AÇÃO DE PREFERÊNCIA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
INSOLVÊNCIA
ESCRITURA PÚBLICA
COMPRA E VENDA
DIREITO DOS PREFERENTES
COMUNICAÇÃO DO PROJETO DE VENDA
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I - A venda executiva, em caso de venda por negociação particular, produz os seus efeitos – o efeito translativo da propriedade – com a outorga do documento que titula a venda; e, em caso de venda mediante propostas em carta fechada, produz os seus efeitos – o efeito translativo da propriedade – com a passagem do título de transmissão a que se refere o art. 827.º, n.º 1, do CPC.
II - Assim, após o momento em que é devidamente cumprido o art. 819.º do CPC (respeitante à notificação dos preferentes e ao exercício do direito de preferência), podem, ainda, até ao momento de eficácia da venda executiva, constituir-se novos direitos de preferência legal, cujo exercício terá que ser admitido.
III - É o que sucede quando, como é o caso, estava sob venda executiva um imóvel arrendado e o arrendamento atingiu os 3 anos (estava em vigor a anterior redação do art. 1091.º, n.º 1, do CC) entre a data da aceitação da proposta e a data em que a venda executiva produziu os efeitos translativos da propriedade (o arrendamento foi celebrado em 01-08-2014, a proposta foi aceite em 28-07-2017 e o título assinado em 20-10-2017).
IV - Em tal hipótese, o arrendatário, não lhe tendo sido proporcionada a possibilidade de, em igualdade de condições, adquirir o prédio, passou a ser titular do direito potestativo de, por via judicial – através duma ação de preferência – se substituir ou sub-rogar ao adquirente do imóvel.

Texto Integral




Proc. 1913/18.9T8PDL.L1.L1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Farmácia de Venília Margarida da Costa Ponte, sociedade unipessoal, Lda., com sede na Rua Açoreano Oriental, nº. 12, São Sebastião, Ponta Delgada, instaurou, em 30/07/2018, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Massa Insolvente da sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda., representada pelo Administrador Judicial Dr. AA e contra BB e mulher CC, residentes na Rua………, formulando o seguinte pedido:

“a) Condenar-se os Réus (alienante e adquirente) a reconhecer à Autora o direito de preferência na aquisição do prédio identificado supra (i.e., na compra e venda formalizada por escritura pública de 20 de Outubro de 2017, outorgada no Cartório Notarial do Dr. DD, do prédio urbano, em regime de propriedade total, composto pela Casa ….. destinada a Comércio, sito na freguesia……, concelho……, na Rua……., descrito na Conservatória do Registo Predial …… sob o número …….23, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ….13, substituindo-o na mesma compra e venda, ao Réu comprador, nela passando a ocupar a posição deste);

b) Condenar-se os Réus a entregar imediatamente o prédio melhor identificado supra à Autora, assim se reconhecendo e declarando, com efeitos ex tunc, o direito exclusivo de propriedade daquela sobre este, mais se autorizando o cancelamento de quaisquer inscrições registrais incompatíveis com tal decisão, com todas as legais consequências”.

Alegou, em resumo, que celebrou, em 01/08/2014, com a sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda., um contrato de arrendamento, destinado à exploração do estabelecimento comercial de farmácia da A., contrato esse referente ao prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na Rua do Melo, em Ponta Delgada n.ºs 53-57 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 113.

Entretanto, no início do mês de Novembro de 2017, tomou a A. conhecimento (por o R. BB a haver contactado a comunicar que a renda devia passar a ser-lhe paga na qualidade de novo proprietário/senhorio) de tal prédio haver sido alienado no âmbito do processo de insolvência (entretanto decretada) da sociedade proprietária/senhoria; e, em Fevereiro de 2018, tendo recebido notificação judicial avulsa, do R. BB, a denunciar o contrato de arrendamento, tomou conhecimento, face ao teor da escritura de compra e venda lavrada em 20/10/2017, do preço da mencionada alienação: € 295.000,00.

Sucede que nunca a A. foi notificada, designadamente pelo Sr. Administrador Judicial da Walter Oliveira da Ponte, Lda., nos termos e para os efeitos do exercício do direito de preferência em tal alienação, o que, segundo a A., se imporia face à antiguidade – mais de 3 anos, à data da outorga da escritura de compra e venda – do contrato de arrendamento.

Os RR. contestaram, separadamente.

Invocou a R. Massa Insolvente que a A. foi expressamente notificada (antes do ato de abertura das propostas) para o exercício do direito de preferência e tinha de o exercer, nos termos do art. 819.º/1 do CPC, no próprio ato de abertura das propostas, o que não fez, perdendo tal direito e não podendo prevalecer-se do disposto no art. 819.º/4. do CPC; e, por exceção, invocou a caducidade do direito de preferência por a presente ação haver sido intentada para além do prazo de 6 meses previsto no art. 1410º do Cód. Civil (prazo que, segundo tal R., terá tido o seu termo inicial em 06/11/2017, expirando em 06/05/2018, ou seja, antes do dia 30/07/2018, data da propositura da ação).

Alegaram os RR. BB e CC que, em 28/07/2017, à data da abertura das propostas, o contrato de arrendamento ainda não tinha completado 3 anos e que, por isso, a A. não era titular do direito de preferência de que se arroga; e, por exceção, invocaram quer a caducidade de tal direito de preferência, por, à data da propositura da ação (30/07/2018), já haver decorrido prazo superior ao legalmente previsto para o exercício daquele direito, quer a renúncia ao exercício do direito por parte da A., traduzida no seu comportamento de reconhecimento dos RR. contestantes como legítimos proprietários/senhorios do imóvel em causa, quer o abuso de direito da A., na modalidade de venire contra factum proprium, consistente no exercício do direito de preferência em contradição com o anterior comportamento de reconhecimento dos RR. contestantes como legítimos donos do imóvel.

E concluíram a 1.ª R e os 2.º RR. no sentido da ação ser julgada totalmente improcedente ou por não ser reconhecido à A. o direito de preferência de que se arroga ou em função da procedência das várias exceções perentórias invocadas.

A A. respondeu às exceções invocadas, pugnando pela improcedência das mesmas.

Foi realizada a devida audiência prévia, em que foi proferido despacho saneador stricto sensu – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – após o que, decorrido o prazo que as partes pediram para chegar a acordo, considerando-se que o estado do processo permitia conhecer imediatamente do mérito da causa, foi proferido saneador/sentença, em que se concluiu do seguinte modo:

“Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente por não provada e, consequentemente, absolvo os Réus Massa Insolvente da Sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda. e BB e CC do pedido deduzido nos autos pela Autora Farmácia de Venília Margarida da Costa Ponte, Sociedade Unipessoal, Lda.”

Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, o qual foi julgada procedente e, consequentemente, foi tal decisão substituída pela seguinte:

“ (…) revoga-se o saneador sentença apelado, no reconhecimento da Autora ser titular de direito legal de preferência, na data da outorga do instrumento de venda executiva (escritura pública de compra e venda), por negociação particular, do local arrendado - prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na freguesia……, concelho……., na Rua……., descrito na Conservatória do Registo Predial …… sob o número ………..23, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …13º ;

determinando-se o ulterior prosseguimento da presente ação, de forma a conhecer-se acerca do pedido acional formulado pela Autora, com a prática dos acos considerados necessários e pertinentes pelo Tribunal a quo (…)

Inconformados, agora os RR., interpõem ambos recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que, invertendo o decidido, reponha a decisão de 1.ª Instância, assim julgando a ação totalmente procedente.

A 1.ª R. terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido que revogou o saneador sentença apelado, reconhecendo que o recorrente é titular de direito legal de preferência, na data da outorga do instrumento de venda executiva (escritura pública de compra e venda), por negociação particular, do local arrendado, e determinando o prosseguimento da ação de forma a conhecer-se acerca do pedido acional formulado pela Autora (aqui recorrente), com a prática dos atos considerados necessários e pertinentes pelo Tribunal a quo.

2. Não existe qualquer direito de preferência legal que deva ser reconhecido à recorrida Farmácia.

3. O momento relevante para se aferir da existência de direito de preferência legal é o da aceitação da proposta de compra / adjudicação, e não o da outorga ou emissão do título de transmissão.

4. A melhor jurisprudência para decisão do caso concreto é a vertida no saneador sentença de 1ª Instância, sendo também a mais correta solução de direito e a que melhor acautela o princípio da confiança que é trave mestra do ordenamento jurídico, enquanto tutela da confiança das partes no momento de contratar.

5. Isto porque com a aceitação da proposta apresentada pelo proponente e respetiva adjudicação, cria-se neste a legítima e fundada expectativa da formalização do contrato de compra e venda logo que cumpridas as demais exigências legais – pagamento do remanescente do preço e cumprimento das obrigações fiscais, o que constitui naturalmente um processo dinâmico e encadeado cuja duração no tempo não é previsível.

6. Sendo admitido que com o processo de venda em curso, e já após a diligência de abertura de propostas / adjudicação ao proponente, se constitua um direito legal de preferência, frustram-se completamente as expectativas das partes, que são e têm de ser tuteladas pelo Direito, provocando-se, ademais, uma violação da segurança jurídica enquanto objetivo primordial da ordem jurídica.

7. A recorrida Farmácia com esta ação adopta um comportamento que, para além de ilegal, se entende estar eivado de abuso de direito, pois bem sabendo ser titular de direito de preferência convencional, sendo esse direito respeitado e cumprido pelo obrigado senhorio (aqui Massa Insolvente), sendo chamada a exercer o seu direito e não o fazendo, pretende agora fazer tábua rasa de tudo e prevalecer-se de um direito legal de preferência adquirido antes da escritura de compra e venda, quando era titular ab initio de um pacto de preferência.

Quando assim não seja entendido,

8. O Sr. Administrador da Insolvência sempre reconheceu a recorrida como arrendatária do imóvel e titular do direito de preferência, mas de natureza convencional, porquanto tal convenção foi plasmada ab initio na cláusula nona do contrato de arrendamento junto como documento n.º 1 da petição inicial.

9. O Sr. Administrador da Insolvência cumpriu esse direito de preferência convencional, notificando a recorrida Farmácia do dia, hora e local da diligência de abertura de propostas e demais condições de venda.

10. A recorrida Farmácia não compareceu nem se fez representar nessa diligência, pelo que deixou precludir o seu direito de preferência, pelo seu não exercício.

11. Não obstante no artigo 416º, n.º 2, do CC, seja estabelecido prazo de resposta para o preferente exercer o seu direito, porque neste caso estávamos em sede de venda judicial, tal prazo seria inaplicável, devendo entender-se que o exercício do direito teria de ocorrer na diligência de abertura de propostas, o que não aconteceu.

12. Os artigos 165º do CIRE e 819º, n.º 1, do CPC, no que toca ao exercício dos direitos de preferência e respetivo procedimento, referem-se expressamente aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, em termos de, sendo determinada a venda por propostas em carta fechada, os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real na alienação dos bens serem notificados do dia, hora e local aprazados para a abertura de propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, se alguma proposta for aceite.

13. Nos termos do artigo 823º, n.º 1, do CPC, aceite alguma proposta são interpelados os titulares do direito de preferência presentes para declararem se querem exercer o seu direito, o que não aconteceu em virtude da recorrida Farmácia não ter comparecido na diligência.

14. Não obstante a letra da Lei, o referido n.º 1 do artigo 819º do CPC impõe uma obrigação de notificação dos preferentes legais ou convencionais com eficácia real (cominando a falta dessa notificação), mas não pode ser interpretado no sentido de excluir, nem pode excluir, o cumprimento de pacto de preferência decorrente do artigo 416º, n.º 1, do CC, cuja violação, não sendo cominada com a anulação da venda, pode fazer incorrer o obrigado em obrigação de indemnizar.

15. Desse modo, tendo sido cumprido por parte do Sr. Administrador da Insolvência o pacto de preferência estabelecido entre senhorio e inquilino aquando da celebração do contrato de arrendamento, mediante a comunicação para preferência, o preferente, aqui recorrida Farmácia, ficou vinculado ao cumprimento do procedimento legal atinente ao exercício do direito de preferência, o que não aconteceu.

16. Embora com fundamento diverso, a Relação tinha condições para decidir o mérito da questão em linha com a 1ª Instância, sobre a impossibilidade de recurso pela recorrida Farmácia à ação de preferência por ter deixado precludir o seu direito aquando do não exercício do mesmo na abertura de propostas, por dispor de todos os elementos para o efeito.

17. Consta do processo o contrato de arrendamento onde o pacto de preferência foi estabelecido – doc.1 da petição inicial; consta do processo a comunicação para preferência remetida pelo Sr. Administrador da Insolvência à recorrida Farmácia – doc.2 da contestação da Massa Insolvente que, diga-se, não foi impugnado pela recorrida na sua resposta à matéria de exceção da Massa Insolvente; e é ponto assente nestes autos que a recorrida Farmácia não compareceu nem se fez representar na diligência de abertura de propostas, não tendo exercido nesse momento o seu direito de preferência convencional.

