ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
RECURSO DE APELAÇÃO
PROCESSO ESPECIAL
Sumário


O acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão de 1.ª instância proferida ao abrigo do n.º 3 do art. 942.º do CPC, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, admite recurso de revista, nos termos gerais.

Texto Integral

Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência n.º 1132/18.4T8LRA-C1.S1-A




I - AA instaurou contra CARLOS MANUEL da SILVA SANTOS - CONTABILIDADE, AUDITORIA e GESTÃO, Ld.ª, ação declarativa com processo especial para prestação de contas sustentada num contrato de prestação de serviços de contabilidade que vigorou entre as partes até 31-12-2016.

Alegou que da execução desse contrato resultará a seu favor o saldo correspondente ao diferencial entre as quantias que entregou à Ré, entre 1986 e 2003, acrescidas da quantia de € 68.770,07, e o custo dos serviços de contabilidade que a Ré lhe prestou.

A Ré contestou e, entre diversos aspetos, impugnou a existência da alegada obrigação de prestação de contas.

O Autor respondeu.

Na 1.ª instância foi proferida decisão determinando que no prazo de 20 dias a Ré deve apresentar as contas relativas à execução do contrato de prestação de serviços de contabilidade que foi executado no ano de 2016, sob pena de não lhe ser permitido contestar as que forem apresentadas pelo Autor.

Desta decisão o Autor interpôs recurso de apelação pretendendo que se declare que a obrigação de prestação de contas abarca todo o período de duração do contrato de prestação de serviços e não apenas o ano de 2016.

A Relação julgou procedente o recurso de apelação e determinou que a Ré está obrigada a prestar contas nos termos pretendidos pelo Autor.

Inconformada com o acórdão da Relação, a Ré interpôs recurso de revista o qual foi rejeitado neste Supremo Tribunal de Justiça com fundamento na sua inadmissibilidade, tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 942.º do CPC. Tendo sido requerida a intervenção da conferência, foi proferido o acórdão de 12-1-2021, 1132/16 - Rel. Ana Paula Boularot, em www.dgsi.pt, que confirmou aquela decisão singular.

Transitado em julgado este acórdão do Supremo, veio a Ré interpor o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência fundado na existência de contradição com outro acórdão do Supremo – o Ac. do STJ, de 13-11-2003, 03B2826 (Rel. Santos Bernardino), em www.dgsi.pt - que, em semelhante contexto normativo, considerou admissível o recurso de revista.

Quanto ao mérito do recurso a recorrente concluiu, no essencial, que:

IV. Nem na letra da lei, nem no seu espírito, clarificado pela história da norma, encontramos apoio para o entendimento de que, no contexto do processo especial de prestação de contas, as decisões de 1.ª instância, que se debruçam sobre a obrigação de prestar contas, só admitem um grau de recurso.

V. Podendo existir diferenças interpretativas a respeito da razão pela qual no nº 4 do art. 942.º do CPC se encontra uma referência à apelação, verifica-se absoluta convergência, na doutrina e jurisprudência no que respeita àquilo que está aqui em causa, ou seja, os resultados da interpretação: admissão do recurso de revista, de acordo com as regras gerais.

VI. Com a Reforma levada a cabo pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, a fórmula adotada no n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC (com total correspondência, hoje, no nº 4 do art. 942.º do CPC de 2013) visou tomar posição sobre um problema que atormentava a doutrina e a jurisprudência, desde tempos recuados, sobre a espécie de recurso adequado (agravo ou apelação?) a interpor da decisão de 1ª instância.

VII. No processo de prestação de contas, a última alteração legislativa do preceito em causa (por força do Dec.-Lei n.º 329-A/95), revogando a opção pela espécie “agravo” (na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 47.960, de 11-5-1967), quis apenas dispor que é de apelação o recurso próprio para impugnar decisão – de mérito – proferida sobre a existência ou inexistência de obrigação de prestar contas.

VIII. Após o Dec.-Lei n.º 303/07, de 24-8, ter adotado o regime monista de recursos (eliminando o agravo), o n.º 4 do art. 942.º continuou a ser um preceito útil ao fixar o modo de subida (no caso em apreço, subida imediata) e o efeito do recurso (efeito suspensivo) da apelação, desviando-se (apenas) nesse ponto das regras gerais dos art.ºs 645.º e 647.º do CPC.

IX. Incorrendo em inexatidão o acórdão quando afirma que o n.º 4 do art. 942.º se revela hoje despiciendo, face às regras gerais de admissibilidade de recurso de apelação, apelando à letra da al. a) do n.º 1 do art. 644.º do CPC, o qual, todavia, pressupõe que a decisão em 1.ª instância “ponha termo à causa”, ou seja, “determine a extinção total da instância”, o que aqui se não verifica.

X. O n.º 4 do art. 942.º do CPC não trata - nem nunca tratou nas correspondentes normas que o antecederam - da recorribilidade do acórdão que venha a ser proferido pelo Tribunal da Relação, como assim foi decidido no acórdão fundamento, em manifesta divergência com o propugnado no acórdão recorrido.

XI. Em matéria de recursos, em tudo aquilo que no processo especial não estiver regulado, aplicar-se-ão as disposições gerais. Tal diretriz prática decorre expressamente do n.º 1 do art. 549.º do CPC.

XII. Ou seja, em tudo o que não estiver especialmente regulado, vigoram as regras gerais do recurso. Por isso, no que diz respeito à admissibilidade do recurso de revista, como corretamente se sufraga no acórdão fundamento, aplicar-se-ão as regras gerais atinentes ao processo comum declarativo (ao tempo processo com forma ordinária).

XIII. O n.º 4 do art. 942.º do CPC nasceu historicamente para eliminar dúvidas sobre a espécie de recurso a interpor da decisão proferida pela 1.ª instância, sem contender com os critérios gerais de admissibilidade de recurso.

XIV. Ao optar pelo recurso de apelação, desde a reforma processual de 1995, o legislador quis fixar o modo de subida e o efeito específico para aquela espécie de recurso no contexto do processo especial em apreço. A respeito do recurso do acórdão da 2.ª instância para o Supremo nada diz, nem tinha de dizer. Por isso, nesta matéria, aplicar-se-ão as regras gerais do recurso de revista, como muito bem foi sufragado no acórdão fundamento, em frontal divergência com o acórdão recorrido.

XV. Em termos de técnica legislativa, invoque-se ainda um outro argumento: quando o legislador processual quer excluir a admissibilidade do recurso de revista, a fórmula é categórica, não deixando margem a quaisquer dúvidas. Tome-se em consideração, a título exemplificativo, a redação de duas hipóteses legais: a do n.º 2 do art. 370.º e a do n.º 4 do art. 662.º do CPC.

XVI. No acórdão recorrido, é também com alguma inexatidão que se invoca a 1ª parte do n.º 3 do art. 942.º do CPC, somente aplicável em casos de apreciação sumária do objeto da causa, omitindo (ou desprezando) a ressalva do regime a adotar nos demais litígios (2.ª parte do n.º 3). Tal afirmação só seria, em teoria, aceitável, se o Supremo se tivesse debruçado sobre o caso em apreço para aferir se a questão foi sumariamente decidida. Ora, no caso em discussão, a complexidade factual e de direito inerente ao litígio obstaram a qualquer decisão sumária, tendo-se seguido os termos do processo comum declarativo, o que passou despercebido.

XVII. Ao rejeitar o recurso de revista (não obstante estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade), o acórdão recorrido fez uma errada interpretação da lei, descurando os diversos fatores hermenêuticos dos quais deve lançar mão o intérprete para desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, violando, entre mais, os art.ºs 629.º, n.º 1, e 671.º do CPC.

O Autor contra-alegou e concluiu nos termos seguintes:

1ª – O recurso para uniformização de jurisprudência que antecede e apresentado pela recorrente é, na modesta opinião do ora recorrido, inadmissível, por não se verificar, pelo menos, um dos pressupostos previstos pelo n.º 1 do art. 688.º do CPC.

2ª – Dado que a contradição aqui posta em causa diz respeito à interpretação feita no acórdão que antecede ao disposto no n.º 4 do art. 942.º do CPC, com a interpretação feita no acórdão fundamento ao disposto no n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 44.129, de 28-12-1961, na versão que lhe foi dada com a aprovação do Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, entretanto revogado pela al. a) do art. 4.º do Dec.-Lei n.º 41/13, de 26-6, que aprovou outro Código, distinto, nos termos do seu art. 1.º.

