FACTOS GENÉRICOS
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME PLURI-OFENSIVO
BEM JURÍDICO
CARACTERIZAÇÃO
DISTINÇÃO
MAUS TRATOS
CRIME DE PERSEGUIÇÃO
STALKING
CONCEITO
RECUSA DO JUÍZ
PRAZO PARA ARGUIÇÃO
Sumário

I – Para que o arguido tenha possibilidade de se defender da imputação que lhe é feita, é necessário que os factos que lhe são imputados se encontrem, se não concretizados no tempo, pelo menos balizados temporalmente.
II – Assim sendo, deverão ter-se como não escritos os factos imputados ao arguido que consubstanciem meras alegações genéricas e vagas, sem que se especifiquem as circunstâncias de tempo e o respectivo contexto, ainda que por aproximação, pois que tal impossibilita-o de se defender da imputação que lhe é feita.
III – Para além disso, tal impede ainda que, se for o caso de surgir alteração da qualificação jurídica para crime de natureza não pública, possa averiguar-se da tempestividade da apresentação da queixa e, consequentemente, da legitimidade do Mº Pº para prosseguir com a investigação criminal.
IV – No crime de violência doméstica o bem jurídico tutelado pela incriminação é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal, física e psicológica, da vítima e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
V – Assim sendo, a solução para delimitar os casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, está no conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos, os quais existirão quando, em face do comportamento demonstrado, reiterado ou não, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar ou especial desconsideração pela vítima.
VI – Essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução, é a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
VII – Quando, não obstante a separação do casal após um período longo de uma relação de namoro, um deles não interiorizou o términus da relação e passou a seguir o outro, perturbando o seu direito ao sossego e de se movimentar livremente, o mesmo não comete um crime de violência doméstica, mas um crime de perseguição ou “stalking”, que é caracterizado pela existência de um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo.
VIII – Contrariamente ao que acontece com os atos praticados por um juiz relativamente ao qual se verifique uma situação de impedimento legal, em que os atos praticados são, em princípio, nulos, já quanto à falta de imparcialidade, a lei apenas faculta às partes ou ao Ministério Público a possibilidade de pedir a recusa do juiz, mas apenas dentro do estatuído limite temporal para a sua formulação.

Texto Integral

Processo nº 1025/18.5PBMAI.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 1, Comarca do Porto, com o nº 1025/18.5PBMAI, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 17.05.2021, que condenou o arguido
- pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. no artº 152º nºs 1 al. b) e 2 al. a), 4 e 5 do Cód. Penal na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos;
- pela prática de um crime de acesso indevido p. e p. no artº 47º nº 1 da Lei nº 58/2019 de 08.08, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 9,00;
- nos termos do art.º 152.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal, foi o arguido ainda condenado nas penas acessórias de:
a) Proibição de contactos com a vítima, pelo período de 3 (três) anos;
b) Obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica/violência contra mulheres, programa para agressores organizado pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).
c) Proibição de uso e porte de armas;
- foi ainda o arguido condenado a pagar à demandante C… a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais pela prática do crime de violência doméstica, acrescida de juros vincendos à taxa legal, desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento.

Inconformado com a sentença condenatória, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. No entendimento do ora recorrente a prova produzida foi manifestamente contrária ao doutamente decidido.
2. A questão de fundo nos presentes autos, prende-se primeiramente em sindicar a prova (quer a prova documental quer a prova testemunhal) que o douto tribunal a quo recolheu e a interpretação que fez desta/destas, com repercussões na matéria de direito utilizada para fundamentar a douta sentença.
3. Com a exceção dos pontos 1; 2; 4; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 51; 52; 54 dos factos dados como provados todos os demais se encontram incorretamente julgados.
4. A questão de fundo nos presentes autos, prende-se primeiramente em sindicar a prova (quer a prova documental quer a prova testemunhal) que o douto tribunal a quo recolheu e a interpretação que fez desta/destas, com repercussões na matéria de direito utilizada para fundamentar a douta sentença.
5. Com efeito, considera o Recorrente que a prova testemunhal e documental presente nos autos não é suficiente para que se encontre cumprido o ónus da prova a que cumpria ao Ministério Público dar cumprimento.
6. Quanto aos FACTOS 3 e 5, considera o Recorrente que outra valoração deveria ter sido dada ao depoimento do Arguido e das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento. Pois várias foram as testemunhas que atestaram que o Arguido desde que regressou dos Açores estabeleceu a sua residência na esquadra de …, tendo para esse efeito arrendado um quarto, pelo que o arguido nunca viveu comunhão de bens com a assistente. Aliás, fica cabalmente demonstrado quer por documentos, quer por vários depoimentos, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [16:09]; [16:18]; [16:57]; bem como à assistente, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [07:13], bem como da testemunha D…, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 22/10/2020, nas concretas passagens [02:50].
7. Quanto aos FACTOS 6, 7 e 8, estes não deveriam de ter sido considerados e deveriam de ter sido dados como não provados, pois a Ofendida/Assistente alega tais factos mas não fornece aos autos prova dos mesmos sendo que, sem esta não pode, pois, o Arguido apresentar uma defesa condigna. Não basta, pois, para a produção de uma sentença a Ofendida /Assistente dizer que o Arguido proferiu tais expressões. Aliás, conforme já referido a assistente nunca logrou provar o conteúdo dessas mesmas mensagens. Não se conseguiram demonstrar que foram enviados pelo número de telemóvel do arguido, nunca foram junto aos autos, e as testemunhas, apesar de referirem que viram o conteúdo das mesmas, nunca conseguiram concretizar, tempo, modo e lugar das mesmas.
8. Quanto aos FACTOS 9 e 10, o tribunal não os pode considerar e dar como provados, pois o Arguido aceitar os mesmos pela construção completamente irreal da realidade, ficando demonstrado mais uma vez o erro óbvio e demasiado flagrante na apreciação da prova. Tendo em conta as declarações de ambos, e coincidentes, seria de prever que o tribunal a quo desse estes factos por não provados, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [21:15] a [21:34]; bem como à assistente, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [07:51] a [08:56].
9. Relativamente aos FACTOS 11, 12 e 13, a verdade, porém, é que, não resultou provado em sede de audiência e discussão de julgamento estes factos. Resulta claro que tal situação foi durante a relação de ambos. Resultou no seguimento de uma discussão que o casal teve (e que todos têm). No entanto, o que mais se destacará neste depoimento é tom de voz da Meritíssima Juiz para com o arguido. Demonstrando uma atitude severa e em tom “acusatório” para com este, interrompendo-o constantemente e impedindo-o de responder com clareza ao que lhe é perguntado, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [22:40] a [24:21].
10. No que respeita aos FACTOS 14, 15, 16, 17, 18, que estes factos deveriam de ter sido dados como não provados, pois não há prova feita em julgamento que ateste esse medo da assistente e a má conduta do arguido, tendo sido mais uma vez preteridas as declarações que o arguido prestou. O arguido admite que foi ao encalce da assistente por forma a falar com ela. Tendo conseguido alcançá-la e ela se recusar a falar. Horas mais tarde é a própria assistente que toma a iniciativa de entrar em contacto com o arguido, combina um local e encontra-se presencialmente com ele noutro local. Demonstrou-se mais uma vez a errada apreciação do tribunal a quo na apreciação da prova, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [57:40], [1:01:16] a [1:01:48]. 11. Quanto ao FACTO 19, não foi produzida qualquer prova em abono do pretendido pela Ofendida/Assistente e mesmo assim, esta consegue ver a sua pretensão prosseguir. Para o Tribunal ad quo bastou o que a Ofendida/Assistente diz a respeito disto ou daquilo, mesmo que não faça prova porque para este Juízo as declarações da Ofendida/Assistente foram e são o bastante. Note-se que até a própria Ofendida/Assistente, referiu que a habitação não tem sistema de videoporteiro. No entanto e ainda assim, tocam-lhe à campainha às 3horas da manhã e é o Arguido e ponto, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [1:32:02] a [1:32:25]; bem como à assistente, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [23:41], [48:16] a [48:34].
12. Quanto aos FACTOS 20 e 21, estes não deveriam de ter sido dados como provados. A ofendida/ assistente diz e notem bem, diz, que o Arguido entre as 9:30horas, 10 horas da manhã de dia 19 de Outubro de 2018 efetuou estes factos, mas a verdade é que resultou inequivocamente provado em sede das declarações prestadas pelo Arguido bem como da prova documental junta aos autos, concretizando, as escalas de serviço juntas aos autos que o mesmo se encontrava naquele dia e hora a prestar serviço nas urgências do hospital …. Ainda assim, a Ofendida/ Assistente remete sempre como prova para supostas mensagens remetidas, no entanto quando apresentou queixa crime não fez junção da respetiva prova, nem naquela data, nem posteriormente constam dos autos o teor de tais mensagens de texto. Mais um exemplo demonstrativo de que o tribunal a quo não valorou qualquer prova. Neste caso existindo provas documentais que contradizem a situação que a assistente refere, ainda assim o tribunal a quo decidiu nem sequer as relevar, quando estamos a falar de uma prova cabal e demonstrativa de que o arguido se encontrava a cumprir um serviço de gratificado, e não à porta da casa da assistente, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [1:48:34] a [1:49:08]; [1:37:33] a [1:39:42], e [1:39:47] a [1:40:17]; bem como à assistente, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [47:13] a [48:57], e [49:14] a [50:08].
13. No que respeita ao FACTO 22 e 23, estes deveriam de ter sido dado como não provados. Quanto a estes, o Arguido encontrava-se em Serviço, a efetuar um serviço no Estádio …, que decorreu entre as 12:30horas e as 16:30horas. Não sendo certo porém de que, além de que o arguido ter de se apresentar ao serviço, conseguia estar àquela mesma hora na …? Pelo que, só poderia depreender que ou o Arguido tem o dom da omnipresença ou a Ofendida/ Assistente tem efetivamente o assunto amoroso mal resolvido e vê o Arguido em todo o local, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [01:33:59] a [01:34:14], [01:34:56] a [01:35:08], e [01:40:22] a [01:40:55]; bem como à assistente, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [49:14] a [49:36], [49:36] a [51:31], e [52:01] a [52:37].
14. Quanto aos FACTOS 24 e 25, verifica-se mais uma vez que não foi considerada a presunção da inocência do arguido, e nem sequer foram tidas em conta as declarações do arguido. O mesmo foi logo acusado como sendo o autor da colocação do dispositivo, quando não há nenhuma prova inequívoca de que foi o arguido o responsável pela sua colocação. Não poderá resultar das regras da experiência comum, que pelo simples facto de a assistente e o arguido durante o tempo da sua relação, a mesma ter sido conflituosa (conforme resultou do testemunho da própria assistente, do arguido e de da grande maioria das testemunhas), que tenha sido o arguido a colocar o dispositivo no veículo da assistente. Como também não poderá ser presumível pelo facto de o arguido ser agente da PSP e de ter “facilidade” em “lidar” com esse tipo de aparelho. Mais uma vez não ficou cabalmente demostrado pelo tribunal a quo, tanto por prova testemunhal, documental ou até pericial (que poderia ter sido requerida pelo MP, e não o foi), que tenha sido o arguido a colocar lá tal dispositivo, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [33:41] a [35:41].
15. Relativamente aos FACTOS 26, 27, 28, 29, 30 e 31, ficou mais uma vez demonstrado que não foi apreciada a prova de forma correta, pois o arguido não foi interceptado pelos agentes de autoridade de …, mas sim convidado por um colega a entrar na esquadra para conversarem. O arguido em nada perseguiu a assistente. Foi até à esquadra de … após ter sido informado por um colega de que alguém estaria a apresentar queixa contra ele. E mesmo após se ter deparado com a assistente, não a intimidou, não esteve fisicamente junto com ela, nem sequer lhe dirigiu qualquer palavra. Como de igual forma não foi o arguido a colocar o dispositivo no veículo da assistente, de modo a que pudesse controlar as movimentações da assistente, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [37:37], [37:43] a [40:31], e [1:41:15] a [1:41:58].
16. Quanto ao FACTO 32, deveria de ter sido dado como não provado. A intenção do arguido não foi a de perturbar a livre vontade da assistente. Foi sim de tentar perceber o contexto para a apresentação da queixa e no sentido de haver uma desistência da parte desta, pois este tinha 3 filhos menores para sustentar. Neste caso, foram mal interpretadas as declarações do arguido. Pese embora tenha intercedido junto do pai da ofendida para apelar ao coração desta e esta desistir da queixa apresentada, não teve o arguido a intenção de a condicionar. Foi um simples apelo, que em nada poderia condicionar a assistente. Diz-nos o senso comum que quando alguém nos pede algo, podemos acatar ou não. E foi nesse sentido que o arguido falou com o pai da ofendida. Não pressionou, não insistiu mais. Nem com a ofendida, nem com qualquer membro da sua família, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [32:41].
17. Relativamente ao FACTO 33, este não deveria de ter dado como provados. Desde já, porque a Ofendida/ Assistente apresenta queixa crime contra o Arguido na qual alega que, este facto terá ocorrido às 10:30 horas da manhã, sendo que posteriormente corrige a queixa crime apresentada alterando a hora para as 22:30horas. Poderá entender-se aqui que a Ofendida/ Assistente teve conhecimento de que o Arguido naquele dia àquela hora estava a trabalhar pelo que, resolveu alterar a hora dos alegados factos, mal sabendo que, o Arguido havia ido ao cinema e estado acompanhado naquela noite, tendo feito prova bastante em Tribunal, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente ao arguido, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [01:40:22] a [01:43:09], [01:43:58] a [01:44:38], e [01:44:51] a [01:46:11]; bem como da testemunha E…, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 22/10/2020, nas concretas passagens [07:50] a [09:05], e [09:05] a [09:41], bem como da testemunha D…, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 22/10/2020, nas concretas passagens [07:40] a [09:11].
18. Quanto aos FACTOS 34, 35, 36 e 37, deveria tê-los considerado como não provados, pois de facto não sucederam da forma relatada na acusação. Ficou demonstrado pelas declarações deste bem como pelas testemunhas F… e pelo pai da assistente, que o arguido não quis perturbar a assistente. Nunca a agrediu. Aliás, ficou também já demonstrado, que em muitos dos factos dos quais a assistente acusa o arguido, que ainda são do tempo em que ambos mantinham uma relação. E que terão surgido em contextos de pós-discussão. Sem contar que, os contactos que houve posteriormente, foram já fora da relação conjugal, e dos quais o arguido sempre se absteve de falar com a assistente diretamente. Manteve sempre a distância e respeitou o seu espaço. O arguido nunca procurou a assistente, nem a mesma se poderia sentir “angustiada” e “instável”, quando o arguido nada fez para que a mesma se pudesse sentir dessa forma, cfr. resulta dos depoimentos transcritos, relativamente às alegações da Sra. Procuradora, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/10/2020, nas concretas passagens [4:35] a [5:46], [6:35] a [6:36]; bem como à assistente, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 03/09/2020, nas concretas passagens [09:14] a [09:25], bem como da testemunha G…, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/09/2020, nas concretas passagens [02:37] a [02:48], bem como da testemunha F…, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/09/2020, nas concretas passagens [02:54] a [02:57].
19. DA NULIDADE DA SENTENÇA: Pese embora a acusação proferida pelo Digníssimo Ministério Público, entendeu a Digníssima Procuradora em sede de alegações que: “[12:41] Parece-nos que elas não são o suficiente para que esteja em causa aqui o crime de violência doméstica desde logo porque após a própria separação, não há agressões físicas, não há ameaças há uma perseguição, parece-nos e que configura um ilícito que é o artigo 154 – A do CP. Não há factos suficientes para chegarmos aqui ao crime de violência doméstica em causa. [13:12]”.
20. Posto isto, tendo por referência as alegações proferidas pelo Ministério Público, tem que ser chamada à colação a ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA suscitada pela Exma. Sra. Procuradora.
21. Sem prejuízo, e após a produção de prova a Procuradora do Ministério Público entendeu que, não foram provados factos suficientes para condenar o aqui Recorrente do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado.
