormente, os AA., exerceram os atos mencionados em 11), 12) e 13), no prédio referido em 1), e nas construções mencionadas em 3) e 4), de forma ininterrupta, reiterada e contínua, à vista de todos os conhecidos, sem oposição de ninguém e com a convicção de o estarem a fazer por direito próprio.

15- Em novembro de 2017, os AA. decidiram colocar à venda o prédio referido em 2), colocando no local um letreiro com a indicação de "venda".

16- Em dezembro de 2017, a R. colocou no local um portão, fixado na parede da casa que faz parte do prédio mencionado em 7), na parte que confina com a Rua de ..., na entrada do caminho mencionado em 18), que tapa uma parte da entrada nascente do prédio mencionado em 2), e uma parte da entrada do caminho referido em 18) em relação ao prédio mencionado em 7), impedindo que o portão referido em 9) feche por completo.

17- No ano de 2018, a R., sem obter autorização prévia dos AA., colocou na parede norte da casa de habitação que faz parte do prédio referido em 7) um tubo para escoar as águas pluviais provenientes do prédio mencionado em 7), de forma a verter tais águas para o prédio mencionado em 2).

18- Existe um caminho que tem início numa estrada pública, situada do lado nascente em relação aos prédios referidos em 2) e 7), denominada Rua de ..., que ocupa parte desses prédios referidos em 2) e 7), e atravessa os mesmos, no sentido nascente — poente, que passa numa faixa de terreno existente entre as paredes das casas que fazem parte dos imóveis mencionados em 2) e 7), em seguida passa por baixo do barracão referido em 4), entre os pilares que o suportam, prosseguindo até chegar aos logradouros desses prédios.

19- O caminho referido em 18) tem uma largura de 2,70 metros na faixa de terreno referida em 18), situada entre as paredes das duas casas, e tem uma largura de cerca de 3 metros, na restante parte.

20- O leito do caminho referido em 18) é composto por terra batida, e encontra-se calcado.

21- Desde há, pelo menos, 30 anos que a R., o seu falecido marido, NN, e pessoas ao seu serviço, passavam pelo caminho referido em 18) para aceder ao logradouro do prédio mencionado em 7), a partir ou em direção à estrada referida em 18).

22- A R., o seu falecido marido, NN, e as pessoas ao seu serviço, transitaram pelo caminho referido em 18), a pé, para procederem à limpeza de mato no logradouro do prédio referido em 7), cultivar vários produtos hortícolas, como feijão, batata, couves, e outros legumes, e colher e transportar os referidos frutos.

23- A R., o seu falecido marido, NN, e as pessoas ao seu serviço, realizaram os atos referidos em 21) e 22), no caminho mencionado em 18), à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, convencidos que tinham direito a passar por esse caminho e que não lesavam quaisquer direitos de outrem.

24- Há mais de 20 anos, o referido NN colocou aquecimento central na sua casa e a chaminé da caldeira na fachada norte da casa que faz parte do prédio referido em 7), virada para o caminho mencionado em 18).

25- A casa que faz parte do prédio referido em 7) possui no 1º andar, três janelas viradas para o caminho mencionado em 18).

26- Existem construções entre a Rua de ... e o logradouro do prédio referido em 7).

27- Desde há cerca de 50 anos que a R. e o seu falecido marido, NN, habitam a casa de habitação que faz parte do prédio referido em 7), e cultivam o logradouro desse prédio nos termos mencionados em 22).

28- A R., e o seu falecido marido, NN, exerceram os atos mencionados em 27), no prédio referido em 7), de forma ininterrupta, reiterada e contínua, à vista de todos os conhecidos, sem oposição de ninguém e com a convicção de o estarem a fazer por direito próprio.»

3. O direito aplicável:

Como supra referido, as questões a apreciar no presente recurso são as de saber:

- se o acórdão recorrido é nulo;

- se fez errada aplicação da lei substantiva ou processual ao revogar parcialmente a sentença, nomeadamente não reconhecendo a servidão de passagem que a recorrente havia invocado;

- se aplicou normas inconstitucionais.

3.1. Alega a ré/recorrente que o acórdão recorrido seria nulo por contradição entre a matéria de facto e a decisão, bem como por excesso de pronúncia – art. 615, n.1 alíneas c) e d). Funda também a invocada nulidade do acórdão no art.195º do CPC.