3ª – Não se verificando, desse modo, a questão suscitada estar em contradição entre um acórdão (recorrido) e outro acórdão (fundamento) no domínio da mesma legislação, pelo que deverá o presente recurso ser, salvo douta opinião, rejeitado, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 962.º do CPC, por não se verificarem todos os pressupostos cumulativos previstos, para o efeito, no n.º 1 do art. 688.º do CPC, o que muito respeitosamente se requer, para todos os devidos e legais efeitos.

Contudo, caso não seja este o douto entendimento, sempre dirá o seguinte:

4ª – O acórdão aqui recorrido interpretou corretamente o disposto no n.º 4 do art. 942.º do CPC, ao considerar não ser admissível o recurso de revista contra um acórdão da Relação, uma vez que aquela norma claramente limita o grau de recurso à apelação.

5ª – Veja-se que qualquer outra interpretação feita àquela norma, nomeadamente, no sentido de que a recorrente pretende fazer valer, violaria o previsto pelo n.º 2 do art. 9.º do CC, uma vez que a interpretação feita não tem “na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”

6ª – Tanto que, aquando da aprovação do CPC, mas posteriormente ao acórdão fundamento, já o recurso de agravo tinha sido “abolido”, pelo que, manter tal expressão (de apelação), como aqui fundamenta a requerente, por forma a distinguir o tipo de recurso e os seus efeitos, não faria qualquer sentido, nem teria qualquer utilidade, tendo sido intenção do legislador, com a aprovação do CPC, limitar a um grau de recurso (apelação) nesta primeira fase deste processo especial, caso contrário teria expressamente e simplesmente previsto a possibilidade de “recurso” que, dessa forma, se remeteria para os termos gerais do CPC.

7ª – Sendo certo de que a possibilidade de recurso prevista no n.º 4 do art. 942.º do CPC situa-se uma primeira fase do processo especial de prestação de contas, pelo que não colocará em causa qualquer garantia de defesa da recorrente, a qual se encontra obrigada a prestar contas, mas que, caso não concorde com a futura decisão, numa segunda fase, aí sim poderá recorrer nos termos gerais do CPC.

8ª – Motivo pelo qual, sem prejuízo da apreciação prévia da admissibilidade do presente recurso e da sua rejeição acima requerida, subsidiariamente, deverá manter-se a decisão recorrida e a interpretação colhida ao disposto no n.º 4 do art. 942.º do CPC, designadamente, no sentido de que não é admissível recurso de revista do acórdão da Relação na 1ª fase das ações especiais de prestação contas, proferindo-se douta decisão de uniformização de jurisprudência nesse sentido.


O recurso extraordinário foi admitido por ter sido constatada uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento acerca da admissibilidade do recurso de revista interposto do acórdão da Relação que, nos termos do art. 942.º, n.º 3, do CPC, aprecia a obrigação de prestar contas. Considerou-se que, embora o acórdão fundamento tenha aplicado a norma do n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC de 1961 (revisão de 1995/96), não constituía obstáculo à admissão do recurso extraordinário, já que substancialmente se mantinha o mesmo regime legal.

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu um Parecer que culminou com uma proposta de formulação de um segmento uniformizador nos seguintes termos:

Nas ações de prestação de contas, da decisão sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas é admissível recurso de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo, nos termos do n.º 4 do artigo 942.º do CPC, e da decisão desse recurso é admissível a interposição de recurso de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, se o valor da causa e da sucumbência o permitirem e se forem reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 671.º do CPC.”


II – Antes de mais, para efeito do disposto no n.º 4 do art. 692.º do CPC, o Pleno das Secções Cíveis confirma os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.

De facto, a par do trânsito em julgado do acórdão recorrido, comprova-se a contradição direta com o acórdão fundamento relativamente à mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação material.

Com efeito, à questão de direito adjetivo respeitante à admissibilidade de recurso de revista, nos termos do n.º 1 do art. 671.º do CPC, do acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 4 do art. 942.º o acórdão recorrido respondeu negativamente considerando que tal meio de impugnação está circunscrito aos casos em que seja invocada alguma das situações excecionais enunciadas no n.º 2 do art. 629.º; já o acórdão fundamento, em semelhante contexto normativo, concluiu que “não suscita dúvidas a admissibilidade, no caso vertente, do recurso de revista”, a tal não obstando o facto de no n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC de 1961 (revisão de 1995/96) se aludir apenas ao recurso de apelação.

É verdade que o confronto é estabelecido a partir da interpretação e aplicação de normas jurídicas que integram diplomas formalmente diversos, mas, apesar disso, o seu conteúdo é substancialmente idêntico.

Também não se verificam impedimentos decorrentes da extemporaneidade do requerimento de interposição (n.º 1 do art. 689.º do CPC) ou da existência de jurisprudência uniformizada sobre a matéria (n.º 3 do art. 688.º).


III – Quanto ao mérito do recurso:

1. Começamos por transcrever a parte essencial do acórdão visado pelo presente recurso extraordinário (Ac. do STJ, de 12-1-2021):

“(…)

O art. 942.º, n.º 4, é claro preciso e conciso, como aliás já o era o art. 1014.º-A, n.º 4, do CPC pregresso, ao consagrar que “da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo”, de onde se extrai que nesta fase específica, liminar, deste processo especial, apenas há um grau de recurso.

A leitura efetuada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-11-2003, daquele preceito legal, mostra-se descontextualizada, nele não tendo qualquer correspondência verbal, nem expressa nem tácita, infringindo, desta feita, as regras interpretativas decorrentes do disposto no art. 9.º, n.º 2, do CC, sendo certo que os demais acórdãos citados, de 23 de abril e de 29-10-2002, nem sequer se referem à problemática do conhecimento do objeto do recurso, tendo-se limitado a dele conhecer, conhecimento esse que em nada preclude a possibilidade de uma interpretação discordante, no sentido de a lei não permitir, sequer, a impugnação ora encetada, a não ser nos casos que na mesma são expressamente ressalvados, em que o recurso é sempre admissível.

Ademais, a conclusão aqui trazida provinda da anotação a um CPC (sic) mostra-se questionável, porquanto a recorribilidade da decisão em apreço, em sede de recurso de apelação, mesmo que oferecesse dúvidas face ao normativo inserto no n.º 1 do art. 644.º do CPC, tais dúvidas sempre ficariam desvanecidas face à al. i) do seu n.º 2, de onde se poder concluir que a própria lei prevê, expressamente, quais as situações em que as decisões são passíveis de recurso, quer em segundo grau, quer para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, in casu, embora a decisão produzida fosse recorrível para o Tribunal da Relação, já o não é para este órgão, a não ser que tivessem sido invocados quaisquer dos fundamentos aludidos nas als. a) a d) do n.º 2 do art. 629.º daquele mesmo diploma legal, o que aqui não ocorreu.

Destarte, verificando-se uma circunstância obstativa ao conhecimento do objeto do recurso, dele não se toma conhecimento, nos termos do art. 652.º, n.º 1, al. b) do CPC.

(…).

As razões invocadas em tal decisão mantêm-se in totum, sem embargo de infra se adiantarem outros argumentos coadjuvantes, tendo em atenção o arrazoado conclusivo agora apresentado, com apoio no parecer junto.

Assim.

O processo especial de prestação de contas divide-se em duas fases, uma inicial, de apuramento da obrigação de prestar contas e uma outra subsequente, caso o Tribunal determine tal dever.

Dispõe o normativo inserto no art. 942.º, n.º 4, do CPC, que “da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo”, sendo que, a impugnação que vem efetuada pela recorrente, incide sobre o Ac. da Rel. de Coimbra que decidiu, na fase inicial do processo, que havia lugar à prestação de contas da sua parte com o requerente.

Como anteriormente se afirmou, este normativo é claro, preciso e conciso, como, aliás, já o era o art. 1014.º-A, n.º 4, do CPC, pregresso, ao consagrar que apenas há lugar ao recurso de apelação de onde se extrai que nesta fase específica, liminar, o que decorre vítreo da letra do preceito em equação, bem como do seu espírito, clarificado, aliás, pela história da norma, contrariamente ao que vem porfiado pela Reclamante.

Se é certo, como se defende “após a Reforma levada a cabo pelo Dec.-Lei n.° 329-A/95, a fórmula constante no n.° 4 do art. 1014.°-A do CPC (com total correspondência hoje no n.° 4 do art. 942.° do CPC de 2013) tomou posição sobre um problema que atormentava a doutrina e a jurisprudência, desde tempos recuados, sobre a espécie de recurso adequado (agravo ou apelação?) a interpor da decisão de 1.ª instância», aliás, na esteira do entendimento de J. A. dos Reis, cf. Processos Especiais, vol. I, 326.