22. Assim, o Ministério Público proferiu o seu entendimento no sentido de que ao ser o Arguido condenado o crime em questão seria o crime de perseguição previsto no artigo 154 – A do Código Penal, sendo que, no que ao crime de devassa por meios informáticos se encontrava acusado e agora condenado o mesmo encontra-se em concurso aparente com este tipo ilícito de crime a saber o crime de perseguição.
23. No entanto, o tribunal a quo fez tábua rasa às alegações da Exma. Dra. Procuradora. Aliás fez tábua rasa desde o início da discussão de julgamento a todo e qualquer facto em abono do arguido, violando como denotado em todo este Recurso aos princípios basilares do nosso processo penal nomeadamente ao princípio da inocência; do in dúbio pro réu e da imparcialidade do juiz.
24. Posto isto, e por ser devido de Lei, Justiça e Direito, a Juiz deveria ter-se pronunciado acerca da alteração da qualificação jurídica do crime, o que não o fez, descurando todos os meios de defesa do Arguido.
25. Por consequência do supra vertido, estamos perante uma nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP nulidade que desde já e aqui se requer com as devidas consequências legais.
26. DO NÃO PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTO LEGAIS DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: Nas alegações da Exma. Sra. Procuradora-Adjunta do Ministério Público, a tipologia do crime, não se encontra adequada em função dos factos que se consideraram provados.
27. A mesma defende que melhor se enquadrariam esses factos no crime de perseguição, previsto no artigo 154º-A, do Código Penal, ao invés do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º, do Código Penal.
28. De facto, e conforme o já acima elencado e claramente demonstrativo, verifica-se que a moldura penal do crime de perseguição é mais benéfica ao arguido, do que a pena referente ao crime de violência doméstica.
29. Importa relembrar que a relação entre a assistente e o arguido já tinha terminado. Raras foram as vezes em que voltaram a falar.
30. Não se consideraram provadas quaisquer tipos de ameaças após o término da relação. Não houve contactos físicos, não se verificou nada que preenchesse a tipologia do crime de violência doméstica.
31. A conduta que o arguido manteve após o fim da relação de ambos, nunca poderia ser considerada como elemento constitutivo do crime, ou seja, não se verifica preenchido o tipo objetivo do crime, pois não houve qualquer ameaça, ou até qualquer contacto do arguido com a assistente, e não se verifica também o tipo subjetivo do crime, o dolo.
32. Assim, e tendo em conta que mesmo que se conseguisse provar esses factos imputados à conduta do arguido, o crime de perseguição é um crime semi-público. Pelo qual dependeria sempre de queixa. O que a assistente no presente caso não fez quanto ao crime de perseguição.
33. Desta forma, nunca poderia o arguido ser condenado pela prática do crime de violência doméstica.
34. Pelo que o tribunal a quo ao decidir como decidiu, deveria de ter decidido pela absolvição pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152º do Código Penal e assim consequentemente e de forma forçosa deveriam ser retiradas ao Arguido as penas acessórias aplicadas ao arguido, bem como o pagamento da indemnização à assistente no valor de 5.000,00 € (cinco mil Euros) por falta de pressupostos legais para a aplicação daquele normativo legal.
35. DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO BASILAR DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ: Recorrendo às lições académicas em matéria penal e processual penal, é unânime o entendimento de que, a imparcialidade do juiz é um pressuposto de validade do processo! Este princípio assume tamanha importância que, lhe mereceu caráter universal e consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo X onde se pode ler: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.
36. A imparcialidade do juiz é com efeito uma garantia de justiça para as ? pelo que, e neste seguimento têm as partes o direito de exigir um juiz imparcial. É considerado como imparcial o juiz que não tenha interesse no objeto do processo nem queira favorecer uma das partes.
37. No entendimento do Arguido, aqui Recorrente, o Tribunal a quo não assegurou tal princípio de imparcialidade sendo de lamentar ter sido permitido o julgamento até final sem que fosse pedida a sua escusa.
38. Ilustrando o Alegado pelo arguido/recorrente, verifica-se tais factos pelas declarações que o arguido prestou, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 09/09/2020, nas concretas passagens [23:00], [24:10], [32:10], [53:32], [53:41], [55:21].
39. Ficou ainda ilustrado nas declarações que a assistente prestou, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 09/09/2020, nas concretas passagens [05:54], [27:44] e [38:34].
40. Ficou ainda ilustrado nas declarações que a testemunha F… prestou, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/09/2020, nas concretas passagens [23:30], [23:41], [24:19], [24:41], [25:13].
41. Ficou ainda ilustrado nas declarações que a testemunha G… prestou, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/09/2020, nas concretas passagens [14:01].
42. Ou ilustrado, através das declarações que a testemunha H… prestou, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/09/2020, nas concretas passagens [10:41].
43. Ou ainda ilustrado, através das declarações que a testemunha I… prestou, conforme consignado em ata de audiência de discussão e julgamento de 29/09/2020, nas concretas passagens [20:19].
44. Ficou assim demonstrado a falta de imparcialidade por parte da Juiz. Foram notórios os vários exemplos indicados. Foram notórios o tom de voz que colocava nas suas afirmações. Foram notórias as várias interrupções à mandatária do arguido, quando esta desempenhava o seu trabalho e o tentava desenvolver com todo o brio e profissionalismo que lhe é reconhecido.
45. Ficou-se com a sensação de que o arguido quando entrou na sala de audiências já estava condenado. O princípio de equidade e de juiz natural não se verificou no presente caso. Sendo e muito prejudicial para o arguido, tendo em conta de que este foi condenado.
46. Assim, de harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 43.º, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, e para tanto, deve o juiz aderir ao: “(...) princípio do juiz natural, previsto no artigo 32.º, n.º 9, da CRP, configura uma garantia fundamental do processo criminal, inserida, prevalentemente (em vista, maxime, da sua inserção sistemática), no âmbito da proteção dos direitos de defesa, para proteção da liberdade e do direito de defesa do arguido, garantindo o julgamento por um tribunal (um juiz) predeterminado e não ad hoc criado ou arvorado competente. O juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados.” – Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021 no âmbito do processo nº 322/17.1YUSTR.L1.S1, disponível para consulta em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5f220ed2cf387b28802586950035fa38?OpenDocument
47. Razão pela qual, a sentença fere de vício, devendo assim o arguido ser declarado ser absolvido dos crimes pelos quais foi condenado, bem como das penas acessórias e do PIC, por falta de imparcialidade da Meritíssima Juiz no decorrer de todo o julgamento, bem como na elaboração da douta sentença.
48. DAS PENAS ACESSÓRIAS: Sem prescindir, ainda se dirá que foi o arguido condenado nas seguintes penas acessórias de:
- Proibição de contactos com a vítima, pelo período de 3 (três) anos;
- Obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica/violência contra mulheres, programa para agressores organizado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).
- Proibição de uso e porte de armas;
- Julgar procedente o pedido de indemnização civil e, condenar o arguido/demandado civil no pagamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais pela prática do crime de violência doméstica, à Assistente/demandada civil.
49. No quanto a esta parte importa referir que tendo em conta o supra referido, o arguido deveria de ter sido absolvido pelos crimes pelos quais foi condenado. Nesse sentido, a culpabilidade do arguido é nula. Não existe. O arguido não praticou os factos pelos quais vem acusado.
50. Assim, não poderá haver pena do agente, quando não há culpa! Como de igual modo não poderá haver uma pena superior ao grau de culpa, o que neste caso não existe. Nunca poderiam assim ser aplicadas as penas acessórias que foram aplicadas ao arguido, quando ele não praticou os factos.
51. Ademais, não podemos deixar de verificar que o tribunal a quo não fixou um prazo para a pena acessória de proibição de uso e porte de arma. Deveríamos considerar pela leitura que se faz da douta sentença, que essa pena acessória ficará até à eternidade? Ficará ad eternum a condicionar a vida do arguido?
52. A douta sentença tem alguns erros clamorosos na sua fundamentação. Sendo assim, este mais um deles. Devendo para tanto, ser o arguido absolvido das penas acessórias a que foi condenado.
53. DA VIOLAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: Em conformidade com o supramencionado, e tendo em conta o erro notório na apreciação da prova, bem como ainda a falta de imparcialidade demonstrada pela Meritíssima Juiz, pode-se concluir que estamos perante uma violação clara de um direito fundamental, constitucionalmente consagrado: O Princípio da presunção da inocência.
54. Na sentença proferida nos autos, o tribunal a quo não fundamentou com rigor e de que forma é que julgou provados determinados factos. E baseou esses factos como provados, com base em suposição ou com base em conclusões, cuja sua fundamentação não se verificou.
55. E dessa forma, verifica-se uma clara violação do previsto no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, pois de certo modo deixa de parte todos os efetivos direitos de defesa do arguido.
56. Já que, estando em dúvida a Meritíssima Juiz do tribunal a quo, deveria de: “V- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. VI -A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.” – Vide Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2018 no âmbito do processo nº 28/16.9PTCTB.C1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/20f6de013f4c73968025831900328472?OpenDocument
57. Ou seja, em caso de dúvida deveria de ser sempre o arguido favorecido na sua defesa. De acordo com a matéria de facto dada como provada, com a qual já tivemos oportunidade de mostrar que não concordamos, e no caso dos restantes fundamentos supra apresentados serem desatendidos, efetivamente resulta que por exemplo não poderá ser imputada ao arguido a colocação do localizador na viatura da ofendida/assistente.
58. Não houve uma única testemunha que o tenha afirmado, inclusivamente a ofendida/assistente não sabe quem colocou o localizador, e não se pode dar um facto como provado, pelo simples facto de o arguido ser agente da PSP, e ter “algum conhecimento” sobre esse tipo de dispositivos.
59. Verifica-se assim que foi violado o princípio constitucional (artigo 32º, n.º 2 da CRP) que prevê a presunção de inocência do arguido. Pode-se concluir até que o arguido já tinha sido “culpado” pela Meritíssima Juiz do tribunal a quo sem sequer ter sido ainda sequer julgado.
60. O tribunal da Relação de Lisboa tem frisado, e constitui entendimento doutrinário assente, que: “I — A verdade a que se chega no processo não é a verdade verdadíssima, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não [é] uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida». Tratar-se de uma verdade aproximativa ou probabilística, como ocorre com a toda a verdade empírica, submetida a limitações inerentes ao conhecimento humano e adicionalmente condicionada por limites temporais, legais e constitucionais. Assim, numa indagação racional sobre o mundo e o homem, a verdade material consiste na conformidade do pensamento ou da afirmação com um dado factual, material ou não. II — A doutrina tem agasalhado e compactado o critério operante de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência (cf. n.º 2 do art. 32.º da CRP) e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável. III — A dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given) poderá consistir na dúvida que seja “compreensível para uma pessoa racional e sensata”, e não “absurda” nem apenas meramente “concebível” ou “conjectural”. Nesta óptica, o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados só se poderá alcançar quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível. III — Contrariamente ao que acontece v.g. com o n.º 2 do art. 192.º, do Código de Processo Penal Italiano que estatui que “a existência de um facto não pode ser deduzida de indícios a menos que estes sejam graves, precisos e concordantes” a nossa lei adjetiva penal não regula os pressupostos específicos para a operacionalidade da prova indiciária. IV — Os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados pelo Tribunal de julgamento em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido/acusado, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido/acusado e o crime, quer os “contra indícios”, isto é, os indícios de cariz negativo que a partir de máximas de experiência, exaurem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível descoincidente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao arguido/acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo”. – Vide Acórdão da Relação de Lisboa de 04-07-2012 no âmbito do processo nº 679/06.0GDTVD.L1-3, disponível para consulta em http://www.gde.mj.pt/jtrl.NSF/33182fc732316039802565fa00497eec/8e6a4b734855238b80257a3a00628c9f?OpenDocument
61. Bem como refere ainda o Tribunal da Relação do Porto, que afirma que: “III - A presunção de inocência que impera em direito processual penal exige, no entanto, que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais; tal exige que a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal seja particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário; além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência. IV - Resultando as presunções de facto - judiciais, naturais ou “hominis” –, de regras da experiência comum, havendo uma falha evidente na utilização de uma presunção judicial ou natural que resulte do texto da fundamentação de uma decisão da matéria de facto, tal corporiza um erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, 2, c), do C.P.P.).”. – Vide Acórdão da Relação do Porto de 14-07-2020 no âmbito do processo nº 11/17.7GFVNG.P1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c8707109ca41e
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62. O princípio da presunção de inocência, que vem consagrado no artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, é elevado à garantia de direito fundamental, e constitui um verdadeiro princípio de prova. Assim, o princípio da presunção de inocência identificado em termos adjetivos como o princípio 'in dubio pro reo', tem incidência na motivação de todas as decisões processuais.
63. Assim, e como já previamente enunciado, o princípio da presunção de inocência impõe que, em matéria de apreciação da prova, se decida sempre a favor do arguido.
64. A Meritíssima Juiz teria que analisar a prova testemunhal e a prova documental à luz dos princípios que informam os direitos, liberdades e garantias constitucionais.
65. Tendo em conta que houve vários factos que foram dados como provados pelo tribunal a quo, e já acima impugnados, os quais se revelaram essenciais para que a Meritíssima Juiz do tribunal a quo tivesse decidido, como decidiu.
66. Estes factos (em caso de dúvida) deveriam de ter sido analisados também em benefício do arguido, e não analisados em prejuízo deste.
67. Sucede que decorreu da fundamentação da douta sentença, que há uma flagrante desconformidade com os normativos que informam a lei fundamental, e, por via disso, uma violação do princípio constitucional da presunção de inocência consubstanciado no artigo 32°, n.º 2 da CRP.
68. Assim, acresce que a Meritíssima Juiz do tribunal a quo ao valorar toda a prova apresentada pelo Ministério Público, mesmo tendo em conta que para muitos desses factos não houve qualquer documento ou qualquer testemunha que os corroborassem, incorreu numa clara violação de todos os princípios fundamentais que constituem a consagração das garantias de defesa do arguido enunciados na Lei Fundamental, violando-se desta forma o disposto no n.º 2 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
69. Inconstitucionalidade esta que se verifica na sentença vertida nos autos e que desde já se argui para os devidos efeitos legais, uma vez que, a mesma viola os princípios fundamentais de defesa do arguido, nos termos do disposto no do artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que os factos provados integram a prática do crime de perseguição p. e p. no artº 154º-A do Cód. Penal, para além de um crime de injúrias, embora admita que tal entendimento não é unânime.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: transcrição
1 - O arguido B… encontra-se divorciado.
2 - O arguido e a ofendida C… mantiveram um relacionamento amoroso que se iniciou no decurso do ano de 2015 e que perdurou durante três (3) anos e quatro (4) meses.
3 - O arguido e a ofendida, viveram em comunhão de cama e mesa a partir de Setembro de 2017 e até 15 de Agosto de 2018.
4 - Da união do casal não nasceram filhos.
5 - O casal fixou a sua residência em Vila Nova de Gaia, em casa arrendada pela ofendida.
6 - Logo após o relacionamento de ambos, o arguido adoptou uma atitude agressiva e conflituosa para com a vítima por via de ciúmes excessivos que nutria daquela, tentando controlar com quem a mesma se relacionava ao longo do dia e para onde se deslocava.
7 - No período da aludida coabitação, na casa de morada de família, sem qualquer motivo entre duas a três vezes por mês, o denunciado dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe as seguintes expressões: «Puta. Dissimulada. Doente. Mentirosa. Reles».
8 - Nesse período, em data não apurada, no parque de estacionamento de um Hipermercado denominado J…, em Vila Nova de Gaia, o arguido dirigiu-se à ofendida/companheira, dizendo-lhe: «Puta. Dissimulada. Doente. Mentirosa. Reles».
9 - Por via do comportamento do arguido, a ofendida decidiu separar-se daquele a 15 de Agosto de 2018.
10 - O arguido não aceitou o términus da relação e não interiorizou o desvalor da sua conduta, não obstante a vítima ter manifestado o seu desagrado.
11 - A partir de então e pelo menos até ao final do mês de Dezembro de 2018, o arguido continuou a controlar a vida da ofendida e impediu-a de gozar livremente o seu direito de livre movimentação.
