I. A arrendatária que, em resposta à comunicação do senhorio da sua intenção de fazer transitar o arrendamento para o NRAU, atualizando a renda e estipulando um prazo de duração do contrato de 5 anos, invoca a qualidade de “microentidade” sem, todavia, juntar documento comprovativo dessa condição, só o fazendo mais tarde, não fica impedida de beneficiar do regime previsto nos arts. 51.º, n.º 4, e 54.º, do NRAU.
II. Perante a invocação, pela arrendatária, da referida condição de “microentidade”, e sua comprovação, e na ausência de acordo das partes, não fica o arrendamento submetido ao NRAU.
III. Não pode falar-se em abuso do direito – venire contra factum proprium - por parte da arrendatária quando o senhorio não podia legitimamente confiar no acordo daquela para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, pois esta invocou e provou a sua qualidade de “microentidade” com vista a beneficiar do respetivo regime de transição.
IV. O período de transição de cinco anos para o NRAU, previsto no art. 54.°, n.° 1, não tinha ainda decorrido ao tempo da entrada em vigor da Lei n.° 43/2017, de 14 de junho. Por força desta lei, o período de transição para o NRAU passou a ser de dez anos. Estamos perante um conflito de leis no tempo, que deve ser resolvido antes de se proceder à aplicação das normas aos factos da causa.
V. Na determinação do regime aplicável ao prazo de transição para o NRAU do contrato de arrendamento (o art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, ou antes naquela que lhe foi conferida pela Lei n.º 43/2017), importa atender ao art. 297.º do CC. No caso de vir alongar um prazo, a lei nova é aplicável aos prazos em curso, contando-se, todavia, todo o prazo decorrido desde o momento inicial. VI. Fonte de efeitos jurídicos é o decurso do prazo de cinco anos (art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012) – ou de dez (art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 43/2017) – , cumulativamente com a prévia invocação e prova da qualidade de “microentidade” por parte do arrendatário.
I - Relatório
1. AA intentou procedimento especial de despejo, junto do BNA, contra Restaurante Estrela Tercena, Lda., com sede em Barcarena, pedindo o despejo da Requerida, com base na cessação do arrendamento, por oposição à renovação do contrato de arrendamento, pelo senhorio. Pediu também o pagamento das rendas vencidas, e não pagas, em dobro, no montante de €3.900,00, correspondendo ao produto de €650,00 x 2 x 3.
2. Alega, para o efeito, que:
“O requerente é proprietário ….. do prédio sito em Av. ..., ..., tendo adquirido o mesmo por compra em 28/09/1987, conforme certidão do Registo Predial, que se junta como Doc. 1.
Essa mesma fracção autónoma havia sido objecto de um contrato de arrendamento comercial datado de 01/08/1972, cuja cópia se junta como Doc. 2.
A requerida, por sua vez, é arrendatária desse mesmo andar, desde 29/06/1989, altura em que adquiriu essa posição jurídica por trespasse de substabelecimento, conforme contrato promessa e comunicação posterior de trespasse ao senhorio, cujas cópias se juntam como Docs. 3 e 4.
Em 30/04/2013 o senhorio, aqui requerente, efectuou a comunicação prevista sob o art.º 50º do NRAU, na versão vigente à data - Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto - no sentido de fazer transitar o contrato de arrendamento para o regime do NRAU, actualizando a renda para 650,00€ mensais e estipulando um termo de vigência contratual de 5 anos, conforme cópia de missiva e comprovativos de envio e de recepção, que se juntam como Doc. 5-7.
Em 29/05/2013 veio a requerida responder à citada comunicação, através de mandatário, tendo mostrado discordância do valor proposto para a nova renda devida e invocando a condição de microentidade mas tendo-o feito sem juntar qualquer documento comprovativo dessa mesma condição, conforme exigido pelo disposto no art.º 51º, nº 6 do RNAU, na versão então em vigor, conforme Doc. 8 que também se junta.
A requerida não propôs, naquela comunicação, qualquer valor alternativo ao da renda proposta para o locado e, bem assim, não se opôs à passagem do contrato de arrendamento para o regime do NRAU, tendo o mesmo, por essa razão, transitado para esse mesmo regime legal, previsto sob a Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto.
Isso mesmo foi dito, à requerida, em comunicação expedida pelo aqui requerente em 5 de Junho de 2013, conforme cópia de carta e comprovativos de envio e recepção que se juntam como Docs. 9 a 11.
Assim, a requerida passou a pagar a renda actualizada, de 650,00 € mensais (o que fez até Junho de 2018).
Em 14/07/2017, respeitando a antecedência legal exigida, o requerente manifestou a sua intenção de não proceder à renovação do contrato de arrendamento, fazendo-o cessar no fim do termo do prazo de vigência fixado na 1ª comunicação (Doc. 5), o que viria a suceder na data de 30 de Junho de 2018, conforme carta e comprovativos de envio e de recepção que se juntam como Docs. 12 a 14. Em alternativa, propôs o requerente, a celebração de novo contrato de arrendamento, a prazo certo, com uma renda mensal de 850,00 €.
A esta comunicação não ofereceu a requerida qualquer resposta.
Em 11/06/2018 foi enviada nova comunicação à requerida - conforme Docs. 15 a 17, que se juntam -, solicitando que fosse por esta indicado se aceitava o novo contrato de arrendamento nos moldes propostos ou, caso contrário, se entregava o imóvel livre de pessoas e bens no dia 30 de Junho.
Posteriormente foram encetadas algumas negociações, entre mandatários do requerente da requerida, mas que não culminaram em qualquer acordo.
A requerida não assinou novo contrato de arrendamento e também não entregou as chaves do imóvel, livre de pessoas e bens, na data de 30/06/2018, mantendo-se, à data da entrada do presente requerimento, em mora (desde dia 01/07/2018) e a ocupar o mesmo sem ter título ou legitimidade para tal, dado o contrato de arrendamento ter caducado em 30/06/2018.
Pelo que, a requerida deve, ao requerente, o montante correspondente ao dobro do valor mensal da renda estipulada no contrato de arrendamento, pelo período em que decorreu (e decorre) a ocupação indevida do imóvel, nos termos do disposto no art.º 1045º, nº 2 do Código Civil, ou seja, à presente data, 3 meses.
Assim, sendo o valor mensal da renda devida, durante a vigência do contrato de arrendamento, 650,00 €, a requerida deve, na presente data, ao requerente, o montante total de 3.900,00 €, sem prejuízo das restantes prestações que entretanto se venham a vencer até entrega efectiva das chaves do imóvel, livre de pessoas e bens, nos termos do citado preceito do Código Civil.”