Contudo não podemos ignorar que quer as subsequentes alterações ao CPC, quer as introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 303/07, de 24-8, que estabeleceu o regime monista de recursos, quer a da Lei n.º 41/13, de 26-6, podendo fazê-lo, não alteraram aquele segmento, sendo certo que a recorribilidade da decisão proferida naquela sede preliminar do processo, estaria sempre garantida pelo normativo inserto no n.º 1, al. a), do art. 644.º do CPC, tornando-se despicienda qualquer outra consignação no sentido de a mesma poder ser impugnada, estando igualmente salvaguardado o regime de subida através do disposto no art. 645.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma.

Dir-se-á em contraponto que faltaria sempre o efeito a atribuir, mas a utilidade do preceito não se poderá resumir a esse particular, constituindo antes uma intenção expressa de afastar qualquer outra impugnação recursiva, nomeadamente através da revista, porquanto, como se disse, o regime monista de recursos salvaguardaria a recorribilidade em um grau se ali não fosse mencionada tal possibilidade.

Adianta a recorrente, em abono da sua tese que quando a lei quer excluir a admissibilidade do recurso de revista, utiliza para tal fórmulas categóricas, que não deixam margem para dúvidas, dando como exemplo o disposto nos art.ºs. 370.º, n.º 2, do CPC, procedimentos cautelares, e 662.º, n.º 4, no que se refere às decisões sobre a matéria de facto, mas isso não significa que o legislador não possa afastar a possibilidade dessa impugnação através de outras fórmulas, como acontece no caso sub specie, a qual exclui, literalmente, qualquer outra impugnação recursiva ao prevenir expressamente e tão só a recorribilidade através do recurso de apelação, o que igualmente se mostra contemplado pelo art. 644.º, n.º 2, al. i) do CPC.

Ademais, mal se compreenderia que neste tipo de processo especial, em que a fase liminar é sumária, aplicando-se-lhe o regime dos incidentes, como deflui do n.º 3 do art. 942.º do CPC, pudesse comportar dois graus de recurso, e, no caso de a ação prosseguir os seus termos para a segunda fase, nesta ter lugar esses dois patamares recursivos, quando é manifesta a intenção do legislador, em todas as alterações legislativas que tiveram lugar ao longo da última década, de limitar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, encontrando a sua justificação em interesses de celeridade e eficiência da administração da justiça.

(…).

Destarte, indefere-se a reclamação, mantendo-se o despacho reclamado, não se tomando conhecimento do objeto do recurso.

(…).”


2. O processo especial de prestação de contas apresenta uma configuração sui generis. Sem curar dos casos em que a sua instauração é da iniciativa daquele que tem a obrigação de prestar contas, nas demais situações em que é imputada ao demandado tal obrigação, se este não oferecer contestação, a mesma considera-se fixada e abre-se a segunda fase do processo destinada à apresentação, discussão e aprovação das contas. Já nos casos em que contesta a existência da obrigação ou questiona os termos em que as contas devem ser apresentadas, ou o período a que respeitam, a discussão de questões de direito material e até de cariz processual é feita no âmbito da tramitação processual prevista no art. 942.º do CPC de 2013 (correspondente ao art. 1014.º-A do anterior CPC de 1961, na revisão de 1995/96).

Assim, apresentada a contestação, é admitida a resposta por parte do Autor, cabendo ao juiz optar entre a produção imediata das provas, seguida da decisão sobre a matéria controvertida, nos termos dos art.ºs 294.º e 295.º do CPC, e a determinação de que se sigam os termos do processo comum se as questões suscitadas não puderem ser sumariamente decididas.

A escolha da via adequada a cada situação fica dependente de uma opção judicial em face das concretas circunstâncias, mas o objetivo e o efeito da decisão que remata esta primeira fase do processo são comuns: antes de se avançar para a fase subsequente, apreciar se existe ou não a obrigação de prestar contas e, em caso afirmativo, definir os termos em que a mesma deve ser cumprida ou o período a que respeita.

A bipartição do processo especial de prestação de contas encontra a sua justificação designadamente no facto de não existir qualquer preceito que identifique, de modo taxativo, as relações jurídicas que impõem a correspondente obrigação. Sendo a obrigação de prestação de contas expressamente associada a algumas relações jurídicas, como o mandato (art. 1161.º, al. d), do CC) ou o exercício do cargo de cabeça de casal (art. 2093.º do CC), pode emergir de uma multiplicidade de relações de natureza obrigacional, comercial, real, familiar ou sucessória. Ponto é que esteja em causa a administração de bens ou de interesses patrimoniais total ou parcialmente alheios (cf. Rui Pinto e Ana Alves Leal (Coord.), Processos Especiais, vol. I, p. 227, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, CPC anot., vol. II, p. 389, e Luís Filipe de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2ª ed., p. 134).

Vem sendo enfatizado pela jurisprudência e pela doutrina que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício do direito de informação genericamente consagrado no art. 573.º do CC, tendo por objetivo final apurar o saldo correspondente ao diferencial entre as receitas obtidas e as despesas efetuadas (cf. Processos Especiais cit., p. 225). Por isso, a tramitação processual correspondente à segunda fase destinada à apresentação, discussão e aprovação das contas fica naturalmente dependente de uma decisão judicial que imponha ao demandado a obrigação de as prestar, regime que permite evitar a prática de atos inúteis que poderiam resultar de uma eventual regulamentação que concentrasse no final do processo especial a resolução de todas as questões relevantes.


3. Esta descrição sumária da estrutura do processo especial de prestação de contas revela que a fase verdadeiramente decisiva para o interessado que reclama de outrem a prestação de contas é a que respeita à apreciação da existência desta obrigação. Já a segunda fase, para além de estar condicionada pela consolidação daquela decisão preliminar, assume um carácter eminentemente “executivo”: integrando a apresentação das contas e a discussão das verbas enquadradas nos campos do “deve” e do “haver”, culmina com a sentença que, em função dos elementos recolhidos, fixa o respetivo saldo credor ou devedor.

Ora, é em relação ao resultado daquela primeira fase que o n.º 4 do art. 942.º do CPC estabelece que “da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação …”.

Neste recurso extraordinário não está em causa apreciar os pressupostos de admissibilidade do recurso de apelação a que expressamente alude aquele preceito, bastando enunciar que, em face do precedente n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC de 1961 (com idêntica redação), o acórdão deste STJ, de 13-11-2003, 2826/03 (Rel. Santos Bernardino), assumiu o entendimento de que tal recurso para a Relação é independente do valor da causa, o que se poderá compreender se tivermos em conta que nesta fase ainda não estará apurado o valor da receita bruta ou da despesa apresentada, elemento que, segundo o n.º 4 do art. 298.º do CPC, serve para determinar o valor da ação.

O que é relevante, por integrar o objeto deste recurso extraordinário, é apurar se o acórdão da Relação que, ao abrigo daquele normativo, se pronuncia sobre a existência, inexistência ou configuração da obrigação de prestar de contas admite recurso de revista nos termos gerais, por aplicação do n.º 1 do art. 671.º, ex vi n.º 1 do art. 549.º.

O acórdão recorrido assumiu uma resposta negativa a partir da aplicação do n.º 4 do art. 942.º e considerou que ao prescrever explicitamente a possibilidade de interposição de recurso de apelação (com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo) o legislador teria manifestado a “intenção expressa” de excluir a admissibilidade do recurso de revista nos termos gerais. Complementarmente, a par da sustentação da mesma solução na “história da norma”, invocou o facto de o legislador ter vindo a restringir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Este Pleno não acolhe nenhum dos argumentos e assume precisamente a tese oposta à que foi assumida no acórdão recorrido.


4. Focados no preceituado no n.º 4 do art. 942.º, dele não decorre, nem de forma expressa, nem implícita, qualquer argumento decisivo para a resolução da questão. Como já se referiu, em tal normativo o legislador limitou-se a prever, como, aliás, já o fazia o n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC de 1961 (na revisão de 1995/96), que da decisão que põe termo à primeira fase do processo “cabe apelação”.

Assim, o preceito será “claro, preciso e conciso”, mas apenas relativamente ao que nele se prescreve, ou seja, à admissibilidade do recurso de apelação tendo por objeto a decisão que resolve as questões discutidas na primeira fase, pondo ou não termo ao processo. Já a admissibilidade ou não do recurso de revista nos termos gerais há de ser resolvida através da identificação, interpretação e aplicação de outras normas.

