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ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
BOA FÉ
INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
RENDA
Sumário
I - A figura do abuso de direito prevista no art. 334.º do CC, revestindo cariz amplo e multifacetado, abrange o exercício do direito que é feito de molde a extrapolar a sua finalidade própria e típica, afastando-se do fundamento axiológico para o qual foi concedido pelo sistema jurídico ao seu titular, prosseguindo o escopo da obtenção de um benefício que lhe seria vedado se tivesse agido de acordo com os ditames da boa fé, segundo o imperativo do art. 762.º, n.º 2, do CC, e com prejuízo sensível para os interesses de outrem. II - É o que sucede quando o agente actua com o propósito de se aproveitar dos efeitos típicos associados à natureza e estrutura formal do direito, mas instrumentaliza-o de modo a alcançar uma finalidade contrária ao seu fundamento axiológico e à boa fé, tendo plena consciência de estar, por essa via, a beneficiar-se ilegitimamente com a produção de um correspectivo prejuízo para terceiro, agindo em venire contra factum proprium. III - Havendo a autora senhoria ocultado do administrador da insolvência os elementos essenciais do contrato de arrendamento que celebrara com a sociedade declarada insolvente, não comprovando documentalmente a sua existência, nem discriminando os efectivos valores parcelares em dívida, impedindo-o assim de poder dar como certa tal relação locatícia e o crédito dela emergente, e evitando, ao mesmo tempo e desse modo, a sua denúncia, a realizar nos termos do art. 108.º, n.º 1, do CIRE, que transformaria as retribuições previstas no seu n.º 3 em créditos sobre a insolvência, é censurável o exercício desse direito na medida em que visa conseguir a acumulação, mês a mês, do valor das rendas a ser debitado e imputado à massa insolvente, por incumprimento contratual culposo, como se tratasse de uma normal situação de anuência do administrador à continuidade da relação locatícia, o que bem sabia não ser verdade. IV - Acresce ainda que, in casu, a pessoa física que assumiu a posição de gerente da autora senhoria e administrador único da ré inquilina era a mesma, sendo totalmente incompreensível, segundo os ditames de boa fé, que nessa segunda qualidade não tivesse informado o administrador da insolvência da existência do contrato de arrendamento, sua formalização (com entrega do documento que o consubstanciava ou cópia) e valores parcelares concretamente em dívida. V - A circunstância de ter sido ocultada pela senhoria a fonte da obrigação do crédito respeitante às rendas em dívida, não havendo sido objecto de reclamação no processo de insolvência qualquer renda em falta, pretendendo agora vê-las reconhecidas como créditos sobre a massa insolvente, nos termos do art. 51.º, n.º 1, al. f), do CIRE, por pretenso incumprimento culposo do respectivo administrador da insolvência que sabia não existir, justificando assim a prioridade no seu pagamento, em conformidade com o disposto nos arts. 46.º, n.º 1, e 172.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, tudo em prejuízo da massa insolvente e reflexamente dos seus credores, torna imperioso o funcionamento da “válvula de segurança” que constitui o art. 334.º do CC, não reconhecendo à autora o direito a receber da massa insolvente da inquilina o montante correspondente às rendas em dívida no período temporal que medeia entre a declaração de insolvência e a data da citação da ré nos presentes autos.
Texto Integral
Revista nº 1920/18.1T8LRA-H.C1.S1.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).
I - RELATÓRIO.
InstaurouConstruções E. Nunes Rodrigues, Lda, com sede na Rua Professor José Oliveira e Costa, 3420-336, Tábua, por apenso ao processo de insolvência da sociedade Materlis – Madeiras, S.A., acção declarativa de despejo contra a massa insolvente desta.
Essencialmente alegou:
Era dona e legítima proprietária do prédio misto destinado a fins hortícolas e a armazém, sito em ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ......49, e inscrito na matriz predial respectiva sobre os artigos ...29 rústico e ...30 urbano.
Sobre o mencionado prédio foi celebrado, no dia 1 de Janeiro de 2011, um contrato de arrendamento entre a autora e a ré, ora representada pela sua massa insolvente.
O valor actual da renda mensal é de € 8.750,00.
A massa insolvente não pagou à autora qualquer renda, apesar de devidamente interpelada.
Concluiu pedindo que:
Se declarasse resolvido o contrato de arrendamento a que aludia o artigo 2.º da petição, com fundamento na falta de pagamento das rendas devidas desde Julho de 2018, inclusive, até à data da propositura da acção;
A condenação da ré a despejar e a entregar-lhe a ela, autora, o local arrendado, situado em ..., ..., completamente livre e desocupado de pessoas e bens, no prazo máximo de 30 dias;
A condenação da ré a pagar-lhe a quantia, já vencida, de € 87.500,00 (oitenta e sete mil e quinhentos euros), referente a rendas dos meses compreendidos entre Julho de 2018 a Abril de 2019, inclusive, e as que se vencessem, entretanto, até à efectiva entrega do locado.
A R. contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente e que ela, massa insolvente, fosse absolvida do pedido.
Para o efeito alegou:
Nos documentos da contabilidade da insolvente analisados pelo administrador da insolvência, este nunca se apercebeu da existência de contratos de arrendamento, nos quais a insolvente fosse a locatária.
