DOAÇÃO
CASAMENTO
Sumário

I - Um dos efeitos do divórcio consiste justamente na perda dos benefícios que os cônjuges receberam de terceiro apenas por serem casados.
II - A caducidade da doação feita em consideração do estado de casado dos donatários opera ipso iure com o divórcio.

Texto Integral

Processo n.º 3067/19.4T8PRT.P1

Relatora: Anabela Tenreiro
Adjunta: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO
B…, divorciado, residente na Rua …, nº…, R/C, ….-… Porto, veio intentar acção especial de Divisão de Coisa Comum, contra C…, divorciada, residente na Av. …, …, ….-… …, Paredes, pedindo: “Nestes termos e no disposto no art.º 925 e seguintes do CPC, deve a presente acção ser julgada procedente por provada, procedendo-se à adjudicação ou venda do imóvel, seguindo-se os demais termos legais até final.”.
Para tanto, alegou que Autor e Ré foram casados entre si no regime de separação de bens, tendo o divórcio sido decretado no dia 14 de Outubro de 2019. O Autor é titular em registo de uma quota de ½, no seguinte prédio: Prédio Urbano composto por casa de um piso para arrumos com logradouro, sito no …, Rua …, nº., Freguesia e Conselho de Paredes, descrito na conservatória do Registo predial sob o nº1922, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º8749 e a restante ½ é propriedade da Ré. Tal prédio veio à posse do A. e Ré por doação dos pais desta, efectuada no dia 26 de Abril de 2018.
No prédio em causa está erigida uma benfeitoria que consiste numa construção de uma casa ainda em fase de acabamento por parte do Autor e propriedade exclusiva deste.
O Autor não pretende permanecer na indivisão (art.º1412 do C.Civil) a coisa é indivisível (art.º925 do CPC) e não foi possível partilhá-la com a Ré de forma amigável.
A Ré alegou que esta doação não foi efetuada, em 26 de Abril de 2018, pelos pais da Ré, mas sim pela mãe, ao casal “em consideração do estado de casado”, ou seja, a mãe da Ré só doou este prédio urbano ao A. porque este ainda estava casado com a Ré.
A mãe da Ré só doou o terreno ao A. porque este estava casado com a sua filha, caso contrário isto nunca teria acontecido e, por esse motivo, o A. não é mais proprietário desse prédio, a partir do momento em que se divorciou, pois perdeu esse benefício.
Assim, há que declarar a perda do benefício obtido pelo Réu com a doação efectuada, sendo a Ré total proprietária do prédio urbano.
Invocou, ainda a Requerida a impossibilidade substancial da acção por já não ser proprietário decorrente dos efeitos do divórcio.
Deste modo, a acção deverá improceder porque a causa de pedir está em contradição com a realidade dos factos.
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Realizou-se a avaliação do imóvel (relatório pericial de fls.49 a 57). *
Designado dia para realização de conferência de interessados, não foi logrado o acordo entre os interessados em virtude do desfasamento dos valores tidos como justos para uma composição do litígio pela via amigável.
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Proferiu-se sentença que decidiu:
-Julgar procedente a invocada excepção da caducidade da doação efetuada aos Requerente e Requerida pela mãe desta, sogra daquele, em consideração ao casamento existente entre ambos à data da outorga da escritura e face ao divórcio decretado, com a extinção subjetiva do direito na esfera jurídica do donatário por efeito direto e da donatária pelo facto de a doação se destinar a integrar a comunhão conjugal;
-Julgar procedente a excepção de erro na forma do processo, de conhecimento oficioso, não sendo este o meio processual próprio já que inexiste qualquer bem em comum entre as partes que importe realizar a sua divisão nos termos do disposto nos arts.925º e seguintes do C.P.C., razão pela qual se absolve a Requerida do pedido.
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Inconformado com a sentença, o Réu interpôs recurso, terminando com as seguintes
Conclusões
I-A caducidade da Doação, nos termos do art. 1791º Código Civil, tem de ser invocada pela doadora, conforme, entre outros, Acórdão da Relação do Porto do dia 02-07-2020 no processo nº 3931/16.2T8MTS.