O historial daquele preceito ajuda à compreensão do significado da formulação que nele foi adotada:

- Recuando ao CPC de 1939, o art. 1012.º estabelecia que “na ação de prestação de contas o réu será citado para as apresentar dentro de vinte dias, sob pena de não poder contestar as que o autor apresentar”. E, segundo o art. 1013.º, “se o réu, em vez de apresentar as contas, contestar a obrigação de as prestar, ouvido o autor, será imediatamente decidida essa questão prévia, precedendo as diligências que forem julgadas necessárias”.

Nada se previa, especificamente, então, em relação à recorribilidade da decisão preliminar, sendo a matéria regulada pela norma geral do art. 472.º sobre o regime de recursos nos processos especiais em geral.

- Com a Reforma do CPC de 1961 foram introduzidas alterações substanciais na regulamentação do processo especial de prestação de contas, pelo que o art. 1014.º passou a prever que:

1 – Aquele que pretenda exigir a prestação de contas requererá a citação do réu para, no prazo de vinte dias, as apresentar ou contestar a ação, sob pena de não poder deduzir oposição às contas que o autor apresente.

2 – Se o réu não quiser contestar, pode pedir a concessão de um prazo mais longo para apresentar as contas, justificando a necessidade da prorrogação; se o réu contestar, o autor pode responder e, produzidas as provas oferecidas com os articulados, que sejam consideradas necessárias, as questões suscitadas serão imediatamente decididas.

3 - Da decisão cabe agravo, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo

4 – Quando a decisão dependa da resolução de alguma questão prejudicial que não possa ser julgada por esta forma sumária, será a instância suspensa até que, pelos meios próprios, a questão seja resolvida.

5 – (…)

Nesta versão primitiva do normativo foi estabelecida a seguinte distinção: quando a decisão da primeira fase do processo especial de prestação de contas estivesse dependente da resolução de alguma questão prejudicial que não pudesse ser convenientemente julgada de forma sumária, era declarada a suspensão da instância até que tal questão fosse resolvida (n.º 4); nos demais casos, a questão era imediatamente apreciada (n.º 2, 2.ª parte), sendo a decisão suscetível de recurso de agravo, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (n.º 3).

Neste contexto normativo, a menção expressa que era feita ao recurso de agravo para a Relação não visava excluir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça; tinha como único desiderato clarificar a espécie de recurso que era admissível (e fixar o regime de subida e o efeito). Relativamente a outros aspetos atinentes aos recursos que não fossem especialmente regulados naquele artigo, regia o disposto no n.º 3 do art. 463.º, com a seguinte redação:

“3 – No que respeita a recursos, aplicar-se-á nos processos especiais o regime do processo sumário, com as seguintes exceções:

a) Se o valor da causa exceder a alçada da Relação, são admissíveis recursos para o Supremo como em processo ordinário.

b) Se por força da lei houverem de seguir-se, a partir de certo momento, os termos do processo ordinário, aplicar-se-á integralmente e desde o seu começo o regime de recursos deste processo.”

- A regulamentação do processo especial de prestação de contas sofreu nova revisão com a Reforma de 1995/96. Através da alteração do art. 1014.º e aditamento do art. 1014.º-A, foram estabelecidas duas vias alternativas após a apresentação de contestação: nuns casos, previa-se a produção de prova, seguida de decisão sumária; nos casos em que não se mostrasse viável a decisão sumária, prescrevia-se que o processo prosseguisse segundo os trâmites do processo comum ajustados ao valor da causa, o que, na ocasião, nos reconduzia aos termos do processo ordinário ou sumário. Todavia, num modelo processual em que ainda vigorava o dualismo recursório (para a Relação, recursos de apelação ou de agravo), ficou estabelecido que qualquer das decisões admitia recurso de apelação (mantendo-se o regime de subida imediata, nos próprios autos, e o efeito suspensivo que já anteriormente estavam previstos para o recurso de agravo).

Também aqui a menção feita ao recurso de apelação, em substituição do recurso de agravo que anteriormente estava previsto, teve como único objetivo regular a admissibilidade de recurso e definir a sua espécie, tornando claro o que então não era assegurado pelas normas gerais e designadamente pelo art. 691.º do CPC de 1961, segundo o qual o recurso de apelação estava apontado para a impugnação da sentença final, do despacho saneador que decidisse sobre o mérito da causa ou da sentença ou despacho saneador que apreciasse alguma exceção perentória.

Nestoutro contexto normativo, de modo algum se poderia defender que, ao aludir ao recurso de apelação, o legislador pretendesse assumir alguma posição relativamente à admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, questão situada a jusante do acórdão da Relação e que ficava condicionado pelo que então resultasse do n.º 1 do art. 721.º, cuja aplicação continuava a ser ressalvada, mais uma vez, pelo n.º 3 do art. 463.º.

Assim acontecia não apenas nos casos em que fosse declarada a inexistência da obrigação de prestação de contas, pondo termo ao processo especial, como ainda perante a afirmação da existência da obrigação ou definição dos seus contornos, prosseguindo os autos para a fase de apresentação e apreciação das contas.

É, aliás, a conjugação dos dois preceitos que explica a multiplicidade de acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito de recursos de revista interpostos de acórdãos da Relação que, por seu lado, incidiram sobre decisões de 1.ª instância proferidas ao abrigo do n.º 3 do art. 1014.º-A do CPC de 1961 (revisão de 1995/96).

- O regime fixado no referido art. 1014.º-A manteve-se inalterado aquando da revisão do regime dos recursos operada pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, uma vez que já anteriormente fora consagrado o recurso de apelação que com tal diploma passou a constituir a única espécie de recurso admissível.

- Finalmente, em termos materiais, tal preceito transitou para o CPC de 2013 do qual também não ficou a constar qualquer norma que determine, de forma expressa ou implícita, a inadmissibilidade de interposição de recurso de revista no processo especial de prestação de contas, matéria que, na falta de disposição especial, obedece ao que resulta da norma geral remissiva do n.º 1 do art. 549.º.


5. No caso concreto, estabelecido que foi o contraditório alargado e que envolveu a resposta do Autor à contestação apresentada pela Ré, a tramitação subsequente correspondeu substancialmente à prevista para os termos do processo comum: findos os articulados, foi proferido, em 3-12-2018, o despacho judicial que delimitou o objeto da ação e determinou a produção dos meios de prova, a que se sucedeu uma segunda decisão, datada de 9-5-2019, com a estrutura de uma sentença, nos termos do art. 607.º do CPC, que se pronunciou sobre a obrigação de prestação de contas.

Todavia, independentemente da modalidade concreta que neste ou noutros casos assuma a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância ao abrigo do n.º 3 do art. 942.º, não é consentida qualquer distinção quanto à sua recorribilidade, já que, para além de a escolha da via adequada depender de uma opção do juiz de 1.ª instância, o teor material de qualquer das decisões é absolutamente idêntico, traduzindo-se na afirmação ou negação da existência da obrigação de prestação de contas. Em qualquer dos casos, a decisão aprecia o mérito daquela pretensão material, ficando sujeita a reapreciação por parte da Relação.

Acresce que a autonomização do no n.º 4 do art. 942.º, face ao precedente n.º 3, não permite que se estabeleça qualquer distinção com base na natureza da decisão de 1.ª instância. O âmbito de aplicação do n.º 4 abarca qualquer das modalidades da decisão judicial proferida ao abrigo do n.º 3, ou seja, tanto aquela que decorra de uma tramitação mais solene correspondente aos termos do processo comum, como aquela que seja sequencial à produção imediata dos meios de prova, nos termos dos art.ºs 294.º e 295.º.

Consequentemente, o regime de recorribilidade para o Supremo do acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 4 do art. 942.º será identificado através da aplicação das regras gerais para as quais remete o n.º 1 do art. 549.º, tendo em conta designadamente o teor do acórdão da Relação e a sua inserção na norma do n.º 1 do art. 671.º.


6. O único sentido que se extrai do n.º 4 do art. 942.º do CPC de 2013 (tal como, aliás, já ocorria no domínio do art. 1014.º-A do CPC de 1961, após a revisão do regime dos recursos de 2007), é o de que a decisão com que termina a primeira fase do processo especial de prestação de contas, mesmo quando não ponha termo ao processo, admite recurso de apelação, com o significado, paralelo ao que decorre dos n.ºs 1 e 2 do art. 644.º, de que se trata de uma decisão imediatamente impugnável.

Divergindo do acórdão recorrido, daquele preceito não se extrai qualquer sinal revelador, muito menos “expresso”, de alguma intenção “de afastar qualquer outra impugnação recursiva” ou de “excluir, literalmente, qualquer outra impugnação recursiva, ao prevenir expressamente e tão só a recorribilidade através de apelação”; regula simplesmente a admissibilidade do recurso de apelação e a fixação do respetivo regime de subida e efeito.