Se ainda assim tal não for entendido,

18. No limite, quando se entenda não haver condições para ser tomada desde já essa decisão de mérito, deve pelo menos o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que determine que o direito de preferência da recorrida Farmácia é convencional e não legal, radicando-se no pacto de preferência celebrado no contrato de arrendamento, ordenando-se o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido da Autora, mormente para aferição do cumprimento da notificação para preferência por parte da Massa Insolvente a atos subsequentes.

19. Foram violados, no Acórdão recorrido, os artigos 414º, 415º, 416 e 422º do Código Civil, o artigo 165º do CIRE e o artigo 819º do CPC.

Os 2.º RR. terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

1ª - Sendo o recurso apresentado pela ora recorrida Farmácia de Venília Margarida da Costa Ponte, Sociedade Unipessoal, Lda. Exclusivo à matéria de direito, encontram-se definitivamente assentes os factos constantes da decisão do Tribunal da primeira instância supra transcritos em A) destas alegações e que, por economia, ali se deram por integralmente reproduzidos. Assim;

2ª - O cerne da questão aqui em causa, em sede de direito, é o de saber se o momento relevante para a aferição da existência do direito de preferência da recorrente (na qualidade de arrendatária de prédio transmitido em processo insolvencial) se reporta: a) ao acto de abertura das propostas (in casu em 28.07.2017) ou b) à data da transmissão do imóvel (in casu em 20.10.2017). Ora;

3ª- A Autora (aqui recorrida) não tinha constituído na sua esfera jurídica o direito potestativo de preferência, pois, à data, da abertura das propostas a duração do contrato de arrendamento ainda não havia completado três anos (art. 1091°/ 1/ a) do CC) e assim, sendo, só poderia exercer o seu direito de preferência desde que “desde que a venda ainda não esteja concretizada” (neste sentido vd. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pag. 654.). Aliás; 4ª - De modo preclaro se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-09-2016 que em sede insolvencial feita por abertura de propostas em carta fechada, deve o titular do direito de preferência (que aqui recorrida ainda não era, de resto, sequer como vimos) exercer esse direito ser no dia hora e local da abertura de tais propostas, sendo aí e nesse momento que tem de exercer o direito de preferência.

5-ª O acima referido vem ao encontro do que sempre pugnaram os RR, ora recorrentes, a saber, e em síntese: no dia 28-07-2017, data designadamente para a abertura das propostas (cfr. Ponto 5. da matéria de facto assente) no âmbito de processo de venda por negociação particular, a recorrente, não era sequer titular do direito de preferência que se arroga relativamente ao imóvel em causa nos autos. Como de resto;

6ª - Bem notou a douta sentença da primeira instância sendo, depois totalmente irrelevantes, para o efeito do exercício do direito de preferência relativo ao imóvel, quer a manutenção do contrato de arrendamento posteriormente a esse momento (28-07-2017) quer a (mera) formalização da venda por escritura pública.

7ª - No dia 28-07-2017, o imóvel em causa estava arrendado à Autora, ora recorrente, há 2 (dois) anos e 362 (trezentos e sessenta e dois) dias, ou seja, há menos de 3 (três) anos, pelo que, à data da abertura das propostas, da aceitação da proposta dos recorridos e da adjudicação do bem. Deste modo;

8ª - Tal direito de preferência, de origem legal, não existia sequer na esfera jurídica da Autora, ora recorrente, uma vez que até essa data não estava preenchido o pressuposto (interstício temporal) reclamado na lei.

9ª - Da leitura conjugada das normas em apreço (artigo 165º do CIRE e artigos 819º, 820º, 823º e 824º do CPC, que a venda se realizada, se concretiza com a abertura e aceitação da proposta, sendo os actos posteriores àquela, atos de mera formalização da venda já (antes) termos referidos. Ora;

10ª - Não se pode dar sem efeito o que (antes) não existe. (art.825º, nº 1 alíneas a) e b), do CPC) sendo que, a venda deverá considerar-se realizada (ou concretizada) na data da diligência de abertura de propostas, seguida da adjudicação, sendo os atos subsequentes (neles se incluindo a escritura pública) uma mera formalização da venda já (antes) realizada, nos já termos referidos.

Ademais;

11ª - Da própria escritura de 20.10.2017decorre que o preço havia sido pago anteriormente, sendo essa (escritura) a mera formalização da venda anteriormente concretizada.

12ª – Como refere – e corretamente – a decisão do Tribunal de primeira instancia «a venda judicial não se arrimando no estrito acordo de vontades entre o titular do bem o proposto adquirente (mas tão só na vontade da parte compradora), consiste num itinerário, com um princípio, meio e fim relativamente prolongado no tempo, com a referência à pratica dos atos que necessariamente a integram (no caso: adjudicação, depósito do preço, cumprimento das obrigações fiscais e, por fim, realização da escritura pública. De resto;

13ª – A não ser assim, seria possível uma solução concreta verdadeiramente absurda, decorrente da interpretação legal também absurda, que seria a de permitir que formulada a proposta, adjudicado o bem, depositado o preço e cumpridas as obrigações fiscais, fosse, ainda assim, concedido o exercício (eventual) direito de preferência relativo a bem imóvel vendido por negociação particular objeto de arrendamento cujo prazo de 3(três)anos se concluísse posteriormente à venda com a total frustração da boa fé do comprador e a violação do mais básico princípio da proteção da confiança e da boa fé negocial, tornando inútil todo o processo de venda particularizado nesses moldes, ainda que, com o rigoroso cumprimento de todo o formalismo previsto na lei. Ademais;

14ª - Entendimento contrário, padece de inconstitucionalidade material porquanto o princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos.

15ª - Tal princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2º da CRP e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte. Acresce que;

16ª - A lei, reportando-se ao momento da venda por entrega de propostas, refere claramente que:” Os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, se alguma for aceite”. (art. 819ª, nº 1, do CPC). Acresce que;

17ª - Decorre inequivocamente da leitura conjugada dos artigos 165º do CIRE e 819º, 823º e 824º, do CPC, que, apenas os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens devem ser notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio ato, pressupondo obviamente o legislador que os notificandos sejam efetivamente titulares de tal direito (de preferência) à data aprazada para abertura das pospostas.