O administrador procedeu à apreensão de bens pertencente à massa e no decurso dela apercebeu-se de que alguns dos bens se encontravam num armazém sito em ..., que agora veio a saber pertencer à autora.
Questionou diversas vezes os representantes da insolvente sobre a que título os bens se encontravam naquele imóvel, sendo que nunca foi dada nenhuma informação concreta ao administrador, ou mostrados quaisquer documentos,
Em 15 de Fevereiro o administrador é surpreendido com uma carta da autora a reclamar o pagamento de rendas vencidas.
Uma vez que até aquela data desconhecia quem era a autora e que existia um contrato de arrendamento celebrado entre ela e a insolvente e uma vez que a carta não concretizava os fundamentos para reclamar os valores pedidos o administrador solicitou à autora provadocumentaleinequívocadatitularidadedoimóveledoalegadocontratodearrendamentosubjacenteaomesmo,bemcomosedignassediscriminarovalorreclamado,umavezqueele,administrador,nãodispunhadeelementosquelhepermitissemalcançarovalorreclamadoejustificaropagamentodomesmoperanteoTribunaleos credoresdainsolvência,paramais,atentaaespecialrelaçãoexistenteentreaV/empresaeaempresainsolvente.
Até à data a autora não respondeu à carta do administrador.
Apenas quando foi citada para a acção é que o administrador teve conhecimento da existência e do teor do contrato de arrendamento.
O incumprimento do contrato de arrendamento é imputável à própria autora.
Realizada a audiência final, o tribunal de 1ª instância julgou a a acção parcialmente procedente, declarando que já ocorrera a cessação do contrato de arrendamento em apreço; condenando a ré a pagar à autora as rendas respeitantes ao período decorrido entre 15 de Abril de 2019 e 1 de Julho de /2019, no valor total de € 21.875,00 (vinte e um mil, oitocentos e setenta e cinco euros), como crédito sobre a insolvência, com a natureza comum; absolvendo a ré do restante peticionado.
Desta decisão recorreu o A. para o Tribunal da Relação ......, o qual, através do acórdão proferido em 7 de Setembro de 2021, julgou a apelação parcialmente procedente, alterando a sentença recorrida nos seguinte termos: “1. Mantém-se a decisão que absolveu a ré do pedido de condenação no pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência da sociedade Materliz – Madeiras, S.A., em 29 de Junho de 2018, até à data da citação da ré, em 15 de Abril de 2019; 2.Revoga-se a decisão na parte em que classificou, como crédito sobre a insolvência, as rendas devidas à autora respeitantes ao período decorrido entre 15 de Abril de 2019 e 1 de Julho de 2019, no valor total de € 21.875,00 (vinte e um mil, oitocentos e setenta e cinco euros); 3.Substitui-se essa parte da sentença por decisão a classificar tais rendas como dívidas da massa insolvente”.
Apresentou o A. recurso de revista contra o segmento do acórdão do Tribunal da Relação ..... que manteve a absolvição da Ré, sendo certo que o fez com fundamentação essencialmente divergente da sentença de 1ª instância, não se verificando portanto dupla conforme nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Concluiu nos seguintes termos:
A) A presente revista circunscreve-se ao ponto número um do Acórdão ora recorrido o qual dispõe que se mantém “a decisão que absolveu a ré do pedido de condenação no pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência da sociedade Materliz – Madeiras, S.A., em 29-06-2018, até à data da citação da ré, em 15/04/2019”.
B) Contrariamente à decisão de primeira instância, o Acórdão recorrido entendeu que as rendas em causa não eram pela Recorrente exigíveis por tal exigência prefigurar um abuso de direito.
C) Aceitando a Recorrente de que, no período compreendido entre a declaração de insolvência ocorrida a 29 de Junho de 2018 e até Janeiro de 2019, a comunicação entabulada com o Sr. Administrador Judicial relativa à existência do contrato de arrendamento possa não ter sido a melhor, a verdade é que não se pode, dentro de parâmetros de razoabilidade “concluir que um homem de diligência normal só se teria apercebido da existência do contrato de arrendamento no momento da sua citação para a acção”.
D)A Recorrida sempre soube da existência do locado em causa e que se encontrava ocupado pela sociedade insolvente.
E) Desta feita, dentro do critério de “um homem de diligência normal” até para poder exercer a faculdade prevista no artigo 108 nº 1 do CIRE, deveria ter sido a Recorrida a indagar a que título é que a insolvente ocupava o prédio pois não é normal, não é usual, uma sociedade proceder a tal ocupação a título gratuito!
F) Desta forma, sendo certo que se encontra provada a existência do contrato de arrendamento no ponto 2 dos factos respetivos bem como o não pagamento das rendas por parte da Recorrida no seu ponto 4, tem a Recorrida de liquidar à Recorrente, o valor correspondente a tais rendas, relativas ao período compreendido entre Junho de 2018 até Julho de 2019, a título de dívidas da massa insolvente e no peticionado valor mensal de €: 8.750,00 (oito mil setecentos e cinquenta euros) num total de €: 105.000,00 (cento e cinco mil euros).