Com a manutenção da previsão da admissibilidade do recurso de apelação estabelecida na Reforma de 1995/96, o legislador ultrapassou a principal dificuldade que poderia suscitar-se se acaso a recorribilidade daquela decisão de 1.ª instância ficasse unicamente submetida à aplicação remissiva do regime geral enunciado no art. 644.º do CPC.

Com efeito, na falta de disposição específica a respeito da impugnação da decisão da questão de mérito preliminar no processo especial de prestação de contas, nos casos em que fosse declarada a existência da obrigação, suscitar-se-iam dúvidas legítimas acerca da admissibilidade do recurso de apelação, no confronto puro e simples com o previsto nas als. a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do art. 644.º, na medida em que tal decisão não põe termo à causa, mas apenas à primeira fase do processo. Ademais, para efeitos de eventual integração na al. b) do n.º 1 do art. 644.º, também não seria clara uma equiparação ao despacho saneador na ação declarativa com processo comum que, sem pôr termo ao processo, decidisse do mérito da causa.

Por conseguinte, diversamente do que é referido no acórdão recorrido, quando trouxe à colação a al. a) do n.º 1 do art. 644.º e a al. a) do n.º 1 do art. 645.º (ambas dirigidas a decisões que “ponham termo ao processo”), nenhum destes preceitos assegura que o recurso de apelação está “sempre garantido” de modo a tornar desnecessária ou inútil a regulação da matéria no processo especial de prestação de contas. Pelo contrário, também em relação a estes dois aspetos a norma mantém utilidade, já que nos casos em que seja afirmada a existência da obrigação, o regime de subida nos próprios autos não encontra sustentação na al. a) do n.º 1 do art. 645.º, por não se tratar de decisão terminal do processo. Utilidade que igualmente se evidencia quanto à fixação do efeito suspensivo, pois diverge do efeito devolutivo que derivaria da aplicação do disposto no n.º 1 do art. 647.º.

Em conclusão, o objetivo e a utilidade do preceituado no n.º 4 do art. 942.º circunscrevem-se à previsão da admissibilidade do recurso de apelação, não conferindo qualquer contributo, positivo ou negativo, para resolver a questão em torno da admissibilidade ou não do recurso de revista. Na parte restante, para além de a previsão de que o recurso de apelação tem “subida imediata” constituir um resquício anacrónico do anterior modelo (afinal, desde a Reforma de 2007 operada no CPC de 1961 que todo e qualquer recurso tem subida imediata, deixando de existir recursos com subida diferida), o preceito cumpre a função complementar de indicar que a apelação sobe nos próprios autos, e não em separado (acrescentando uma especialidade às situações enunciadas no n.º 1 do art. 645.º), e tem efeito suspensivo (sobrepondo-se ao efeito meramente devolutivo que resultaria da aplicação da regra geral do n.º 1 do art. 647.º).


7. A comparação entre o preceituado no n.º 4 do art. 942.º com outras normas que regem a admissibilidade ou não do recurso de revista também marca decisivamente uma diferença que resulta evidente quando se analisa, por exemplo, o n.º 2 do art. 370.º (sobre os procedimentos cautelares) ou, com mais proximidade, no campo dos processos especiais, o n.º 2 do art. 988.º (sobre os processos de jurisdição voluntária).

De modo algum se descobre naquele preceito o carácter incisivo e restritivo que designadamente emana do n.º 2 do art. 257.º ou até do n.º 2 do art. 559.º.

O preceituado sobre a recorribilidade na regulamentação do processo especial de prestação de contas é, aliás, paralelo ao previsto para o processo especial de divisão de coisa comum (n.º 2 do art. 926.º) cuja regulamentação também é bipartida: a segunda fase, em torno da divisão, adjudicação ou venda do bem comum, fica dependente do reconhecimento de uma relação de contitularidade e da identificação das quotas de cada contitular.

À semelhança do que ocorre no processo especial de prestação de contas, também no processo especial de divisão de coisa comum a existência ou não de uma relação de contitularidade, a definição das quotas de cada contitular, a divisibilidade ou indivisibilidade física ou jurídica do bem, a afirmação ou negação da titularidade exclusiva ou até a apreciação do mérito de pretensões reconvencionais ligadas a benfeitorias realizadas na coisa ficam submetidas ao regime geral da recorribilidade das decisões judiciais, atento o relevo jurídico e patrimonial das matérias em causa.

Os numerosos arestos deste Supremo em que foram apreciadas questões de mérito ligadas designadamente à titularidade ou à divisibilidade do bem comum deixam bem clara, ainda que de modo implícito, a admissibilidade do recurso de revista, nos termos gerais, do acórdão da Relação que incida sobre a decisão preliminar, como o sugerem diversos arestos que a tal respeito foram proferidos: v.g. Acs. do STJ, de 15-2-2018, 11337/77 (Rel. Lima Gonçalves), de 15-11-2012, 261/09 (Rel. Abrantes Geraldes), de 27-3-2008, 08B648 (Rel. Oliveira Vasconcelos) ou de 31-1-2007, 06A4199 (Rel. João Camilo), todos em www.dgsi.pt.

A previsão específica da admissibilidade do recurso de apelação no processo especial de prestação de contas não tem o significado de limitar o acesso geral ao recurso de revista, tratando-se de uma fórmula que muito recentemente também foi aplicada na regulação do processo especial de acompanhamento de maiores: segundo o art. 901.º, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, “da decisão relativa à medida de acompanhamento cabe recurso de apelação, tendo legitimidade o requerente, o acompanhado e, como assistente, o acompanhante”.

Ora, também aqui é notório que a alusão ao recurso de apelação não visa afastar a admissibilidade do recurso de revista, o que seria verdadeiramente estranho numa ação que envolve a tutela de interesses imateriais, mas apenas afirmar, ainda que tal não fosse estritamente necessário, a admissibilidade do recurso de apelação (neste sentido, cf. o Ac. do STJ, de 14-1-2021, 4285/18, www.dgsi.pt, Rel. Maria da Graça Trigo, Teixeira de Sousa, “O regime do acompanhamento de maiores – Alguns aspetos processuais”, em O Novo Regime do maior Acompanhado, em www.cej.mj.pt, p. 53, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, CPC anot., vol. II, p. 342, e Ana Luísa Pinto, “O regime processual do acompanhamento de maior, na revista Julgar n.º 41, p. 169).

Neste processo, a menção feita à admissibilidade do recurso de apelação surge associada à regulação do pressuposto processual da legitimidade ativa, tal como já ocorria com o anterior art. 902.º, a respeito da impugnação da sentença declarativa da interdição ou da inabilitação (“da sentença de interdição ou inabilitação definitiva pode apelar o representante do requerido; pode também apelar o requerente, se ficar vencido quanto à extensão e limites da incapacidade”).

Enfim, estabelecendo um último paralelismo, ainda dentro da sistemática do CPC de 2013, seguramente que a norma da al. c) do n.º 2 do art. 1123.º que, no processo de inventário judicial, regula especificamente a admissibilidade do recurso de apelação sobre a sentença homologatória da partilha, não pretende excluir a admissibilidade do recurso de revista, efeito que, embora expressamente ressalvado pelo n.º 1, sempre decorreria da remissão geral constante do n.º 1 do art. 549.º.


8. Voltando ao processo especial de prestação de contas, a sujeição apriorística do acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 4 do art. 942.º às regras gerais sobre a admissibilidade do recurso de revista encontra a sua mais profunda justificação no facto de, durante décadas e, especialmente a partir da Reforma de 1995/96, passando pela revisão do regime dos recursos de 2007 e persistindo com o atual CPC, este Supremo Tribunal de Justiça ter vindo a apreciar uma multiplicidade de recursos de revista que incidiram sobre acórdãos da Relação proferidos ao abrigo daquele preceito.

A respeito da questão em análise, o unanimismo que se verificou até ser proferido o acórdão recorrido projetou-se, de modo expresso, ainda que de forma sintética, no acórdão que serve de fundamento a este recurso extraordinário - o Ac. do STJ, de 13-11-2003, 03B2826 (Rel. Santos Bernardino), em www.dgsi.pt. Confrontando o n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC de 1961, concluiu-se em tal aresto, de forma significativamente singela, que “não suscita dúvidas a admissibilidade, no caso vertente, do recurso de revista”, sendo “admissíveis recursos para o Supremo como em processo ordinário (art. 463º, n.º 3, do CPC, na redação anterior ao Dec.-Lei n.º 38/2003, de 8-3)” e que aquele preceito “não pode interpretar-se com o sentido de que da decisão proferida sobre a existência ou inexistência de prestar contas só cabe recurso de apelação …”.