12 - O arguido seguiu a vítima, cerca de doze (12) vezes, apeado ou ao volante do seu veículo, para todos os locais para onde a mesma se deslocou, incluindo a residência daquela.
13 - Nesse período, o arguido ainda se deslocou pontualmente até ao local de trabalho da ofendida, sito na Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia a fim de indagar factos da vida privada da ofendida.
14 - Em data não apurada do período verão do ano de 2018, mas já depois de mencionada data de separação do casal, pelas 20h30, o arguido seguiu a vítima, durante trajeto não concretamente apurado entre Vila Nova de Gaia e a cidade do Porto, até às instalações do K…, local para o qual a vítima se fez deslocar para se encontrar com uma amiga.
15 - Nessa altura, no parque de estacionamento reservado a tal entidade de saúde (K…), a ofendida estacionou o seu carro e entrou no carro conduzido pela sua amiga F…, a qual pretendia ausentar-se do local com a sua passageira.
16 - Nesse local o arguido seguiu no encalce da mencionada viatura, obrigando a sua condutora a realizar varias voltas no referido parque para alcançar uma saída para o exterior até que o arguido parou o seu carro à frente da saída mais próxima do referido automóvel.
17 - Ato contínuo, o arguido saiu do seu carro e dirigiu-se a pé até ao veículo no qual se fazia transportar a vítima, a qual se apresentava bastante nervosa com a presença daquele.
18 - Aproveitando a saída do arguido do seu carro, a condutora da outra viatura engrenou a marcha atrás e abandonou o local por outra saída.
19 - No dia 25 de Setembro de 2018, o arguido deslocou-se à habitação da vítima, sita na Rua …, Lote …, 1.º Traseiras, Vila Nova de Gaia, e tocou à campainha da visada, não tendo esta ultima franqueado a porta ao arguido.
20 - No dia 19 de Outubro de 2018, o arguido deslocou-se novamente à casa da vítima e tocou de forma insistente à campainha, não lhe tendo sido franqueada a entrada.
21 - Porque tinha a plena noção que a ofendida ali se encontrava e não pretendia falar com ele, o arguido remeteu um SMS para o telemóvel daquela e solicitou-lhe que falasse com ele, alegando que precisava de falar com ela, não obtendo reação por parte da vítima.
22 - No dia 20 de Outubro de 2018, antes das 13.00 horas, a ofendida foi surpreendida pela presença do arguido quando se deslocava para uma confeitaria situada nas proximidades da sua residência.
23 - Temendo o que o arguido pudesse atentar contra si, decidiu deslocar-se no seu veículo de marca Renault, modelo …, matricula ..-..-UO, até Valongo, local de residência dos seus pais.
24 - Nesse mesmo dia, 20 de Outubro de 2018, pelas 13h00, na Rua …, …, a vítima encontrou um pequeno saco em plástico de cor preta preso por um mosquetão num cabo existente por baixo da sua viatura na zona da longarina da porta do condutor.
25 - Esse embrulho continha no seu interior um localizador GPS com o IMEI n.º …………….
26 - No mesmo dia, tal objecto acabou por ser apreendido por elementos da Policia de Segurança Pública da Esquadra … - Maia.
27 - De seguida, a vítima decidiu formalizar queixa-crime contra o arguido nas instalações da referida Esquadra da PSP de … - Maia.
28 - Pelas 19h20 do mesmo dia, na Rua …, … - Maia, depois de abandonar as sobreditas instalações policiais, a vitima foi surpreendida pela presença do arguido junto ao veiculo no qual se havia feito transportar para a referida Esquadra, tendo aquele seguido a ofendida desde Vila Nova de Gaia para o local a fim de controlar as deslocações daquela e abordá-la.
29 - Nessa altura, o arguido acabou por ser interceptado por um elemento das forças policiais –um agente da Policia de Segurança Pública da Esquadra … - Maia.
30 - Nessa sequência, o arguido foi abordado pelas forças policiais na Esquadra … - Maia.
31 - Tal aparelho havia sido ali colocado em data não apurada pelo arguido a fim de controlar as movimentações da ofendida, passando a segui-la por vários locais.
32 - No dia 23 de Outubro de 2018, pelas 13.00 horas, o arguido deslocou-se novamente até à casa da vítima (pais da vitima), local onde solicitou ao pai da ofendida que intercedesse junto da filha para que a mesma desistisse da queixa formalizada contra ele, visando assim perturbar o livre arbítrio da ofendida.
33 - No dia 4 de Dezembro de 2018, pelas 22h20, o arguido deslocou-se de novo até à habitação da ofendida e abriu a porta de entrada do prédio da visada, mas, porque foi surpreendido pela presença da vítima e de terceiro, acabou por abandonar o local.
34 - A partir da data da separação do casal e pelo menos até ao final do mês de Dezembro de 2018, o arguido anunciou por diversas vezes à vítima no decurso de conversações telefónicas que mantinha com a mesma, entre outras as seguintes expressões: «És uma filha da puta. Não vales merda nenhuma. Não serás de mais ninguém. Irei fazer-te a vida negra».
35 - Por via das agressões físicas sofridas e maus-tratos psíquicos, a ofendida sofreu angústia, instabilidade, ansiedade, vergonha e agitação.
36 - Com tal conduta, o arguido vinha tratando de forma cruel a ofendida, sabendo que com ela estava a manter uma vida de casal, agindo com o propósito concretizado de molestar física e psiquicamente a mesma, quer ofendendo a sua honra e consideração, quer o seu corpo e a sua saúde.
37 - Ao proceder com a conduta acima descrita de forma reiterada depois de se ter separado da vítima, o arguido procurou perturbar o equilíbrio emocional da ofendida e amedrontá-la.
38 - O arguido bem sabia que a sua conduta era idónea a provocar na ofendida medo ou receio pela sua integridade física e até pela sua vida e a coactar-lhe a sua liberdade de movimentos.
39 – Através da utilização do aludido localizador, o arguido tinha a plena consciência de que recolhia dados respeitantes à ofendida de forma informatizada, os quais lhe eram transmitidos à distância e em tempo real através do uso de tecnologias móveis e electrónicas e que dessa forma violava o direito daquela à reserva da sua intimidade e vida privada e liberdade de deslocação.
40 - O arguido sabia que ao colocar o aludido dispositivo no veículo da vítima que procedia ao registo e consulta de dados atinente à vida pessoal e familiar da ofendida à revelia da sua titular e sem qualquer autorização válida para o efeito e que dessa forma violava o direito daquela à proteção de tais dados de natureza pessoal.
41 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e que, por isso, incorria em responsabilidade criminal.
42 - Em 04.09.2020 foi elaborado Relatório Social para aplicação de pena ao arguido de fls. 256 a 258 e ss., que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde consta designadamente:
A - O arguido B… é agente principal da Polícia de Segurança Pública, afecto desde setembro de 2017 à Divisão Policial de Vila Nova de Gaia/Esquadra …, residindo, segundo refere, nas instalações daquela esquadra, onde lhe são reconhecidas a nível profissional, competências relacionais e profissionais.
B - Até 2017, e por um período de cerca de dois anos (2015-2017) esteve afeto à Esquadra …, Arquipélago dos Açores, período de tempo que coincidiu com parte do período de tempo de duração do relacionamento afetivo com C…, ofendida nos presentes autos, enquanto esteve naquele Arquipélago, o arguido efetuou em média 3 a 4 deslocações ao J….
C - O casal separou-se no mês de Agosto de 2018.
D - A dinâmica relacional com a ofendida pautou-se pela existência de conflitualidade relevante, para a qual terão contribuído, entre outros factores, a presença de sentimentos de ciúme e posse no arguido, bem como a presença de baixo limiar de tolerância à frustração e à contrariedade.
E - A instabilidade relacional vivenciada pelo arguido refletiu-se no desempenho profissional, nomeadamente pelas dificuldades de concentração e execução das tarefas, tendo frequentado duas sessões de apoio psicológico proporcionado pela Polícia de Segurança Pública.
F - A separação do casal é considerada ultrapassada pelo casal em termos afectivos, sendo referenciada a inexistência de contactos e/ou de incidentes.
G - As características do arguido, acima identificadas, manifestaram-se em anteriores relações afetivas, nomeadamente na relação com L…, com quem tem uma filha em comum, de 11 anos de idade, e, de quem, se encontra separado há alguns anos.
H - A manutenção de padrão de relacionamento interpessoal desajustado naquela relação, de natureza impulsiva/agressiva, esteve na origem do contacto com o sistema de administração da justiça penal por factos de idêntica tipologia criminal (factos de 2012) e que culminou na sua condenação na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, tendo ainda sido condenado na pena acessória da frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica, dinamizado por esta DGRSP. Tal acompanhamento foi levado a cabo por esta equipa Porto Penal 3, tendo revelado, na sua generalidade, adesão à intervenção técnica e concretamente ao Programa para Agressores de Violência Doméstica, que cumpriu com assiduidade e participação proactiva. I - Tal condenação teve impacto a nível profissional, tendo sofrido a aplicação de pena de multa no âmbito do procedimento disciplinar interno.
J - No plano pessoal e afectivo, B… identifica duas relações afectivas anteriores relevantes: o matrimónio com a mãe dos dois filhos mais velhos, atualmente com 21 e 17 anos de idade, a viverem com a progenitora em Londres, e o segundo matrimónio, o acima referido, com a mãe da filha mais nova, de 11 anos de idade.
K - O arguido mantém convívio regular com os descendentes mais velhos, que percepciona como positivo e afectivamente gratificante.
L - O arguido mantém com a descendente mais nova, um convívio menos regular, contudo é referenciada a existência de bom relacionamento entre ambos.
M - No que concerne à família de origem, o convívio e apoio desta está limitado pelo distanciamento geográfico, uma vez que quase todos os irmãos se encontram emigrados.
N - O arguido reconhece em abstracto a ilicitude dos factos de que vem acusado, bem como a existência de vítimas e danos, não sendo o primeiro contacto do arguido com o sistema de administração da justiça penal, nomeadamente por factos de idêntica tipologia criminal, o discurso apresentado reflete atitudes de minimização.
O - No que concerne ao impacto da actual situação jurídico-penal, aguarda com ansiedade o desfecho do presente processo judicial, quer por temer eventuais consequências mais gravosas quer pelas consequências que possam eventualmente resultar do novo procedimento disciplinar a decorrer na Polícia de Segurança Pública.
Concluindo que:
P - O Arguido sofreu condenação anterior por factos de idêntica tipologia criminal, verificando-se que o discurso apresentado reflete atitudes de minimização.
Q - A separação da ofendida encontra-se aparentemente resolvida em termos afectivos e emocionais, sendo referenciada a inexistência de contactos e/ou incidentes desde há mais de um ano.
R - A manifestação persistente nas relações de intimidade das características do arguido onde predominam os sentimentos de ciúme e posse, sendo ainda notória a presença de baixo limiar de tolerância à frustração e às contrariedades.
*43 - O arguido é Agente Principal da Policia de Segurança Publica, onde entrou em 1998, encontra-se a exercer funções na Esquadra … – Vila Nova de Gaia, recebendo a remuneração liquida de € 1.300, 00 euros, mais subsídios e os serviços remunerados da PSP, cujo valor não quantificou.
44 - Vive e dorme neste momento, segundo diz, na Esquadra … – Vila Nova de Gaia, pagando € 25,00 euros mensais.
45 - Tem três (3) filhos, de 11 (1 menina do 2.º casamento), 17, e 21 (2 rapazes do 1.º casamento) anos, que estudam e vivem com as respectivas mães em … e em Londres, entrega 150,00 euros por mês a título de alimentos para cada um dos filhos, num total de 450,00 euros mensais.
46 - Tem carro, paga 267,00 euros por mês ao banco.
47 - Paga 350,00 euros por mês ao banco, de crédito bancário. 48 - Estudou até ao 12.º ano de escolaridade.
49 - Do seu CRC de fls. 225 e ss. atualizado a fls. 290 e ss. consta uma (1) condenação – PCS. n.º 7586/11.2TAVNG da Instância Local Criminal de V. N. de Gaia - J3, por sentença de 21/04/2016, foi condenado pela pratica de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogo, p. e p. no art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), e n.º 2 e 4, do Código Penal (na redação dada pela entrada em vigor da Lei n.º 44/2018 de 9 de agosto), na pena de dois (2) anos e quatro (4) meses de prisão, suspensa por dois (2) anos e quatro (4) meses, e na pena acessória de frequência de programa para agressores de violência doméstica.
50 -O arguido revelou durante o julgamento um comportamento impulsivo/agressivo, olhar desconfiado.
51 - A relação do arguido e ofendida, foi terminada e reatada várias vezes.
52 - O arguido encontra-se socialmente integrado.
53 - O arguido não confessou os factos, nem demonstrou arrependimento.
54 - A ofendida é auxiliar de ação educativa.
55 - A ofendida sofreu angústia, instabilidade, (insegurança), ansiedade, vergonha e agitação na sequência da conduta por parte do arguido.
56 - A ofendida sentiu-se miserável, vexada e humilhada, enquanto pessoa e mulher.
57 - A ofendida foi acometida de momentos de pânico e medo, deixou de sair sozinha à rua, isolava-se, evitava o contacto com os que a rodeavam, andava em sobressalto com medo que o arguido lhe aparecesse.
58 - A ofendida deixou de dormir, entrou em depressão, teve necessidade de tratamento médico, tomou medicamentos – ansiolíticos - para controlar a ansiedade/pânico e o estado depressivo em que se encontrava.
*
A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: transcrição
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados formou-se atendendo à prova carreada para os presentes autos e produzida em sede de audiência de julgamento, valorada atendendo ao princípio da livre apreciação da prova e às regras da experiência comum, como impõe o art.º 127.º do CPP.
Este princípio significa que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto desse caso. Não se trata, pois, “de uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas (...), mas valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos (...).”
Isto é, a prova será apreciada segundo as regras da experiência, de acordo com critérios lógicos e objetivos e como tais suscetíveis de fundamentação.
A nossa convicção quanto aos factos assentou na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida nestes autos, documental, testemunhal (reproduzida nos autos) e pericial, que foi produzida em estrita obediência aos princípios da publicidade, do contraditório, da imediação, da oralidade e analisada de forma articulada com o princípio da livre apreciação das provas, das regras da experiência, de senso comum e do normal acontecer.
