DOCUMENTO PARTICULAR
EXEQUIBILIDADE EXTRÍNSECA
AUTENTICAÇÃO
REGISTO INFORMÁTICO DO TERMO
PRAZO
Sumário


Sumário (do relator):

- Para ser conferida exequibilidade extrínseca a um documento particular que importe a constituição de uma obrigação, é necessária a sua autenticação por entidade dotada de competência para esse efeito, com vista a assegurar a compreensão do conteúdo desse documento pelas partes.
- A declaração cuja autenticação se impõe é a da pessoa que se obrigou, ou seja, a do devedor.
- Para ser válida essa autenticação importa, além do mais, que seja efectuado o registo informático do respectivo termo dentro do prazo estabelecido no art. 4º da Portaria nº 657-B/2006, e 29 de Junho.
- A inobservância do referido prazo implica que o documento particular não chega sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado, não podendo, assim, constituir título executivo.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

C. P., residente na Calçada …, Barcelos, move contra Herança Liquida e Indivisa de C. C., representada pelas herdeiras L. S. e M. I,, acção executiva para pagamento de quantia certa, tendo por base o título executivo denominado de “contrato de confissão de dívida”, cujo documento junta.

Alega para o efeito que mediante esse contrato, o executado declarou-se devedor à exequente da quantia de € 18.000,00; que tal quantia teria que ser paga até ao dia 20 de Julho de 2017; que o executado faleceu a -.06.2016 e não obstante as diligências da exequente junto das herdeiras do executado o certo é que as mesmas tem-se furtado ao contacto com a exequente; que com o óbito do executado a dívida exequenda venceu-se a 01.06.2016; que além da quantia exequenda deve a executada pagar à exequente os juros de mora devidos desde a data de vencimento 01.06.2016 até efectivo pagamento, juros que na presente data somam € 225,00 e os juros vincendos desde a presente data até efectivo e integral pagamento; e que além das quantias supra deve a executada a quantia de € 150,00 a título de despesas para a tentativa de cobrança extrajudicial.

A executada deduziu embargos à execução, alegando, além do mais e em síntese, que o documento denominado confissão de dívida não constitui título executivo, porquanto, sendo um documento particular carecia de ser autenticado de acordo com os art. 150º e 151º do Código do Notariado e que a autenticação efectuada sobre tal documento não observa o disposto em tais artigos, nomeadamente o previsto no art. 151º, nº 1, al. a) do C.Not., na medida em que a autenticação da alegada confissão de dívida não contém a assinatura dos seus outorgantes.
Conclui assim que o documento não está devidamente autenticado e, por isso, não constitui título executivo.

A exequente contestou, pugnando, além do mais, pela regularidade da autenticação do documento de confissão de dívida e pela existência de título executivo.

Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se decidiu julgar que o documento apresentado tem idoneidade, por natureza, para configurar título executivo e, em consequência, indeferiu-se o invocado pela embargante.

Inconformada com tal decisão, veio a embargante recorrer formulando as seguintes conclusões:

a) - Nos termos do artigo 703°, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, os documentos particulares que importem constituição ou reconhecimento de obrigações apenas constituem título executivo de forem autenticados.

b) - No documento junto como título executivo não consta a assinatura dos outorgantes.

c) - Determina o artigo 151 º, n. ° 1, alínea a) do Código do Notariado que o termo de autenticação deve conter a declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade.

d) - A formalidade exigível nos termos da citada norma impõe a assinatura dos outorgantes no próprio termo de autenticação.

e) - A declaração a que alude o citado artigo 151°, n.º 1, alínea a) tem natureza formal, sendo que para vincular o declarante tem de estar assinada pelo próprio.

f) - Existem dois actos jurídicos distintos, sendo o primeiro a declaração das partes, feita perante a entidade autenticadora, de que leram o documento ou estão perfeitamente inteirados do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade, e o segundo a certificação dessa declaração por parte da entidade autenticadora.