O mesmo entendimento foi secundado pelo Ac. do STJ, de 1-3-2007, 199/07 (inédito) (Rel. Alberto Sobrinho), com o seguinte sumário:

“I - No n.º 4 do art. 1014.º-A do CPC (de 1961) diz-se que da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo; do mesmo modo que no n.º 3 do art. 1014.º do mesmo Código, antes da reforma operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, se determinava que da decisão cabe agravo, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

II - Quer este quer aquele normativo processual não limitam o recurso da decisão - sobre a obrigação de prestação de contas - à Relação; apenas tomam posição sobre a espécie de recurso a interpor daquela decisão: agravo, determinava a anterior norma processual; apelação, assim o impõe a atual.

III - Quanto à impugnação, por via de recurso, da decisão da Relação, vigora o regime geral, não tomando aí qualquer posição aquele dispositivo vertido no aludido n.º 4 do art. 1014.º, igualmente que o não tomava o anterior”. 

Na respetiva fundamentação exarou-se, além do mais, que:

“Quer o n.º 3 do art. 1014.º do CPC anterior à reforma operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, quer o n.º 3 do art. 1014.º-A por esta introduzido não limitam o recurso da decisão sobre a obrigação de prestação de contas à Relação.

Apenas tomam posição sobre a espécie de recurso a interpor daquela decisão: agravo, determinava a norma anterior; apelação, assim o impõe a atual.

Quanto à impugnação, por via de recurso, da decisão da Relação, vigora o regime geral, não tomando aí qualquer posição aquele dispositivo vertido no aludido n.º 4 do art. 1014.º-A, igualmente que o não tomava o anterior.

E no regime geral nada existe que impeça que do acórdão da Relação se possa recorrer. Conclui-se, portanto, ser recorrível o acórdão aqui impugnado”.

Semelhante entendimento foi adotado, noutro plano, no âmbito da apreciação de um recurso de revista excecional pela Formação prevista, agora, no n.º 3 do art. 672.º do CPC, ficando refletido no acórdão de 25-10-2012, 2828/10 (inédito) (Rel. Pires da Rosa), com remissão para o Ac. do STJ, de 3-11-2003, 03B2826 (o citado acórdão fundamento):

“I - O art. 1014.º-A, n.º 4, do CPC, ao estatuir que “da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que subirá imediatamente …” pretendeu apenas clarificar que o recurso próprio para esta decisão é o de apelação (por contraponto, então, ao de agravo), e não limitar tais decisões a apenas um grau de recurso.

…”.

Na respetiva fundamentação refere-se que:

“Ora, se assim é – e é assim –, se o regime específico dos recursos em processos especiais está traçado no art. 463.º, n.º 4, tem que se entender que o n.º 4 do art. 1014.º-A teve apenas como objetivo esclarecer qual o tipo de recurso que cabia aquela concreta decisão, e não limitar tal decisão inicial a apenas um grau de recurso”.

Noutro caso já apreciado ao abrigo do CPC de 2013, depois de o recurso de revista excecional ter sido admitido pela mesma Formação, foi proferido o Ac. do STJ, de 22-3-2018 (Rel. Abrantes Geraldes), em www.dgsi.pt, no qual foi apreciada a amplitude temporal da obrigação de prestar contas do cabeça de casal, decidindo-se a tal respeito que:

“A prestação de contas por parte do cabeça-de-casal (cônjuge do de cujus) abarca não apenas o período da administração da herança posterior à designação para o exercício desse cargo, mas também o período anterior em que o mesmo já desempenhara, de facto, as mesmas funções que, por regra, também lhe competiam em face do art. 2080.º, n.º 1, al. a), do CC”.

E perante um recurso de revista interposto de acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 4 do art. 942.º que fora rejeitado pela Relação, foi proferida, ao abrigo do art. 643.º do CPC, uma decisão (inédita), em 20-3-2019, 3185/12 (Rel. Abrantes Geraldes), que se traduziu na sua admissão, assim justificada:

“… a norma do art. 942.º, nº. 4, do CPC, visa apenas tornar claro que, apesar de a decisão que aprecia a obrigação de prestação de contas não ser uma decisão final, não obvia a que seja recorrível, ultrapassando eventuais dificuldades que poderiam emergir do art. 644.º, n.º 1, do CPC.

Assim era também, aliás, antes do atual CPC.

Com efeito, o processo especial de prestação de contas compõe-se de duas fases: uma em que se aprecia a existência (ou a amplitude objetiva) da obrigação de prestar contas e outra em que se apreciam as contas cuja obrigação foi previamente estabelecida e delimitada, designadamente pelo fator temporal.

Ora, é na primeira fase do processo que se aprecia verdadeiramente o mérito da pretensão, de modo que o acórdão da Relação que aprecia o mérito da pretensão de prestação de contas não poderia deixar de se admitir a possibilidade, sujeita às regras gerais da alçada, de interposição do recurso de apelação.

Pelos mesmos motivos, ante a verificação de uma desconformidade decisória em face da apreciação do mérito da pretensão da parte que requereu a prestação de contas, há que garantir a possibilidade de aceder ao terceiro grau de jurisdição, nos termos do n.º 1 do art. 671.º do CPC”.

Foi na sequência da admissão do recurso de revista que veio a ser proferido o Ac. do STJ, de 11-4-2019, 3185/12, Rel. Abrantes Geraldes, em www.dgsi.pt, cujo sumário é o seguinte:

“…

III - Sem prejuízo da responsabilidade pelos atos dolosos praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, o cônjuge que administra bens comuns não é obrigado a prestar contas dessa administração (art. 1681.º, n.º 1, do CC).

IV - No caso, não consta da sentença de divórcio a antecipação dos efeitos patrimoniais reportados à data da separação de facto entre os cônjuges, nos termos do n.º 2 do art. 1789.º do CC, de modo que a prestação de contas referentes à administração de bem comum do casal apenas pode abarcar o período posterior à data da instauração da ação de divórcio”.

Mais recentemente, o Ac. do STJ, de 21-10-2020, 239/09 (Rel. Ferreira da Cunha), em www.dgsi.pt, também fez eco do mesmo entendimento para justificar, ao abrigo do n.º 1 do art. 671.º, de modo expresso e inequívoco, a admissão do recurso de revista interposto de um acórdão da Relação cujo teor era semelhante ao que está subjacente ao acórdão recorrido:

“O recurso é admissível, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 1, tendo este Supremo Tribunal de Justiça decidido em acórdão proferido em 13-11-2003 (revista nº 2826/03 – 2.ª Secção, Relator: Cons. Santos Bernardino, publicado em www.dgsi.pt) que o art. 1014.º-A, n.º 4, do anterior CPC, ao qual corresponde, sem alterações relevantes, ao atual art. 942.º, n.º 4, do atual CPC,  não pode interpretar-se no sentido de que da decisão proferida em processo especial de prestação de contas, sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, apenas cabe recurso de apelação, mas sim com o sentido de que de tal decisão cabe sempre, independentemente do valor da causa, recurso de apelação”.

Finalmente, também assim se decidiu no Ac. do STJ, de 15-12-2020, 1797/07 (Rel. Maria Olinda Garcia), em www.dgsi.pt, ainda que com um voto de vencido da relatora do acórdão ora recorrido, dele constando que:

“…

O disposto no art. 942.º, n.º 4 do CPC não impede o presente recurso de revista, nem pelo seu elemento literal nem pelo seu alcance teleológico.


Por outro lado, no caso decidendo, antes de se discutir se as rés estariam, ou não, obrigadas a uma concreta prestação de contas, existe o problema prévio de saber se os negócios jurídicos celebrados entre as partes seriam, pela sua natureza, suscetíveis de gerar obrigação de prestação de contas. E foi este o problema que as instâncias trataram”.


9. Sendo significativos os arestos deste Supremo em que a questão apreciada recebeu resposta expressa no sentido afirmativo, não são de menor relevo aqueles em que à apreciação do recurso de revista esteve subjacente a admissão, posto que implícita, desse mecanismo de impugnação, nos termos gerais.

Sem necessidade de recuar em demasia, assim o explica a multiplicidade de acórdãos proferidos quer ao abrigo do CPC de 1961, após as Reformas de 1995/96 e de 2007, quer já em plena vigência do CPC de 2013.