3. Notificada, a Requerida, deduziu oposição em sede do PED, invocando:
- a exceção da ineficácia da comunicação respeitante à transição para o novo regime do arrendamento urbano – NRAU -, por ausência de junção de cópia da caderneta predial, como o impõe o art. 50.º, al. c), do NRAU;
- a impugnação dos factos, alegando que respondeu à carta do senhorio, a 29 de maio de 2013, opondo-se ao valor da renda, tipo e duração do contrato e mencionando tratar-se de uma microempresa, nos termos do art. 51.º, n.º 4, al. a), do NRAU (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto;
– que a 5 de junho de 2013, o Requerente veio responder conforme Doc. 9 a 11 do requerimento inicial, expondo que pelo facto de a Requerida não ter juntado prova da sua qualidade de microempresa, o valor da renda se considerava aceite, bem como o tipo e a duração do contrato;
- que, a 20 de junho de 2013, a Requerida interpelou o Requerente no sentido de manifestar novamente a sua discordância do valor da renda proposto e da duração do contrato, invocando, mais uma vez, a sua qualidade de microempresa, nos termos do art. 51.º, n.º 4, al. a), do NRAU. Juntou e enviou, nesse momento, prova do alegado. Fez também uma contraproposta de renda no montante de €350;
– que o Requerente não lhe respondeu dentro do prazo de 30 dias que a lei lhe concede, nos termos do art. 33.º, n.º 1, ex vi do art. 52.º do NRAU, tendo antes solicitado, a 10 de outubro de 2013 o pagamento do valor de €650 por ele inicialmente proposto – cf. Doc. 3 que juntou;
– que a Requerida, embora nunca o haja aceitado, pagou mensalmente, de forma pontual, o montante unilateralmente fixado contra a sua vontade;
– que, a 17 de julho de 2017, o Requerente enviou uma missiva no sentido da oposição à renovação do contrato de arrendamento ou , alternativamente, a celebração de um novo contrato de arrendamento, cujo valor mensal da renda seria de €850;
- que, a 11 de junho de 2018, o Requerente enviou nova missiva à Requerida procurando saber a sua posição sobre a proposta – cf. Docs. 15 a 17 do requerimento inicial. No caso de a Requerida não aceitar a proposta, teria de deixar o locado até ao 30 de junho de 2018;
– que, a 9 de julho de 2018, a Requerida, através da sua Mandatária, respondeu ao Requerente, chamando a atenção não só para a ineficácia da primeira comunicação do Requerente, mas também para a aceitação tácita pelo Requerente do montante mensal de €350 proposto pela Requerida. Pois que, como o Requerente não respondeu à missiva da Requerida de 20 de junho de 2012 dentro do prazo legalmente estabelecido (30 dias), aceitou a invocação da qualidade de microempresa da Requerida assim como o valor da renda por si proposto;
– que só respondeu a 10 de outubro de 2013, a peticionar os montantes em atraso; de acordo com o art. 27.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, os contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL n.º 257/95, de 30 de setembro, estão sujeitos ao regime transitório legalmente previsto, onde se enquadra o presente contrato;
- que a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, concede, no art. 51.º, n.º 1, o direito de resposta, dentro de 30 dias subsequentes à receção da comunicação pelo senhorio ao arrendatário;
- que a Requerida observou o prazo legalmente estabelecido para o envio de missiva, em resposta, a 29 de maio de 2013; apesar de a oposição da Requerida não ser acompanhada da contraproposta de novo valor da renda, tal não significa a sua aceitação; a oposição do arrendatário ao valor proposto pelo senhorio não acompanhada de contraproposta de novo valor de renda vale como contraproposta de manutenção do valor da renda - €350 - em vigor à data da comunicação do senhorio, nos termos dos art. 51.º, n.º 3, al. b), 33.º, n.º 2 ex vi do art. 52.º do NRAU.
- que também na mesma comunicação invocou a circunstância prevista no n.º 4, al. a), do art. 51.º, que no locado existe um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa; fez acompanhar a sua resposta de documento comprovativo da mesma, nos termos do n.º 5 do art. 51.º do NRAU.
- que a Requerida é uma microempresa; que se encontram reunidos, conforme se encontravam à época, os requisitos previstos no art. 51.º, nº 5, do NRAU – pelo que o contrato apenas se deverá considerar sujeito ao NRAU findos os 10 anos estabelecidos por lei, a contar da iniciativa do Requerente;
- que o facto de a Requerida, aquando da sua resposta de 29 de maio de 2013, e apesar da invocação da circunstância supramencionada, não ter juntado à comunicação os documentos que comprovavam a sua situação de microempresa, não significa, que o contrato de arrendamento não habitacional fique, sem mais, imediatamente sujeito ao NRAU; tanto mais que, aquando da comunicação subsequente de 20 de junho de 2013, a Requerida juntou os respetivos documentos – cf. Doc. 2 e 7;
- que sobre esta matéria foi proferido recentemente pelo Tribunal Constitucional um acórdão que decidiu “julgar inconstitucional da norma extraída dos artigos 30º, 31º e 32º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, na redacção dada pela Lei nº 31/12, de 14 de agosto, segundo a qual os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de excepção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da não junção, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição.” (Proc. nº. 2764/16.0, Relator Cristina Coelho, datado de 23-05-2017, disponível em www.dgsi.pt.)
- que, se assim foi decidido para o arrendamento habitacional, por maioria de razão, o mesmo raciocínio deverá ser utilizado também para o arrendamento não habitacional;
– que a cominação para a falta da remessa tempestiva dos documentos comprovativos de tal circunstância implica a aceitação, quer da renda, quer, sobretudo, do tipo e duração do contrato proposto (n.os 6 e 7 do art. 31.º ex vi do n.º 7 do art. 51.º do NRAU), é manifestamente gravosa, excessiva, desproporcional e prejudicial a Requerida, padecendo de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da proporcionalidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, concretizadores do Estado de Direito democrático;
- que as normas da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, plasmadas nos arts. 54.º, n.os 1 e 5, 31.º, n.os 6 e 7, ex vi do art. 51.º, n.º 7, do NRAU, violam frontalmente direitos e princípios constitucionalmente protegidos, nomeadamente o princípio da igualdade perante a Lei, estatuído no n.º 1 do art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;
- que é intoleravelmente desequilibrada a solução legal de valorizar o silêncio do arrendatário, atribuindo-lhe o valor de aceitação, por corresponder a solução manifestamente prejudicial;
- que violam, ainda, os princípios da confiança legítima e da proporcionalidade, próprios do Estado de Direito, acolhidos nos arts. 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP;
- que, por conseguinte, deverá ser declarada a inconstitucionalidade das normas contidas nos arts. 54.º, n.osº 1 e 5, art. 31.º, n.os 6 e7, ex vi do art. 51.º, n.º 7, do NRAU, quando interpretadas no sentido acolhido de que a falta de resposta do arrendatário, no prazo legal, à iniciativa de transição para o NRAU, faz precludir o direito de esta se fazer valer da circunstância de ser uma microempresa, quanto tal circunstância venha a ser, efetivamente, por este demonstrada;
- que na sua missiva de 20 de junho de 2013, a Requerida contrapropôs o montante de €350 como valor para a nova renda. – cf. Doc. 4.
- que o Requerente nunca respondeu à referida missiva, muito menos dentro do prazo de 30 dias que a Lei lhe confere;
- que a falta de resposta do Requerente, no prazo de 30 dias contados da receção da contraproposta do valor da renda apresentada pela Requerida, vale como aceitação desse valor, bem como da duração do contrato;
- que, assim, o Requerente aceitou a circunstância alegada, e provada, pela Requerida. Ou seja, de acordo com o coeficiente publicado em Aviso no Diário da República até 30 de outubro de cada ano. Pelo que o contrato de arrendamento não habitacional ficou, desse modo, sujeito ao regime transitório previsto nos arts. 50.º e ss. do NRAU, nos termos do art. 6.º;
- nestes moldes, o prazo continua a contar, pelo que, o período de transição do contrato não habitacional decorrerá a 28 de maio de 2023;
- que, mesmo que se tenha como marco a segunda missiva enviada à Requerida, o período de transição decorrerá a 19 de junho de 2023;
- que, ao invés do prazo previsto de 25 de junho de 2018, foi agora o prazo alargado para 25 de junho de 2023. Apesar da entrada em vigor do NRAU, o contrato continuou a estar sujeito ao regime dos contratos de duração indeterminada, tal como resulta do art. 26.º, n.º 4, ex vi do art. 28.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas, assim como do Regime do Arrendamento Urbano, previsto no DL n.º 321/90, de 10 de outubro. Consequentemente, o contrato em apreço está sujeito ao principio da renovação obrigatória, conforme os arts. 5.º, n.º 1, e 68.º, do RAU;
- que o Regime do Arrendamento Urbano, nos arts. 68.º, n.º 2, e 69.º, manteve o tipo vinculístico previsto para os arrendamentos urbanos anteriores ao seu início de vigência e que perduravam aquando da sua entrada em vigor;
- que, deste modo, os contratos anteriores a 15 de outubro de 1990 passaram a ser submetidos ao regime dos contratos de duração indeterminada, pelo que o respetivo modo de cessação, por parte dos senhorios, é a denúncia fundamentada e não a oposição à renovação;
- que a denúncia terá sempre que ser motivada, de acordo com o art. 1101.º, als. a) e b), do CC, já que se impede, nos contratos anteriores a outubro de 1995 e cuja transição ainda não operou, o recurso à al. c) do mesmo preceito, conforme o art. 28.º, n.º 2, do NRAU;
- que, nestes termos, admitir que o senhorio possa opor-se à renovação é absolutamente destituído de fundamento legal;
- que, na sua missiva de 20 de junho de 2013, a Reconvinte contrapropôs o montante de €350 como valor para a nova renda, nos termos do art. 51.º, n.º 3, al. b), do NRAU – cf. Doc. 4;
- que o Reconvindo nunca respondeu à referida missiva no prazo legalmente previsto de 30 dias, conforme o art. 33.º, n.º 1, ex vi do art. 52.º do NRAU;
- que a falta de resposta do Reconvindo, no prazo de 30 dias contados da receção da contraproposta do valor da renda apresentada pela Reconvinte, vale como aceitação desse valor, bem como da duração do contrato, nos termos do art. 33.º, n.º 3, ex vi do art. 52º do NRAU.