II-Entendeu a meritíssima Juiz “a quo” que a perda dos benefícios (Doação) se opera independentemente de qualquer declaração de Revogação.
III-A Declaração de Caducidade da Doação, nos presentes Autos, apenas foi invocada pela Donatária.
IV-Pelo que, entende o ora Recorrente, com o respeito devido que muito é, que o prédio (terreno) em causa, objecto da Doação, ainda se mantém comum.
V-Pelo que o meio processual próprio continua a ser a divisão de coisa comum.
VI-O Recorrente, no seu entender, continua impedido de lançar mão de outro meio processual, designadamente do mecanismo da Acessão Imobiliária, para ver o seu problema resolvido.
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Contra-alegou a Requerida concluindo da seguinte forma:
1. “A haver litigio sobre a perda de benefícios recebidos de terceiro na pendência do casamento, tal só poderá ser dirimido no confronto com o doador, e não em ação em que as partes são apenas ex-cônjuges”.
2. No caso concreto não há litígio entre os ex-cônjuges porque ambos admitem a perda de benefício.
3. Aliás o Recorrente admite no Recurso que não coloca em causa a perda de benefício, nem o pagamento total do terreno.
4. Parece-nos óbvio que não existindo litígio entre as partes nesta questão o artigo 1791 opera ipso jure, independentemente de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade.
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
A questão decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se a caducidade da doação feita em consideração do estado de casado dos donatários tem de ser invocada pela doadora ou opera ipso iure com o divórcio.
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III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
1-Requerente e Requerida foram casados entre si sob o regime da separação de bens, tendo o casamento sido celebrado a 05.12.2009 e dissolvido por divórcio, decretado por decisão proferida em 14 de Outubro de 2019, proferida pela Conservatória do Registo Civil de Paredes.
2-Por escritura de “Partilha parcial e doação”, de 26 de Abril de 2018, a mãe da Requerida doou “em comum e partes iguais, aos oitavos outorgantes, sua filha e genro, sendo a doação à sua filha feita por conta da quota disponível da sua herança, o imóvel que ora lhe foi adjudicado” – Prédio urbano composto por casa de um piso para arrumos com logradouro, no …, na Rua …, número ., freguesia e concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número mil novecentos e vinte e dois- …, inscrito na matriz sob o artigo 8749, com o valor patrimonial de € 4.600,00 e o valor atribuído quatro mil, seiscentos e vinte euros.
3-O prédio referido em 3 encontra-se registado na CRP em nome de Requerente e Requerida por AP 2390 de 2018/05/15.
4-No prédio em causa, após a demolição da casa de um piso para arrumos, está erigida uma benfeitoria que consiste numa construção de uma casa ainda em fase de acabamento por parte do Autor e propriedade exclusiva deste.
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IV-DIREITO
O Recorrente interpôs a presente acção de divisão de coisa comum alegando ser comproprietário do imóvel identificado nos autos por ter sido doado ao casal pelos pais do seu cônjuge.
De harmonia com o artigo 1403.º, n.º 1 do C.Civil existe propriedade em comum, ou compropriedade quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
E, nos termos do art.º 1412.º, n.º 1 do C.Civil nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo estipulação em contrário.
A compropriedade é perspectivada pelo legislador como uma situação da qual advêm inconvenientes[1] de diversa natureza, sendo público o interesse na cessação da indivisão.
Por conseguinte, numa acção de divisão de coisa comum a causa de pedir é constituída pelos factos concretos de onde deriva a compropriedade. E o pedido principal é o de cessação dessa situação jurídica por uma das formas previstas na lei[2].
Esse pedido de cessação da indivisão é formulado em conformidade com os trâmites previstos no art.º 925.º e segs. do C.P.Civil.
No caso em apreço provou-se que a mãe da Requerida, que era casada na altura com o Recorrente, doou ao casal o prédio urbano que este último pretende ser comproprietário.