G) Caso tal se não entenda, o que, por mera cautela e dever de patrocínio se tem de admitir, “um homem de diligência normal” tinha forçosamente de se ter apercebido da existência do contrato de arrendamento no momento em que rececionou, conforme resulta do ponto 9 da matéria provada, uma carta interpelatória em Fevereiro de 2019 para o pagamento das rendas, com o seguinte teor: “Vimos pela presente, na qualidade de proprietária do prédio sito na Rua ...., ..., ..., interpelar essa Massa Insolvente ao pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração da insolvência ocorrida no passado dia 29 de Junho de 2018, o qual ascende atualmente à quantia €: 70.000,00 (Setenta Mil Euros. Têm assim V. Exas. o prazo de cinco dias a contar da receção desta carta para proceder a tal pagamento através de transferência bancária para a N/ conta com o IBAN: ........ Findo este prazo e a não serem pagos os valores em dívida, será de imediato instaurada, por apenso ao processo de insolvência, a competente ação de despejo.”.
H) Não pode a Recorrente aceitar o vertido no Acórdão ora colocado em crise quando nele é referido que “é certo que o administrador da insolvência foi interpelado extrajudicialmente para pagar rendas. Porém, com tal interpelação o administrador não passou a ter conhecimento da existência do arrendamento, uma vez que ela não fazia menção ao contrato de onde derivava a obrigação de pagamento das rendas.”
I)Ora, a partir deste momento, a Recorrida passa a ter conhecimento da existência do contrato e da necessidade de liquidar as rendas, sob pena de despejo.
J) Desta feita, não pode ser considerada como abusivo nem ilegítimo o pagamento das rendas a partir da interpelação ocorrida em Fevereiro de 2019, pois a Recorrida ficou com pleno conhecimento da existência do contrato a partir desta data e com a faculdade de exercer todas as faculdades legalmente permitidas.
K) Face ao exposto, sempre deve a Recorrida ser condenada a pagar à Recorrente o valor das rendas vencidas no período temporal compreendido entre Fevereiro de 2019 e Julho de 2019 no valor de €: 39.375,00 (trinta e nove mil trezentos e setenta e cinco euros) a título de dívida da massa insolvente e não, tão somente, o valor das rendas relativas ao período compreendido entre Abril e Julho de 2019 conforme resulta do Acórdão ora recorrido.
L) O Acórdão de que se recorre, violou o disposto no artigo 334º do Código Civil.
II – FACTOS PROVADOS.
Foi considerado provado:
1. A autora é dona e legítima proprietária do prédio misto destinado a fins hortícolas e a armazém, sito em ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... – ..., e inscrito na matriz predial respectiva sobre os artigos ... rústico e ... urbano.
2. Sobre o mencionado prédio foi celebrado no dia 01 de Janeiro de 2011 um “contrato de arrendamento para fins não habitacionais” entre a autora, enquanto senhoria, e a sociedade ora insolvente, MATERLIS – MADEIRAS, S.A., enquanto arrendatária, pelo prazo de um ano, com início no dia 1 de Janeiro de 2011, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, tendo sido estipulado, para além do mais, que a renda mensal é de € 8.750,00 (oito mil, setecentos e cinquenta euros), e que o local arrendado destina-se ao exercício da actividade de comércio a retalho.
3. Tal sociedade foi declarada insolvente através de sentença proferida nos autos principais no dia 29 de Junho de 2018, transitada em julgado (sendo o seu administrador único AA).
4. A ora ré não pagou qualquer renda à autora.
5. Na sentença referida em 3), para além do mais: Foi nomeado como administrador da Insolvência da MATERLIS – MADEIRAS S.A., o Sr. Dr. BB, com domicílio profissional na Avenida ......, ....., ao abrigo do disposto no artigo 36°, alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (doravante designado por CIRE); Foi determinado que a insolvente procedesse à entrega imediata, ao Sr. administrador da insolvência, dos documentos a que aludem as alíneas do n.° 1, do artigo 24°, e que ainda não se mostrassem juntos aos autos, nos termos do disposto no artigo 36°, al. f) do CIRE; foi decretada a apreensão, para imediata entrega ao Sr. administrador da insolvência, dos elementos de contabilidade da devedora; foi também ordenada a imediata apreensão de todos os bens da insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 150° do CIRE [artigo 36°, alínea g)].
6. Ao Sr. administrador de insolvência foi facultado o acesso à contabilidade da ora insolvente, sendo que, na análise aos elementos necessários para o processo de insolvência, o Sr. administrador nunca se apercebeu da existência de quaisquer contratos de arrendamento, nos quais a insolvente fosse locatária e a aqui autora fosse locadora, ou sequer de pagamentos de rendas ou facturas de rendas em atraso.
7. O Sr. administrador procedeu à apreensão dos bens que pertenciam à massa insolvente, aqui ré, e no decurso dessa apreensão, apercebeu-se de que alguns dos bens se encontravam no armazém sito em ..., ..., que, vem agora a saber, pertence à autora.
8. Por diversas vezes o administrador de insolvência questionou os representantes da insolvente sobre a que título os bens se encontravam naquele imóvel, sendo que nunca foi dada nenhuma informação concreta ao administrador, ou mostrados documentos.