- assim, o Reconvindo aceitou o valor proposto pela Reconvinda, no montante de €350;
-que, posteriormente, e findo aquele prazo, a 10 de outubro de 2013, veio solicitar o pagamento do valor por ele inicialmente proposto, ou seja, €650. – cf. Doc. 2;
- que a Reconvinte nunca aceitou mas pagou, mensalmente, de forma pontual, o montante unilateralmente fixado contra a sua vontade, única e exclusivamente movida pelo receio de que, a qualquer momento, o Reconvindo viesse, como no presente caso, mover-lhe uma ação de despejo, pelo não pagamento de rendas;
– que, a Reconvinte pagou, desde 8 de setembro de 2013 até ao presente, o montante de €487,70/mês, a título de rendas, conforme documentos anexados;
- que ao Reconvindo foi pago, e por este recebido, a título indevido, e sem fundamento, o montante de €137,50 mensalmente liquidado, acrescido ao montante que, efetivamente, ficou acordado entre as partes, ou seja, os €350/mês;
- que a Reconvinte pagou, até à presente data, durante 67 meses, o montante mensal indevido de €137,50, o que perfaz o valor global de €9.212,50, até à presente data, que o Reconvindo aceitou indevidamente e sem qualquer fundamento.
4. O Autor respondeu à exceção e ao pedido reconvencional, nos seguintes termos:
- o Autor respondeu nos termos da carta que constitui Doc. 9 junto à p.i. Nesta carta, fez notar a circunstância de a Ré não ter feito prova da sua qualidade de microentidade, o que, nos termos das normas legais aplicáveis e ali indicadas, implica não poder beneficiar de tal regime;
- a esta comunicação veio a Ré a responder, por carta de 20 de Junho de 2013, novamente através de mandatário, cuja cópia foi junta à oposição como Doc. 2, a qual, por não ter a menor relevância jurídica, não foi considerada pelo Autor;
- persistindo a Ré em não pagar o valor atualizado da renda, vencida entre agosto de 2013 e outubro de 2013, o Autor remeteu-lhe a carta junta à oposição como Doc. 3;
- desde essa data até uunho de 2018, a Ré sempre pagou o valor da renda atualizado nos termos da carta que constitui Doc. 5 junto à p.i.;
- sob o art. 51.º da sua oposição, a Ré refere-se a uma carta datada de 29 de maio de 2013 e remete para o Doc. 1 por si junto. O Doc. 1 junto à oposição é uma certidão comercial e, da análise dos documentos juntos à oposição, não se vislumbra a junção de qualquer carta datada de 29 de maio de 2013;
- deduz-se que Ré pretende referir-se à carta junta à p.i. como Doc. 8, atenta a data do documento indicada no referido art. 51.º;
- o Autor anexou à carta cuja cópia constitui Doc. 5 junto à p.i. a caderneta predial urbana do imóvel;
- sendo verdade que o Autor não juntou à sua p.i. a cópia da referida caderneta predial, como a Ré refere sob os arts. 8.º e 10.º da sua oposição, daí não resulta que o Autor não a tenha juntado à carta enviada à Ré, nem tão pouco que a mesma “não exista”, outrossim, foi entendido pelo Autor que tal junção não se justificava;
- face ao ora alegado pela Ré, junta-se ao presente articulado, como Doc. 1, cópia da caderneta enviada à Ré, da leitura da qual resulta que a mesma foi emitida a dia 29 de abril de 2013;
- a comunicação efetuada pelo Autor à Ré, da oposição à renovação do contrato de arrendamento, ocorreu mais de um ano antes. Concretamente, foi efetuada por carta datada de 17 de julho de 2017, expedida a 14 de Julho de 2017, tendo sido rececionada pela Ré, conforme aviso de receção junto à p.i. como Doc. 14;
- em 20 de junho de 2013, data da carta invocada pela Ré, o valor da renda mensal já se encontrava fixado em 650,00 €, por força da comunicação efetuada pelo Autor à Ré, com data de 30 de abril de 2013, à qual a Ré não deduziu oposição válida;
- a Ré pagou durante 5 anos o valor da renda atualizado e, apenas em junho de 2018, quando confrontada com a entrega do locado, por se ter verificado a caducidade do contrato de arrendamento, é que se “lembra” que, afinal, o valor da renda devido não é o que pagou.
5. Foi admitido o pedido reconvencional, fixado o valor da ação e designada data para a inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, em sede de audiência de julgamento, a qual se realizou, com observância do legal formalismo, conforme da respetiva ata consta, com gravação em suporte digital dos depoimentos, de parte e testemunhas, prestados em sede de julgamento.
6. A 15 de outubro de 2015, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu o seguinte:
“Pelo supra exposto, decide-se, julgando a presente acção parcialmente procedente, porque provada:
a) Declarar a caducidade, operada a 30.6.2018, do contrato de arrendamento, celebrado entre as partes, transitado para o regime do NRAU, com início a 1.7.2013;
b) Condenar a Ré a despejar o locado livre de pessoas e bens, ao Autor, c) Condenar a Ré ao pagamento da indemnização devida pela ocupação do locado, na quantia de €1.950,00, quanto aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2018, e no valor mensal de €1.300,00, desde Outubro de 2018 e até à data da efectiva entrega do locado ao Autor, livre de pessoas e bens, no demais improcedendo o peticionado,
d) Julgar improcedente, por não provado, o pedido reconvencional;
e) Julgar improcedente, por não provado, o pedido de condenação da Ré, como litigante de má-fé.
Custas pela Ré e Autor, na proporção do decaimento, verificando-se quanto ao Autor decaimento na quantia de €1.950,00.
Registe e notifique”.
7. Não conformada, a Ré interpôs recurso de apelação.
8. Por acórdão de 9 de julho de 2020, o Tribunal da Relação ….... decidiu o seguinte:
“a) – conceder provimento ao recurso de apelação, revogando a sentença recorrida e julgar improcedente a acção;
b) – condenar o recorrido nas custas em ambas as instâncias.”
9. O Autor AA, não se conformando com a decisão, interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação ……, apresentando as seguintes Conclusões:
“I - Em 30/04/2013 o recorrente, efectuou a comunicação à recorrida, pela mesma recebida a 02/05/2013, prevista sob o artº 50º do NRAU, no sentido de fazer transitar o contrato de arrendamento para o regime do NRAU, actualizando a renda para o valor de 650,00 € mensais e estipulando um termo de vigência contratual de 5 anos.
II - Em 29/05/2013 a recorrida respondeu à citada comunicação, através de mandatário, tendo mostrado discordância do valor proposto para a nova renda devida e invocado a condição de microentidade, mas tendo-o feito sem juntar qualquer documento
comprovativo dessa mesma condição.