Prova documental:
Designadamente - Auto/s de denúncia fls. 4 e ss; Doc. fls. 19 a 20, 22;- Aditamento/s - fls. 23 a 27, 30, 37; - Documento/s de fls. 67, 68, 71, 72, 122, 156 e ss., 164; - Certidão de fls. 139 e ss.; - Relatório de fls. 9 do apenso; - CRC. de fls. 119 e ss., 225 e ss., atualizado a fls. 290 e ss.; Relatório Social elaborado pela DGRSP de fls. 256 a 258; Doc. de fls. 272 – Foto do localizador; Auto de denúncia (20/10/2018) de fls. 2 e ss. do Apenso n.º 883/18.8PBMAI – referente ao localizador elaborado pela testemunha H…; Aditamento de fls. 5 a 6; Aditamento de fls. 7 a 8; Relatório Pericial de fls. 9 a 11; Relatório da APAV (Apoio à Vitima) junto a fls. 156 a 158; Doc. de fls. 222 a 223 (ilegíveis); Auto de denúncia (05/12/2018) de fls. 229 e ss.; Aditamento (07/12/2018) de fls. 233; Aditamento de fls. 234 e 235; Doc. de fls. 260 a 264; Doc. de fls. 284; Doc. de fls. 303 a 311 vs.º
Declarações do arguido:
O arguido B…, prestou declarações, disse que esteve nos Açores a trabalhar e teve uma relação com a ofendida de altos e baixos pois terminaram e reataram várias vezes. Esclarecendo que a relação começou em Abril/Maio de 2015 e terminou em Agosto de 2018. Mas, com frieza e desvalorizando, disse ainda que quando regressou a V. N. de Gaia, ficava em casa dela (ofendida) “a convite” da mesma. O arguido negou os factos constantes dos art.º 3.º, 4.º e 6.º da acusação, admitindo alguns dos factos constantes em 7.º e 8.º da acusação (referindo que ocorreram antes de Agosto de 2018), 14.º da acusação (não se lembra), confirmou o facto referido em 16 da acusação, 18.º não sabe não viu, quanto à matéria do art.º 22.º da acusação disse que foi avisado por “um colega” que alguém se estava a queixar e foi lá ver para saber quem era, se era a C…. O arguido não identificou “o colega” que diz que o avisou, nem o apresentou como testemunha. Por outro lado, se como disse, não perseguiu a ofendida e nada de mal lhe fez, como quer fazer entender ao Tribunal, qual a sua preocupação? Como explica (não explicou) ter ido atrás da ofendida até à Esquadra da PSP de …? Com que intuito? Mas se não fez nada, como alega, qual a sua preocupação com a queixa? O arguido não esclareceu. E, tal só se explica porque o arguido praticou certos factos em relação à ofendida e estava receoso do que a ofendida fizesse, designadamente queixar-se e do que lhe poderia vir a acontecer no futuro. Isso sim. Sendo certo que foi na ida à Esquadra PSP de … que a ofendida ficou a saber que tinha um GPS colocado junto à porta do lado direito do condutor – cfr. doc. junto a fls. 276 – fotograma do localizador. Com tal aparelho a funcionar no carro da ofendida e com recurso aos meios electrónicos, facilmente se observava quais os percursos que eram efetuados pela mesma de carro. O arguido confrontado com o facto de perseguir a ofendida em vários locais, disse que lhe “queria falar”, mas a relação tinha terminado e a ofendida não lhe queria falar, daí a perseguição, facilitada com a colocação de um aparelho GPS. Apesar de o arguido negar, dizendo que “nada sabe”, mas segundo as regras da lógica só o arguido tinha interesse em perseguir a ofendida, até porque segundo ele diz “lhe queria falar”, daí ter colocado o aparelho GPS no carro da vitima, tendo perseguido a ofendida até à Esquadra da PSP de …, onde esta apresentou queixa contra o arguido. Facto este também confirmados pelas testemunhas ouvidas, Agentes da PSP. que prestavam serviço na Esquadra da PSP de ….
Esta a convicção do Tribunal. O arguido admite o facto n.º 24 da acusação, foi a casa dos pais da ofendida e falou com o pai para convencer a filha a desistir da queixa. Mas mais uma, este comportamento denúncia outros, uma vez que o arguido diz que não fez nada à ofendida. Algo de mal lhe fez, para estar mais uma vez receoso. O arguido negou o facto n.º 26 da acusação, alegando que foi ao cinema com três amigos. Mas, como depois veremos na análise do depoimento das pessoas que ele disse que o acompanharam ao cinema, que também são testemunhas nos autos, nada impede que, mesmo indo ao cinema entre as 19.00 horas e as 21.00 horas, atentas as acessibilidades existente na cidade de V. N. de Gaia, como é publico e notório, facilmente uma pessoa se desloca de um local para o outro em minutos, e, para mais à noite, em Dezembro, numa noite de inverno, tal facto também foi confirmado pela ofendida e pela pessoa que a acompanhava, como mais abaixo veremos. Em relação ao facto constante em 28 da acusação – facto provado sob o n.º ++, diz que não disse tais palavras à ofendida, “...Nunca insultou a D. C… ...” mas disse-o de forma que não convenceu o Tribunal. O arguido referiu também que não tinha roupa na casa da ofendida, nem as chaves de casa, nem dividiam as despesas, disse também com frieza, que a relação com a ofendida passou por várias situações “... ele acabou ...”, factos que foram desmentidos pela ofendida e pela testemunha seu pai, como veremos mais a baixo. Dada a coabitação existente entre o arguido e a ofendida, o arguido tinha acesso privilegiado ao veículo da ofendida. O arguido utilizou certas expressões durante o seu depoimento, que embora tenha negado os factos – colocação do aparelho GPS - praticamente os confessam, pois disse logo ao ser perguntado “... Eu fiz o percurso dela (ofendida) até ao IPO ... porque lhe queria falar”, o mais usual seria dizer que a seguiu, que seguiu o carro dela, que fez o caminho que ela fez. O percurso, é a ação ou efeito de percorrer - a distância em que se pretende percorrer ou que foi percorrida, o termo também é usado para se referir ao espaço que alguém ou algo percorreu ou percorrerá, utilizando-se frequentemente quando não sabemos o caminho para algum lado e vamos consultar o percurso, antes em mapa, hoje com o auxilio dos meios tecnológicos ao nosso dispor como o GPS autónomo ou o GPS no telemóvel. Depois, corrigindo o que tinha dito, o arguido já disse que “...Viu o carro dela (ofendida) e seguiu-a...”. Mais a diante já disse: “...Verifiquei que o carro dela (ofendida) estava a circular na A1 na saída para o M…, num final do dia...”, que não sabe precisar (?). Acabando por dizer que “...foi ao K… por acaso...”, mas será que alguém vai para o parque de estacionamento do K… por acaso? Por impulso? A perseguir outro carro? Local que é pequeno para tanta gente (infelizmente), doentes, familiares, visitas, onde é difícil estacionar? Só em estado de necessidade e não por impulso como aconteceu com o arguido. Mais uma vez o arguido a revelar o seu comportamento impulsivo, agressivo nas suas atitudes, não olhando a meios para atingir os seus fins. O arguido acaba por referir que: “... foi ao local de trabalho da ofendida para falar e depois seguiu-a até ao K… ...”. O arguido revelou contradição ao referir que queria falar com a ofendida porque havia coisas para esclarecer... na circunstância de ela ter acabado com ele em meados de Agosto de 2018 em casa dela...”. Mas antes, tinha dito que “...foi ele que acabou a relação...”. Para logo, a seguir dizer, que “... a ofendida aceitou o terminus da relação ...” e para posteriormente ainda dizer “... Nós decidimos pôr termo ...”. Já a pergunta da Defesa, disse que “...não teve intenção de humilhar e que ela (ofendida) tinha tentado acabar a relação..., mas ele arguido, queria reatar a relação...”. Há uma manifesta contradição no depoimento do arguido, cujo fim é ilibar-se de responsabilidade, no uso de um direito que lhe assiste, sendo certo que mesmo os documentos que apresenta, designadamente quanto à escala de serviços, o Tribunal apercebeu-se que tal escala não é rígida podendo um agente ser substituído por outro a qualquer momento. Por outro lado, o arguido nega os factos referentes ao dia 19/10/2018 e 4/12/2018, juntando os documentos de fls. 222 a 223. Assim, no que se refere ao documento junto a fls. 222 no dia 19.10.2018, o arguido encontrava-se de “Folga”, sem serviço distribuído e como tal livre para praticar os atos que entendesse – cfr. facto n.º 14 da acusação – facto provado n.º . Quanto ao documento junto a fls. 223 referente ao dia 20.10.2018, nele consta que o arguido tinha sido indicado para o serviço das 12.30 h. às 16.30 horas, mas nada é referido sobre se o arguido realmente efetuou tal serviço e, por outro lado, o facto 16.º da acusação referente a 20/10/2018, ocorreu antes das 13.00 h. (hora de almoço) assim tanto pode ter ocorrido às 10.00 horas como às 12.00 horas. Assim, os documentos juntos com a fls. 222 e 223 não comprovam que o arguido não tenha praticado os factos, como pretende o arguido. Quanto ao documento junto a fls. 284 – cópia de dois bilhetes de cinema do dia 04/12/2018 ás 19.05 h. - não comprovam quem os comprou, nem quem os utilizou, muito menos se foi o arguido que foi ao cinema e com quem, como é óbvio. Pelo que nada impede, em termos de circulação, dados os bons acessos existentes, que o arguido até tenha ido ao cinema nos cinemas do N… – V. N. de Gaia às 19,05 horas, como diz e pelas 22.20 horas desse dia 04/12/2018 tenha estado à porta da ofendida, na Rua …, Lote … – União das Freguesias … - V. N. de Gaia. No entanto, como veremos de seguida as declarações do arguido não foram corroboradas pelos demais meios de prova, designadamente quanto à perseguição, às injúrias e ameaças à ofendida. O arguido não assumiu os factos constantes da acusação, deu uma versão não credível, atento o comportamento revelado, nem demonstrou qualquer arrependimento.
O arguido como Agente de Autoridade, a exercer funções na Polícia de Segurança Publica – Comando Distrital do Porto, não pode nem deve desconhecer que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, sendo certo que o Tribunal ficou ainda convencido que o arguido se serviu dos seus conhecimentos profissionais e da sua posição como Agente de Autoridade para a prática dos factos constantes da acusação, inclusive o Tribunal ficou convencido que alguns dos factos, designadamente as perseguições terão ocorrido durante o tempo de serviço do arguido, incluindo remunerados, estando ainda durante esse tempo de serviço, o arguido atento aos dados pessoais da ofendida, que lhe iam sendo fornecidos pelo localizador GPS que colocou no veículo da ofendida/assistente, chegando a ofendida/assistente a receber mensagem no seu telemóvel de uma “aplicação de localização”, conforme Auto de Denúncia de fls. 2 e ss., a fls. 2 vs.º do Apenso Inq.º n.º 883/18.8PBMAI.

Declarações da ofendida/assistente:
Ora, como é sabido, o Tribunal aprecia livremente a prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) e não está inibido de socorrer-se das declarações dos ofendidos, desde que credíveis e coerentes.
Tratando-se de crimes cometidos no seio familiar, essas declarações têm até um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 6/3/1991, in Col. de Jur., ano XIII, tomo 2, pág. 287).
Não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes desta natureza.
Em função destas especialidades, quando o Tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, ainda que opostas, em maior ou menor medida, às do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados, se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
O velho aforismo “testis unus testis nullus”, (locução latina que significa "uma só testemunha, nenhuma testemunha"). Adágio de Jurisprudência, segundo o qual, o testemunho de uma só pessoa não basta para estabelecer juridicamente a verdade de um facto, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em que a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo Tribunal.
Note-se que a questão - que não é, naturalmente, privativa do direito português - tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do país vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjetiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objetivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (cfr. v.g. Antonio Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, págs.181-187, J.J. Bégué Lezaún, Delitos Contra la Libertad e Indemnidad Sexuales, Barcelona, 1999, pág. 246 e seguintes, Miguel Angel Montañes Pardo, La Presunción de Inocencia-Análisis Doctrinal e Jurisprudencial, Pamplona, 1999, pág.180-182 e José Manuel Alcaide González, Guia Prática de la Prueba en el Processo Penal, Valencia, 1999, pág.133-136).
E assim é que nestes autos, a convicção do Tribunal se fundou decisivamente no depoimento da ofendida, prestado em audiência, que se revelou coerente, articulado e credível, tomado de per si, em razão do modo e do seu conteúdo e na conjugação com a restante prova produzida, mormente das testemunhas O…, H… e P…, Agentes da PSP da Esquadra … – Maia à data dos factos, que tomaram conta da queixa da ofendida e retiraram o GPS do veículo da ofendida, F…, G… (pai da ofendida), S…, T….
Deste modo, a percepção pelo Tribunal do depoimento da ofendida conjugado com os depoimentos das restantes testemunhas ouvidas, ainda que de modo circunstancial, posto que assistiram a muito pouco, conhecendo os factos através da ofendida, mas permitiu concluir pela presença de indicadores de veracidade no seu relato sob referência. Assim o é, no essencial, a menção circunstanciada e pormenorizada de cada uma das situações que se tiveram por provadas, acompanhada por explicações de circunstâncias necessariamente por ela vivenciadas, posto que de contrário sempre se teria por demasiadamente elaborada uma possível confabulação quanto às mesmas.
O depoimento da ofendida/assistente C… é, de resto, corroborado contextualmente com os depoimentos daquelas três (3) primeiras testemunhas. A ofendida relatou ao Tribunal o seu relacionamento com o arguido, que terminou em Agosto de 2018. Disse que o arguido tinha roupa em casa dela e tinha as chaves da casa, que lhe entregou antes de terminarem o relacionamento. Esclareceu que, em Agosto de 2018, durante uma discussão em casa dela, quando ela acabou e ele também, ele pegou nas coisas dele e foi embora. Durante esta parte do depoimento o arguido, presente na sala, olhou para a ofendida com um “olhar ameaçador”. Esclareceu que não dividia despesas com o arguido, mas quando iam ao supermercado ele pagava. Referiu a natureza conflituosa da relação com o arguido, que era impulsivo e agressivo para com ela por via dos ciúmes que nutria, tentando controlar a sua vida, quando havia zangas entre o casal o arguido insultava a ofendida várias vezes de “puta, doente mental, dissimulada, crápula, reles etc...”, a atestar no essencial a versão da ofendida quanto à descrição das situações, coincidentes com a descrição da acusação e a assim sustentar e conferir coerência às declarações da ofendida, conforme percebido em razão dos depoimentos daquelas três (3) primeiras testemunhas. Aqueles depoimentos serviram antes para perceber a constância da imputação pela ofendida dos factos que relatou, assim corroborando a credibilidade do seu depoimento, esse sim atendido em toda a linha, em termos de ter resultado demonstrada basicamente a matéria constante da acusação e do pedido cível. A ofendida, prestou um depoimento de uma forma que se nos afigurou de claro e consistente, não exagerou na descrição das situações, descrevendo de forma muito precisa a sua relação e as condutas do arguido e as consequências que para si advieram, pelo que o valoramos para prova dos factos constantes em 1.º a 6.º, 9.º a 25.º, referiu que o arguido é nervoso, impulsivo, e quando contrariado é agressivo, e insulta usando palavrões – factos 7.º a 18.º, 28.º, 34.º dos factos provados. Descreveu as várias situações em que o arguido carregava na campainha da porta de noite com insistência, disse que foi perseguida pelo arguido, a pé e de carro, dizendo que o arguido lhe aparecia a pé ou de carro nas situações mais inesperadas. Relatou a forma como encontrou o objeto – localizador – tal como consta da foto, junta como documento de folhas 272 dos autos. Atentos os factos só poderia ter sido colocado pelo arguido no seu veículo, atentas as perseguições por locais inesperados, objeto que foi retirado pelos Agentes da PSP, da Esquadra da PSP de … – Maia, onde a ofendida se deslocou para efetuar a respetiva queixa contra o arguido e onde o arguido apareceu mais uma vez perseguindo-a, tendo sido interceptado pelos Agentes da PSP da Esquadra …, junto ao veículo da ofendida, eventualmente apercebendo-se que o dispositivo localizador, cujo dados pessoais estava a receber, mas deixou de receber, por ter sido retirado do veículo da ofendida/assistente, deixando de cumprir a sua função, junto à Esquadra da PSP de … – Maia - factos provados 26.º a 31.º O seu depoimento sério e credível, foi ainda corroborado pelas restantes testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.