9. Em 15 de Fevereiro de 2019, o administrador é surpreendido com a carta que recebeu, em correio registado, remetida pela autora, sem assunto e datada de 14 de Fevereiro de 2019, com o seguinte teor: «Vimospelapresente,naqualidadedeproprietáriadoprédiositonaRua ....,...,...,interpelaressaMassaInsolventeaopagamentodasrendasvencidasdesdeadatadadeclaraçãodainsolvênciaocorridanopassadodia29deJunhode2018,oqualascendeatualmenteàquantia€:70.000,00(SetentaMilEuros.TêmassimV.Exas.oprazodecincodiasacontardareceçãodestacartaparaprocederatalpagamentoatravésdetransferênciabancáriaparaaN/contacomoIBAN:........Findoesteprazoeanãoserempagososvaloresemdívida,serádeimediato instaurada,porapensoaoprocessodeinsolvência,a competenteaçãodedespejo.».
10.Uma vez que até àquela data o administrador de insolvência desconhecia quem era a autora e que existia um contrato de arrendamento celebrado entre esta e a insolvente, e uma vez que na referida carta não se concretizavam os fundamentos para reclamar os valores peticionados, O administrador de insolvência respondeu à mesma, através do envio da carta remetida a 20 de Fevereiro de 2019, em correio registado, onde solicitava, à aqui autora, que fizesse «provadocumentaleinequívocadatitularidadedoimóveledoalegadocontratodearrendamentosubjacenteaomesmo,bemcomosedignemdiscriminarovalorreclamado,umavezqueoAdministradordaInsolvêncianãodispõedeelementosquelhepermitamalcançarovalorreclamadoejustificaropagamentodomesmoperanteoTribunaleoscredoresdainsolvência,paramais,atentaaespecialrelaçãoexistenteentreaV/empresaeaempresainsolvente(art.49ºdoCIRE).»
11.Mais informou o administrador de insolvência, em tal carta, que não encontrou «nem na V/ reclamação de créditos, apresentada nos termos do art. 128º do CIRE, nem da contabilidade da sociedade insolvente qualquer referência ao agora alegado contrato de arrendamento ou quaisquer evidências do pagamento de rendas, pelo que a Massa Insolvente não reconhece o direito/crédito reclamado por V/ Exas.».
12.A autora já havia reclamado créditos no processo de insolvência, no montante total de € 23.219,25, conforme cópia da reclamação junta com a Contestação sob doc. 4, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, não tendo junto quaisquer documentos com a reclamação (a não ser o cálculo dos juros) que sustentassem a mesma, fazendo apenas referência, na reclamação, que os créditos respeitavam a “serviços prestados”.
13.Não obstante, os créditos reclamados foram reconhecidos, por conferência com o balancete da contabilidade da MATERLIS – MADEIRAS, S.A. e foram qualificados como créditos subordinados, atento o disposto no artigo 47.º e 48.º do CIRE, e mostram-se relacionados sob a verba 42 da Relação dos Créditos Reconhecidos.
14.Desta relação de credores, a autora não apresentou qualquer impugnação, pelo que a mesma produziu os seus efeitos.
15.Até à data da apresentação da contestação (2 de Agosto de 2019), o administrador de insolvência nunca recebeu qualquer reposta à carta de resposta que enviou à aqui Autora em 20 de Fevereiro de 2019.
16.Apenas aquando da citação para a presente acção é que o administrador de insolvência teve conhecimento da existência e teor do contrato de arrendamento, e nunca antes.
17.A autora é uma sociedade por quotas, cuja titularidade do capital social, no montante global de €9.975,96, pertencia até 10 de Dezembro de 2014, a duas outras sociedades anónimas, a saber: L........, S.A., titular de duas quotas, uma no valor de € 1.995,19 e outra no valor de € 4.987,98, e a B....... S.A. com uma quota no valor de € 2.992,79.
18.A L........, S.A. tinha, pelo menos até 21 de Abril de /2020, como Presidente do Conselho de Administração, o Sr. AA, que era o administrador único da MATERLIS – MADEIRAS, S.A.
19.A B....... S.A. tinha, pelo menos até 21 de Abril de 2020, como administrador único, o referido Sr. AA.
20.Ambas as sociedades anónimas tinham, pelo menos até 21 de Abril de 2020, a sede na mesma morada, ou seja, na Rua ......, freguesia e concelho de ..., distrito de ..., sendo que esta também é a morada da sede da Autora.
21.O Sr. AA foi gerente da autora, para além do mais, entre 29 de Setembro de 2014 e 31 de Julho de 2019.
22.A presente acção foi instaurada no dia 5 de Abril de 2019.
23.A ré foi citada para os termos da presente acção no dia 15 de Abril de 2019.
24.No início de Julho de 2019, o armazém que faz parte do prédio misto descrito em 1) encontrava-se desocupado dos bens apreendidos para a massa insolvente, tendo sido entregues as chaves respectivas ao Sr. AA.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Crédito respeitante ao pagamento das rendas devidas desde a declaração de insolvência da locatária até à citação do Réu para a presente acção de despejo (de Julho de 2018 a 15 de Abril de 2019), exigidas pela senhoria enquanto dívidas da massa insolvente (e não enquanto créditos sobre a insolvência). Interpelação efectuada pela senhoria, representada pela mesma pessoa que foi o administrador único da inquilina, sem que, em qualquer das qualidades tenha o administrador da insolvência sido informado da efectiva e concreta relação locatícia em curso. Correspectiva incerteza e dúvida fundada por parte do administrador quanto à existência do contrato e valor das rendas em dívida. Impedimento, nessa medida, do exercício de denúncia do contrato, nos termos do artigo 108º, nº 1, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE). Aplicação in casu da figura do abuso de direito genericamente prevista no artigo 334º do Código Civil.