III - Em comunicação expedida pelo recorrente à recorrida em 5 de Junho de 2013, e com base na ausência de comprovação da qualidade de micro empresa, o recorrente declarou que o contrato transitou para o regime legal previsto sob a Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, sendo o arrendamento pelo prazo de cinco anos e mediante o pagamento da renda de 650,00 €, a iniciar o pagamento em01/07/2013.
IV - “1 - O prazo para a resposta do arrendatário é de 30 dias a contar da receção da comunicação prevista no artigo anterior.”
Ora,
V - Ficou provado nos autos que a recorrida não apresentou a sua resposta acompanhada de documento que comprovasse a sua alegada condição de micro entidade.
Pelo que,
VI - A consequência é clara e resulta expressamente da Lei:
“6 - O arrendatário que invoque uma das circunstâncias previstas no n.º 4 faz acompanhar a sua resposta de documento comprovativo da mesma, sob pena de não poder prevalecer-se da referida circunstância.”
VII – Nos presentes autos estão em causa factos ocorridos em Abril e Maio de 2013, pelo que nos mesmos não pode ser invocada jurisprudência fixada pelo Tribunal Constitucional, de 14 de Junho de 2016, sob pena de ser posta em causa a segurança jurídica.
VIII - Analogicamente invoca-se aqui o disposto sob o artº 12º, nº 1 do Código Civil, “ A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina regular.”
Acresce que,
IX - A recorrida aceitou o valor da renda proposto pelo recorrente através da carta de 30 de Abril de 2013, de 650,00 € mensais, tendo pago tal valor de renda a partir de Julho de 2013, tendo efectuado tal pagamento até 5 de Fevereiro 2019.
Donde,
X – Por força do disposto sob o nº 6, do artº 31º do NRAU, na redacção em vigor à data dos factos, tendo a recorrida aceite o valor da renda proposto - facto que decorre claramente da circunstância de o ter pago! - o contrato sempre ficaria submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao da recepção da resposta.
Acresce ainda que,
XI - Quando a recorrida recebeu a comunicação do recorrente de oposição à renovação do contrato de arrendamento, de 17/07/2017, não ofereceu à mesma qualquer resposta, de onde decorre, com manifesta certeza, que a recorrente tinha plena consciência de que o contrato havia transitado para o regime do NRAU e, por isso, iria efectivamente caducar com aquela oposição à renovação.
Donde,
XII - O contrato de arrendamento em causa nos autos, que transitou para o regime do NRAU em 1 de Julho de 2013, caducou em 30 de Junho de 2018.
XIII - A recorrida tem que entregar o locado livre de pessoas e bens, ao recorrente.
XIV - A recorrida tem que pagar à recorrente indemnização no valor de 1 950,00 €, referente aos meses de Julho a Setembro de 2018, e a partir de Outubro de 2018 e até entrega do locado ao recorrente, a quantia mensal de 1 300,00 €.
Donde,
XV – O douto acórdão recorrendo viola o disposto, nomeadamente, nos artºs 50º, 51º e 54º todos do NRAU e artºs 12º, nº 1 e 297º, nº 2, ambos do Código Civil.
Termos em que, o presente recurso deve ser julgado procedente e provado, sendo, consequentemente, o douto acórdão recorrendo revogado in totum, confirmando-se, outrossim, a douta sentença proferida em 1ª Instância, nos seus exactos termos, por assim ser de Justiça!”
10. A Ré/Recorrida não apresentou contra-alegações.
II – Questões a decidir
Atendendo às conclusões do recurso que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, está em causa a questão da caducidade do contrato de arrendamento dos autos.
III – Fundamentação
A) De Facto
Foram dados como provados os seguintes factos:
“1. O requerente é proprietário ...... do prédio sito em Av. ..., ..., tendo adquirido o mesmo por compra em 28/09/1987, conforme certidão do Registo Predial junta aos autos.
2. Essa mesma fracção autónoma havia sido objecto de um contrato de arrendamento comercial datado de 01/08/1972.
3. A requerida, por sua vez, é arrendatária desse mesmo andar, desde 29/06/1989, altura em que adquiriu essa posição jurídica por trespasse de (sub)estabelecimento.
4. A requerida, no ano de 2013, e até Junho de 2013, pagava a renda de €154,02.
5. Em 30/04/2013 o senhorio, aqui requerente, efectuou a comunicação à Ré, pela mesma recebida a 2.5.2013, prevista sob o art.º 50º do NRAU, no sentido de fazer transitar o contrato de arrendamento para o regime do NRAU, actualizando a renda para 650,00€ mensais e estipulando um termo de vigência contratual de 5 anos.
6. Em 29/05/2013 veio a requerida responder à citada comunicação, através de mandatário, tendo mostrado discordância do valor proposto para a nova renda devida e invocando a condição de microentidade, mas tendo-o feito sem juntar qualquer documento comprovativo dessa mesma condição.
7. Em comunicação expedida pelo aqui requerente à requerida em 5 de Junho de 2013, e com base na ausência de comprovação da qualidade de micro empresa, o Autor declara que o contrato transitou para o regime legal, previsto sob a Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, sendo ora o arrendamento por cinco anos e mediante o pagamento da renda de €650,00 (cópia de carta e comprovativos de envio e recepção juntos como Docs. 9 a 11), a iniciar o pagamento em1.7.2013.
8. A Ré passou a pagar a renda de 650,00 € mensais, a partir de julho de 2013.
9. Em 14/07/2017, o requerente manifestou a sua intenção de não proceder à renovação do contrato de arrendamento, fazendo-o cessar no fim do termo do prazo de vigência fixado na 1ª comunicação, ou seja, 30 de Junho de 2018 – carta e comprovativos de envio e de recepção que se juntam como Docs. 12 a 14.
10. Em alternativa, propôs o requerente, a celebração de novo contrato de arrendamento, a prazo certo, com uma renda mensal de 850,00 €.
11. A esta comunicação não ofereceu a requerida qualquer resposta.
12. Em 11/06/2018 foi enviada nova comunicação à requerida - Docs. 15 a 17 - solicitando que fosse por esta indicado se aceitava o novo contrato de arrendamento nos moldes propostos ou, caso contrário, se entregava o imóvel livre de pessoas e bens no dia 30 de Junho.
13. Posteriormente foram encetadas algumas negociações, entre mandatários do requerente da requerida, mas que não culminaram em qualquer acordo.
14. A requerida não assinou novo contrato de arrendamento e também não entregou as chaves do imóvel, livre de pessoas e bens, na data de30/06/2018.
15. A carta 30.4.2013 foi acompanhada da cópia da caderneta predial urbana do imóvel.
16. A requerido exerce atividade, no locado, de café e pastelaria.
17. Tendo a firma o objeto social para comércio e indústria de restaurante e pastelaria.
18. A requerida tem quatro postos de trabalho directos, para além do sócio gerente.
19. No dia 29 de maio de 2013, a Requerida, através do seu Mandatário, respondeu à comunicação supramencionada, opondo-se ao valor da renda proposto, bem como ao tipo e duração do contrato, conforme Doc. 8 do requerimento inicial.
20. Invocou, ainda, o regime especial das microempresas, nos termos do artigo 51º, nº 4, alínea a) do NRAU, na sua redação dada pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto.
21. No dia 05-06-2013, o Requerente veio responder, referindo que pelo facto da Requerida não ter juntado prova(da) da sua qualidade de microempresa, o valor da renda se considerava aceite, bem como o tipo e a duração do contrato.
22. No dia 20-06-2013 a Requerida interpelou o Requerente, referindo, novamente, que discordava do valor da renda proposto, bem como da duração do contrato.
23. Invocando, mais uma vez, a sua qualidade de microempresa, nos termos do artigo 51º, nº 4, alínea a) do NRAU, vindo, nesse momento, juntar e enviar o modelo 22 do IRC – fls 43 a 45 dos autos, aqui dados por reproduzidos do qual decorre para o ano de 2013 um total de rendimentos do período de €134.797,17 e de volume dos negócios de €133.415,40 e um prejuízo de €4.922,23.