18ª – A essa data como já se alegou, nas conclusões 7ª e 8ª tal direito de preferência, de origem legal, não existia sequer na esfera jurídica da Autora.

Pelo que;

19ª – Nenhum reparo merecia a decisão do Tribunal da primeira instância, que deveria, por isso, ter sido mantida na íntegra.

Deste modo;

20ª – Decidindo em contrário e revogando o saneador sentença apelado, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa fez errada interpretação e aplicação das normas jurídicas supracitadas (artigo 165º do CIRE e artigos 819º, 820º, 823º e 824º e art.825º, nº1 alíneas a) e b), do CPC do CPC)

(…)”

A A. respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pelos recorrentes, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Terminou as suas contra-alegações com as seguintes conclusões.

“ (…)

A. Preliminarmente à discussão sobre a bondade da decisão recorrida, porque constitui seu pressuposto legal e antecedente lógico, convém enfatizar que in casu não é admissível o recurso de revista, o qual deve assim ser liminarmente rejeitado,

B. Dado que no caso presente o acórdão aqui em crise, não pôs termo ao processo nem conheceu do mérito da causa, tendo outrossim ordenado o prosseguimento dos autos para apreciação (claro está, do mérito) da ação.

C. Pelo que os recursos interpostos devem ser liminarmente rejeitados, porquanto inadmissíveis, em face do prescrito, a contrario sensu, no n.º 1 do artigo 671.º do CPC, o que expressamente se requer, não tendo, ademais, sido sequer alegado, por qualquer dos recorrentes, fundamento de recurso de revista nos casos taxativos em que tal recurso é sempre admissível (n.º 3 do artigo 671.º do CPC, in limine).

D. Em todo o caso, o Acórdão recorrido estribou-se na melhor doutrina e jurisprudência tendo determinado, sem censura ou reparo, que o momento de aferição da existência do direito de preferência em venda executiva/ insolvencial (única questão jurídica cuja apreciação releva na presente instância recursória) vem a ser momento em que ocorre a transmissão da propriedade da coisa, a qual se dá com a emissão do título de transmissão e outorga da correspondente escritura (e não antes).

E. Com efeito, é manifesto que nunca tal momento se podia aferir por referência (ao menos única e exclusiva) ao singelo ato de abertura das propostas dado que nenhuma idoneidade legal dispõe este para operar a venda do bem integrante da massa insolvente,

F. Ou, por outras palavras, que através daquele ato se consubstanciou a transmissão do direito de propriedade do bem em causa, isto mesmo porque o ato de abertura de propostas não configura per si ato transmissivo, sendo antes um ato preparatório da futura (eventual, porquanto incerta) venda.

G. Na verdade, a lei não podia ser mais eloquente no que respeita a este tema, não deixando assim margem para dúvidas interpretativas – ao ato de abertura de propostas não pode ser atribuída uma função e um valor jurídico que a lei manifestamente não lhe empresta ou associa.

H. O ato de abertura de propostas apenas materializa uma fase procedimental da liquidação do património integrante da massa insolvente (o qual pode até nem configurar qualquer procedimento de venda futura – basta pensar no exemplo de não haver propostas ou forem todas de valor abaixo do limiar legal), através do qual interessados apresentam propostas de aquisição, elas próprias sujeitas ao cumprimento posterior dos demais requisitos na lei (como por exemplo o pagamento dos encargos/obrigações tributárias), entre os quais avulta (mas não só) o sequente pagamento integral do preço (cfr. artigo 827.º do CPC).

I. Ou seja, e como é bom de ver, antes de emitido o título de transmissão e celebrado o negócio translativo (escritura de adjudicação ao proponente), depois de pago o preço e satisfeitas as obrigações tributárias inerentes à venda, e demais pressupostos e formalismos legais, o bem integra o património jurídica da massa insolvente,

J. Sendo certo, igualmente, que só após o cumprimento daquelas formalidades ad substanciam se opera a transmissão a favor do terceiro, donde a existência de um direito de preferência (de origem legal), previamente à data da efetiva transmissão, tem de ser devidamente acautelado, sendo oponível àquela, conforme bem decidiu o Acórdão recorrido.

K. A abertura de propostas é assim, inelutavelmente, um mero ato preparatório ou interlocutório, do qual pode até não resultar qualquer “adjudicação futura”, e dúvidas não restam sobre tal conclusão, também pela interpretação teleológica do disposto no artigo 824.º do CPC.

L. Aliás, basta pensar na hipótese de não ocorrer o pagamento remanescente do preço a cargo do proponente, o que determina que a venda fique, inescapavelmente, sem efeito, tal como preconizado no artigo 825.º do CPC.

M. Por outro lado, ainda, e conforme bem sabem os recorrentes nem sequer houve o pagamento integral do preço do bem com a formulação e apresentação da proposta, e desde logo porque a lei obviamente não obriga a tanto,

N. Ora, mas chegados aqui, e apenas por este «detalhe» logo percebemos que sem estar paga a totalidade do preço – que é a situação dos autos (sendo este um evento futuro incerto) nunca poderia ter ocorrido a transmissão do bem (e naturalmente ressalvados os deveres de liquidação das injuntivas e simultâneas obrigações tributárias).

O. Por outro lado, ainda, não se perca de vista outra característica estrutural fundamental presente na venda executiva/insolvencial, a qual imediatamente deita por terra quaisquer argumentos usados relativos à segurança jurídica e proteção da confiança dos «proponentes» – caso dos Réus adquirentes, aqui recorrentes.

P. Trata-se obviamente de um processo de venda (executiva) impregnado de particularidades e vicissitudes, por contraponto com uma venda/transação livre – de mercado, pois que neste caso a declaração de vontade das partes vale por si mesma,

Q. Dado que, como é consabido, em muitos casos a venda só opera se for ultrapassado determinado preço mínimo e/ou recolhido, por exemplo, o consentimento dos credores.

R. Dito por outras palavras e numa sintaxe distinta, a formulação de uma proposta de aquisição de bem em venda executiva está sujeita a um conjunto de condições suspensivas e formalismos processuais até que possa ser definitivamente aceite e tida por válida e eficaz na ordem jurídica, e com isso (depois disso) formar-se um negócio transmissivo.