Passemos à sua análise:
A questão jurídica essencial que se discute no presente recurso de revista prende-se com a qualificação como abusiva, à luz da figura do abuso de direito consagrada no artigo 334º do Código de Processo Civil, da actuação da senhoria que se propõe obter, por via da presente acção, o pagamento das rendas não pagas desde a data da insolvência da locatária, em 29 de Junho de 2018, até à data da citação da Ré, em 15 de Abril de 2019, como dívida da massa insolvente (cfr artigo 8º da petição inicial que remete para o artigo 51º do CIRE), sem haver comunicado atempadamente ao administrador da insolvência todos os elementos essenciais desse contrato de arrendamento, nem fornecido a inerente comprovação documental e discriminação dos montantes parcelares em falta e outras circunstâncias referentes a tal alegado incumprimento.
Poder-se-á descrever a situação factual em apreço nos seguintes termos:
1º - A Autora Construções E. Nunes Rodrigues, Lda, celebrou, em 1 de Janeiro de 2011, com Materlis – Madeiras, S.A., um contrato de arrendamento, através o qual lhe cedeu o gozo do prédio misto destinado a fins hortícolas e a armazém, sito em ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .....49, e inscrito na matriz predial respectiva sobre os artigos ...29 rústico e ...30 urbano, pelo prazo de um ano, com início no dia 1 de Janeiro de 2011, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo, tendo sido estipulado, para além do mais, que a renda mensal é de € 8.750,00 (oito mil, setecentos e cinquenta euros), destinando-se o local arrendado ao exercício da actividade de comércio a retalho.
2º – A Materlis – Madeiras, S.A., foi declarada insolvente por sentença proferida em 29 de Junho de 2018, sendo, até ao momento dessa declaração, AA o seu administrador único.
3º – A Materlis – Madeiras, S.A., desde que foi declarada insolvente, não pagou qualquer renda à A.
4º – O administrador da insolvência da Materlis – Madeiras, S.A., não detectou na respectiva documentação, que lhe foi entregue em virtude do exercício das suas funções, a existência do contrato de arrendamento referido, tendo não obstante apreendido bens da insolvente que se encontravam no interior do dito armazém.
5º - A Autora Construções E. Nunes Rodrigues, Lda, apresentou a sua reclamação de créditos no processo de insolvência da Materlis – Madeiras, S.A., não juntando qualquer elemento que se referisse concretamente ao dito contrato de arrendamento e a qualquer crédito respeitante a rendas em dívida.
6º - Em 15 de Fevereiro de 2019, a Autora Construções E. Nunes Rodrigues, Lda., representada por AA enviou uma carta ao administrador da insolvência da Materlis – Madeiras, S.A., da qual consta:
- a afirmação de que é proprietária do prédio sito na Rua ...., ..., ...;
- a interpelação da massa insolvente para o pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência da sua arrendatária;
- a concessão do prazo de cinco dias para a realização da inerente transferência bancária para uma conta que indica do valor em dívida de € 70.000,00.
7º - Desconhecendo o administrador da insolvência a qualidade de senhoria da Autora Construções E. Nunes Rodrigues, Lda., bem como da existência do contrato de arrendamento celebrado com a insolvente Materlis – Madeiras, S.A., procedeu à sua resposta através de uma nova carta, enviada em 20 de Fevereiro de 2019, em que solicitava:
- prova da titularidade do imóvel e do alegado contrato de arrendamento;
- a discriminação do valor reclamado;
- a invocação do seu desconhecimento desses montantes e a necessidade da sua justificação perante do Tribunal e dos credores, com alusão à especial relação existente entre a empresa A. e a empresa insolvente.
8º - A. Autora e senhoria Construções E. Nunes Rodrigues, Lda., não respondeu.
Apreciando:
Dispõe ao artigo 334º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Conforme refere Jorge Coutinho de Abreu in “Abuso de Direito”, Almedina, 1983, página 43: “(...) há abuso de direito quando o comportamento aparentando ser um exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
Refere, a este propósito, António Menezes Cordeiro, in Revista da Ordem dos Advogados, Volume II, Setembro de 2005, artigo intitulado: “Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas”, publicado in Revista da Ordem dos Advogados e consultável in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-perspectivas/ /#:text=Ant%C3B3nio%20Menezes%20Cordeiro%20%2D%20Do%20abuso,e%20perspectivas%20*%20%2D%20Ordem%20dos%20Advogados “Torna-se fundamental ter presente que a boa fé surge tão-só como uma via para permitir, ao sistema, reproduzir, melhorar, corrigir e completar as suas soluções. Apenas o uso da História e do Direito comparado nos pode explicar esta dimensão. Além disso, o recurso à boa fé só é pensável para uma dogmática não conceptualista. Criticar a boa fé ou descobrir a sua inutilidade parece-nos tão descabido como fulminar ad nutum todos os avanços da Ciência do Direito no último século. Quais são as alternativas? A boa fé e o abuso do direito não são compatíveis com análises racionalistas — ou aparentemente racionalistas, já que a Razão, para o ser, examina o real não funcionando, apenas, sobre si própria. Exigem valorações e um atendimento ao poder dos factos É perfeitamente surrealista reclamar “valorações materiais” e, depois, recusar os institutos onde, dogmaticamente, tais valorações poderiam ser postas em prática. A jurisprudência portuguesa não tem sido suficientemente apoiada pela doutrina. O individualismo dos autores portugueses, que os leva, muitas vezes, a montar discordâncias de pura terminologia, a aparentar originalidades sem substância ou sem estudos aprofundados bastantes ou a, pura e simplesmente, ignorar quanto se faz e decide intra muros, dá ensejo a uma doutrina desalinhada onde, em vez de se progredir, se procura continuamente rediscutir os fundamentos e isso mesmo quando estes, sendo histórico-culturais, estejam assentes há décadas ou séculos. Nestas condições, não admira que a jurisprudência vá procurando os seus próprios caminhos”.