24. E fazendo uma contraproposta ao valor inicialmente proposto pelo Requerente, no montante de €350,00.
25. O Requerente não respondeu a esta carta, vindo, no dia 10-10-2013, a solicitar o pagamento do valor por ele inicialmente proposto, ou seja,€650,00.
26. Que a Requerida pagou, mensalmente, desde Julho de2018 (2013).
27. No dia 17-07-2017 o Requerente enviou uma missiva cujo conteúdo era a oposição à renovação do contrato de arrendamento - Doc. 12 a 14 do requerimento inicial.
28. Na mesma propôs, em alternativa, a celebração de um novo contrato de arrendamento, cujo valor mensal da renda seria de €850,00.
29. No dia 11-06-2018, o Requerente enviou nova missiva à Requerida, a indagar sobre a sua posição sobre a proposta - Docs. 15 a 17 do requerimento inicial.
30. Aludindo, ainda, que caso a Requerida não aceitasse a mesma, teria que deixar o locado até ao dia 30-06-2018.
31. No dia 9-07-2018, a Requerida, através da sua Mandatária, respondeu ao Requerente, aludindo não só para a ineficácia da primeira comunicação do Requerente, mas, igualmente, para a aceitação tácita pelo Requerente do montante de €350,00 mensais propostos pela Requerida, bem como da circunstância invocada. - Doc. 4 a 6 juntos com a oposição.
32. A Ré desde Julho de 2013 e até à data da apresentação da oposição, 5.2.2019, liquidou o montante de €487,70/mês, a título de pagamento de rendas.
33. Desde o ano de 2013 e até à data presente a Ré mudou de Advogado no acompanhamento do contrato de arrendamento e ao Advogado do período de 2013 entregava a documentação que ía recebendo do Autor – facto instrumental.”
B) De Direito
1. Está em causa um contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, celebrado antes da entrada em vigor do RAU de 1990 (DL n.º 321/90, de 15 de outubro) e do DL n.º 257/95, de 30 de setembro (aplicável aos contratos não habitacionais). A Ré é, com efeito, desde 28 de setembro de 1989, arrendatária do imóvel constituído por ... do prédio urbano sito na Avenida ..., n.º ..., em ..., freguesia ..., concelho ..., em virtude do contrato de trespasse do estabelecimento comercial celebrado a 16 de junho de 1989. O contrato de arrendamento dos autos havia sido celebrado a 1 de agosto de 1972. O Autor assume a posição de senhorio por haver adquirido, por compra e venda, o referido imóvel a 28 de setembro de 1989. O imóvel destina-se ao comércio de café, restaurante e cervejaria.
2. A Lei n.º 6/2006, com início de vigência a 28 de junho de 2006, aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (doravante NRAU), revogou o regime anterior (art. 60.º) e consagrou um processo de transição da disciplina legal aplicável aos contratos de arrendamento anteriormente celebrados para o NRAU, designadamente, no que respeita aos prazos de duração dos contratos e à atualização das rendas.
3. Verificou-se, logo em 2006, com a aprovação do NRAU, a existência de um conjunto de arrendatários merecedor de especial proteção. Isso mesmo sucedia quando, operando no locado um estabelecimento comercial aberto ao público, o arrendatário fosse uma pessoa singular ou uma microempresa, entendendo a lei como microempresa aquela “que tem menos de 10 trabalhadores e cujos volume de negócios e balanço total não ultrapassam (euro) 2 000 000 cada.”
4. Ulteriormente, a Lei n.º 31/2012 (que entrou em vigor a 12 de dezembro de 2012, nos termos do art. 15.º), no art. 4.º, modificou a Lei n.º 6/2006, introduzindo um regime transitório caracterizado por mecanismos de proteção para certas categorias de arrendatários, permitindo a determinadas empresas a invocação da qualidade de “microentidade”.
5. Na verdade, segundo o art. 51.º, n.° 4, al. a), do NRAU, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, o arrendatário, querendo opor-se à pretensão do senhorio de transição para o NRAU e de atualização da renda, podia invocar "que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microentidade”. De acordo com o n.º 5 do mesmo preceito, “Para efeitos da presente lei, «microentidade» é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes: a) Total do balanço: (euro) 500 000; b) Volume de negócios líquido: (euro) 500 000; c) Número médio de empregados durante o exercício: cinco.”
6. Este conceito de “microentidade” era substancialmente mais restrito do que aquele consagrado na versão originária do NRAU de “microempresa”, uma vez que passaram a ser consideradas microentidades apenas as que tivessem menos de 5 empregados (anteriormente eram 10) e que faturassem somente até € 500.000 anuais ou que tivessem um valor de balanço equivalente (anteriormente era de € 2.000.000).
7. Mais tarde, a Lei n.º 79/2014, que entrou em vigor a 18 de janeiro de 2015, no art. 3.º, alterou o NRAU, dilatando o universo dos arrendatários comerciais sujeitos a um regime especial de proteção e prorrogando o período transitório nesses arrendamentos, dispondo, desde logo, no art. 6.º, a título de disposição transitória formal e material, que: “1 - As alterações introduzidas à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, pela presente lei aplicam-se aos procedimentos de transição para o NRAU, previstos nos artigos 30.º e seguintes e 50.º e seguintes, que se encontrem pendentes na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo dos direitos e obrigações decorrentes dos atos já praticados nesses procedimentos e do disposto nos números seguintes. (…) 3 - Nos contratos de arrendamento não habitacional cuja renda já tenha sido atualizada nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo 33.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, aplicável por força do disposto no artigo 52.º do mesmo diploma, o arrendatário pode invocar as circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo 51.º, no prazo de 30 dias a contar da entrada em vigor da presente lei, desde que comprove a realização de investimentos no locado ou em equipamentos para ele especificamente vocacionados, efetuados nos três anos anteriores à data da entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, não podendo o senhorio opor-se, nestas situações, a uma renovação do contrato por um período de três anos, sem prejuízo da atualização da renda por aplicação dos coeficientes de atualização anual respetivos, definidos nos termos do artigo 24.º. (…)”.
8. Na Lei n.º 79/2014, o legislador modificou a redação do art. 51.º, n.º 4, al. a), e n.º 5 do NRAU, que passou a estabelecer que “4 - Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54.º, invocar uma das seguintes circunstâncias: a) Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa; (…) 5 - Para efeitos da presente lei, «microempresa» é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes: a) Total do balanço: (euro) 2 000 000; b) Volume de negócios líquido: (euro) 2 000 000; c) Número médio de empregados durante o exercício: 10”.
9. Assim, o conceito de “microentidade” foi substituído, pela Lei n.º 79/2014, por aquele de “microempresa”, com o aumento significativo do valor dos limites anteriormente estabelecidos na Lei n.º 31/2012.
10. Segundo o art. 59.°, o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, assim como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias previstas nos arts. 26.° a 58.°.
11. A atualização da renda e a transição dos contratos de arrendamento como aquele sub judice para o NRAU é regulada pelos arts. 50.° e ss. da Lei n.º 6/2006 (arts. 27.° e 28.°): dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário (art. 50.°), cabendo ao arrendatário responder ao senhorio no prazo de 30 dias (art. 51.°).
12. O regime previsto nos arts. 51.° a 55.° depende da comunicação do senhorio e da resposta do arrendatário.
13. O legislador estabelece, no art. 27.°, na redação que lhe foi dada Lei n.° 31/2012, de 14 de agosto, que "As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n° 257/95, de 30 de setembro." Por seu turno, conforme o art. 28.º, “1 - Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26°, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.°a 37.°e 50.°a 54. °. 2 - Aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101° do Código Civil. (...). "
14. No que respeita ao arrendamento para fim não habitacional, de acordo com o art. 50.°, "A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando: a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos; b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38. ° e seguintes do CIMI, constante da caderneta predial urbana; c) Cópia da caderneta predial urbana; d) Que o prazo de resposta é de 30 dias; e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.° 3 do artigo seguinte; f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.° 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no n.°6 do mesmo artigo; g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.° 4 do artigo seguinte.''