Constituem exemplos os seguintes que se mostram acessíveis através de www.dgsi.pt:

- Ac. do STJ, de 13-5-2003, 03A992 (Rel. Moreira Alves);

- Ac. do STJ, de 1-7-2003, 03A1913 (Rel. Afonso Correia);

- Ac. do STJ, de 31-3-2004, 04A680 (Rel. Silva Salazar);

- Ac. do STJ, de 9-2-2006, 05B4061 (Rel. Araújo de Barros);

- Ac. do STJ, de 5-7-2007, 07A1465 (Rel. João Camilo);

- Ac. do STJ, de 16-4-2009, 77/07 (Rel. Maria dos Prazeres Beleza);

- Ac. do STJ, de 28-4-2009, 09B0018 (Rel. Santos Bernardino, também relator do acórdão fundamento de 13-11-2003);

- Ac. do STJ, de 9-6-2009, 225-A/2000 (Rel. Hélder Roque);

- Ac. do STJ, de 7-1-2010, 642/06 (Rel. Serra Batista);

- Ac. do STJ, de 16-6-2011, 3717/05 (Rel. Tavares de Paiva);

- Ac. do STJ, de 12-1-2012, 357/06 (Rel. João Trindade);

- Ac. do STJ, de 10-7-2012, 85-A/1998 (Rel. Oliveira Vasconcelos);

- Ac. do STJ, de 17-3-2016, 806/13 (Rel. Lopes do Rego);

- Ac. do STJ, de 8-9-2016, 2900/08 (Rel. Olindo Geraldes);

- Ac. do STJ, de 22-3-2018, 861/08 (Rel. Roque Nogueira);

- Ac. do STJ, de 10-9-2019, 1546/15 (Rel. Assunção Raimundo);

- Ac. do STJ, de 9-3-2021, 19722/18 (Rel. Fátima Gomes);

- Ac. do STJ, de 8-9-2021, 564/19 (Rel. Maria Rosa Tching);

- E o Ac. do STJ, de 21-5-2020, 3831/15 (Rel. Ferreira Lopes), este acessível através de jurisprudência.csm.org.pt/ECLI.


Apesar da diversidade de relatores e de subscritores e mau grado a dispersão temporal dos arestos que incidiram sobre a questão de direito em torno da existência ou não da obrigação de prestar contas, em nenhum dos mencionados arestos foi exposto (podendo sê-lo, ex officio) qualquer impedimento formal à admissibilidade do recurso de revista. Em todos prevaleceu, afinal, a aplicação subsidiária das normas previstas para o processo comum em matéria de recursos, em resultado da conjugação do n.º 1 do art. 549.º com o n.º 1 do art. 671.º (nos casos já apreciados ao abrigo do CPC de 2013).

Foi também o facto de a admissibilidade do recurso de revista, nos termos referidos, não ter suscitado qualquer objeção face ao art. 1014º do CPC de 1961 que permitiu o surgimento de uma contradição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça centrada na referida questão material, a qual foi resolvida pelo Assento n.º 5/88, no D.R. de 15-2-1988, tendo resultado na seguinte uniformização:

No contrato de conta em participação, regulado pelos artigos 224.º a 229.º do Código Comercial, o associante (sócio ostensivo) é obrigado a prestar contas ao associado (sócio oculto), salvo havendo convenção em contrário”.


10. Fora do campo jurisprudencial a mesma questão, ou não tem sido tratada – quiçá porque não suscitou dúvidas – ou, quando o foi, obteve resposta positiva como a revelada no CPC anot., vol. II, da autoria conjunta de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, na anot. ao art. 942.º, mencionada nas alegações de recurso (correspondendo, porventura, à “anotação a um CPC” (sic) que indefinidamente é referida no acórdão recorrido), que aqui se transcreve:

“… a expressa referência ao recurso de apelação não significa o afastamento do recurso de revista, sendo este admissível, ou não, em função das regras gerais, especialmente do disposto no art. 671.º, com destaque para os casos em que o acórdão da Relação julgue improcedente a ação por inexistência da obrigação de prestar contas. Como é evidente, também será aplicável a restrição prevista no n.º 3 para os casos de dupla conformidade, sem embargo de algum fundamento excecional do art. 672.º, n.º 1”.

Vai no mesmo sentido o parecer subscrito por Sinde Monteiro e Maria José Capelo que acompanhou a reclamação para a conferência do despacho liminar de rejeição do precedente recurso de revista (entretanto publicado em UP Law Review, vol. XIV, n.º 1, pp. 179 e ss., também acessível através de https://revistas.ulusofona.pt), no qual, com diversa e sólida argumentação que conjugou os elementos literal, histórico, sistemático e teleológico, foi sustentada a admissibilidade do recurso de revista nos termos acima expostos.

Desse parecer consta, além do mais, que a solução adotada pelo acórdão recorrido “não encontra no texto do n.º 4 do art. 942.º, uma razoável correspondência, descurando os fatores hermenêuticos dos quais deve lançar mão o intérprete para desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais”. Observa-se ainda que “nem na letra da lei, nem no seu espírito, clarificado pela história da norma, encontramos apoio para o entendimento de que, no contexto do processo especial de prestação de contas, as decisões de 1ª instância, que se debruçam sobre a obrigação de prestar contas, só admitem um grau de recurso”. Também concluiu que “o n.º 4 do art. 942.º nasceu historicamente para eliminar dúvidas sobre a espécie de recurso a interpor da decisão proferida pela 1.ª instância, sem contender com os critérios gerais de admissibilidade de recurso” e que “sobre a admissibilidade de recurso de revista (do acórdão da Relação que se debruça sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas), a invocação do n.º 4 do art. 942.º é totalmente irrelevante, pois nada prescreve quanto a este tipo de recurso”.

Em contraponto, no sentido do acórdão recorrido, não foi detetado qualquer outro precedente na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, constatando-se apenas que a mesma solução foi posteriormente retomada no acórdão do mesmo coletivo, de 2-3-2021, 3888/16 (Rel. Ana Paula Boularot), em www.dgsi.pt.


11. Como emerge de todos os argumentos anteriormente expostos, a interpretação do n.º 4 do art. 942.º assumida no acórdão recorrido apenas seria viável se o legislador tivesse utilizado uma expressão com um sentido inequivocamente limitador do terceiro grau de jurisdição, através de uma fórmula que, por exemplo, apenas admitisse o recurso de apelação ou impedisse o recurso de revista nos termos gerais.

A posição assumida no acórdão recorrido de que o legislador teria pretendido “consagrar que apenas há lugar ao recurso de apelação” não é sustentada nem no elemento literal mínimo exigido pelo n.º 2 do art. 9.º do Cód. Civil, nem na história do preceito, que aponta no sentido oposto, e de modo algum representa a assunção “expressa” ou algum entendimento “claro, preciso e conciso” no sentido da inadmissibilidade do recurso de revista nos termos do n.º 1 do art. 671.º.

Atenta a ausência de regulação da matéria nas normas do processo especial de prestação de contas, o elemento literal verdadeiramente relevante para dirimir a questão extrai-se do n.º 1 do art. 549.º do CPC, aplicável a qualquer processo especial que não tenha um regime específico.

Além de o acórdão recorrido representar um corte abrupto e surpreendente da corrente jurisprudencial constante formada por dezenas de outros arestos deste Supremo Tribunal de Justiça a que subjaz o entendimento expresso ou implícito favorável à admissibilidade do recurso de revista ao abrigo do n.º 1 do art. 671.º, o resultado contraria um princípio que deve prevalecer na interpretação de normas adjetivas atributivas de direitos processuais e que corresponde ao brocardo “favorabilia amplianda, odiosa restringenda” que leva a que deva privilegiar-se uma interpretação mais favorável à admissibilidade do recurso, como mecanismo potenciador do acerto da decisões judiciais.

Enfim, ante a singeleza do n.º 4 do art. 942.º e o âmbito claramente limitado do seu objeto, a questão em torno da admissibilidade do recurso de revista há de encontrar-se – elemento sistemático – na interseção do n.º 1 do art. 549.º com o n.º 1 do art. 671.º, o que, tudo conjugado, leva a concluir que o acórdão da Relação que, ao abrigo daquele preceito, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas constitui uma decisão de mérito, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 671.º, admitindo, por isso, recurso de revista, nos termos gerais.

Afinal, a resposta que seja dada pelas instâncias e especialmente pela Relação a tal questão de direito material, sendo de sentido negativo, determina a improcedência total da ação, pondo termo ao processo, ao passo que uma resposta contrária que reconheça, como questão de mérito, a existência da obrigação de prestar contas a cargo do Réu abre a segunda fase do processo especial.