A figura do abuso de direito contemplada na previsão normativa do artigo 334º do Código de Processo Civil, revestindo cariz amplo e multifacetado, abrange o exercício do direito pelo seu titular que é feito de molde a extrapolar a sua finalidade própria e típica, afastando-se do fundamento axiológico para o qual lhe foi concedido pelo sistema jurídico, prosseguindo o escopo da obtenção de um benefício que lhe seria vedado se tivesse agido de acordo com os ditâmes da boa fé, segundo o imperativo geral do artigo 762º, nº 2, do Código Civil (“no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”), e provocando sensível prejuízo para os interesse de outrem.
Concretamente, o agente actua com o propósito de se aproveitar dos efeitos típicos associados à natureza e estrutura formal do direito, mas instrumentaliza-o de modo a alcançar uma finalidade contrária à boa fé, tendo plena consciência de estar, por essa via, a beneficiar-se ilegitimamente com a produção de um correspectivo prejuízo para terceiro.
(vide sobre esta matéria o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2021 (relator Manso Rainho), proferido no processo nº 22628/18.2T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi., onde se enfatiza que “está aqui em causa a boa fé objectiva, sendo atendíveis os critérios que, no plano das relações intersubjectivas, estabelecem regras de conduta. Como é pacificamente aceite (assim, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, página 626), o exercício conforme à boa fé envolve um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correcção e lealdade, respeitando as razoáveis expecativas dos outros e a confiança que esses outros depositam na actuação alheia”).
Conforme refere ainda Fernando Cunha e Sá in “Abuso do Direito”, Almedina, 1997, a páginas 616 a 617: “(...) identifiquei o acto de exercício abusivo de um direito subjectivo pela contraditoriedade entre o preenchimento da estrutura formal do direito subjectivo em questão, seja ele qual for, e o valor que juridicamente funda o sentido teleológico do mesmo direito, isto é, pela contradição revelada na materialidade concreta do comportamento entre a forma ou estrutura e a axiologia de um certo e determinado direito subjectivo. (...)Em toda e qualquer prerrogativa jurídica é-nos dada uma estrutura que é axiologicamente fundada; se o sujeito viola o íntimo sentido da faculdade que lhe é reconhecida ou concedida, se o seu concreto comportamento é o oposto do valor que materialmente lhe preside e orienta mas se mascara, na aparência com o respeito dos limites lógico-formais da norma que a concede ou reconhece, se finge (ou se acoberta com) os quadros estruturais de uma determinada faculdade, deparamo-nos com a mesma realidade dogmática que tecnicamente vem sendo individualizada como abuso de direito. É acto abusivo o excesso dos limites axiológicos-materiais de um qualquer direito subjectivo, como de igual modo e pelas mesmas razões, é acto abusivo a violação do fundamento valorativo de uma prerrogativa individual do sujeito, mascarada pelo enquadramento da actuação nos limites formais dessa mesma prerrogativa”.
Vejamos o que se passa na situação sub judice:
A A. senhoria pretende que se reconheça que o seu crédito, que tem por objecto as rendas não pagas pela inquilina no pressuposto do incumprimento culposo do contrato da responsabilidade do administrador da Ré, constitui deste modo um crédito sobre a massa insolvente (e não um crédito sobre a insolvência), beneficiando portanto da correspectiva prioridade no seu pagamento, em conformidade com o disposto nos artigos 46º, nº 1, 51º, alínea f), e 172º, nº 1, do CIRE.
(Sobre a diferença entre créditos sobre a massa insolvente e créditos sobre a insolvência, vide, entre outros, Maria do Rosário Epifânio, in “Manual do Direito da Insolvência”, Almedina 2020, 7ª edição, a páginas 283 a 292; Catarina Serra in “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina 2021, 2ª edição, a páginas 62 a 65, onde se refere: “(...) a classificação das dívidas como da massa insolvente assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência (...) é possível concluir que a qualificação das dívidas como da massa insolvente assume um carácter marcadamente excepcional. Bem se compreende que assim seja, uma vez que as dívidas da massa insolvente disfrutam de um tratamento especial (privilegiado). Nos termos do artigo 46º, nº 1, o pagamento destas dívidas tem prioridade sobre as dívidas da insolvência”; Alexandre de Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina 2015, a páginas 239 a 242, onde se enfatiza, a este propósito: “(...)às dívidas sobre a massa insolvente correspondem créditos sobre a massa, de que são titulares os credores da massa”; Luís Menezes Leitão in “Direito da Insolvência”, Almedina 2018, 8ª edição, a páginas 101 a 114, onde se salienta: “As dívidas da massa insolvente beneficiam de um regime mais favorável no pagamento, dado que o artigo 172º determina que estas devem ser satisfeitas antes dos créditos sobre a insolvência, ocorrendo o pagamento na data do respectivo vencimento, seja qual for o estado do processo. As dívidas da massa não estão por isso sujeitas ao processo de verificação e graduação de créditos, pelo que não têm que ser reclamadas (artigo 128º e seguintes), podendo os respectivos credores exigir directamente o seu pagamento ao administrador da insolvência.”).