15. Segundo o art. 51.°, "1 - O prazo para a resposta do arrendatário é de 30 dias a contar da receção da comunicação prevista no artigo anterior. 2 - Quando termine em dias diferentes o prazo de vários sujeitos, a resposta pode ser oferecida até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar. 3- O arrendatário, na sua resposta, pode: a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio; b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 52. °; c) Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-se quanto ao tipo ou à duração do contrato propostos pelo senhorio; d) Denunciar o contrato de arrendamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 53. ° 4 - Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54. ° invocar uma das seguintes circunstâncias: a) Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma micro entidade; b) Que tem a sua sede no locado uma associação privada sem fins lucrativos, regularmente constituída, que se dedica à atividade cultural, recreativa ou desportiva não profissional, e declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal; c) Que o locado funciona como casa fruída por república de estudantes, nos termos previstos na Lei n. ° 2/82, de 15 de janeiro, alterada pela Lei n. ° 12/85, de 20 de junho. 5 - Para efeitos da presente lei, «microentidade» é a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes: a) Total do balanço: (euro) 500 000; b) Volume de negócios líquido: (euro) 500 000; c) Número médio de empregados durante o exercício: cinco. 6 - O arrendatário que invoque uma das circunstâncias previstas no n.° 4 faz acompanhar a sua resposta de documento comprovativo da mesma, sob pena de não poder prevalecer-se da referida circunstância. 7 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.°s 6 e 7 do artigo 31. °".
16. Em conformidade com o art. 54.°, "1 - Caso o arrendatário invoque e comprove uma das circunstâncias previstas no n.° 4 do artigo 51.°, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da, resposta, do arrendatário nos termos do n.° 4 do artigo 51 °. 2 - No período de cinco anos referido no número anterior, o valor atualizado da renda é determinado de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.°2 do artigo 35.°. 3 - Se o valor da renda apurado nos termos do número anterior for inferior ao valor que resultaria da atualização anual prevista no n.° 1 do artigo 24. °, é este o aplicável. 4 - Quando for atualizada, a renda é devida no 1. ° dia do 2. ° mês seguinte ao da receção, pelo arrendatário, da comunicação com o respetivo valor. 5 - No mês correspondente àquele em que foi feita a invocação de uma das circunstâncias previstas no n.° 4 do artigo 51.° e pela mesma forma, o arrendatário faz prova anual da manutenção daquela circunstância perante o senhorio, sob pena de não poder prevalecer-se da mesma. 6 - Findo o período de cinco anos referido no n.° 1, o senhorio pode promover a transição do contrato para o NRAU, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 50.° e seguintes, com as seguintes especificidades: a) O arrendatário não pode invocar novamente qualquer das circunstâncias previstas no n.°4 do artigo 51.°; b) No silêncio ou na falta de acordo das parles acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos. "
17. No caso em apreço, verifica-se que, a 30 de abril de 2013, o Autor/Recorrente comunicou à Ré/Recorrida a intenção de fazer transitar o contrato de arrendamento para o NRAU, atualizando a renda para € 650,00 mensais e estipulando um prazo de duração do contrato de cinco anos.
18. Recebida esta comunicação a 2 de maio de 2013, a Ré/Recorrida respondeu 29 de maio do mesmo ano, através de mandatário, discordando do valor proposto para a nova renda, assim como da alteração à duração do contrato, e invocando a condição de ser uma microentidade.
19. Respondeu, assim, a Ré/Recorrida dentro do prazo de 30 dias – art.51.°, n.° l - e invocou ser uma microentidade – art. 51.º, n.º 4, al. a).
20. Fê-lo, todavia, sem juntar qualquer documento comprovativo dessa mesma condição de microentidade, o que só fez a 20 de junho de 2013, na carta que remeteu ao Autor/Recorrente em que referiu, novamente, a sua discordância do valor da renda proposto e da modificação da duração do contrato, invocando, mais uma vez, a sua qualidade de microempresa. Foi neste momento que enviou o modelo 22 do IRC, do qual decorre para o ano de 2013 um total de rendimentos de € 134.797,17 e de volume dos negócios de € 133.415,40, assim como um prejuízo de € 4.922,23. Apresentou igualmente uma contraproposta ao valor inicialmente proposto como renda pelo Autor/Recorrente, no montante de € 350,00.
21. Do art. 51.° resulta que na resposta era lícito à Ré/Recorrida, enquanto arrendatária, aceitar o valor da renda proposta ou opor-se ao mesmo, assim como pronunciar-se sobre o tipo ou duração do contrato proposto, sem que tal resposta se traduza na aceitação da transição do contrato para o NRAU. Aquele preceito confere ao arrendatário uma faculdade de pronúncia sobre a comunicação do senhorio da sua intenção de fazer transitar o contrato de arrendamento para o NRAU e de atualizar a renda.
22. Por outro lado, ao invocar a qualidade de microentidade, a Ré/Recorrida exerceu a prerrogativa concedida ao arrendatário no art. 51.º, n.º 4, al. a) (“Se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 54.°, invocar uma das seguintes circunstâncias: a) Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa; ").
23. A invocação desta qualidade de microempresa tem como consequência, na falta de acordo entre as partes, a sujeição do contrato ao NRAU no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário, nos termos do art. 51.º, n.° 4 (na redação então vigente, introduzida pela Lei n.º 31/2012).
24. Findo o período de cinco anos referido no n.° 1, o senhorio pode promover a transição do contrato para o NRAU, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos arts. 50.° e ss. (art. 54.°, n.° 6).
25. É certo que a Ré/Recorrida não juntou, com a carta de resposta, qualquer documento comprovativo da qualidade de microempresa que invocou, que é exigido pelo art. 51.°, n.° 6, do NRAU. Esta norma estabelece a cominação de que não sendo junto documento comprovativo não pode o arrendatário prevalecer-se da circunstância invocada.
26. Considerando a matéria de facto apurada nos autos, as declarações de ambas as partes, nas comunicações escritas que enviaram uma à outra, não revelam a existência de um acordo de transição imediata do arrendamento para o regime do NRAU. Muito diferentemente, afigura-se claro que a Ré/Recorrida pretendeu tirar proveito da sua condição de microentidade e, assim, ver diferida por cinco anos essa transição.
27. O Autor/Recorrente, perante a resposta da Ré/Recorrida de 29 de maio de 2013, expedida a 31 de maio do mesmo ano, não exigiu esta a apresentação de documento comprovativo da sua qualidade de microentidade, nem tão pouco manifestou qualquer entendimento sobre a falta de junção desse documento.