S. Destarte, haverá que concluir que o ato de abertura de propostas é meramente propedêutico, instrumental e condicional de um futuro (e incerto, porque eventual) acto transmissivo, donde a existência e o reconhecimento de um direito de preferência de origem legal (na venda judicial) devem ser aferidos por referência àquele momento temporal, até porque antes não sabemos se  ocorrerá a venda propriamente dita, acto que faz nascer o direito de preferência e autoriza o seu exercício (daquele totalmente dependente e conexo),

T. Destarte, obviamente que não merece qualquer provimento o argumento principal (e único) ancorado no recurso de revista interposto pelos Réus adquirentes, quando ali sustentam: “(…) que a venda se realizada, se concretiza com a abertura e aceitação da proposta, sendo os actos posteriores àquela actos de mera formalização da venda já (antes) termos referidos”.

U. Ao irrelevar todo o procedimento subsequente da venda executiva (absolutamente necessário), como seja, desde logo, o pagamento do preço da coisa e o cumprimento das obrigações fiscais inerentes e inarredáveis da transmissão de bens imobiliários, o recorrente degrada requisitos substantivos e materiais do ato em meros procedimentos formais, como se o pagamento do preço não fosse condição de aceitação da dita proposta.

V. Por outro lado, ainda, a decisão de marcação/agendamento da escritura de compra e venda (para 20.10.2017) ocorreu por decisão simultânea dos Réus (massa insolvente e adquirentes), pelo que se apenas o fizeram uns meses depois da formulação da proposta apenas a si devem tal circunstância temporal.

W. Até porque quaisquer faculdades e poderes do proponente-adjudicatário só são exercitáveis, como é lógico, após a aquisição do respetivo direito de propriedade, facto que lhe advém da emissão do título de transmissão e sequente celebração da escritura cfr. artigo 828.º do CPC), sendo que até lá a sua situação é de mera expetativa ou potencial direito.

X. Aliás, a recorrente Massa Insolvente admite e confessa expressamente que é apenas mera expetativa (não um direito, muito menos um direito definitivamente consolidado) que detém o proponente até à outorga da escritura de venda, quando no recurso interposto alega: “Isto porque com a aceitação da proposta apresentada pelo proponente e respectiva adjudicação, cria-se neste a legítima e fundada expectativa da formalização do contrato de compra e venda logo que cumpridas as demais exigências legais – pagamento do remanescente do preço e cumprimento das obrigações fiscais”.

Y. Alega ainda a Massa Insolvente uma questão nova (não suscitada antes, pelo que está expressamente vedada a sua cognição em sede recursória) respeitante à dita preferência de origem convencional.

Z. Sucede que tal alegação, além de espúria porquanto só agora invocada, revela total fracasso quanto à sua bondade argumentativa, pois é sabido, e a lei não deixa margem de dúvidas, que a dita preferência convencional só é oponível na venda executiva se gozar de eficácia real – cfr. artigo 422.º do CC.

AA. Assim sendo, porque se mostra notório e factual que tal preferência convencionada pelas partes não gozava de eficácia real, o mesmo é dizer que não existia (tout court) tal direito preferencial na presente transmissão insolvencial,

BB. Donde a dita preferência apenas emergiu, mas com estatuto ou atribuição legal, pela permanência da condição de arrendatário durante o período mínimo de 3 anos e 1 dia, de acordo com a lei à data dos factos, o que se verificou após 02.08.2017.

CC. Ademais é preciso enfatizar que “o direito legal de preferência constitui-se como direito potestativo, com eficácia real, enquanto fundado em razões de interesse e ordem pública (já o pacto de preferência só excecionalmente será dotado de eficácia real, desde que objeto de registo, passando a aplicar-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 1410º do CC, nos termos previstos no art. 421º do mesmo código)” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 27.11.2018, Processo n.º 14589/17.1T8PRT.P1.S1.

DD. Neste prisma, é inequívoco e incontrovertido que à sociedade arrendatária, aqui recorrida, assistia, desde 02.08.2017 doravante, o direito de preferência na futura alienação daquele património da massa insolvente, pelo que estando definitivamente consolidado na sua esfera jurídica tal direito,

EE. Em momento prévio e anterior à transmissão do bem, ou seja, à venda propriamente dita, é forçoso inferir que lhe assiste a faculdade de preferir naquela aquisição em detrimento do licitante/proponente, sem que tal comprometa uma equilibrada e satisfatória equação de direitos entre as partes envolvidas, e assim tendo decidido o Acórdão recorrido, o mesmo esteve perfeitamente alinhado com o Direito, donde não merece qualquer censura.

(…)”

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

II - A – Factos Provados.

1. Por escrito particular intitulado por “CONTRATO DE ARRENDAMENTO”, de 01.08.2014, a Autora tomou de arrendamento comercial à sociedade Walter Oliveira da Ponte, Lda., que, por seu turno, deu de arrendamento, destinado à exploração de um estabelecimento comercial de farmácia, o prédio urbano, em regime de propriedade total, sito na freguesia……, concelho….. , na Rua….., nºs ……, descrito na Conservatória do Registo Predial ……….. sob o número 23, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …..13º (docs. A fls. 7-8, 9-9v. e 10v.-11) ;

2. O prédio foi alienado no âmbito do processo de insolvência (entretanto decretada) da sociedade proprietária/senhoria, pela Primeira Ré aos Segundos Réus, pelo preço de € 295.000,00, conforme escritura de 20.10.2017 (doc. a fls. 17v-19);

3. Nessa data subsistia o contrato de arrendamento comercial;

4. O Senhor Administrador da Insolvência optou pela modalidade de venda de negociação particular, tendo designado data e local para a abertura de propostas, a saber, o dia 28.07.2018, às 10h., na sala “Polivalente do Tribunal de Ponta Delgada”, do que a Autora foi notificada (doc. a fls. 45)

5. Após 01.08.2017 a Autora não foi notificada para efeitos de exercício do direito de preferência na alienação referida no ponto 2.;

6. A proposta dos Segundos Réus, apresentada antes da diligência referida no ponto 4., veio a ser aceite e adjudicada pelo Senhor Administrador da Insolvência (doc. a fls. 47v.).

*

III – Fundamentação de Direito

Os presentes recursos de revista – sendo o objeto dum recurso delimitado, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelas respetivas conclusões, nos termos dos artigos 635º/4 do CPC – têm ambos como única questão saber se, na data da outorga do instrumento de venda executiva (a escritura pública de compra e venda), no âmbito do processo de insolvência da Walter Oliveira da Ponte, Lda., a A./recorrida – enquanto arrendatária do prédio vendido – era titular do direito potestativo de preferência legal.