g) - O que resulta do artigo 151°, n.º 1, alínea a) do Código do Notariado é que não é suficientemente a certificação da declaração pelo notário ou advogado, sendo ainda exigível que a própria declaração conste do termo de autenticação.

h) - E sendo tal declaração da autoria das partes tem, para ser válida e eficaz, de ser assinada pelos mesmos.

i) - O termo de autenticação é considerado um instrumento notarial, devendo obedecer aos requisitos previstos no citado artigo 46° do Código do Notariado, conforme expressamente previsto no artigo 151°, n.º 1 do mesmo diploma.

j) - Conjugando o disposto nos artigos 46°, n.º 1, alínea n) e 151°, n.º 1 do Código do Notariado, afigura-se claro que o termo de autenticação tem de conter a assinatura dos outorgantes.

k) - Não constando do termo de autenticação da confissão de dívida dada à execução a assinatura dos outorgantes, deve considerar-se que tal documento não se considera autenticado, não podendo assim valer como título executivo.

1) - A decisão do Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 46°, n.º 1, alínea n), 150° e 151°, n.º 1 do Código do Notariado e 703°, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS e nos demais que Vossas Excelências doutamente suprirão será feita JUSTIÇA.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar.

II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumpre apreciar se o documento apresentada à execução constitui título executivo e, em caso negativo, se devem os embargos ser procedentes.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para o presente recurso há a considerar, além da factualidade constante do relatório supra, os seguintes factos:

- A embargada deu à execução um documento intitulado “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, o qual está junto aos autos principais, o qual tem termo de autenticação com o seguinte teor: “No dia 9 de Outubro de 2015, (…), perante mim, A. M.
(…), compareceram como 1º outorgante C. C. (…) e 2ª outorgante C. P. (…).
E por eles foi dito:
Que eles, 1º e 2ª outorgante, estão perfeitamente inteirados do conteúdo do presente documento – que é uma CONFISSÃO DE DÍVIDA E ACORDO DE PAGAMENTO, por eles escrito e assinado – documento que leram, assinaram e me apresentaram para fins de autenticação e que o mesmo exprime as suas vontades.
Assim o outorgaram:
Este termo foi lido aos outorgantes e aos mesmos explicado o seu conteúdo.”