O casamento do Recorrente com a Requerida foi dissolvido, por divórcio, em 14 de Outubro de 2019.
Um dos efeitos do divórcio consiste justamente na perda dos benefícios que os cônjuges receberam de terceiro apenas por serem casados.
Com efeito, o artigo 1791.º, n.º 1 do C.Civil, na redacção actual introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, determina que cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.
No regime pretérito apenas o cônjuge declarado único ou principal culpado perdia todos os benefícios concedidos na constância do casamento.
A doutrina reconhecia que o cônjuge perde todos os benefícios, não só futuros, mas também pretéritos, que lhe tenham sido atribuídos (seja pelo outro cônjuge, seja por terceiro) em vista do casamento (doação entre esposados p. ex.) ou em consideração do estado de casado (doação feita conjuntamente ao casal).[3]
Com a Lei n.º 61/2008 optou-se, segundo Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[4], pela caducidade dos benefícios atribuídos a ambos os cônjuges, que parte da ideia de que o casamento não deve ser um meio de adquirir património, ou seja, que separa os afectos matrimoniais de qualquer vantagem patrimonial; e que acolhe o princípio geral de que a cessação da causa dos efeitos jurídicos deve fazer cessar estes efeitos.
Rita Lobo Xavier[5] esclareceu que banida a averiguação da culpa do divórcio, duas soluções seriam possíveis: ou se mantinham as consequências patrimoniais antes previstas, agora desprovidas da sua natureza sancionatória ou se suprimiam tais consequências, substituindo-as por outras mais adequadas à diferente concepção de casamento e de divórcio subjacente ao projecto.
A perda dos benefícios designadamente de uma doação feita a ambos os cônjuges por familiar de um deles opera ipso iure, independentemente de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade.[6]
Neste mesmo sentido pronunciaram-se Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[7] esclarecendo que essa questão foi discutida antes do Código Civil de 1966 em face do art.º 27.º da “Lei do Divórcio”.
O acórdão do STJ, de 13/04/2021[8] sobre essa questão, acompanhou a doutrina e declarou que a perda dos benefícios não exige que seja invocada pela doadora, ao contrário do que foi defendido no Acórdão desta Relação do Porto, de 02/07/2020[9], revogado, nessa parte, pelo mencionado aresto do STJ.
Como se referiu na sentença, no caso “sub judice” estamos face a uma doação de terceiro–mãe da Requerida e sogra do Requerente-concretizada após a celebração do casamento em consideração do estado de casados.
Pelas razões aduzidas, não merece qualquer censura a sentença quando conclui, seguindo a orientação da doutrina e da jurisprudência, que tendo caducado o benefício (doação) atribuído ao Requerente e Requerida, o imóvel reverte automaticamente para a doadora, sem necessidade de um acto de revogação da liberalidade[10], inexistindo, por isso, qualquer situação de compropriedade que justifique a divisão.
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V—DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmam a sentença.
Custas pelo Recorrente.
Notifique.

Porto, 12 de outubro de 2021
Anabela Miranda
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
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[1] Lima, Pires de, Varela, Antunes, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 386.
[2] Ac. Rel.Coimbra, de 28/01/2014, consultável em www.dgsi.pt
[3] Varela, Antunes, Direito da Família, livraria Petrony, 1987, pág. 499.
[4] Curso de Direito da Família, vol. I, Introdução ao Direito Matrimonial, 5.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 768-769.
[5] Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Lei n.º 61/2008 de 31.10, Almedina, 2010, p. 33, citada no Ac. TC, de 12.07.2017 in www.dgsi.pt.
[6] Lima, Pires de, Varela, Antunes, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição, pág. 564.
[7] Ob. cit., pág. 770, nota 117.
[8] Consultável em www.dgsi.pt.
[9] Consultável em www.dgsi.pt.
[10] Coelho, Francisco Pereira, Oliveira, Guilherme de, ob. cit., pág. 770.