Foi apenas isto que foi decidido no acórdão da Relação sob recurso e é apenas isto que está sob revista.

A A/recorrida, como resulta do relato inicial, diz que, em 01/08/2017, o seu contrato de arrendamento (respeitante ao prédio vendido) fez 3 anos[1], razão pela qual a enunciação em abstrato (decorrente do art. 1091.º/1 do C. Civil, na redação então vigente) do direito de preferência passou, a partir daí, a integrar o conteúdo normativo do seu concreto direito de arrendamento[2], porém, acrescenta a A/recorrida, estando naquela data já projetado um negócio que origina o direito de preferência (a venda, no âmbito do processo de insolvência), de imediato se constituiu, autonomamente, um direito de preferência verdadeiro e próprio, passando a assistir à A/recorrida o direito (creditório) a que lhe fossem notificados os termos essenciais do negócio de venda projetado[3].

Direito creditório este que, segundo a A/recorrida, não foi cumprido – não lhe foi proporcionada a possibilidade de, em igualdade de condições, adquirir o prédio – passando então, tendo a venda executiva sido efetuada, “a ter o direito potestativo de, por via judicial – através duma ação de preferência – se substituir ou sub-rogar ao adquirente da coisa, no contrato por este celebrado com o obrigado à prelação.[4]

É, pois, do exercício deste exato e concreto direito potestativo de preferência legal que tratam os autos.

Opõem-se-lhes os RR., por, na venda efetuada no âmbito do processo de insolvência, embora por negociação particular, ter sido designado o dia 28/07/2017 – 4 dias antes[5] do direito de preferência passar a integrar o conteúdo normativo do seu concreto direito de arrendamento da A. – para apresentação de propostas, sendo esse o único momento, em cumprimento do art. 819.º do CPC (ex vi art. 811.º/2 do CPC), em que, no âmbito duma venda executiva (singular ou universal), é cumprida a obrigação de dar preferência, pelo que, não existindo ainda em tal data (por 4 dias) o direito de preferência, se tem que considerar que não assiste à A. o direito potestativo que exerce; e, concomitantemente, para o caso de se reconhecer à A. tal direito potestativo, opõem-lhes os RR. as exceções de caducidade, renúncia e exercício abusivo do direito de preferência.

Na 1.ª Instância, considerou-se, em síntese, que a data da apresentação de propostas é que conta e vale, pelo que, não tendo em tal data a A. qualquer direito de preferência, não pode depois vir exercer o direito potestativo de preferência supra configurado; e, perante tal raciocínio/conclusão, consideraram-se prejudicadas, na 1.ª Instância, as exceções suscitadas pelos RR..

Na 2.ª Instância, considerou-se, diferentemente, que o que interessa – para saber se há preferências a conceder – é o momento em que a venda executiva produz os seus efeitos, maxime o efeito translativo do direito da propriedade, pelo que, sendo tal momento, na venda por negociação particular, a assinatura do título que a comprova (no caso, a escritura pública de compra e venda), assistia à A., quando tal aconteceu, em 20/10/2017, o direito creditório supra referido que, não tendo sido cumprido – não foi à A. proporcionada a possibilidade de, em igualdade de condições, adquirir o prédio – lhe confere o direito potestativo (exercido) de, por via judicial – através da presente ação de preferência – se substituir ou sub-rogar ao adquirente do prédio; porém, como o conhecimento das exceções (suscitadas pelos RR.) – cujo conhecimento havia ficado prejudicado na 1.ª Instância pela solução ali dada – depende de elementos ainda factualmente controvertidos, limitou-se a Relação a decidir ser a A./recorrida – enquanto arrendatária do prédio vendido – titular do direito potestativo de preferência legal à data da outorga da escritura de compra e venda, relegando para momento posterior o conhecimento das exceções e a sua possível repercussão (ou não) sobre tal direito de preferência, apenas se reconhecendo à A./recorrida, repete-se, tal direito de preferência no momento estático (no dia) em que foi outorgada a escritura de compra e venda.

Daí o termos começado por referir, delimitando o objeto da revista, que a mesma tem como única questão saber se, na data da outorga do instrumento de venda executiva (a escritura pública de compra e venda), no âmbito do processo de insolvência da Walter Oliveira da Ponte, Lda., a A./recorrida – enquanto arrendatária do prédio vendido – era titular do direito potestativo de preferência legal; ou seja, não faz parte do objeto da revista toda a argumentação (que os recorrentes incluem nas suas alegações/conclusões) respeitante às exceções que oportunamente invocaram, designadamente o que a recorrente Massa Insolvente diz, a tal propósito, nas conclusões 7 e ss.[6].

Vejamos, então:

A Relação colocou todo o fulcro da resposta a tal questão no momento em que a venda executiva produz os seus efeitos.

Trata-se, fora de qualquer dúvida, dum aspeto decisivo, porém, com todo o respeito, isto assente (o momento em que a venda executiva produz os seus efeitos), subsistirá ainda a seguinte pergunta: cumprido devidamente o art. 819.º do CPC (sobre a notificação dos preferentes) – ou seja, devidamente notificados (do dia/hora/local da abertura de propostas) todos aqueles que naquele momento são preferentes (todos aqueles que são titulares dum direito de preferência legal ou convencional com eficácia real), para, sendo aceite alguma proposta, exercerem o seu direito de preferência – caso, depois, até ao momento de eficácia da venda executiva, se constituam, designadamente pelo decurso do tempo, (novos) direitos de preferência, o que é que acontece? Têm os titulares de tais (novos) direitos que ser notificados para preferir ou, tendo sido devidamente cumprida toda a “cadeia processual” em que se traduz a venda executiva, já não haverá mais notificações para preferência (ainda que de direitos supervenientemente constituídos) a efetuar, nem tais novos direitos de preferência podem ser exercidos?

Foi a resposta negativa (implícita) a tal pergunta que por certo também levou a 1.ª Instância a considerar a data da apresentação de propostas como o momento próprio e definitivo/último para o “chamamento” dos preferentes e de exercício da preferência: argumentou-se que, sendo a venda executiva[7] um itinerário, com um princípio, meio e fim, relativamente prolongado no tempo, prevê um momento próprio e único para o exercício da preferência, pelo que, se nesse momento ainda não existe direito de preferência, também não pode depois exercer-se um direito de preferência que em tal momento ainda não existia.

Percebe-se a lógica do raciocínio, tanto mais que a resposta contrária leva a que o cumprimento devido e completo dos art. 819.º e ss. do CPC – ou seja, cumprido sem mácula tudo o que consta e é imposto pela da lei adjetiva – possa vir a ser considerado como insuficiente.