Prova testemunhal:
A testemunha O…, amiga da ofendida, referiu que a ofendida terminou a relação de união de facto com o arguido em Agosto de há três anos. Disse que a ofendida foi maltratada por mensagens que o arguido lhe enviava, dizendo: “Que não prestava..., que era dissimulada..., filha da puta... és louca ... da cabeça..., se te apanho vou-te bater...”, disse que viu as mensagens, ela respondia dizendo-lhe: “Deixa-me em paz... segue a tua vida...”. Certo dia, a ofendida ligou-lhe aflita, nervosa, a dizer à testemunha, “que tinha visto uma coisa debaixo do carro dela algo que não era do carro, que achava estranho...”. A testemunha referiu que já há algum tempo, sempre que iam a algum sítio, a um café ele (arguido) aparecia na rua, ele passava na rua, só passava, num carro normal, aconteceu em Gaia, estavam num café e ele passava, ele aparecia num local onde ela estava, quando ele não tinha como saber. A ofendida e testemunha foram as duas à Esquadra … saber o que era aquilo, disseram que tinham um objeto esquisito debaixo do carro, que não sabiam o que era, o agente acompanhou-as ao carro, baixou-se, viu o objeto e disse logo que aquilo era um localizador. A agente tirou o localizador, foram para a Esquadra, estavam a prestar depoimento, a dizer que achavam estranho ele (arguido) aparecer em certos sítios que não tinha nada haver (que ele não sabia). O agente ligou para ver se conseguiam tirar as impressões digitais, fizeram a queixa, disseram que suspeitavam daquela pessoa (arguido) por ele aparecer sempre naquele local, depois saíram para fora da Esquadra, vão a dirigir-se ao carro e o arguido passa por elas de carro, disse que a ofendida ficou muito nervosa, voltaram para a Esquadra, os agentes dizem que as acompanham até Valongo e voltaram a sair acompanhadas por dois agentes, entraram no carro delas e os agentes no carro deles e ele (arguido) passa a pé, a ofendida entra em pânico e diz ao agente que era ele (arguido), o agente sai do carro vai ter com ele, pergunta-lhe o que é que está ali a fazer, enquanto o outro agente vai com elas até aos semáforos mais próximos e diz-lhe para irem embora para Valongo que ele (arguido) ia ficar preso na Esquadra até elas chegarem a Valongo. Disse que a ofendida C… até disse, como é que ele estava ali, ele ainda olhou para elas com cara de gozo. Referiu que o arguido continuou a mandar mensagens à ofendida, a dizer, “Tu não vais conseguir nada com isso ... Filha da puta, dissimulada... louca da cabeça ..., dizia que ele não tinha nada haver com isso (localizador) ...”. Acrescentou que, chegaram a estar sentadas num café, às onze da noite, ele apareceu do nada, não era o café onde a ofendida ia, foi onde a testemunha a levou, foi depois do mês de Agosto, antes de irem à Esquadra …. Disse que a ofendida andava nervosa, não era uma pessoa feliz, tomava anti depressivos para dormir. Ficava nervosa com as mensagens, tinha medo de andar sozinha, tinha receio de que ele ligasse. Prestou um depoimento com calma e naturalidade, que se nos afigurou de sincero e desinteressado, relatou o modo como foi encontrado o localizador, revelou-se uma testemunha privilegiada e esclarecedora para o Tribunal, designadamente quanto aos factos provados n.º 14.º a 18.º e 33º.

As testemunhas H… e P…, Agentes da PSP da Esquadra …-Maia, que estiveram de serviço em turnos seguidos na Esquadra …, local onde a ofendida se deslocou para apresentar queixa quando descobriu a existência de um Localizador - GPS colocado por baixo do seu carro, tomaram conta da ocorrência como consta do Auto de Noticia junto a fls. 4 e ss., Aditamentos de fls. 23 e 24, Relatório de fls. 10 dos autos de inquérito, tendo encontrado o localizador por baixo do veículo da ofendida estacionado pela ofendida junto à Esquadra … - Maia. Depoimentos de uma forma que se nos afigurou de isenta, pelo que os valoramos. Relataram ao Tribunal os factos a que assistiram no dia 20 de Outubro de 2019, prestaram depoimentos que se nos afiguraram de sérios e isentos, referindo o modo como também interceptaram o arguido no dia em que a ofendida foi apresentar queixa na Esquadra da PSP …-Maia, conforme os documentos juntos aos autos - Auto de denúncia de fls. 2 e ss. do Apenso n.º 883/18.8PBMAI –referente ao localizador elaborado pela testemunha H…; Aditamento de fls. 5 a 6; Aditamento de fls. 7 a 8; Relatório Pericial de fls. 9 a 11. O depoimento destas testemunhas foi relevante quanto aos factos provados n.º 24 a 31.º
A testemunha F…, auxiliar de ação médica, amiga da ofendida/assistente, há cerca de 15/16 anos, morou perto da ofendida quando o arguido esteve nos Açores, dizia-lhe para irem tomar café juntas a ofendida tinha medo de sair, disse que viu mensagens do arguido para a ofendida. Certo dia, depois dos anos dela (3/12), em 4 de Dezembro de 2018, quando chegaram à casa dela, cerca das 22.30 h./23.00 horas, estavam a estacionar, ele (arguido) estava a sair de lá de dentro da casa dela (estava a vir de dentro, no portão), ela entrou em pânico, foram à Esquadra da PSP … participar e depois a ofendida foi dormir em casa da testemunha. Desde que se separaram, ele mandava mensagens, vinha tocar à campainha da porta, à noite, às duas e tal da manhã, insistentemente. Referiu ainda, que no Verão de 2018, depois da separação, ele andava constantemente a querer falar com a ofendida, a ofendida andava assustada, ligou à testemunha que estava a sair do K… onde trabalha, às 20.00 horas, a ofendida estava num desespero a dizer que ele (arguido) a andava a perseguir no carro, não saia de trás dela, sempre a falar ao telefone para ela ter calma, combinaram e ela (ofendida) veio ter com a testemunha ao parque de estacionamento do K…, ela estacionou o carro dela e entrou para o carro da testemunha, entretanto aparece logo o carro do arguido atrás do carro da ofendida, o arguido saiu do carro e balbuciava que queria falar com a ofendida, mas ela (ofendida) não queria falar com ele. A testemunha fez marcha atrás, o arguido entrou no seu carro, ainda tentou seguiu o carro da testemunha, mas a testemunha acabou por encontrar uma saída e saiu do parque. Disse ainda que ele (arguido) manipulava muito a ofendida, acusava-a de: “falsa... puta..., vaca...”. Ela era muito controlada por ele, era casa trabalho. Quando ele estava nos Açores, ela não podia sair porque ele não queria, ela não falava com ninguém porque ele não queria. Certo dia que estava com a ofendida, teve que falar ao arguido a dizer, que a ofendida estava com a testemunha, não era com “gajos”. Ele queria que ela estivesse em casa. Esclareceu, que o arguido estava com a ofendida não “era a convite”, eles viviam em união de facto, viveram cerca de um ano, fizeram férias juntos. Ele manipulava-a, ela vivia em constante medo, ele não a deixava viver, ela deixou de viver, vivia em constante medo e pânico do arguido, não vivia. Ela metia-se na cama, não saía, estava em pânico, chorava, chorava, não conseguia dormir, chegou a dar-lhe comprimidos para dormir, mas depois já não fazia efeito, deixou de comer. Ela vivia em pânico, ela dizia que ele lhe aparecia em todo os lados, todos os sítios onde ela ia, ele estava sempre a aparecer. A ofendida falou-lhe que tinha encontrado uma coisa estranha no carro, ao dependuro, quando saiu de uma lojita – o localizador - foi à esquadra com outra amiga participar. Esta testemunha revelou um depoimento, espontâneo, sincero, coerente, desinteressado, convincente revelou-se também uma testemunha privilegiada.
A testemunha G…, reformado, pai da ofendida, esteve em casa da testemunha para pedir à filha para retirar a queixa, ele já tinha lá estado em casa uns dias, quando veio dos Açores, a dormir. O arguido ligou-lhe cerca das 10.00 horas, a testemunha estava longe, disse à filha que lhe disse para não o atender. Quando a testemunha chegou o arguido estava à porta dele para lhe falar. Disse para a testemunha “Pedir à filha para retirar a queixa, não queria ver os filhos dele ir ver o pai à prisão”. A testemunha diz que lhe disse: “Você devia ter pensado antes, porque você usa uma farda... devia ter pensado antes...”. Ele disse: “Vê lá, ... estou arrependido...de ter feito isso" – facto provado n.º 32.º A testemunha disse-lhe: “Você arrepende-se e ainda vai por uma peça na carrinha dela...”. A testemunha tinha visto que ela tinha a peça – o localizador por baixo do carro do lado esquerdo, do lado do condutor, filha, a ofendida disse-lhe, e foi a filha à Esquadra com uma colega. Disse que a ofendida escondia aos pais a situação que estava muito mal. Esclareceu que ele viveu em casa da testemunha, quando veio dos Açores, disse que não tinha para onde ir, ela andava com ele, era namorada. Quando foi viver para a casa dela, ela estava sempre a chorar, estava á porta, ele ia ao trabalho ter com ela, ela veio para casa dele e mulher, metia-se no quarto, chorava, não queria comer. Disse que a filha trabalhava, era poupada, ela deixou de ter dinheiro, andava sempre sem dinheiro, até disse à mulher tem que se ver porque ela agora não tem dinheiro. Disse que meteu uma fechadura nova e um trinco por dentro, porque a pessoa (arguido) tinha uma chave da casa da ofendida. Esclareceu que falou com o arguido em Outubro de 2018.
A testemunha S…, auxiliar de educação, amiga da ofendida, conheceu o arguido num aniversário da C… e esteve com eles esteve num jantar em casa da testemunha. Notava-se um clima de tensão quando o arguido estava com a ofendida, ela estava triste. Viu mensagens do arguido para a ofendida, que a ofendida lhe mostrava em 2016/2017, “És uma puta, és uma crápula... não vales nada...” O arguido estava nos Açores, foi com o ex-companheiro da testemunha na altura, em Outubro de 2015. Em 2018, a testemunha disse, isto tem que acabar, a testemunha disse que a ofendida chorava, o arguido estava nos Açores, conseguia manipulá-la. Uma vez foi tomar café em …, ela estava com a testemunha “mas não estava”, pois estava sempre no telemóvel com ele (arguido), recebeu mensagens do arguido a dizer: “Porque é que estás assim vestida? Estás numa discoteca?”. A testemunha às vezes ia falar à porta dela, mas o telemóvel dela (ofendida) estava sempre a tocar, ela ficava nervosa, agitada. A ofendida foi uma vez aos Açores em Maio de 2016. Esclareceu que nos anos da testemunha em 2016 a ofendida foi, mas estava aborrecida com as mensagens. No ano de 2017, a ofendida não foi porque o arguido não foi convidado, pois era em casa da mãe da testemunha. Em 2017, a ofendida não estava bem, não atendia o telefone, não queria falar, não comia, tinha que acabar com aquela situação, não fazia sentido o que estava a acontecer, até lhe disse para ir à Polícia, tinha que fazer alguma coisa. Disse que a ofendida lhe ligava a dizer: “S… vim ao U… e ele (o arguido) está aqui quase acabou por passar por mim...”, a testemunha dizia-lhe:” Estás a vê-lo em todos os lados, tem calma, foi coincidência, respira ... faz o que tens a fazer e vai para casa...”. No outro dia, a ofendida ligou-lhe a dizer: “Oh S… é impossível, eu estou a passar de um lado e ela está a passar por mim, está aqui alguma coisa, ele está sempre atrás de mim...”. A testemunha disse-lhe até para ir para casa ou para casa dos pais. No dia seguinte, disse que a ofendida lhe liga em prantos, conta-lhe que viu uma peça debaixo do carro, foi à Polícia em … e eles tiraram debaixo do carro um aparelho GPS. A testemunha, mas quem foi? Diz é óbvio, que foi o B… (arguido) não é. Aí a testemunha entendeu porque é que ela (ofendida) via o arguido em todo o lado a persegui-la. Esclareceu, que viu mensagens em 2016/2017, a ofendida não respondia chorava. Em 2018 disse que via os telefonemas do arguido para a ofendida.
A testemunha T…, psicóloga na APAV, fez o acompanhamento psicológico da ofendida. Disse que a ofendida estava bastante afetada a nível de ansiedade, deprimida, chorava, com o trauma, com o stress pós-traumático. Revelou que era vitima de violência doméstica, naquela altura era vitima de perseguição por parte do companheiro. No Relatório refere, história da violência, as consequências, o que trabalhou no apoio psicológico. Ofendida na altura que procurou os serviços, já não estava com o companheiro, durante o relacionamento já existia violência de doméstica, psicológica, emocional, insultos, humilhações, muita manipulação emocional. Depois dela própria terminar a relação, ele aparentemente não aceitou, teve comportamento de perseguição, constantemente ligava a horas tardias, tocava à campainha da porta frequentemente, contou ter encontrado um dispositivo de localização no carro e ter sido ele (arguido) que o colocou. Referiu que teve nove (9) sessões com a ofendida, nas primeiras sessões a ofendida estava muito afetada com a situação, principalmente pelo comportamento de perseguição do ex-companheiro, não se sentia segura, não dormia bem, não conseguia sair de casa, não conseguia ir a certos locais com receio de o encontrar, situação de hipervigilância, estava sempre a olhar para trás, em qualquer altura ela achava que ele podia aparecer, causava-lhe medo e muita instabilidade na ofendida, notava-se mesmo nas sessões e no semblante da senhora. Com o decorrer das sessões, no final em Junho a senhora tinha melhoras, começou a sair mais, a dormir melhor, o facto de o processo crime estar avançar, dava-lhe a sensação de segurança, nas primeiras sessões estava mesmo muito, muito em baixo. Esclarece que a ofendida recorreu à APAV em 27/12/2018, a partir do momento em que a ofendida apresentou queixa os comportamentos do arguido mudaram. Depôs de forma séria, credível, convincente, pois revelou-se uma testemunha especialmente qualificada, atenta a sua especial formação em Psicologia. Este depoimento contribuiu de forma relevante, para serem dados como provados os factos referentes aos danos referidos no pedido de indemnização civil.

Quanto às Testemunhas indicadas pelo arguido:
A testemunha D…, agente da PSP - Brigada de Proteção Ambiental, amigo e colega do arguido, disse que o arguido é uma pessoa muito pacífica e muito tranquila e ponderada nas situações. Está a morar na Esquadra de V. N. de Gaia. Nunca conviveu com o arguido e D. C…. Houve uma situação, quando a testemunha viveu na mesma esquadra até Março 2020, quando vinham junto ao café V…, viu-a dentro do carro, ele direcionou o veículo, ela viu o carro e saiu dali. Houve uma situação, não a conhecia pessoalmente, no Carnaval 2019, estava a fazer um serviço junto ao Estádio …, senhora que saiu de uma viatura de transporte de crianças, por curiosidade ligou ao arguido para saber se era a mesma pessoa, por curiosidade, ele mostrou-lhe as fotografias à noite, era ela. O arguido disse-lhe que era um relacionamento muito instável, muito .... não sabe como há-de transmitir ... , ela desconfiava sempre dele, não era uma relação certa, não confiava nele. Depois disse que foi com o arguido ao cinema ... em meados de Dezembro de 2018, filme da Lady Gaga, depois disse “Nasceu uma Estrela”, a testemunha foi com uma companhia, o arguido também levou uma companhia. Foram à sessão das 19.00 h., cerca das 21.00h. veio embora com a companhia, o arguido ficou com a companhia, só uma vez foi ao cinema com o arguido.
A testemunha I…, Chefe da PSP na Esquadra da PSP de …, superior hierárquico do B…, diz que trabalha com o arguido há cerca de três (3) anos, não tem nada apontar-lhe, é uma pessoa sensata, tem-no como um bom agente da PSP. O arguido a maior parte do tempo passa e reside na Divisão de Gaia – Edifício sede - Esquadra …, pensa que tem lá os seus pertences. Como superior hierárquico, tem conhecimento dos factos. Na vida civil, não tem qualquer relação com o arguido. observar controlar supervisionar o serviço profissional. Há algum tempo o arguido andava mais abatido, triste, geralmente ele é alegre, mesmo durante o serviço, o arguido com dificuldade disse-lhe que tinha uma relação com uma senhora, que estava a passar por uma fase menos positiva, disse que a pessoa desconfiava dele, era ciumenta, às vezes aparecia na Esquadra, mas a testemunha disse logo que nunca a viu lá, só a viu aqui no Tribunal não a conhece. Esclarece que o B… gosta de ir à praia, ir beber um copo, não sabe de se apesar de manter um quarto na Divisão de Gaia – Edifício sede - Esquadra …, residia com a ofendida. A conversa com o arguido, terá sido entre os fins de 2017 a Agosto de 2019, mas antes de ser formalizada a queixa destes autos. Disse que teve conhecimento das denúncias destes autos. Teve conhecimento de um outro processo do arguido, por o arguido lhe dizer, mas que foi para suspensão provisória do processo, porque o arguido lhe disse, não tem conhecimento de mais processos contra o arguido. Disse que não tem conhecimento dos factos constantes da acusação destes autos. Esta testemunha disse que conhece o arguido em termos profissionais e não na vida pessoal/civil, mas mesmo em termos profissionais, a testemunha esteve noutros serviços de supervisão, que não de chefe do arguido entre Dezembro de 2017 e Agosto de 2019, período que coincide parcialmente com o tempo em que o arguido e ofendida se relacionaram, pelo que revelou desconhecimento do que se passou nesse período, o que sabe sobre o relacionamento foi o que o arguido lhe disse. Confrontado com alguns dos factos dos autos, apesar de dizer que teve conhecimento das denúncias contra o arguido, diz que desconhece os factos, nem tem interesse em os conhecer. Esta testemunha ao revelar que desconhece os factos que são imputados nestes autos ao arguido, da forma como o fez, com uma postura arrogante, quis omitir factos, prestar um depoimento favorável ao arguido, que quis proteger, tanto mais que as Chefias podem e devem conhecer o que se passa com os seus subordinados, ao quererem desconhecer, fomentam que situações como a dos autos se repitam, pois um Agente de Autoridade, não pode sair da Esquadra e praticar crimes, em casa, na rua, onde quer que seja, têm que ser tomadas medidas de precaução, tanto mais que são portadores de arma que lhe está distribuída.