- Do termo de autenticação consta como data da sua execução o dia 9.10.2015 e como data do registo do mesmo o dia 14.10.2015.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A acção executiva visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado e tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (cfr. artigos 2º e 10º nºs1, 4 e 5, do Código de Processo Civil).
Diz-nos o art. 10º, nº 5, do Código de Processo Civil que toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
Esse título é um documento, enquanto forma de representação de um facto jurídico.
Essa representação de um facto jurídico advém de “condições formais predeterminadas na lei, e nas quais a força probatória do título não intervém qua tale, condições essas que para o legislador constituem a base da aparência ou da probabilidade do direito” – Anselmo de Castro, Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 45-46.
Os títulos executivos são documentos de actos constitutivos ou certificativos de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servirem de base ao processo executivo (cfr, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 58).
Assim, o título determina porquê, contra quem e para quê o credor requer a execução, nos termos do citado art. 10º, nº 5, do CPC. Ele tem, portanto, uma função delimitadora, no sentido em que o âmbito objectivo e subjectivo da acção executiva é delimitado pelo título executivo (cfr Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 65).
O legislador fixa de modo imperativo os documentos que podem desempenhar a função de título executivo. Existe, aqui, uma regra de tipicidade.
Além da característica da tipicidade, o título executivo tem também a característica da suficiência a autonomia. A suficiência significa que o título cumpre as suas funções de representação, delimitação e constitutiva, sem necessidade de elementos complementares (Rui Pinto, A Acção Executiva, pág. 145). A autonomia significa que a exequibilidade do título é independente da exequibilidade da pretensão (Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 70).
Deste modo, a enumeração dos títulos executivos é taxativa, conforme resulta da previsão do art. 703.º, C.P.C..
De entre o elenco taxativo de títulos executivos legalmente previsto, a al. b) do citado artigo 703.º, do C.P.C., prevê que podem servir de base à execução os documentos (…) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.
Por sua vez, preceitua o artigo 363º, este do Código Civil, que: 1. Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares. 2. Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares. 3. Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais – sublinhado nosso.
A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (artigo 372º, nº1, do Código Civil).
Os documentos particulares autenticados nos termos da lei notarial têm a força probatória dos documentos autênticos, de harmonia com o disposto no art. 377º do C.Civil.
A questão que se coloca no presente recurso é saber se perante o documento denominado de “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento” apresentado à execução, o termo de autenticação do mesmo deve conter a assinatura de quem figura como outorgante do negócio jurídico confirmado perante quem o elabora.
Ora, o regime de autenticação dos documentos particulares encontra-se previsto nos art.ºs 150.º e ss. do Código do Notariado, de onde resulta que se exige que as partes confirmem o seu conteúdo perante o advogado (art.º 150.º n.º 1 do CN), o qual deve lavrar termo de autenticação (art.º 150.º n.º 2) e obedece aos requisitos previstos nos art.ºs 150.º e 151.º do CN, devendo ainda ser efectuado o registo informático, previsto na Portaria 657-B/2006, de 29 de junho.
Conforme dispõe o artigo 153º, n.º 1 do Código do Notariado, os reconhecimentos notariais podem ser simples ou com menções especiais.
O reconhecimento simples respeita à letra e assinatura, ou só à assinatura, do signatário de documento (n.º 2 do referido preceito).
O art.º 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de maio, procedeu à extensão do regime dos reconhecimentos de assinaturas e da autenticação e tradução de documentos, além de outras entidades ou profissionais, aos advogados. Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial (n.º 1).
Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efectuados pelas entidades previstas no número anterior conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial (n.º 2).
Os actos referidos no n.º 1 apenas podem ser validamente praticados pelas câmaras de comércio e indústria, advogados e solicitadores mediante registo em sistema informático, cujo funcionamento, respetivos termos e custos associados são definidos por portaria do Ministro da Justiça (n.º 3).
Tal registo veio a ser implementado pela Portaria nº 657-B/2006, de 29 de junho.
Do referido quadro legal decorre que o procedimento tendente à autenticação de um documento particular por advogado pressupõe três momentos ou etapas: num primeiro momento esse documento é outorgado e assinado pelas respectivas partes, sendo que o advogado - enquanto entidade autenticadora - não outorga nem subscreve o documento; num segundo momento, o documento particular assinado pelas partes é apresentado ao advogado para autenticação, devendo subsequentemente o termo de autenticação ser lavrado com observância dos requisitos estabelecidos nos citados artigos 150º e 151º do Código do Notariado; e, por fim, deve ser efectuado o registo informático em conformidade com o que se mostra estabelecido na citada Portaria nº 657-B/2006, de 29.06.