28. "(...)No Acórdão do Tribunal Constitucional n°277/2016, publicado no D.R. n. ° 112/2016, Série II de 2016-06-14 decidiu-se: "Julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.°, 31 ° e 32° do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n. ° 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.° 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção". E pode ler-se na sua fundamentação que "In casu está em causa a aplicação do princípio da preclusão, de origem processual, à possibilidade de o arrendatário, não obstante as ter invocado oportunamente, se prevalecer de certas situações preexistentes, que têm natureza objetiva - porque verificáveis por terceiros e conhecidas das autoridades públicas - e duradoura. É o caso, nomeadamente, do seu rendimento anual bruto, da sua. idade ou da sua incapacidade: não sendo lais situações comprovadas documentalmente no momento da resposta a que se refere o artigo 31." do NRAU, o arrendatário deixa de poder beneficiar do regime substantivo associado à verificação de tais situações, impedindo ou diferindo a transição para o NRAU do seu arrendamento e limitando e condicionando a atualização do valor das rendas. A preclusão em apreço ocorre, não no quadro de um processo judicial, mas de um procedimento negocial desencadeado pelo senhorio e sem que este se encontre vinculado a advertir o arrendatário para as consequências da inobservância daquele ónus de comprovação. Por isso mesmo, devem valer aqui, ainda com mais razão, as exigências que este Tribunal tem vindo a formular a propósito do processo. Com referência ao processo civil, o Acórdão n.° 620/2013 afirmou o seguinte: «Apesar de vigorar, na. definição da tramitação do processo civil, uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, isso não significa que as soluções adotadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta, ou ainda, se de uma forma inovatória e surpreendente, face ao texto legal em vigor, são impostas às partes exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos (vide, neste sentido, Lopes do Rego, em "Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil", em "Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa", pág. 839 e seg.).» Embora o acórdão verse sobre contratos de arrendamento habitacionais, cremos que se verifica similitude de fundamentos com o caso ali tratado, uma vez que, no regime de transição para o NRA U, tanto naqueles como nos contratos para fins não habitacionais anteriores ao DL n° 257/95, de 30/09, o legislador teve o intuito inequívoco de criar mecanismos de proteção dos arrendatários, quer face à fragilidade do arrendatário habitacional (em função da idade, de incapacidade, dos rendimentos), quer do arrendatário não habitacional (em função da vulnerabilidade económica e/ou do fim visado ligado à natureza jurídica da entidade arrendatária). - neste sentido v., entre outros, Ac. R.L de 09/03/2017, de 23/05/2017, disponíveis em www.dgsi.pt. No quadro negocial estabelecido entre as partes afigura-se completamente desajustado, desproporcional ao fim visado, o efeito preclusivo atribuído pela norma do art" 51°, n° 6 do NRAU, por não ter sido junto documento comprovativo aquando da invocação da circunstância de constituir microentidade, sem que os senhorios tenham feito qualquer exigência da mesma, comunicado os efeitos que essa omissão acarretava ou deduzido oposição. A norma extraída dos arts 51°, n°s 4 e 6 e 54°, n° 5 do NRAU, na redação introduzida pela Lei n° 31/2012, de 14/08, segundo a qual o arrendatário que não envie o documento comprovativo da qualidade de microentidade fica automaticamente impedido de beneficiar da referida circunstância, sem advertência do senhorio, quer para essa necessidade quer para as consequências resultantes da omissão, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2. ° da Constituição da República Portuguesa. "[1].
29. Assim, independentemente da prolação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 277/2016, a norma retirada dos arts. 51.°, n.os 4 e 6, e 54.°, n.° 5, do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.° 31/2012, segundo a qual o arrendatário que não envie o documento comprovativo da qualidade de microentidade fica automaticamente impedido de beneficiar dessa circunstância, sem advertência do senhorio quer para essa necessidade quer para as consequências resultantes da respetiva omissão, seria sempre de considerar como não conforme à CRP por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático consagrado no art. 2.º da Lei Fundamental.
30. Com efeito, segundo o art. 204.° da CRP, nos factos submetidos a julgamento, os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados. Por isso mesmo se afasta a aplicação da norma decorrente dos arts. 51.°, n.os 4 e 6, e 54.°, n.° 5, do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.° 31/2012[2].
31. Pode dizer-se que não era lícito ao Autor/Recorrente ignorar a invocação da qualidade de microentidade por parte da Ré/Recorrida, devendo, antes, provavelmente, nas circunstâncias do caso concreto, ter-lhe solicitado a prova correspondente. Isto não significa, porém, o reconhecimento geral de um ónus ou dever jurídico do senhorio de solicitar ao arrendatário a prova da qualidade que invoca para beneficiar do diferimento da sujeição do contrato de arrendamento ao NRAU.
32. Importa, todavia, considerar que a Ré/Recorrida efetuou, ulteriormente, a prova da circunstância invocada aquando da carta enviada ao Autor/Recorrente a 20 de junho de 2013.
33. Impunha-se, pois, a adoção do regime do art. 54.°, n.º 1, do NRAU, afigurando-se irrelevante a indicação, pela Ré/Recorrida, do pagamento da renda no valor de € 350,00 mensais, pois era-lhe lícito, enquanto arrendatária, aceitar o valor da renda proposta, opor-se ao mesmo ou propor um novo valor, sem que tal resposta significasse a aceitação da transição do contrato para o NRAU, no exercício da respetiva faculdade legalmente prevista.
34. O contrato em apreço, perante a invocação, pela Ré/Recorrida, da referida circunstância, e sua comprovação, e na ausência de acordo das partes, não ficou submetido ao NRAU. Esta subordinação ficou, pois, diferida pelo prazo de cinco anos a contar da receção, pelo Autor/Recorrente, da resposta da Ré/Recorrida, nos termos do art. 51.º, n.º 4: i.e., da receção, pelo Autor/Recorrente, da carta de 29 de maio de 2013 e expedida a 31 de maio do mesmo ano, conforme o art. 54.º, n.º 1 (“Caso o arrendatário invoque e comprove uma das circunstâncias previstas no n.° 4 do artigo 51.°, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos do n.°4 do artigo 51.°").
35. A Ré/Recorrida não assinou novo contrato de arrendamento e também não entregou o imóvel, livre de pessoas e bens, a 30 de junho de 2018.
36. Dos autos decorre que o Autor/Recorrente, por carta de 10 de outubro de 2013, solicitou o pagamento do valor da renda por si inicialmente proposto: o montante de € 650,00. Está também provado que a Ré/Recorrida passou a pagar a renda mensal de € 650,00 a partir de julho de 2013.
37. Todavia, tal conduta, por si só, não pode ser entendida no sentido de exprimir a sujeição do contrato ao NRAU mediante acordo das partes. Efetivamente, resulta dos factos apurados que a Ré/Recorrida pretendeu beneficiar da sua qualidade de microentidade, tendo invocado e comprovado tal circunstância junto do Autor/Recorrente. Este, após a carta da Ré/Recorrida de 20 de junho de 2013, com a qual esta enviou a prova da sua qualidade de microempresa já anteriormente invocada, nada disse. Este comportamento afigura-se idóneo para criar legitimamente na Ré/Recorrida a convicção de que a sua invocada qualidade de microentidade havia sido aceite pelo Autor/Recorrente.
38. Não pode, por outro lado, falar-se em abuso do direito – venire contra factum proprium - por parte da Ré/Recorrida, porquanto não existe qualquer comportamento contraditório ou desacordo entre duas condutas suas. A Ré/Recorrida não adotou ulteriormente um comportamento não compatível com um factum proprium, não havendo defraudado qualquer confiança do Autor/Recorrente. Com efeito, este apenas não podia legitimamente confiar no acordo da Ré/Recorrida para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU. Esta invocou e provou a sua qualidade de microentidade com vista a beneficiar do respetivo regime de transição. O Autor/Recorrente sempre soube dessa qualidade da Ré/Recorrida e, por isso, do regime de que ela pretendia tirar proveito. Com base no factum proprium da Ré/Recorrida, consubstanciado no pagamento de €650,00 durante, aproximadamente, cinco anos, o Autor/Recorrente não podia legitimamente esperar que aquela nunca viesse exigir o respeito pela sua qualidade de microentidade para os efeitos previstos no art. 54.º, n.º 1, do NRAU.
39. Através de carta de 17 de julho de 2017 (e não de 14 de julho de 2017, certamente mencionada por manifesto lapso, conforme nota o Tribunal da Relação de Lisboa) remetida à Ré/Recorrida, o Autor/Recorrente manifestou a sua intenção de não proceder à renovação do contrato, fazendo-o cessar no termo do prazo de vigência fixado na 1.ª comunicação. Tal viria a verificar-se a 30 de junho de 2018, ou seja, após o decurso do período de cinco anos. A mesma carta informava a Ré/Recorrida de que, no caso de ter interesse na manutenção da relação jurídica de arrendamento, a renda mensal do novo contrato ascenderia ao montante de € 850,00.
40. A 11 de junho de 2018, o Autor/Recorrente enviou uma comunicação à Ré/Recorrida a solicitar que esta lhe comunicasse se aceitava o novo contrato de arrendamento nos moldes propostos ou, caso contrário, a devolução do imóvel a 30 de junho do mesmo ano, livre de pessoas e bens.