Pode, desde já, afirmar-se que não assiste razão à recorrente. Efetivamente, não se pode concluir que exista contradição entre a factualidade que sustentou o acórdão recorrido e a aplicação do direito (ao não reconhecer a existência da servidão de passagem invocada na reconvenção). Como se justificou no acórdão da conferência que apreciou as invocadas nulidades, a factualidade que a primeira instância deu como assente para justificar a constituição da servidão de passagem [ponto n.18 e seguintes] não foi estabelecida com observância das necessárias regras do contraditório, por isso, não podia fundar o acórdão recorrido. Se este entendimento é correto ou não, já é outro tipo de questão, mas não corresponde a um modo de decidir que conduza à nulidade da decisão, seja por contradição entre os fundamentos e a decisão, seja por excesso de pronúncia. Conclui-se, assim, que a decisão recorrida não enferma de nulidades.

3.2. Entende a recorrente que o acórdão recorrido fez errada aplicação da lei, tanto substantiva como processual, ao revogar parcialmente a sentença, nomeadamente não reconhecendo a servidão de passagem que a recorrente havia invocado.

3.2.1. A revogação do decidido na sentença quanto ao reconhecimento da servidão de passagem por usucapião, fui justificada pelo acórdão recorrido nos seguintes termos:

«No caso, o que se pretende é tão-só o reconhecimento da existência de uma servidão constituída por usucapião e não a constituição coactiva de uma servidão legal.

E, sendo assim, não carece o prédio dominante, o dos AA, de estar encravado, quer absoluta, quer relativamente.

Posto isto, cuidemos de apreciar se se verificam, no caso, os requisitos de que depende a constituição da servidão de passagem a pé que teria sido adquirida, por usucapião, a favor do prédio dos Réus/apelados e a onerar (parcialmente) o prédio dos Autores/apelantes»

E depois de se enunciar o quadro legal aplicável à constituição da servidão de passagem por usucapião, conclui-se na decisão recorrida:

«(…) para que uma servidão seja aparente e, portanto, possa ser adquirida por usucapião, é necessário que haja sinais visíveis dela, que esses sinais sejam permanentes e que esses sinais visíveis e permanentes sejam inequívocos no sentido de patentearem a existência de uma servidão.

Sustentam os apelantes que os apelados no seu pedido reconvencional não invocaram quais os sinais visíveis e permanentes que revelassem a servidão aqui em causa e que o Tribunal fez constar de motu próprio na sentença a configuração do caminho (pontos 18 e 20).

Efectivamente, analisando a reconvenção aperfeiçoada, não se vê que tais factos tenham sido alegados.

Na mesma peça apenas se alude, com interesse para a questão, a uma “serventia” existente entre os dois prédios, “que está cerca de 2/3 da sua área, no prédio da herança e 1/3 no prédio dos AA”, não se referindo em momento algum ao “leito do caminho”, nem à sua aparência.

Também nos temas da prova se questionou apenas da existência de uma serventia de passagem que atravessa os dois prédios aqui em causa com as características e a configuração, indicadas pela Ré na sua contestação (cfr. Ponto 12 a fls. 124 verso).

Ainda que se admita que tais factos que vieram a ser plasmados nos pontos 18 e 20 sejam complemento ou concretização dos alegados pelos reconvintes — na medida em que os especificam ou densificam - não poderiam ter sido considerados pelo Tribunal na sentença, sem que sobre eles as partes tivessem tido a possibilidade de se pronunciar (art. 5º, n.2, b) “a contrario” do CPC).

E de facto não há notícia de que tal tenha ocorrido, i.e. que o Tribunal tenha dado prévio conhecimento às partes da sua intenção de os contemplar na sentença, permitindo-lhes a efectiva possibilidade de os discutir, contestar e valorar.

Aliás, esta previsão normativa surge-nos igualmente - i.e. para além do art.° 3º - como um corolário do princípio do contraditório que se revela incontornável no domínio dos factos.

Por seu turno, a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar que «I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20º, n.4, da Constituição da República.

II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objectivo e subjectivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.” [Ac. STJ de 19.01.2017, proferido no processo n.873/10.9T2AVR.P1.S1]

E na sequência desta invocada jurisprudência, conclui-se, na decisão recorrida, que:

«(…) a inobservância de tal princípio impede a consideração de tais factos, o que significa que os mesmos se têm, consequentemente, por não escritos na parte em que extravasem a alegação, o que no caso concreto significa que o ponto 18 fica reduzido à existência de um caminho com uma largura inicial de 2,70 metros e subsequente de 3 metros e que se situa entre as paredes das duas casas e o ponto 20 é totalmente desconsiderado.

E assim sendo, cumpre indagar se o acervo fáctico subsistente permite, ainda assim, concluir pela existência de um qualquer sinal que, sendo visível e permanente, seja revelador da existência dessa servidão.