A testemunha E…, amiga do arguido, conhece o arguido, desde há 7 ou 8 anos, não conhece a ofendida C… só de ouvir falar. Começou logo a dizer que o amigo é muito presente, sabe ouvir, não sei que lhe hei-de dizer, amigo, conversam, divertem-se, é um pai muito presente e muito preocupado com os filhos, pois já assistiu a chamadas. Disse que não assistiu a nenhuma situação, disse logo a seguir: “O B1… passou um mau bocado com esta relação, na minha opinião e do meu ponto de vista como amiga, diz que disse que desistisse e não permitisse que a C… se intrometesse ..., o relacionamento deles era muito mau, não diria que foi um relacionamento, estavam juntos e estavam separados um mês. Disse que viu mensagens da ofendida para o arguido que diziam: “...És um filho da puta ... só andas com putas ...”. Ela morria de ciúmes do B1… é um homem muito disputado. Ela causou-lhe momentos de aflição brutais, disse: O B1… amou a C…, ele estava nos Açores e ela ligou-lhe a dizer que se ia suicidar ... estava em frente ao mar..., não sabe o ponto da situação mental da C…, ela nunca confiou no B1…, “... O B1… amou a C… até ontem ...”. Não foi mulher de estar com ele. Sem ninguém lhe perguntar nem falar de perseguição, disse que o B1… só por tentar falar com a C…, não a estava a perseguir a C…. Acabavam e começavam várias vezes, a C… afastava-se.... O B1… procurava-a, ficavam juntos uns momentos depois separavam-se. Ao ser-lhe perguntado se foi ao cinema com o arguido, disse que foi com o arguido ao cinema no dia 4 de Dezembro de 2018 ..., até tinha com ela fotocópia dos bilhetes. Foram ao cinema a testemunha, o B1… (arguido), o D… e uma amiga da testemunha a W…. O filme começou às 19.05 h. A W… e o D… saíram cerca das 21.05 h., porque a W… tinha que ir buscar a filha. A testemunha ficou no N… com o arguido a comer qualquer coisa, não passou dos 45 minutos. Depois foram tomar café ao V…, disse que não sabe onde fica, perto do X… em …, teve a preocupação de dizer primeiro chegou o B1… (arguido) estacionou e depois chegou a testemunha, que anda mais devagar. Referiu que não conhece a D. C… pessoalmente, mas conhece-a, por o que o arguido lhe diz ... ouve-o falar muito. Conhece o B1…, quis proteger o B1… ..., porque ele sofreu muito..., Terra do B1… .... , não consegue dizer o nome da terra disse, que pensa um bocadinho lento, mas vai referir, tem muitas escadarias, nunca foi à terra dele ... acabou por referir Lamego ... Disse que está ali para fazer prova, trouxe fotocópias dos bilhetes do cinema..., mas não trouxe o ticket do café no V…. Mais uma vez deu a sua opinião, disse: “Só porque o B1… estava a tentar falar com a C…, não estava a perseguir....”. A testemunha disse que o arguido e ofendida, tiveram uma relação “distante”, era complicada uma relação, porque a D. C… segundo o B1… complicava, era uma relação distante (quase não se viam), mas disse que a C… morria de ciúmes porque o B1… trabalhava, porque não tinha o tempo todo só para ela. Mas, como pode ser uma “relação distante” se o arguido chegou a viver algum tempo em casa dos pais da ofendida quando veio dos Açores, e até tinha a chave de casa da ofendida em Vila Nova de Gaia. Há manifesta contradição. Quando confrontada pelo Tribunal quanto à denúncia da ofendida por perseguição do arguido, ao contrário do que a testemunha estava a dizer, disse logo que “querer falar não é perseguir” como já tinha referido, e que “...a ofendida também tinha ido ao trabalho do arguido, também fez questão de se mostrar...”, situação que até não presenciou, pois não conhece a ofendida, nem o próprio arguido a referiu no decurso da audiência de julgamento. Apenas esta testemunha a referiu e a testemunha D…, que referiu ao de leve tal situação. Esta testemunha, durante o seu depoimento, pouco seguro, disse, “que crê ..., que entende ..., que pensa...” foi sempre opinando. No seu depoimento veio especificamente prestar declarações quanto a uma ida ao cinema, todo o seu depoimento foi favorável ao arguido, ao referir-se à ofendida, tudo o que revelou foi o arguido que lhe disse e o que ela pensa sobre a ofendida, revelando muita animosidade em relação à ofendida, não a conhece mas sabe que faz anos no dia 3 de Dezembro. Disse que enquanto esteve com o arguido, ele não esteve com a ofendida C…. Não tem interesse em conhecer pessoalmente a C…, mas foi pesquisar na Net, até sabe que tem um perfil falso, não pesquisou mais nada, pois acreditava no que o arguido lhe dizia. Acreditava no que o amigo lhe dizia, os amigos acreditam nos amigos, não tem interesse, gostava de o ouvir e ajudar, tentava ajudá-lo ao máximo, porque ele sofreu muito. A testemunha disse que a ofendida se quis suicidar ... e chegou mesmo a referir que “a ofendida inventou uma gravidez, para prender o arguido, dizia, agora vês vais ser meu ...”. Esta testemunha disse que viveu a relação, disse que estava mais “interessada” em cuidar do B1…, porque gosta do B1…, da mulher e dos filhos, é uma amizade familiar, é natural que se ocupasse com a vida do B1…. Esta testemunha deu uma versão que favorece o arguido, pelo que o Tribunal duvida da credibilidade da mesma.

Quanto ao pedido cível resultaram provados os factos constantes da acusação, bem como do pedido cível, atentos os depoimentos da ofendida e testemunhas, designadamente, que o arguido/demandado sabia que as expressões que dirigiu à vítima eram ofensivas da sua honra e consideração, tendo atuado com o propósito de denegrir o seu bom nome, atentando contra a sua honra e consideração, ameaçando a ofendida e perseguindo a ofendida, pondo em causa a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida e a motivar-lhe medo ou receio, tanto mais que como Agente da PSP possui arma de serviço e provocando-lhe maus tratos psicológicos que se refletem em termos do bem estar físico e mental da ofendida /assistente.
Finalmente, no que importa ao elemento subjetivo da infração, também aqui fez o Tribunal uso das regras da experiência comum. Com efeito, sendo o dolo um elemento da vida interior do agente, por isso que impossível de aprender diretamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. No caso, atenta a conduta do arguido, com um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjetivo há certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que evidente a vontade da prática dos factos.
Para aferir da situação pessoal, social e económica do arguido, considerámos as declarações do arguido que nessa parte se afiguraram de credíveis, bem como o Relatório da DGRSP junto a fls. 256 a 258 e quanto aos antecedentes criminais o respetivo certificado de registo criminal atualizado junto a fls. 290 a 291 dos autos.
Pela análise de toda a prova produzida e do confronto de toda a prova produzida designadamente documental e testemunhal o Tribunal não tem dúvidas que quanto aos factos referentes aos insultos, ameaças e perseguições, os factos ocorreram tal como foram dados como provados, o Tribunal não acreditou na versão do arguido, uma vez que toda a restante prova o contradiz.
Quanto aos restantes factos – colocação de um localizador no carro da ofendida - apesar de o arguido negar a sua prática, todas as provas produzidas apontam no sentido que era o arguido que tinha interesse em tal situação, de forma a perseguir a ofendida pelos vários locais em que a mesma circulava, a própria ofendida e as testemunhas presenciaram e vivenciaram que o arguido aparecia em locais despropositados e inesperados, ninguém lhe tinha dito onde se encontrava a ofendida, onde estavam, de repente o arguido aparecia ou passava nos locais onde a ofendida se encontrava. Esta forma de atuar do arguido, impulsivo, não olhando a meios para atingir os fins, também era uma forma de o arguido impor a sua presença à vitima, mostrar a sua supremacia e omnipresença, afectá-la psicologicamente, para a isolar, ter medo e receio, quanto à sua integridade física e até a própria vida, pois o arguido enquanto Agente da PSP., anda armado, como referimos, sabe manejar armas. O Tribunal ficou convencido que muitos dos factos dados como provados ocorriam, eventualmente, durante o tempo de serviço ou logo após o tempo de serviço. O comportamento do arguido é revelador da sua personalidade impulsiva e agressiva.
Esta a convicção do Tribunal quanto aos factos acima dados como provados.
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que as questões que importa apreciar consistem em saber:
a) Se se mostram incorretamente julgados os pontos 3, 5 a 42, 50, 53 e 55 a 58 da MFP[3];
b) se os factos provados integram os elementos objetivos do crime de violência doméstica imputado ao arguido;
c) se foi violado o princípio da imparcialidade do juiz;
d) se o arguido deveria ter sido condenado nas penas acessórias, designadamente na pena acessória de proibição de uso e porte de arma;
c) se foi violado o princípio in dubio pro reo.
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Antes de procedermos à apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida pelo recorrente, impõe-se que analisemos a matéria de facto provada constante dos pontos 7, 8 e 34 que, além de especificamente impugnados pelo recorrente, contém alegações genéricas e vagas que, por esse motivo, são suscetíveis de prejudicar a defesa do arguido.
Entre os factos provados considerou o tribunal a quo que:
7 - No período da aludida coabitação, na casa de morada de família, sem qualquer motivo entre duas a três vezes por mês, o denunciado dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe as seguintes expressões: «Puta. Dissimulada. Doente. Mentirosa. Reles».
8 - Nesse período, em data não apurada, no parque de estacionamento de um Hipermercado denominado J…, em Vila Nova de Gaia, o arguido dirigiu-se à ofendida/companheira, dizendo-lhe: «Puta. Dissimulada. Doente. Mentirosa. Reles».
34 - A partir da data da separação do casal e pelo menos até ao final do mês de Dezembro de 2018, o arguido anunciou por diversas vezes à vítima no decurso de conversações telefónicas que mantinha com a mesma, entre outras as seguintes expressões: «És uma filha da puta. Não vales merda nenhuma. Não serás de mais ninguém. Irei fazer-te a vida negra».
Contudo, não se especificam as circunstâncias de tempo e o contexto em que o arguido proferiu as aludidas expressões, ainda que por aproximação. Para que o arguido tenha possibilidade de se defender da imputação que lhe é feita, é necessário que os factos que lhe são imputados se encontrem se não concretizados no tempo, pelo menos balizados temporalmente, o que não equivale ao uso da formulação vaga e genérica constante dos pontos 7, 8 e 34 dos factos provados.
Ainda que se diga "duas a três vezes por mês", numa relação que pode não corresponder a uma coabitação permanente é manifestamente insuficiente para que o arguido se possa defender e, eventualmente, alegar que nessa ocasião não se encontrava sequer com a ofendida.
Como, de forma muito esclarecedora, se refere no Ac. desta Relação de 15.06.2016[4] “considerando a previsão do artigo 152.º do Código Penal, «a exigência de uma delimitação factual que permita a subsunção àqueles conceitos genéricos é uma preocupação quotidiana de quem acusa, defende e julga, que não pode ser desvirtuada por abusivas e, portanto, inaceitáveis, generalizações. (…) em termos práticos, maus-tratos significa o exercício de violência. Mas o conceito necessita de ser escalpelizado e tem sido intensamente objeto de análise na jurisprudência e doutrina, considerando os problemas que suscita em termos de definição do tipo e repetição de atos de violência praticados.
“O tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de ativar a reação penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. “… a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de atos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade”.[5]
Assim, neste tipo de crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.
Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal.
Aliás, a jurisprudência do STJ neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito de crimes de maus-tratos e violência doméstica, sempre onde se pretende ultrapassar a dificuldade de prova de múltiplos factos pela imputação genérica e, logo, por presunção. Porque a isso se resume esta prática: acusa-se por presunção factual, pretendendo-se a condenação por presunção factual”[6].
Aliás, ainda que se viesse a concluir que tais factos não se integram no crime de violência doméstica mas, nomeadamente, no crime de injúrias, a falta de indicação mínima das circunstâncias de tempo em que os mesmos ocorreram, nem sequer permitiria ao tribunal averiguar da tempestividade da apresentação da queixa e, consequentemente, da legitimidade do Mº Pº para prosseguir com a investigação criminal.
Importa ainda referir que se louva o esforço da Srª Procuradora que esteve presente na audiência de julgamento e que, por diversas vezes, instou - sem êxito - a ofendida/assistente C… para que tentasse recordar em que ocasiões os referidos factos terão ocorrido. Porém, a falta de alegação na acusação não pode ser suprida pela prova em audiência.
Conclui-se assim que os factos dados como provados sob os pontos 7, 8 e 34 devem ser considerados como não escritos.
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a) Do erro de julgamento da matéria de facto relativamente aos pontos 3 e 5 a 37: (importa referir que se rejeita o conhecimento da impugnação dos factos provados 38 a 42, 50, 53 e 55 a 58, nos termos dos artºs. 420º nº 1 e 414º nº 2 do C.P.Penal, por inexistência na Motivação da correspondente causa de pedir).
Alega o recorrente que foi feita uma incorreta valoração da prova produzida em audiência e que a mesma, de acordo com a prova produzida em audiência, deveria ter conduzido a uma decisão distinta da adotada.
A respeito da impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte: Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006[7] e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto[8].
E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26 de Novembro de 2008[9] «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[10].
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
De realçar que o juiz que, em primeira instância, julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[11] e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[12].
É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do C.P.P., pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova. Só os princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”[13].
No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum[14]. Assim, para impugnar eficientemente a decisão sobre a matéria de facto, "a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão"[15]. É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”. Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou corretamente as provas”[16].
Nada obsta a que o Tribunal alicerce a sua convicção, nos depoimentos de alguma ou algumas testemunhas em detrimento de outras ou do próprio arguido, por, conforme se escreve no Ac. da Relação Guimarães de 20-3-2006, proc. nº 245/06-1ª, rel. Fernando Monterroso “a função do julgador não é a de achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a espinhosa missão de elucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito.
E citando Prof. Enrico Aguilha, Cruz Bucho em acórdão desse Tribunal «o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II,3ª ed. Pág. 12”.
Das motivações apresentadas pelo recorrente o que se depreende, na realidade, é que o mesmo faz a sua própria análise crítica da prova para concluir que o essencial dos factos que lhe dizem respeito deveriam ter sido considerados não provados. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360º do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se o arguido/recorrente tivesse sido o juiz do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar.

Feitas estas considerações, vejamos se o recorrente consegue demonstrar a incorreção na apreciação da prova produzida em julgamento e se os meios de prova que indica impõem, efetivamente, decisão diversa da proferida, como resulta do disposto no artº 412º nº 3 do C.P.P.
Alega o recorrente que a matéria de facto constante dos pontos 3 e 5 não pode ser considerada provada, uma vez que das suas declarações, do depoimento da ofendida e do depoimento da testemunha D… resulta que o mesmo nunca viveu em comunhão de bens com a assistente, pois que quando regressou dos Açores estabeleceu a sua residência na esquadra de ….