Com efeito, a A. senhoria reclamou créditos no processo de insolvência da sua locatária sem fazer, no entanto, a menor referência a qualquer crédito de que fosse titular tendo por objecto as rendas que não teriam sido pagas pela inquilina (pressupondo-se assim que todas as rendas terão sido pagas – ou não exigidas - até à declaração de insolvência e que estamos apenas perante créditos sobre a massa insolvente, fruto do não cumprimento culposo por parte do administrador da obrigação típica que antes impendia sobre a locatária).
Neste caso particular, verifica-se outrossim que é a mesma a pessoa física – AA – que foi o administrador único da sociedade que veio a ser declarada insolvente e que representou a A. senhoria aquando da prática do acto de interpelação do administrador da insolvência para o pagamento de um montante global a título de rendas alegadamente em dívida (no expressivo montante, quantificado na petição inicial, de € 87.500,00 – correspondente à renda mensal de € 8.750,00 -, acrescida da vincendas até à entrega do locado).
Em 15 de Fevereiro de 2019 – quase oito meses após a declaração da insolvência da sua inquilina (em 29 de Junho de 2018) – a A. senhoria, representada pelo dito AA – administrador único da sociedade declarada insolvente – dirigiu uma carta de interpelação ao administrador da insolvência – cfr. fls. 75/verso -, exigindo o pagamento das rendas em falta (no valor de € 70.000,00), mas sem nunca identificar os elementos essenciais desse negócio, nem comprovar documentalmente, como se impunha, a formalização desse contrato de arrendamento, fonte da obrigação, não discriminando ainda os respectivos valores parcelares em dívida.
Ora, seguindo o critério legal interpretativo quanto ao valor da declaração negocial expresso no artigo 236º, nº 1, do Código Civil, um declaratário médio colocado na posição do real (o administrador da insolvência, in casu) não poderia, nestas circunstâncias, extrair dos termos desta missiva a necessária segurança quanto à existência da relação locatícia e, muito menos, quanto à efectividade da dívida concreta que a pretensa credora apenas quantificava através de um valor global final, mas não especificava (até aquela altura) em que relação jurídica concreta assentava, sendo certo que a consulta da documentação da insolvente (cujo administrador único era o dito AA) e das informações que junto desta procurou obter, nada revelava acerca da celebração desse arrendamento e do seu incumprimento culposo.
Instado pelo administrador a esclarecer os elementos em falta, a A. senhoria nada se dignou respondeu, impossibilitando assim aquele de dispor de elementos certos e seguros que atestassem a existência e efectividade da dívida que tão tardiamente foi acusada.
Por outro lado, esta conduta da senhoria de propositada omissão de informação completa e elucidativa impediu o administrador da insolvência de denunciar o contrato de arrendamento (que desconhecia por não lhe ter sido comunicado) com um pré-aviso de 60 dias, nos termos gerais do artigo 108º, nº 1, do CIRE, com todas as consequências legais inerentes.
(Escreve, a este respeito, Maria do Rosário Epifânio, in obra citada supra, a páginas 223 a 224: “(...) Por força do artigo 108º, nº 1, a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário. (...) uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a pagar a respectiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa (artigo 51º, nº 1m alíneas e) e f). Porém, se entender não ser conveniente para os interesses da massa insolvente, de acordo com o artigo 108º, nº 1, pode o administrador da insolvência pôr termo ao contrato (denunciá-lo), com um pré-aviso máximo de 60 dias desde que a lei ou o contrato não prevejam um prazo inferior (...) A denúncia do contrato pelo administrador da insolvência facultada pelo nº 1 obriga ao pagamento, como crédito sobre a insolvência, das retribuições previstas no nº 3 do artigo 108º: correspondem ao período intercedente entre a data da produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulada, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente (...)”; sobre a mesma matéria, escreve Luís Menezes Leitão, in obra citada supra, a páginas 200 a 201: “Essa “denúncia do contrato” constitui no entanto, em bom rigor, uma recusa do seu cumprimento, na medida em que constitui a outra parte no direito a receber, como crédito sobre a insolvência, as rendas ou alugueres correspondentes ao período intercedente entre a data da produção dos seus efeitos e o fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo, teria sido possível a denúncia pelo insolvente”).
Conforme se salientou no acórdão recorrido: “Esta reclamação abusiva é de sancionar com a ilegitimidade do pedido de pagamento de rendas desde a declaração de insolvência até ao momento em que o administrador teve conhecimento do contrato e ficou em condições de exercer a faculdade que o nº 1 do artigo 108º do CIRE lhe confere. A não ser assim, permitir-se-ia que o gerente da autora tirasse proveito da sua má-fé, exigindo à massa insolvente o pagamento de rendas desde a data da insolvência até à data da citação para a acção, como se a manutenção do contrato durante tal período fosse o resultado de uma opção livre do administrador, quando na realidade tal não sucedeu”.