No que tange à oportunidade temporal da execução desse registo, rege o artigo 4º, que no nº 1 da referida Portaria, que prevê que “o registo informático é efetuado no momento da prática do ato, devendo o sistema informático gerar um número de identificação que é aposto no documento que formaliza o ato”, acrescentando o nº 2 do mesmo normativo que “se, em virtude de dificuldades de caráter técnico, não for possível aceder ao sistema no momento da realização do ato, esse facto deve ser expressamente referido no documento que o formaliza, devendo o registo informático ser realizado nas quarenta e oito horas seguintes”.
Decorre do citado regime legal que a autenticação do documento particular somente será válida se for efectuada no prazo e com observância dos demais requisitos legalmente fixados, sendo que a formalidade relativa ao registo informático da autenticação assume natureza de formalidade essencial (que não de mera irregularidade), cuja inobservância põe em causa a validade da autenticação realizada.
Com efeito, conforme se entendeu no Ac, da RP de 8.11.2018, no proc. 3261/17.2T8AGD.P1, disponível in dgsi, “o nº 3 do artigo 38º do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março expressamente condiciona a validade do acto de autenticação de documento particular ao registo em sistema informático nos termos definidos na citada Portaria nº 657-B/2006, a qual, no seu artigo 1º, reitera que a validade desse acto depende da efectivação do registo nas condições definidas nos artigos 3º (que estabelece os concretos elementos ou dados recolhidos que devem ser registados no sistema informático) e 4º (que concretiza o momento em que deve ser executado o registo nesse sistema).
Ora, a propósito da oportunidade temporal em que deve ser executado o registo na plataforma informática, a lei é clara no sentido de estabelecer que esse registo tem obrigatoriamente de ser efectuado “no momento da prática do ato”, ressalvando apenas a situação (excepcional) de nesse momento ocorrer dificuldade de carácter técnico de acesso ao sistema, caso em que o acto é válido mesmo sem o registo, contanto que esse facto seja expressamente referido no documento que o formaliza e o registo seja efectuado nas 48 horas seguintes.
Perscrutando as razões que subjazem à imposição do imediato registo informático do termo de autenticação, afigura-se-nos que a mencionada determinação legal se ancora em razões de segurança e certeza jurídicas sobre a exacta definição da data em que o documento particular adquiriu a natureza de documento particular autenticado, procurando, assim, salvaguardar a fé pública associada a este tipo de documento (que, como se referiu, passa a ter a força probatória do documento autêntico).
Como assim, dada a natureza cogente dos artigos 38º, nº 3 do DL nº 76-A/2006 e 1º e 4º da Portaria nº 657-B/2006, esse registo informático, ao invés do entendimento preconizado pela apelante, assume, na economia de tais diplomas, natureza de formalidade essencial (que não de mera irregularidade), cuja inobservância contende, pois, com a validade da autenticação realizada.
Daí que, sendo a autenticação efectuada fora do condicionalismo temporal definido no artigo 4º da citada Portaria fica afectada a sua validade, pelo que o documento particular não chega sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado, não podendo, nessa medida, servir de base à acção executiva por não consubstanciar título passível de ser subsumido à fattispecie da al. b) do nº 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil.
Em análogo sentido se pronunciam Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo, in A ação executiva anotada e comentada, pág. 141, aí escrevendo que «a autenticação apenas será considerada se o ato for registado de imediato no respetivo sistema informático ou, em caso de indisponibilidade, dentro do prazo máximo de 48 horas (…), pelo que, sendo apresentado à execução documento autenticado sem que o respetivo registo tenha sido efetuado nos termos sobreditos, deverá concluir-se que o documento não reúne os requisitos legalmente exigidos para que possa ser considerado título executivo” – cf. ainda acórdão da Relação do Porto de 23.01.2017, processo n.º 871/14.5T8LOU-A.P1, www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.”
Assim sendo, considerando que no caso vertente o termo de autenticação apresenta como data da sua execução o dia 9.10.2015 e como data do registo do mesmo o dia 14.10.2015 e não constando do teor do documento expressa referência à impossibilidade de aceder à plataforma informática no momento da realização do registo (sendo certo que esse registo não foi efectuado nas 48 horas subsequentes à prática do acto), conclui-se que o documento que foi dado à execução carece de exequibilidade extrínseca, ou seja, não constitui título executivo, não podendo, por isso, servir de base à presente execução.
Deste modo, impõe-se a procedência da apelação e revogação da decisão recorrida, muito embora por fundamentos não coincidentes, devendo ser extinta a execução por inexistência de título executivo.
Por consequência, prejudicada fica a questão suscitada na apelação (cfr. art. 608º, nº 2, do CPC.).

*
DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso apresentado e, em consequência, revogar a sentença recorrida, procedendo os embargos.
Sem custas.
Guimarães, 18.11.2021

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Margarida Gomes
Conceição Bucho