A simples circunstância de o arguido ter junto aos autos documentos comprovativos de que pagava à Direção Nacional da PSP determinada quantia mensal pelo seu alojamento em camarata não é, por si só, suficiente para se concluir que o mesmo não residia em comunhão de cama e mesa com a ofendida.
Porém, a própria assistente C… reconheceu em audiência de julgamento que apenas manteve com o arguido uma relação de namoro que se prolongou por três anos e quatro meses e que, quando o arguido regressou dos Açores em Setembro de 2017 pernoitava algumas vezes e tomava algumas refeições na residência da ofendida em …, Vila Nova de Gaia, onde aquele tinha alguns pertences seus, mas quando se zangavam (o que acontecia com alguma frequência) ele ficava na esquadra …. Nessa altura, o arguido tinha as chaves da residência da ofendida, mas era apenas esta que pagava a renda da casa e as despesas inerentes, sem prejuízo de o arguido uma vez ou outra pagar as despesas do supermercado quando aí faziam compras juntos. Aliás, a ofendida chegou mesmo a referir: "era eu que pagava tudo porque a casa era minha".
Assim sendo, atenta a instabilidade da relação, por ambos reconhecida, não se pode concluir que arguido e ofendida tivessem vivido em união de facto ou, como se diz nos pontos 3 e 5 dos factos provados "em comunhão de cama e mesa" e que "o casal fixou a sua residência em Vila Nova de Gaia, em casa arrendada pela ofendida".
Impõe-se, assim alterar a redação dos referidos pontos da matéria de facto, passando os nºs. 3 e 5 a ter a seguinte redação:
"No período compreendido entre Setembro de 2017 e 15 de Agosto de 2018, o arguido por vezes pernoitava ou passava uns dias na residência da ofendida sita em Vila Nova de Gaia, em casa arrendada por esta, aí tomando algumas refeições."
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Alega o arguido que os pontos 9 e 10 não podiam ser considerados provados, na medida em que, das suas declarações, corroboradas pela ofendida, resulta que foi ele próprio que pôs termo à relação em Agosto de 2018.
Com efeito, o arguido referiu em audiência de julgamento que no decurso da relação a ofendida C… acabou a relação por diversas razões e por várias vezes e que a única vez que foi ele próprio a pôr termo à relação foi em Agosto de 2018.
Por outro lado, a ofendida declarou que em Agosto de 2018, na sua residência, tiveram uma grande discussão e que o arguido pegou nas coisas dele e foi-se embora, pelo que considera que a decisão de pôr termo à relação foi dele, mas também foi dela.
Assim, impõe-se que os pontos 9 e 10 da matéria de facto passem a ter a seguinte redação, num único artigo:
"Em 15 de Agosto de 2018, arguido e ofendida puseram termo à relação que mantinham".
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No que respeita aos factos provados constantes dos pontos 11, 12 e 13 alega o recorrente que a única vez em que se deslocou ao local de trabalho da ofendida ocorreu antes do mês de Agosto de 2018 porque pretendia conversar com a ofendida.
O recorrente reproduz as declarações por si prestadas em audiência a esse respeito.
Ora, efetivamente, nenhuma das restantes pessoas inquiridas em audiência depôs sobre o facto constante do ponto 13. Nem a ofendida nem qualquer das testemunhas inquiridas foram questionadas sobre aquele facto. Ficando o tribunal recorrido apenas com a versão do arguido, naturalmente que o facto do ponto 13 teria de ser considerado como não provado, por ausência de prova.
Quanto aos pontos 11 e 12 da matéria de facto provada, trata-se de factos conclusivos que são pormenorizados nos restantes pontos da matéria de facto, pelo que, quanto a esses improcede a impugnação.
Pelo exposto, o ponto 13 da matéria de facto passa a integrar a matéria de facto não provada.
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Alega ainda o recorrente que os pontos 14, 15, 16, 17 e 18 da matéria de facto provada devem ser considerados não provados.
Para justificar tal asserção reproduz as declarações que prestou em audiência.
Ora, tendo procedido à audição de tais declarações, verifica-se que, no essencial, o arguido admite ter "perseguido" a ofendida quando a viu a circular na autoestrada, por pretender falar com a mesma, verificando que aquela se dirigiu ao K…. E embora declare que não circulou com o carro dentro do parque de estacionamento do K…, acabou por dizer que circundou o edifício para procurar a saída e lembrou-se que tinha de pagar o parque. Ora, se pagou o parque e procurou a saída é porque circulou com o veículo no interior daquele parque de estacionamento.
Por outro lado, como se refere na motivação da decisão de facto, o tribunal recorrido não teve dúvidas de que os factos ocorreram como descrito nos pontos 14 a 18, com base nas declarações da ofendida C… e no depoimento prestado pela testemunha F…, amiga daquela e com quem se encontrou no parque de estacionamento do K…, depois de a ofendida lhe ter telefonado aflita a dizer que o arguido a andava a perseguir no carro. Esta testemunha descreveu tudo o que aconteceu no referido parque de estacionamento, tendo merecido credibilidade por parte do tribunal recorrido, que considerou o seu depoimento "espontâneo, sincero, coerente, desinteressado e convincente".
Conclui-se, assim, que a prova indicada pelo recorrente não impõe decisão diversa da recorrida quanto aos referidos pontos 14 a 18.
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Relativamente aos factos constantes dos pontos 19, 20 e 21 alega o arguido que o tribunal a quo não os poderia considerar provados apenas com base no depoimento da ofendida C… pois, como ela própria referiu em audiência de julgamento, não chegou a ver quem tocou à campainha porque a sua casa não tem intercomunicador (ou seja, videoporteiro).
Ora, a ofendida não se limitou a afirmar que foi o arguido que tocou à campainha de sua casa. Explicou que soube que tinha sido ele a tocar à campainha porque, não tendo a ofendida aberto a porta, logo de imediato, aquele lhe enviou uma mensagem para o telemóvel com o seguinte teor: "quero-te dizer nos olhos aquilo que és" e a dizer que "estava em baixo e queria falar comigo".
Relativamente ao facto de o arguido se encontrar escalado para trabalhar nas urgências de … na hora indicada pela ofendida como da ocorrência dos factos de 19.10.2018, o tribunal recorrido considerou que, de acordo com o documento junto a fls. 222, o arguido se encontrava de folga. Contudo, sendo certo que daquele documento consta que o mesmo esteve escalado para trabalhar nas urgências …, o certo é que o seu horário de trabalho naquele local era apenas das 8,00h às 12,00h (da parte da manhã) e, como foi referido pela ofendida os factos do dia 19.10.2018 ocorreram entre as 9,30h /10h da noite, hora que não consta daquele documento como correspondendo ao horário de trabalho do arguido.
A prova indicada pelo recorrente não impõe, assim, decisão diversa, pelo que improcede a impugnação.
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Relativamente aos factos ocorridos na manhã do dia 20.10.2018, constantes dos pontos 22 e 23, alega o recorrente que nesse dia tinha um serviço gratificado no Estádio … entre as 12,30h e as 16,30h, pelo que não podia estar no local referido no ponto 22 da matéria de facto provada.
Ora, como referiu a ofendida, quando se deslocava para a confeitaria para tomar o pequeno almoço, antes do meio dia, cruzou-se com o arguido, tripulando cada um o seu próprio veículo automóvel. E a ofendida declarou recordar-se que foi antes do meio dia, porque à uma hora da tarde já se encontrava em …, em casa dos seus pais.
Assim sendo, nada impedia que, antes de se deslocar para o Estádio …, o arguido se tivesse cruzado com a ofendida.
Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto supra identificada.
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No que respeita aos factos constantes dos pontos 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 da matéria de facto provada, pretende o recorrente que os mesmos sejam considerados não provados apenas com base nas declarações que prestou em audiência.
Contudo, como resulta da motivação da matéria de facto, o tribunal recorrido não atribuiu credibilidade às declarações que o mesmo prestou, explicitando as razões que o levaram a atribuir credibilidade às declarações da ofendida e ao depoimento da testemunha O…, devidamente conjugados com os depoimentos prestados pelos agentes da PSP da Esquadra …/Maia, H… e P… e com as regras da experiência comum.
A negação dos factos por parte do recorrente é manifestamente insuficiente para "impor" decisão diversa, razão porque improcede a impugnação.
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Relativamente aos factos constantes dos pontos 32 e 33 da matéria de facto provada pretende o recorrente que os mesmos sejam considerados como não provados, fazendo apelo às declarações por si prestadas em audiência, bem como ao depoimento da testemunha E….
Considerando, porém, que o tribunal recorrido não atribuiu credibilidade ao arguido ou à referida testemunha E…, não pode este tribunal alterar a matéria de facto provada apenas com recurso às versões por eles fornecida, já que o tribunal recorrido beneficiou da imediação e oralidade, de que em sede de recurso este tribunal está privado.
Assim sendo, a prova indicada pelo recorrente não pode impor decisão diversa da recorrida, razão porque terá de improceder a impugnação da matéria de facto também nesta parte.
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Relativamente aos factos constantes dos pontos 35, 36 e 37 da matéria de facto provada alega o recorrente que nunca agrediu a ofendida, facto que é comprovado pela própria ofendida, pelo seu pai (testemunha G…) e pela testemunha F….
Efetivamente, para além das testemunhas identificadas pelo recorrente, a própria ofendida referiu em audiência que o arguido nunca lhe bateu, "nunca me tocou!"
Aliás, ao longo de toda a acusação e da matéria de facto provada nem sequer é alegado ou provado um único ato de agressão física do arguido para com a ofendida. Pelo que é, no mínimo estranha a alusão nos pontos 35 e 36 a "agressões físicas sofridas e maus tratos psíquicos" e que o arguido tenha tratado "de forma cruel a ofendida ..." agindo com o propósito concretizado de molestar fisicamente ... a mesma", "ofendendo ... o seu corpo e a sua saúde".
Impõe-se, por isso, considerar como não provado o ponto 36 da matéria de facto, parcialmente não provado o ponto 35 e passando este e o ponto 37 a ter a seguinte redação:
"Ao proceder com a conduta acima descrita de forma reiterada, depois de se ter separado da ofendida, o arguido procurou perturbar o equilíbrio emocional daquela e amedrontá-la, o que conseguiu, provocando-lhe angústia, instabilidade, ansiedade e agitação".
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b) Do enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada:
Sustenta o recorrente que a matéria de facto provada não integra o crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, mas sim, como defendeu o Ministério Público nas suas alegações orais em audiência de julgamento, um crime de perseguição p. e p. no artº 154º-A do Cód. Penal.
O arguido/recorrente foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. no artº 152º nº 1 al. b) e 2 al. a), 4 e 5 do Cód. Penal.
Dispõe este preceito que “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge”, é “punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Dispõe, por outro lado, o nº 2 do mesmo preceito, que “se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Na disposição legal citada está em causa a proteção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, com Taipa de Carvalho[17] que “o bem jurídico diretamente protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos”, tendo em atenção as características do sujeito passivo, neste caso particular, que afetem a dignidade pessoal do cônjuge ou ex-cônjuge do arguido.
Trata-se de um crime específico por pressupor uma determinada relação entre os sujeitos ativo e passivo. Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), altura em que, se assim suceder, a reiteração (que não é exigível para o preenchimento do tipo legal crime) funciona como elemento constitutivo do crime[18] (por isso o crime consuma-se com a prática do último ato que integra a atividade criminosa em causa).
No entanto, o crime em apreço também se preenche mesmo que não haja reiteração quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.
Como expressivamente se refere no Ac. desta Relação do Porto de 09.01.2013, “este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.
Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra, a liberdade de determinação ou a liberdade sexual. O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caraterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite[19], quando refere que o mesmo tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana. (…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam.
A revisão do Cod. Penal de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do artº 152º do Cod. Penal) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a “reiteração” de comportamentos. Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do artº. 152º do Cod. Penal, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação.
Como, então, delimitar os casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro?
A solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. Como se refere no Ac. Rel. Guimarães de 15.10.2012[20] “Uma mesma bofetada, dependendo das circunstâncias, pode ser só uma ofensa à integridade física ou um caso de maus tratos. Poderá haver maus tratos se, por exemplo, um cônjuge esbofetear o outro na presença de filhos menores de ambos. Aqui, mais do que a ofensa corporal, sobreleva o juízo de que ao agressor foi indiferente a imagem com que os filhos ficam do outro progenitor. É especialmente humilhante um pai ou uma mãe ser agredido na presença dos filhos, sendo a humilhação agravada se o agressor for o outro progenitor. O comportamento revela um desejo de abaixamento do ofendido, sendo que as regras mínimas de civilidade impõem que cada um dos progenitores preserve a imagem do outro, perante os filhos menores de ambos.”
Entre muitos outros, cremos particularmente feliz a síntese contida no sumário do Acórdão desta Relação de 28.09.2011[21], do seguinte teor: “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima."
Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
Ora, no caso em apreço, nada disso se verifica.
A matéria de facto provada (resultante da modificação operada em consequência da impugnação supra) não evidencia qualquer estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e bem-estar físico e/ou psíquico da ofendida.
O que se verifica é que, não obstante a separação do casal após um período longo de uma relação de namoro, o arguido não interiorizou o términus da relação e passou a seguir a ofendida, perturbando o seu direito ao sossego e de se movimentar livremente.
A matéria de facto provada integra, efetivamente, todos os elementos objetivos e subjetivos da autoria material de um crime de perseguição p. e p. no artº 154º-A nº 1 do Cód. Penal, nos termos do qual "Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal".
Na exposição de motivos do projeto de lei nº 647/XII que deu origem ao corpo do art.º 154º A do Código Penal, definiu-se a perseguição, ou “stalking”, como “um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo”.
Como se refere no Ac. Rel. Lisboa de 09.07.2019[22] «A perseguição consiste na vitimação de alguém que é alvo, por parte de outrem, o assediante, de um interesse e atenção continuados e indesejados, como vigilância, ou perseguição, os quais são susceptíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo.”
“O stalking pode definir-se como uma forma de violência relacional. Segundo a maioria da legislação norte-americana, o crime consiste num padrão intencional de perseguição repetida ou indesejada que uma “pessoa razoável” consideraria ameaçadora ou indutora de medo. Já a legislação australiana define o stalking como “perseguir uma pessoa, permanecer no exterior da sua residência ou em locais por ela frequentados, entrar ou interferir na sua propriedade, oferecer-lhe material ofensivo, mantê-la sob vigilância, ou agir de um modo que se poderia esperar com razoabilidade que fosse susceptível de criar stress ou medo na vítima.” Cfr. Nuno Lima da Luz, a fls.6, da sua tese de dissertação de mestrado (disponível in http://repositorio.ucp.pt)
Pode-se caracterizar também por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc.
Embora estes comportamentos possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no seu contexto do “stalking”, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada.
De acordo com a jurisprudência uniforme, verbi gratia o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Março de 2015 (in www.dgsi.pt), a propósito de “stalking”, ainda que antes da criminalização autónoma da conduta, que o mesmo caracteriza-se como “uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento”.
Assim, este novo tipo de crime, agora previsto no art. 154º-A nº 1 já supra transcrito, tem como seus elementos constitutivos objetivos, a ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, direto ou indireto; a adequação da ação a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da ação. E elementos subjetivos, o dolo, em qualquer das modalidades referidas no art. 14º do C.P., constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los».
Ora, comete este tipo de crime o arguido que, não tendo assumido o termo do relacionamento amoroso com a ofendida, passa a persegui-la no seu automóvel, toca à campainha da residência daquela a qualquer hora do dia ou da noite, envia-lhe mensagens através do telemóvel e coloca no veículo da ofendida um localizador GPS para controlar os seus movimentos e segui-la para os mais diversos locais, atuando de forma a perturbar o equilíbrio emocional da ofendida e amedrontá-la.
Foi o que ocorreu no caso sub judice.
Conclui-se, assim, que a conduta do arguido integra todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de perseguição p. e p. no artº 154º-A nº 1 do Cód. Penal e não um crime de violência doméstica como foi condenado na 1ª instância.