Tal afirmação merece o nosso total acolhimento.
Não revelando ao administrador da insolvência os elementos essenciais do negócio que celebrara com a ditaMaterlis – Madeiras, S.A., - de que foi administrador único AA, insista-se -, nem comprovando documentalmente a existência do contrato, com a discriminação dos efectivos valores parcelares em dívida, a A. senhoria, na pessoa de AA, impediu-o, por força destas circunstâncias, de dar como certa a relação locatícia e o crédito dela emergente, evitando ainda a sua possível denúncia, e logrou ir debitando e imputando, mês a mês, à massa insolvente o valor das ditas rendas, tal como se tratasse de uma normal situação de anuência do administrador em relação à continuidade da relação de arrendamento, que lhe competiria cumprir em relação aos deveres da locatária, o que bem sabia não ser verdade.
(Tais especiais obrigações de informação encontram-se aliás devidamente plasmadas nos artigos 24º, nº 1, alínea e), e 83º, nº 1, alínea a) e nº 4, do CIRE, que o dito AA censuravelmente incumpriu).
Ou seja, as rendas em dívidas só se tornaram, quanto a este lapso temporal, formalmente exigíveis porque foi deliberadamente ocultada pelo credor -representado pela pessoa que fora administrador único da devedora inquilina e ora insolvente- a fonte da obrigação em causa.
Se o não fosse, o administrador da insolvente, colocado perante a vigência de um contrato em curso, certamente teria todas as possibilidades de escolher as alternativas que melhor defendessem os interesses desta e dos seus credores, o que poderia eventualmente passar pelo exercício do direito de denúncia, em conformidade com o disposto no artigo 108º, nº 1, do CIRE, passando as contrapartidas devidas à senhoria a considerar-se créditos sobre a insolvência e não créditos sobre a massa insolvente (o que faz toda a diferença).
Sendo AA gerente da autora, mas igualmente administrador único da 1.ª ré, torna-se totalmente incompreensível, segundo os ditâmes gerais de boa fé, que nessa segunda qualidade não tivesse informado o administrador da insolvência da existência do contrato de arrendamento, sua formalização (com entrega do documento que o consubstanciava ou cópia) e valores parcelares concretamente em dívida.
Omitiu-o quando o devia ter comunicado de forma pronta, completa e elucidativa.
Fê-lo nitidamente com o propósito de poder vir a qualificar como dívidas da massa insolvente, nos termos gerais do artigo 51º, nº 1, alínea f), do CIRE, o não pagamento de rendas da sua inquilina, como se o administrador da insolvência tivesse qualquer tipo de responsabilidade culposa no incumprimento contratual, abstendo-se de relacionar tais rendas como créditos sobre a insolvência (no que se sujeitaria ao concurso com os restantes credores da insolvente, bem sabendo que se tratava de créditos não garantidos e susceptíveis de serem qualificados como créditos subordinados, nos termos dos artigos 48º, alínea a) e 49º, nº 2, alínea c), do CIRE).
Trata-se, por conseguinte, de uma típica situação de venire contra factum proprium.
(A propósito desta figura do venire contra factum proprium, vide António Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português”, Tomo I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina 2007, páginas 275 a 297).
O agente AA, na qualidade de administrador único da inquilina, não identifica nem revela ao administrador da insolvência a relação de arrendamento, como constituía sua especial obrigação; o agente AA, enquanto gerente da senhoria – que nenhum crédito de rendas havia reclamado respeitante a rendas devidas antes da declaração e insolvência –, mantém o administrador na fundada e objectiva incerteza ou natural dúvida quanto à existência do contrato e rendas que se vão entretanto vencendo, como forma (ardilosa) de obter da massa da insolvente – em termos prioritários relativamente aos créditos da insolvência – tais valores, inviabiliando a possível denúncia do contrato, e a qualificação dos créditos quanto às rendas devidas pela locatária como créditos sobre a insolvência, tudo em nítido e manifesto prejuízo da massa insolvente e reflexamente dos respectivos credores.
Garante, assim, o efectivo pagamento de uma verba muito significativa, de que era devedora uma sociedade de que fora administrador único e que entretanto se tornara insolvente, na pressuposição de um aparente incumprimento gerado pela ausência de uma comunicação clara e atempada que directamente promoveu, prejudicando significativamente os interesses da massa insolvente e dos seus credores, que – a proceder a sua pretensão - se veriam ultrapassados no concurso para reconhecimento e graduação dos créditos (a que, por isso mesmo, não se sujeitava).
Assim sendo, torna-se imperioso fazer funcionar neste caso a “válvula de segurança” que constitui o artigo 334º do Código Civil, não reconhecendo à A. senhoria o direito a receber da massa insolvente da inquilina – e como dívidas desta, nos termos do artigo 51º, nº 1, alínea f), do CIRE - o montante correspondente às rendas em dívida durante o período temporal mencionado (desde a declaração de insolvência até à data da citação da Ré nos presentes autos).
Improcede assim a revista.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar provimento à revista. Custas pela recorrente. Lisboa, 17 de Novembro de 2021. Luís Espírito Santo (Relator) Ana Paula Boularot Pinto de Almeida V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.