Mas, realmente, é mesmo assim.

Efetivamente, tem que se considerar que o art. 819.º e ss. do CPC se limita a adjetivar, no âmbito da venda executiva, o exercício dos direitos de preferência (legais ou convencionais com eficácia real) substantivamente concedidos, isto é, não “dá” nem “tira” direitos de preferência e também não diz – sublinha-se – que, no âmbito da venda executiva, só podem ser exercidos os direitos de preferência (ali referidos) constituídos até ao dia da abertura das propostas.

Dito doutro modo, o art. 819.º e ss. do CPC limita-se a regular, no âmbito da venda executiva, os procedimentos respeitantes ao exercício dos direitos de preferência (legais ou convencionais com eficácia real) constituídos até ao dia da abertura das propostas, mas não impede a constituição de novos direitos de preferência legais e o exercício destes novos direitos.

Sobre isto, “manda” o direito substantivo – não o direito adjetivo – e este permite a constituição de novos direitos de preferência legais e, consequentemente, tem que ser permitido o seu exercício (ainda que o direito adjetivo o não preveja explicitamente).

E é neste passo do raciocínio que adquire relevo decisivo o momento em que a venda executiva produz os seus efeitos, na medida em que, na “décalage” entre a data da apresentação e aceitação de propostas e a data em que a venda executiva produz os seus efeitos, poderão, segundo a lei substantiva, constituir-se, nesse intervalo, direitos de preferência legais, cujo exercício tem que ser admitido (ainda que hajam sido devida, oportuna e completamente cumpridos os art. 819.º e ss. do CPC).

Em síntese e como já admitimos, acaba por ter de se concluir que o que nos art. 819.º e ss. do CPC se dispõe sobre o modo de exercício do direito de preferência no âmbito da venda executiva não é esgotante, uma vez que deixa de fora aquelas situações, raras, em que o direito de preferência se constitui entre a data da apresentação de propostas (e da aceitação) e a data em que a venda executiva produz os seus efeitos.

Ora, como flui de tudo o que vimos referindo, é exatamente perante uma de tais situações, raras, que tratam os autos.

O contrato de arrendamento da A/recorrida foi celebrado em 01/08/2014, ou seja, quando, em 28/07/2017, decorreu a abertura de propostas (e a aceitação da proposta do R/recorrente BB), faltavam 3 dias para perfazer 3 anos – e para, no dia seguinte, o direito de preferência legal passar a integrar o conteúdo normativo do direito de arrendamento da A./recorrida – porém, logo que foram decorridos tais 4 dias, passou tal direito de preferência a integrar o conteúdo normativo do seu direito de arrendamento e, no caso, estando naquela data (passados os 4 dias, em 02/08/2017) já projetado um negócio (a venda, no âmbito do processo de insolvência) que origina tal direito de preferência, de imediato se constituiu o direito de preferência legal da A/recorrida, passando a assistir-lhe o direito (creditório) a que lhe fossem notificados os termos essenciais do negócio de venda projetado, direito creditório este que não foi cumprido – não lhe foi proporcionada a possibilidade de, em igualdade de condições, adquirir o prédio – passando então, tendo a venda executiva sido efetuada, a ter o direito potestativo de, por via judicial, exercer o seu direito de preferência legal.

Efetivamente, segundo entendimento que reputamos como pacífico e indiscutível, a venda executiva, em caso de venda por negociação particular, só produz os seus efeitos – o efeito translativo da propriedade – com a outorga do documento (no caso, a escritura pública) que titula a venda[8], ou seja, no caso, a venda executiva só produziu os seus efeitos em 20/10/2017 (data da escritura pública), num momento em que o direito de preferência legal da A/recorrida já estava (desde 02/08/2017) constituído, o que permite afirmar – concordando com o acórdão recorrido e negando a revista – que, na data da outorga do instrumento de venda executiva, a A./recorrida – enquanto arrendatária do prédio vendido – era titular do direito potestativo de preferência legal.

E, como também se diz no acórdão recorrido, as coisas não teriam solução diferente se estivéssemos perante uma venda mediante propostas em carta fechada[9] – ambas (quer a negociação particular quer a mediante propostas em carta fechada), no caso a que se referem os autos, estando-se numa venda no âmbito duma execução universal/insolvencial, por remissão do art. 164.º/1 do CIRE – uma vez que também aqui a venda executiva produz os seus efeitos (o efeito translativo da propriedade) em momento posterior ao dia da abertura e de aceitação das propostas.

Em tal modalidade de propostas em carta fechada, para uns[10], a venda produz os seus efeitos com o depósito do preço da venda, efetuado nos termos do art. 824.º/2 do CPC, uma vez que tal depósito corresponderá àquilo que no art. 827.º/1 se designa como “a data em que os bens foram adjudicados”; para outros[11], a venda produz os seus efeitos com o despacho de adjudicação; e, ainda para outros, a venda produz os seus efeitos “com a passagem do título de transmissão e não com o despacho de adjudicação, anterior a este”, uma vez que este título “opera para os bens imóveis como a escritura pública opera nas transmissões imobiliárias[12].

Há também quem continue a entender que o efeito translativo da propriedade da coisa ocorre, em tal modalidade de venda, com a aceitação da proposta, embora tal efeito translativo fique sujeito à verificação da condição suspensiva dos depósitos a que se referem os art. 824.º/2 e 825.º do CPC.

Última posição esta – que é aquela a que os recorrentes se “agarram” – que é, hoje, face à redação dos preceitos processuais vigentes, a nosso ver e salvo o devido respeito, indefensável, uma vez que, hoje, não existem normas como as dos art. 904.º/1 e 905.º do VCPC, na redação do DL 368/77, de 03-09, que mandavam adjudicar os bens quando a décima parte do preço fosse paga e declarar, no título, que a data da transmissão era a data de tal adjudicação[13].

Efetivamente, hoje, segundo as normas processuais vigentes, só se pode falar em adjudicação após se “mostrarem integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações inerentes à transmissão” (cfr. art. 827.º/1 do CPC), ou seja, embora a adjudicação continue a apresentar-se como um momento decisivo para a perfeição e produção dos efeitos translativos da venda executiva, importa ter presente que a adjudicação acontece hoje (desde a reforma processual de 95/96 e do que então se passou a dispor no art. 900.º do CCP, sobre o momento em que se faz a adjudicação) “mais à frente” na cadeia processual da venda executiva, não correspondendo, não coincidindo, nem se confundido com o momento de aceitação da proposta.