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c) Da violação do princípio da imparcialidade do juiz:
Alega o recorrente que deve ser absolvido dos crimes pelos quais foi condenado, por falta de imparcialidade da Srª Juíza no decorrer de todo o julgamento, bem como na elaboração da sentença, lamentando que tivesse sido permitido o julgamento até final sem que fosse pedida a sua escusa.
Não alega o recorrente a disposição legal em que fundamenta o seu pedido e diremos, desde já, que não conhecemos qualquer preceito que comine de nulidade ou outro qualquer vício processual o julgamento ou a sentença proferidos por um juiz "parcial". Com efeito, contrariamente ao que acontece com os atos praticados por um juiz relativamente ao qual se verifique uma situação de impedimento legal, em que os atos praticados são, em princípio, nulos (artº 41º nº 3 do C.P.P.), já quanto à falta de imparcialidade, a lei apenas faculta às partes ou ao Ministério Público a possibilidade de pedir a recusa do juiz (artº 43º nº 1 do Cód. Proc. Penal - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade).
Contudo, o artº 44.º do CPP estabelece um limite temporal para a formulação da recusa: «O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos, ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.»
A lei é, assim, absolutamente clara na definição dos momentos processuais até aos quais, e segundo as diversas fases do procedimento, a recusa de juiz pode ser deduzida (é admissível).
No caso de a recusa visar juiz de 1.ª instância, o requerimento de recusa é admissível até ao início do debate instrutório (tratando-se de recusa do juiz de instrução) ou até ao início da audiência (tratando-se de recusa do juiz de julgamento).
No caso de a recusa visar juiz de 1.ª instância e os factos que a fundamentam tiverem tido lugar ou tiverem sido conhecidos pelo invocante após o início do debate do instrutório ou após o início da audiência, o requerimento de recusa é, ainda, admissível até à prolação da decisão instrutória (tratando-se de recusa do juiz de instrução) ou até à prolação da sentença (tratando-se do juiz de julgamento).
A falta de recusa dentro dos prazos delimitados por lei faz perder ao recusante o direito de recusa.
A ideia subjacente ao instituto da recusa é a de evitar que um juiz suspeito de parcialidade chegue a decidir um processo (proferindo a sentença ou decidindo o recurso) ou determine o curso ulterior do processo numa das suas fases fundamentais (proferindo decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia).
Com o estabelecimento de prazos para a dedução da recusa, pretende-se, como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 143/2004, de 10/03/2004, não só evitar a utilização surpreendente e abusiva, conforme as conveniências do recusante, da recusa como, fundamentalmente, uma “utilização inútil”.
Na verdade, o risco de parcialidade “já não será verdadeiramente evitável quando as decisões, embora não transitadas, já tiverem sido tomadas e tornadas públicas”.
“O sentido fundamental do impedimento do risco de não imparcialidade está ligado, indiscutivelmente, à decisão principal, ao “poder de decidir” do juiz suspeito ...”
Não tendo o recorrente formulado pedido de recusa da Srª Juíza que presidiu ao julgamento no limite temporal previsto no artº 44º do C.P.Penal, é manifestamente extemporâneo e infundado o seu pedido de invalidade da sentença recorrida por falta de imparcialidade, que podia/devia ter constituído fundamento de recusa.
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d) Da violação do princípio in dubio pro reo:
Alega o recorrente que ao não ter fundamentado com rigor e de que forma julgou provados determinados factos, o tribunal a quo violou o princípio da presunção de inocência.
Vejamos:
O princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, estabelece, como é sabido, que, verificando-se uma dúvida razoável quanto aos factos, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido. Nas palavras de Figueiredo Dias, “um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.
É certo que, conforme ensina a doutrina e vem afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, pág. 215), “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
Contudo, não basta para tanto dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. Como se disse, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Daqui não resulta, porém, que, tendo sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser necessariamente beneficiado por aplicação daquele princípio. Com efeito, o princípio in dubio pro reo pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador; por isso, a sua violação só pode ser afirmada se, por forma evidente, resultar do texto da decisão que o tribunal, perante a dúvida, optou por decidir contra o arguido.
Ora, do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal tenha tido qualquer dúvida sobre a factualidade que considerou provada.
Como refere ROXIN[23] “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
É que a dúvida obstrutiva do julgamento «provado» em processo penal de facto jurígena de responsabilidade criminal, em postergação dos princípios in dúbio pro reo derivado da «presunção de inocência» do art 32º da CRP, é apenas «… a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido»[24].
Improcede assim este fundamento do recurso, sem prejuízo da modificação da matéria de facto em consequência da procedência parcial da sua impugnação pelo recorrente.
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e) Da determinação da medida da pena:
Tendo este Tribunal concluído que o arguido cometeu ilícito criminal diverso do qual fora condenado na 1ª instância e a que corresponde igualmente uma diferente moldura penal, impõe-se proceder a nova determinação da medida concreta da pena.
O crime de perseguição p. e p. no artº. 154º-A do Cód. Penal é punido com pena de prisão até três anos ou pena de multa.
Como é sabido, culpa e prevenção constituem o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena, a qual visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigos 71º, n.º 1 e 40º, n.º 1, do Código Penal.
A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal[25].
Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995[26], ao eleger como finalidades da punição a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e ao impor como limite da pena a culpa.
Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido há que atender ao grau de ilicitude do facto, ao elevado grau de violação dos deveres impostos ao arguido, à intensidade do dolo direto, ao modo de execução do crime, reiterando a sua conduta ao longo de diversos meses, ao sentimento de desrespeito manifestados pelo arguido pela vida privada, sossego e liberdade de movimentação da ofendida, bem como à total ausência de arrependimento, sem esquecer os antecedentes criminais do arguido por prática de crime de violência doméstica.
Não podemos esquecer, por outro lado, as condições pessoais do arguido: é agente da PSP desde 1998, vive nas instalações da Esquadra da PSP de … e tem três filhos de relações anteriores, encontrando-se social e profissionalmente integrado.
Tudo visto e ponderado, entendemos que a pena de 16 (dezasseis) meses de prisão satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
Em conformidade com o disposto no artº 50º do Cód. Penal tem o tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido[27].
Como se salientou no Ac. do STJ de 08.05.97 (Proc. nº 1293/96) “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
Ponto é que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas com a aplicação da pena de substituição. “O sentido destas é, aliás, nesta sede, o de se imporem como limite às exigências de prevenção especial, constituindo então o conteúdo mínimo de prevenção geral de integração de que se não pode prescindir para que não sejam, em último recurso, defraudadas as expetativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos”[28].
Como afirma Figueiredo Dias, a suspensão de execução da pena constitui entre nós a mais importante das penas de substituição[29], a qual depende da formulação de um prognóstico favorável incidente sobre a capacidade do arguido para atingir a sua ressocialização em liberdade.
Na expressão de H.H. Jescheck «a prognose social favorável do arguido, que deve acontecer em todos os casos, consiste na esperança de que o condenado sentirá a condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum delito. Com razão, não se exige já a perspetiva de uma “vida futura ordenada e conforme com a lei [...], já que para o fim preventivo da suspensão basta que não volte a delinquir no futuro. Esperança não significa certeza [...]. O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente, mas se existem dúvidas sérias sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa, o que de facto supõe um "in dubio contra reu". A prognose exige uma valoração total de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido. Estas circunstâncias são a sua personalidade (por ex., inteligência e carácter), a sua vida anterior (por exemplo, outros delitos anteriormente cometidos da mesma ou de outra natureza), as circunstâncias do delito (por exemplo motivações e fins), o seu comportamento depois de ter cometido o crime (por exemplo reparação do dano, arrependimento), as circunstâncias da sua vida (por exemplo, profissão, casamento e família) e os efeitos que se esperam da suspensão [...][30]».
Porém, ainda que centrada na pessoa do arguido no momento atual e na avaliação da respetiva capacidade de socialização em liberdade, ou seja, em considerações radicadas na prevenção especial, a decisão que aprecie a propriedade de escolha por esta, ou outra, pena de substituição, deve atender igualmente às exigências de prevenção geral positiva, para que a reação penal responda adequadamente às expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada e assegure a proteção do bem jurídico afetado, como imposto pela parte final do nº1 do artº 50º do CP. Esse necessário balanceamento entre as finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização, em que a primeira exerce função limitadora da segunda, encontra relação direta com a gravidade da pena e a proximidade do limite de admissibilidade da pena de substituição. Nas palavras do S.T.J.: «A suspensão da mesma pena deve afigurar-se como compreensível e admissível perante o sentido jurídico da comunidade. A lei não o diz, mas é uma questão de razoabilidade e lógica jurídica, dimanada dos princípios, a afirmação de que, em termos de prevenção especial, não tem o mesmo significado na aferição da possibilidade de suspensão de execução da pena uma pena de seis meses de prisão ou uma pena de cinco anos de prisão»[31].
Neste ponto, as questões que se colocam passam por aquilatar se existem condições para confiar que o arguido será capaz de se ressocializar em liberdade, sem voltar a práticas similares às aqui censuradas, e, mesmo que esse risco fundado possa ser afirmado, se a pena de substituição não coloca em causa o «limite mínimo de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico».
No caso em apreço, as condições pessoais do arguido emergentes da matéria de facto provada e, acima de tudo, a circunstância de se encontrar separado da ofendida, não havendo notícia de contactos e/ou incidentes posteriores aos factos que deram origem à instauração dos presentes autos, demonstram ser possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, mostrando-se por isso preenchido o requisito material previsto no artº 50º do Cód. Penal para a suspensão da execução da pena.
Por outro lado, atenta a natureza do crime, a suspensão da pena no caso concreto não é suscetível de ferir a confiança comunitária na validade da ordem jurídica e na proteção que esta assegura aos bens que estruturam a vida social.
Não se condena o arguido nas penas acessórias previstas no artº 154º-A nºs 3 e 4 do Cód. Penal, por se entender que, tal como acontece com o crime de violência doméstica, em que o legislador, não obstante a previsão de penas acessórias, permite a imposição de regras de conduta de conteúdo idêntico (mas sem fiscalização por meios técnicos de controlo à distância), como condição para a suspensão da execução da pena de prisão - artº 34º-B nº 1 da Lei nº 112/2009 de 16.09, também no crime de perseguição, a fixação de regras de conduta é suficiente para salvaguarda da proteção da vítima.
Pelo exposto, nos termos dos artºs 50º e 52º nº 2 do Cód. Penal, suspender-se-á execução da pena de 16 meses de prisão por igual período de tempo, sob condição de o arguido não se aproximar da residência e do local de trabalho da ofendida e de não a interpelar pessoal ou telefonicamente.

Quanto ao pedido de indemnização civil - fixado na sentença recorrida em € 5.000,00 - impõe-se proceder à sua redução, uma vez que na sequência da alteração da matéria de facto provada, houve uma efetiva redução dos factos ilícitos imputados ao arguido, bem como dos danos de natureza não patrimonial sofridos pela ofendida/demandante.
Atento o período de tempo em que decorreu a conduta persecutória do demandado/arguido, a perturbação do equilíbrio emocional provocado na ofendida, bem como a angústia, instabilidade e ansiedade por esta sofridos, em conformidade com o disposto nos artºs. 496º nº 3 e 494 do Cód. Civil, considera-se equitativa e justa a fixação da indemnização por danos não patrimoniais em € 3,500,00, quantia essa a que acrescem juros de mora à taxa legal vincendos desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência:
1 - alteram a matéria de facto nos seguintes termos:
- os pontos 7, 8 e 34 consideram-se como não escritos;
- os pontos 13 e 36 consideram-se como não provados;
- os pontos 3 e 5 passam a ter a seguinte redação: "No período compreendido entre Setembro de 2017 e 15 de Agosto de 2018, o arguido por vezes pernoitava ou passava uns dias na residência da ofendida sita em Vila Nova de Gaia, em casa arrendada por esta, aí tomando algumas refeições".
- os pontos 9 e 10 passam a ter a seguinte redação: "Em 15 de Agosto de 2018, arguido e ofendida puseram termo à relação que mantinham".
- os pontos 35 e 37 passam a ter a seguinte redação: "Ao proceder com a conduta acima descrita de forma reiterada, depois de se ter separado da ofendida, o arguido procurou perturbar o equilíbrio emocional daquela e amedrontá-la, o que conseguiu, provocando-lhe angústia, instabilidade, ansiedade e agitação".
2 - alteram a qualificação jurídica dos factos, condenando o arguido B… pela prática de um crime de perseguição p. e p. no artº 154º-A nº 1 do Cód. Penal, na pena de 16 (dezasseis) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob condição de o arguido não se aproximar da residência e do local de trabalho da ofendida e de não a interpelar pessoal ou telefonicamente (artºs. 50º e 52º nº 2 do Cód. Penal.
3 - reduzem a quantia fixada a título de indemnização por danos não patrimoniais, condenando o demandado B… a pagar à demandante C… a quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), quantia essa a que acrescem juros de mora à taxa legal vincendos desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento.

Sem tributação - artº 513º nº 1 "a contrario" do C.P.Penal.
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Porto, 22 de setembro de 2021
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Leia-se “Matéria de Facto Provada”.
[4] Proferido no Proc. nº 1170/14.6TAVFR.P1, Des. Ana Bacelar, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Ricardo Bragança de Matos, in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima”, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101.
[6] A título meramente exemplificativo, citam-se os seguintes acórdãos do STJ: de 06.05.2004 - Proc.04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho; de 21.02.2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes; de 15.11.2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho; de 02.04.2008 - Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges; de 02.07.2008 - Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges; de 23.02.2011, Rel. Cons. Pires da Graça, Proc. n.º 395/03.4GTSTB.L1.Si – todos acessíveis em www.dgsi.pt
[7] Proferidos nos Procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e disponíveis in www.dgsi.pt
[8] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 21.01.2003, Proc. nº 02ª4324, rel. Afonso Correia, também disponível in www.dgsi.pt
[9] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs.
[10] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 09.07.2003, Proc. nº 3100/02, rel. Leal Henriques, disponível in www.dgsi.pt).
[11] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. Idem, Ibidem, pág.298.
[12] “(…) há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” Ac. RG 20/3/06, proc. nº 245/06-1.
[13] V. Fig. Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol., págs. 233-234.
[14] Neste sentido, v. Ac. RC de 6/3/02, CJ, ano XXVII, t. II, pág. 44.
[15] Cfr. Ac. T.C. 198/2004 de 24/3/04, acima citado.
[16] V. Ac do STJ de 07/6/06, proferido no Proc. 06P763, disponível no site www.dgsi.pt
[17] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 512.
[18] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 112, parte final da anotação 1.
[19] In Estudo publicado na Revista Julgar, nº 12, página 25 e ss.
[20] Relatado pelo Des. Fernando Monterroso e disponível em www.dgsi.pt
[21] Proferido no Proc. nº 170/10.0GAVLC.P1, Des. Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt
[22] Proferido no Proc. nº 742/16.9PGLRS.L1-5, Des. Ricardo Cardoso, disponível in www.dgsi.pt.
[23] In “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111
[24] ASTJ de 11.4.2011 de Souto de Moura com Isabel Pais Martins e Carmona da Mota no Processo 117/ 08.3PEFUN.L1.S1.
[25] A pena da culpa, ou seja, a pena adequada à culpabilidade do agente, deve corresponder à sanção que o agente do crime merece, isto é, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade – Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.
[26] V. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111. Na esteira desta doutrina, entre muitos outros, o Ac. do STJ de 21.10.2004, na CJ (STJ), XII, III, 192.
[27] Cfr. Figueiredo Dias “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, RLJ, Ano 124º, pág. 68 e “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, § 518, págs. 342/343.
[28] V. Ac. do STJ de 28.07.2007, Proc. nº 1488/07, rel. Consº. Rodrigues da Costa, louvando-se na lição de Figueiredo Dias, supra cit..
[29] V. Figueiredo Dias, In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 337.
[30] Cfr. H.H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, vol. I, Bosch, 1981 (tradução da 3ª ed. original alemã), págs. 1154 e 1155.
[31] Cfr. Ac. do STJ de 05/12/2007, Pº 07P3396, relator Cons. Santos Cabral, disponível em www.dgsi.pt