41. Tendo o contrato de arrendamento a sua submissão ao NRAU diferida pelo prazo de cinco anos a contar da receção pelo Autor/Recorrente da resposta da Ré/Recorrida nos termos art. 51.º, n° 4, i.e., da receção por aquele da carta desta de 29 de maio de 2013 mas expedida a 31 de maio do mesmo ano, o prazo de cinco anos previsto no art. 54.°, n.° 1, na redação da Lei n.° 31/2012, mostra-se decorrido, na ausência de prova da receção pelo Autor/Recorrente da resposta do arrendatário, no mínimo, a 31 de maio de 2018.
42. Todavia, este período de transição de cinco anos para o NRAU, previsto no art. 54.°, n.° 1, não tinha ainda decorrido ao tempo da entrada em vigor da Lei n.° 43/2017, de 14 de junho. Por força desta lei, o período de transição para o NRAU passou a ser de dez anos.
43. Estamos perante um conflito de leis no tempo, que deve ser resolvido antes de se proceder à aplicação das normas aos factos da causa: o contrato de arrendamento foi celebrado a 1 de agosto de 1972 e o contrato de trespasse a 16 de junho de 1989, muito antes do início de vigência da lei nova (Lei n.º 43/2017), mas prolonga-se na sua vigência. O contrato de arrendamento institui uma relação duradoura, dá origem a uma verdadeira e própria situação jurídica duradoura. Havendo sido concluído antes da vigência do RAU - consagrado no DL n.º 321/90 – e do DL n.º 257/95, é-lhe aplicável, nos termos do art. 26.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o NRAU.
44. Está em causa um problema de definição do âmbito de aplicabilidade de cada uma das leis – a antiga e a nova -, e não diretamente um problema de aplicação de normas[3].
45. Impõe-se, portanto, determinar o regime aplicável ao prazo de transição para o NRAU do contrato de arrendamento sub judice: o art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, ou antes naquela que lhe foi conferida pela Lei n.º 43/2017.
46. O art. 297.º do CC disciplina a aplicação no tempo das leis sobre prazos. No caso de vir alongar um prazo, a lei nova é aplicável aos prazos em curso, contando-se, todavia, todo o prazo decorrido desde o momento inicial. O n.º 2 daquele preceito consubstancia a aplicação direta dos critérios gerais do direito transitório: tendo o decurso global do prazo o valor de um facto constitutivo (extintivo ou modificativo) de um direito ou situação jurídica, se tal prazo se achava em curso no momento do início de vigência da lei nova, é porque tal situação jurídica ainda se não achava constituída (modificada ou extinta) neste momento. Por isso, a lei nova é competente para determinar os requisitos da constituição (modificação ou extinção) da mesma situação jurídica. Encontrando-se uma situação jurídica em curso de constituição (de modificação ou de extinção), o respetivo processo constitutivo (modificativo ou extintivo) passa a ficar imediatamente sujeito à lei nova[4].
47. Note-se que fonte de efeitos jurídicos é o decurso do prazo de cinco anos (art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012) – ou de dez (art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 43/2017) – , cumulativamente com a prévia invocação e prova da qualidade de microentidade por parte do arrendatário. Aquando do início de vigência da lei nova - Lei n.º 43/2017 - , ainda não se encontrava verificado o facto constitutivo (modificativo ou extintivo) de situações jurídicas.
48. Assim, para efeitos de determinação da lei aplicável ao prazo para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU - art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012 ou pela Lei n.º 43/2017 -, afigura-se decisivo o decurso do prazo e não apenas a data da alegação e prova, pelo arrendatário, da qualidade de microentidade. Na verdade, o facto que desencadeia a transição do contrato de arrendamento para o NRAU é também o decurso do prazo (de cinco ou de dez anos), e não somente, reitere-se, a comunicação e a prova da qualidade de microentdade do arrendatário. Logo, traduzindo-se o decurso do prazo num facto constitutivo (modificativo ou extintivo) de uma situação jurídica, afigura-se relevante saber se esse prazo ainda não se havia completado aquando do início de vigência da lei nova (15 de junho de 2017 – art. 8.º da Lei n.º 43/2017). In casu, esse prazo ainda não havia decorrido na sua totalidade.
49. Aplica-se, por conseguinte, ao caso em apreço, o art. 54.° do NRAU na redação que lhe foi dada pela Lei n.° 43/2017 ao prazo que estava a decorrer com vista à transição do arrendamento para o NRAU.
50. Ao contrato de arrendamento sub judice aplica-se, pois, este novo prazo, de dez anos, por força do disposto no art. 297.°, n.° 2, do CC, contando-se todo o prazo entretanto já decorrido a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário (art. 51.º, n.° 4).
51. Com efeito, se no decurso do prazo de cinco anos da lei antiga - e antes de ele terminar – entrou em vigor uma nova lei que alargou o prazo para dez anos, segundo o art. 297.°, n.° 2, do CC, o novo prazo para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU aplica-se, contando-se, todavia, o prazo entretanto já decorrido[5].
52. A caducidade do contrato de arrendamento dos autos, em virtude da oposição à renovação efetuada pelo senhorio/Autor/Recorrente, não se verifica no caso em apreço.
IV - Decisão
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por AA, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo Autor/Recorrente.
Lisboa, 16 de novembro de 2021.
Sumário: I. A arrendatária que, em resposta à comunicação do senhorio da sua intenção de fazer transitar o arrendamento para o NRAU, atualizando a renda e estipulando um prazo de duração do contrato de 5 anos, invoca a qualidade de “microentidade” sem, todavia, juntar documento comprovativo dessa condição, só o fazendo mais tarde, não fica impedida de beneficiar do regime previsto nos arts. 51.º, n.º 4, e 54.º, do NRAU. II. Perante a invocação, pela arrendatária, da referida condição de “microentidade”, e sua comprovação, e na ausência de acordo das partes, não fica o arrendamento submetido ao NRAU. III. Não pode falar-se em abuso do direito – venire contra factum proprium - por parte da arrendatária quando o senhorio não podia legitimamente confiar no acordo daquela para a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, pois esta invocou e provou a sua qualidade de “microentidade” com vista a beneficiar do respetivo regime de transição. IV. O período de transição de cinco anos para o NRAU, previsto no art. 54.°, n.° 1, não tinha ainda decorrido ao tempo da entrada em vigor da Lei n.° 43/2017, de 14 de junho. Por força desta lei, o período de transição para o NRAU passou a ser de dez anos. Estamos perante um conflito de leis no tempo, que deve ser resolvido antes de se proceder à aplicação das normas aos factos da causa. V. Na determinação do regime aplicável ao prazo de transição para o NRAU do contrato de arrendamento (o art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, ou antes naquela que lhe foi conferida pela Lei n.º 43/2017), importa atender ao art. 297.º do CC. No caso de vir alongar um prazo, a lei nova é aplicável aos prazos em curso, contando-se, todavia, todo o prazo decorrido desde o momento inicial. VI. Fonte de efeitos jurídicos é o decurso do prazo de cinco anos (art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012) – ou de dez (art. 54.º, n.º 1, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 43/2017) – , cumulativamente com a prévia invocação e prova da qualidade de “microentidade” por parte do arrendatário.
Maria João Vaz Tomé (relatora)
António Magalhães
Fernando Jorge Dias
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[1] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de maio de 2020 (Teresa Sandiães), proc. n.º 9104/18.2 T8LSB.L-8 – disponível para consulta in www.dgsi pt.
[2] Vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de março de 2017 (Tibério Silva), proc. n.º 2080/16.8YLPRT.L1-2 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.
[3] Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.231.
[4] Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, pp.242-243.
[5] Cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 5 de dezembro de 2019 (Conceição Bucho), proc. n.º 1906/18.6T 8VRL.G1; de 14 de maio de 2020 (Teresa Sandiães), proc. n.º 9104/18.2 T8LSB.L-8 – disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.