No que se refere a estes sinais visíveis e permanentes, é de ponderar que a “visibilidade dos sinais significa que os mesmos devem manifestar a servidão erga omnes, podendo não apenas o dono do prédio serviente mas também qualquer outra pessoa observar esses sinais. A permanência dos sinais significa que os mesmos existem sempre, mesmo que se possa verificar a sua substituição ou transformação. Um exemplo de sinal visível e permanente será, na servidão de passagem, a existência de uma abertura ou carreiro, pelo qual a passagem se exerce. Qualquer pessoa pode ver esse sinal e o mesmo permanece, ainda que a abertura ou carreiro possam ser modificados [Luís Meneses Leitão in "Direitos Reais", pág. 403]

No caso particular da servidão de passagem, a presença de um caminho entre os dois prédios não é suficientemente revelador da existência desse sinal.

É que pode existir um caminho entre dois prédios sem que haja mostra de sinais de passagem de pessoas a pé, i.e. que sejam reveladores da sua existência.

Basta pensar que tal caminho pode estar repleto de relva intacta e bem conservada ...

Aliás, os factos nada revelam da existência de uma passagem através do prédio serviente para o prédio dominante.

Não estando demonstrada a aparência da servidão, a mesma não poderia ser adquirida por usucapião.

Concluímos, pois, em face do exposto, não estarem reunidos os pressupostos necessários para o reconhecimento daquela servidão de passagem e, portanto, terá que improceder tal pedido reconvencional, ao contrário do que foi decidido

O acórdão recorrido não merece, nesta matéria, qualquer censura, pois fez a correta aplicação do direito pertinente.

Não é todo e qualquer local de passagem sobre um prédio alheio que pode tornar-se objeto de uma servidão de passagem por usucapião.

Nos termos dos artigos 1293º, al. b) e 1548º, n.1 do CC, as servidões não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião. Estabelece o n.2 do art.1548º que se consideram não aparentes “as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes”.

Assim, só a demonstração da visibilidade e permanência do uso de determinado caminho justifica que o legislador sacrifique certas faculdades do direito de propriedade do titular do prédio serviente, em nome do interesse daquele que invoca o direito à servidão de passagem. Sinais visíveis e permanentes significa que a concreta configuração do caminho há-de revelar caraterísticas inerentes a um uso efetivo desse caminho; caraterísticas que permitam a qualquer pessoa apreender que aquele é um local de passagem habitual (o que não acontecerá, por exemplo, se um caminho se encontrar coberto por vegetação que cresceu pelo não uso do local).

Os sinais que, concretamente, revelam a visibilidade e a permanência da servidão correspondem a factos essenciais, que devem ser alegados e demonstrados por quem invoca o direito a ver reconhecida a constituição da servidão de passagem por usucapião (art.342º, n.1 do CC e art.5º, n.1 do CPC). O legislador não reconhece a existência de uma servidão de passagem sobre um caminho que não revele estas caraterísticas, mas apenas sobre um caminho visível e permanente. Não basta, assim, que se alegue a existência de um caminho com determinadas dimensões para se concluir que existe uma servidão de passagem.

 No caso concreto, como se afirma no acórdão recorrido, as caraterísticas do caminho, reveladoras da sua visibilidade e permanência da servidão, não foram invocadas pelos réus no seu pedido reconvencional, apesar de serem factos constitutivos do direito. Todavia, a primeira instância deu como provado, no ponto 20, que: “O leito do caminho referido em 18) é composto por terra batida, e encontra-se calcado”, o que traduz uma violação das regras previstas nos artigos 342º, n.1 do CC e 5º, n.1 do CPC.

Ainda que se entendesse que esses factos constituíam um complemento ou concretização dos factos que a reconvinte havia invocado, sempre aos autores devia ter sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciarem, como estabelece o art.5º, n.2, al. b) do CPC em consonância com o art.3º, n.3 do CPC.

Dado que a irregularidade cometida tem influência no exame da causa (art.195º, n.1 in fine), e a autora a invocou nas suas alegações de apelação (art.196º do CPC), deve considerar-se que o acórdão recorrido interpretou corretamente o direito quando considerou o ponto 20 da matéria de facto como não escrito, aproveitando o restante julgamento da matéria de facto, que não se mostrava viciado, nos termos do art.195º, n.3 in fine, para decidir sobre o mérito do recurso, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos atos, em vez de usar os meios previstos no art.662º, n.2 do CPC (pois não estava apenas em causa a fundamentação de factos essenciais, mas a própria ausência da sua alegação pela reconvinte). Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido não merece censura na decisão desta questão.