Sendo desta alteração sobre o momento da adjudicação que decorre não ser o que se dispõe nos art. 819.º e ss. do CPC (sobre o modo de exercício do direito de preferência no âmbito da venda executiva) esgotante, uma vez que foi e continua gizado para a hipótese da apresentação/abertura de propostas, a aceitação e a adjudicação ocorrerem em simultâneo num mesmo momento temporal (não contemplando aquelas situações – como a dos autos – em que o direito de preferência legal se constitui entre a data da apresentação de propostas e a data em que, hoje, ocorre a adjudicação e a venda executiva produz os seus efeitos).

É também por isto – sendo a adjudicação um ponto de referência em todas as posições mencionadas – que as divergências existentes nas três posições primeiramente referidas são um pouco especiosas, razão pela qual, não parecendo que a atual lei processual preveja um autónomo despacho de adjudicação (parece aglutinar a adjudicação e o título de transmissão num único momento, na medida em que “a adjudicação de que fala o art. 827.º/1 do CPC se formaliza pela emissão do título de transmissão a favor do adquirente, com as menções constantes do art. 827.º/1 do CPC[14]), nos inclinamos a dizer[15] que a eficácia da venda executiva, tratando-se de coisa vendida em propostas em carta fechada, coincide com a data da emissão do título de transmissão (até por ser até tal momento que pode ser exercido o direito de remição, cfr. art. 843.º/1/a) do CPC).

Tudo isto para dizer e concluir que fosse qual fosse a modalidade de venda executiva – negociação particular ou propostas em carta fechada – sempre a mesma, no dia em que o arrendamento da A. fez 3 anos e 1 dia, não estaria ainda perfeita e não teria ainda produzido os seus efeitos translativos, razão pela qual na data da outorga do instrumento de venda executiva (a escritura pública de compra e venda), no âmbito do processo de insolvência da Walter Oliveira da Ponte, Lda., a A./recorrida – enquanto arrendatária há mais de 3 anos do prédio vendido e por, nessa qualidade, não lhe ter sido proporcionada a possibilidade de, em igualdade de condições, adquirir o prédio – era titular do direito potestativo de preferência legal.

Entendimento este que não padece, ao contrário do que os recorrentes invocam, de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, dedutíveis do art. 2º da CRP, uma vez que tal entendimento não resulta da alteração dum qualquer quadro legislativo (que é o mesmo, quanto à adjudicação só acontecer após se mostrar pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais, desde a reforma processual de 95/96), não se podendo assim dizer que os RR/recorrentes viram frustradas as expetativas que legitimamente formaram quanto à permanência dum dado quadro legislativa (que, repete-se, não sofreu sequer, quanto ao que aqui releva, qualquer alteração desde há mais de 20 anos, por reporte à data dos factos dos autos).

Em conclusão final, improcedem as conclusões das alegações de ambos os RR./recorrentes.

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IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar as revistas.

Custas pelos RR/recorrentes.

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Lisboa,23/02/2021

António Barateiro Martins (Relator)

Ana Paula Boularot

Fernando Pinto de Almeida

*O relator declara que, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n. 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade dos Conselheiros adjuntos.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

______________________________________________________


[1] À época, estava em vigor a redação que a Lei 6/2006, de 27-02, deu ao art. 1091.º/1 do C. Civil, redação que só conferia o direito de preferência na compra e venda do local arrendado há mais de 3 anos (e não há mais de 2 anos, como na redação atualmente vigente).

[2] A A. não diz exatamente isto, mas é assim que o que diz deve ser juridicamente configurado, como é explicado pelo Prof. Henrique Mesquita, in Obrigações e Ónus Reais, maxime págs. 202 a 207.

[3] Estamos mais uma vez a dizer o que é a configuração jurídica correta do que se alega, como é explicado pelo Prof. Henrique Mesquita, local citado, segundo o qual (pág. 225) “o direito de preferência dotada de eficácia erga omnes não pode qualificar-se como um puro e simples direito potestativo. Trata-se, antes, de uma relação jurídica complexa, integrada por direitos de crédito e direitos potestativos, que visam proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição, por via negocial, de certo direito, logo que se verifiquem os pressupostos que condicionam o exercício da prelação” 
[4] Prof. Henrique Mesquita, obra citada, pág. 227.
[5] E não 3 dias, uma vez que o direito de preferência é conferido ao arrendamento “há mais de 3 anos” e não “há 3 anos”.

[6] Aqui se incluindo – não faz parte do objeto da revista – a “nova” argumentação extraída da cláusula 9.ª do contrato de arrendamento (em que se diz ter a arrendatária “direito de preferência na venda do imóvel”) e consistente em tal cláusula consagrar, segundo tal recorrente, um direito de preferência convencional, matéria (interpretação de tal cláusula) e vicissitude daí decorrente (ou não), para o desfecho final dos autos, que já respeita ao conhecimento e apreciação das exceções que não fazem parte do objeto da presente revista.
[7] Chamou-se-lhe “venda judicial”, mas, hoje e após a reforma de 2003, toda a venda executiva foi desjudicializada, tendo sido suprimida a distinção entre venda judicial e venda extrajudicial (Rui Pinto, Manual da Execução, pág. 912).
[8] Cfr., neste sentido, entre outros, Rui Pinto, Manual da Execução, pág. 965; e C. P C. Anotado, GPS, Vol. II, Pág. 247.
[9] Referência que, no caso, não é ociosa, uma vez que, embora a venda haja sido feita por negociação particular, foi designado um dia para a apresentação de propostas no âmbito da negociação particular (sendo a esta aplicável o art. 819.º do CPC, ex vi art. 811.º/2 do CPC).
[10] Como Lebre de Freitas, in A. Executiva, pág. 329
[11] Como Remédio Marques, Curso de Processo Executivo, pág. 404; ou Romano Martinez, Venda Executiva, pág. 336.
[12]Rui Pinto, Manual da Execução, pág. 965.

[13] E que levavam (como Anselmo de castro, in. Ação Executiva Singular, pág. 202) a que se considerasse que era com tal adjudicação (quando a décima parte do preço fosse paga) que a venda produzia os seus efeitos reais.
[14] C. P C. Anotado, GPS, Vol. II, Pág. 247.
[15] Em linha com o Ac. do STJ de 19/06/2018 (Relator Henrique Araújo), in DGSI.