3.2.2. Embora a recorrente não se refira expressamente ao segmento decisório em que foi condenada a remover o portão (revogando, nessa medida, a decisão da primeira instância que a havia condenado apenas a entregar uma chave desse portão aos autores), deverá entender-se que essa matéria também é alvo de recurso, na medida em que [no ponto 19 das conclusões das alegações] defende a manutenção integral do decidido em primeira instância.

Para justificar esta específica decisão, afirma-se no acórdão recorrido:

«Pediram os apelantes que os apelados removessem um portão que, conforme se provou, a Ré colocou em Dezembro de 2017 e que se mostra fixado na parede da sua casa mas que tapa uma parte da entrada nascente do prédio dos AA, impedindo que o portão existente no local feche por completo (cfr. Ponto 16).

É certo que os proprietários têm o direito de tapagem do prédio de que são donos. Tal direito, de tapagem, emerge, aliás, do art. 1356° do Cód. Civil que estatui que: “A todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo”

Porém, para ser lícita tal tapagem, seria necessário que se tivesse provado que o dito portão se encontrava (integralmente) colocado dentro da propriedade dos apelados e que abrisse para dentro da propriedade destes. Aliás, mesmo que o portão tivesse sido edificado exclusivamente na propriedade dos apelados sempre teria de respeitar as restrições do art. 1360º do Cód. Civil.

Para além de se ter provado que tapa uma parte da entrada nascente do prédio dos apelantes, provou-se também que impede que o portão existente na propriedade dos mesmos apelantes feche por completo.

Por conseguinte, bem evidenciado ficou ter a Ré/apelada, com a abertura de tal portão, violado o direito de propriedade dos apelantes, na medida em que cerceia o pleno uso do que lhes pertence, havendo, por isso, fundamento legal para proceder à sua remoção, como peticionado

Na realidade, na sequência do alegado pelos autores, fez-se prova [no ponto n.16 da factualidade provada] de que:

«Em dezembro de 2017, a R. colocou no local um portão, fixado na parede da casa que faz parte do prédio mencionado em 7), na parte que confina com a Rua de ..., na entrada do caminho mencionado em 18), que tapa uma parte da entrada nascente do prédio mencionado em 2), e uma parte da entrada do caminho referido em 18) em relação ao prédio mencionado em 7), impedindo que o portão referido em 9) feche por completo

 Como bem se entendeu na decisão recorrida, o direito de tapagem, previsto no art.1356º do CC, é uma das faculdades emergentes do conteúdo do direito de propriedade sobre imóveis. E, nessa medida, deve ser exercido dentro do âmbito próprio do direito de propriedade, que, nos termos do art.1305º do CC tem não apenas um conteúdo positivo, mas também um conteúdo negativo[1], decorrente da necessidade de respeitar o âmbito de direitos de terceiros. Demonstrando-se que a colocação daquele portão pela ré constitui uma interferência no exercício de faculdades de gozo do direito de propriedade dos autores sobre o seu próprio imóvel, existe, naturalmente, fundamento para ser decretada a requerida remoção do referido portão. Confirma-se, neste ponto, o que se decidiu no acórdão recorrido.

3.3. Alega, ainda, a recorrente que o acórdão recorrido, ao ter revogado parcialmente a decisão da primeira instância, não reconhecendo a existência de uma servidão de passagem em favor do prédio da sua titularidade, teria constituído uma decisão surpresa, violadora de regras e princípios constitucionais, nomeadamente os emergentes dos artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa.

Contrariamente ao defendido pela recorrente, não se pode concluir que o acórdão recorrido tivesse aplicado qualquer norma de modo inconstitucional.

Como já decorre do supra exposto, não se identifica a existência de qualquer “decisão-surpresa” no acórdão recorrido, nomeadamente por inobservância do princípio do contraditório. O que existe é apenas uma interpretação diversa do direito processual na apreciação e aplicação das regras de direito probatório e uma consequente diversidade de entendimento quanto à verificação dos pressupostos de direito substantivo que pudessem sustentar a existência de uma servidão de passagem, solução que se encontra justificada pelo entendimento segundo o qual a sentença (que decretou a servidão de passagem) chegou a tal decisão em violação do princípio do contraditório, consagrado no art.3º, n.3 do CPC.

*

Em resumo, o acórdão recorrido não merece censura, não existindo qualquer fundamento de nulidade ou de inconstitucionalidade, nem fundamento para a sua revogação.

DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas na revista: pela recorrente.

Lisboa, 09.06.2021

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Sobre o conteúdo negativo dos direitos reais em geral, veja-se José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág.339 e seguintes.