12. Convocando ainda o elemento racional ou teleológico que também deve ser considerado quando se trata de interpretar normas respeitantes ao exercício do direito ao recurso, tal como ocorre com o preceito paralelo que regula a primeira fase do processo especial de divisão de coisa comum (2.ª parte do n.º 2 do art. 926.º), não é despicienda a admissibilidade ou não de recurso de revista centrado apreciação da aludida questão de mérito que é, afinal, o pressuposto essencial da verificação de algum saldo a favor do Autor ou do Réu na segunda fase do processo especial destinada à apresentação, discussão e aprovação das contas.

Neste contexto, uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, órgão que no sistema judiciário tem a missão essencial de definir o direito - in casu, decidir se existe e como se configura a obrigação de prestar contas - acaba por ganhar um relevo que, em regra, supera o que se verifica em torno do posterior apuramento do eventual saldo resultante das operações de natureza eminentemente instrumental conexas com a apreciação contabilística das verbas que integram as colunas do “deve” e do “haver”. Daí a pertinência da admissibilidade do recurso de revista tendo por objeto o acórdão da Relação.

Na realidade, é da consolidação da existência da obrigação de prestar contas que pode resultar para o demandado o dever de as apresentar, antes de ser responsabilizado pelo pagamento do saldo positivo que venha a ser apurado. Já, inversamente, a negação definitiva da mesma obrigação cortará cerce qualquer possibilidade de o demandante obter, no âmbito do processo especial, o reconhecimento de algum crédito.

Por isso, o que a respeito daquela obrigação for decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de um recurso de revista submetido às regras gerais (arts. 671.º, n.º 1, e 629.º, n.º 1, do CPC), acaba por traduzir a resposta judiciária final à questão de mérito sob apreciação na primeira fase do processo, apresentando relevo bastante para justificar a intervenção do órgão de revista centrada na identificação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 674.º, n.º 1, al. a), do CPC).

Nesta perspetiva, é manifesto o paralelismo que pode ser estabelecido entre aquela decisão de primeira instância e o despacho saneador que, no âmbito do processo comum de declaração, aprecia algum pedido ou alguma exceção perentória, tratando-se igualmente de uma decisão que incide sobre o mérito da causa e relativamente à qual cabem os graus de recurso que derivarem da aplicação das regras gerais, ou seja, não apenas o recurso de apelação (art. 644.º, n.º 1, al. b)), como ainda, relativamente ao acórdão da Relação que venha a ser proferido, o recurso de revista ao abrigo da do art. 671.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC.


13. No caso concreto, a Ré questionou a obrigação de prestar contas que a 1.ª instância reconheceu e circunscreveu à execução do contrato de prestação de serviços relativa ao ano de 2016. A Relação manteve o reconhecimento da mesma obrigação, mas ampliou-a a todo o período em que a Ré executou o contrato de prestação de serviços de contabilidade.

Não cabe nesta ocasião emitir qualquer pronúncia sobre o mérito das posições que foram assumidas por cada uma das partes e pelas instâncias, mas constatar apenas que, estando em causa a discussão do mérito da pretensão material relacionada com a obrigação de prestação de contas, o acórdão da Relação que foi proferido no âmbito do recurso de apelação interposto ao abrigo do n.º 4 do art. 942.º do CPC, admite recurso de revista, nos termos gerais e, mais concretamente, no quadro de aplicação do disposto no art. 671.º, n.º 1, 1.ª parte, ex vi art. 549.º, n.º 1.


IV. Face ao exposto, o Pleno das Secções Cíveis acorda em:

a) Uniformizar a jurisprudência nos termos seguintes:

“O acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão de 1.ª instância proferida ao abrigo do n.º 3 do art. 942.º do CPC, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, admite recurso de revista, nos termos gerais”.

b) Revogar o acórdão recorrido e, em sua substituição, admitir o recurso de revista que foi interposto do acórdão da Relação.

Custas deste recurso extraordinário a cargo do Autor recorrido.

Notifique e oportunamente publique-se no D. R., I Série (n.º 5 do art. 687.º do CPC).


Lisboa, 12-10-2021


António Santos A. Geraldes (Relator)


Maria Clara Sottomayor


Manuel Tomé Gomes


Maria da Graça Trigo


Pedro de Lima Gonçalves


Maria Rosa Oliveira Tching


Fátima Gomes


Graça Amaral (Voto a decisão)


Maria Olinda Garcia


António Oliveira Abreu


Fernando Augusto Samões


Maria João Vaz Tomé (Voto a decisão)


Nuno Manuel Pinto Oliveira


António Magalhães


Ricardo Alberto Santos Costa


Fernando Jorge Dias


Rijo Ferreira (com declaração de voto)


José Maria Ferreira Lopes


João Cura Mariano


Manuel Capelo


Tibério Nunes da Silva


Fernando Baptista


José Manuel Cabrita Vieira e Cunha


Luís Espírito Santo


António Isaías Pádua


Nuno Ataíde das Neves


Maria dos Prazeres Beleza


Ana Paula Boularot (vencida nos termos da declaração que junto)


Fernando Pinto de Almeida - subscrevo a declaração de voto da Exmª Conselheira Ana Paula Boularot


José Rainho



1132/18.4T8LRA-C.C1.S1-A


Declaração de Voto


Voto a decisão e parte significativa da sua fundamentação.

No entanto, não subscrevo a parte da fundamentação (pontos 8 e 9 do acórdão) em que se imputa ao acórdão recorrido, ademais como a “mais profunda justificação”, o contrariar uma jurisprudência constante, porquanto não reconheço validade a tal argumento.

A vinculação a uma jurisprudência constante estabelece-se, não por apelo à sua obrigatoriedade mas antes na presunção da sua correcção material, em função da sua fundamentação; presunção essa que, sendo ilidível, está sujeita a um contínuo escrutínio, prevalecendo o postulado de que se deve decidir correctamente (postulado esse que se sobrepõe a considerações de certeza e segurança jurídica e de igualdade), nada obstando a que se divirja dessa jurisprudência quando se tenha por demonstrada a sua incorrecção (cf. KARL LARENZ, obra citada no acórdão, págs. 501-503).

A conscienciosa divergência de uma jurisprudência constante não pode ser aprioristicamente rejeitada pelo simples facto dessa divergência. Essa rejeição haverá sempre de resultar da ponderação e análise do argumentário envolvido.

E para se considerar uma jurisprudência como constante/consolidada é necessário, antes de mais, que essa jurisprudência se debruce e analise em concreto a problemática em causa, não sendo de considerar aqueles casos em que a situação em causa possa ter ocorrido inconsideradamente. Daí que não considere como integrantes da apontada jurisprudência, tida por constante, os acórdãos indicados no acórdão em que a revista foi simplesmente admitida, sem qualquer apreciação da sua admissibilidade em função do disposto no art.º 942º, nº 4, do CPC; nem se me afigura relevante a referência ao assento 5/88, que decorre do facto consumado de terem ocorrido recursos de revista, nada tendo apreciado quanto à sua admissibilidade.

Por outro lado, importa ainda que essa jurisprudência seja reiterada, sem significativa oposição e sem significativa alteração legislativa, num amplo número de casos e ao longo de um dilatado espaço de tempo, o que não se me afigura ocorrer no caso concreto em que apenas se apontam seis decisões (as referidas no ponto 8 do acórdão, exceptuados os acórdãos de 22MAR2018 e 11ABR2019, que não se pronunciam sobre a questão), no espaço de sete anos (2003-2020), e com a intercorrência de significativas alterações legislativas (2007 e 2013).

Daí que o mais que se justificava referir em abono da posição adoptada seria que esse entendimento era o que já vinha sendo adoptado naquelas pregressas decisões.

Não me revejo no ‘estilo’ do acórdão quando tece considerações laterais, desnecessárias para a discussão racional da questão de direito em causa e que tenho por deontologicamente criticáveis, com recurso à referenciação ipsis verbis de expressões utilizadas no acórdão recorrido (“claro, preciso e conciso” [ponto 4, §2], “à anotação a um CPC” [ponto 10, §1]) e à qualificação do mesmo acórdão como “um corte abrupto e surpreendente com uma corrente jurisprudencial” [ponto 11, § 4]).

Por último, entendo que deveria ter sido ordenada a tributação pela tabela I-C anexa ao Regulamento das Custas Processuais, porquanto pela sua própria natureza o recurso para uniformização da jurisprudência (em particular após a decisão positiva sobre a sua admissibilidade) deve ser considerado de excepcional complexidade, conforme o disposto nas als. b) e c) do nº 7 do art.º 530º do CPC e do nº 5 do art.º 6º do Regulamento das Custas Processuais.


___________________________

(Rijo Ferreira)



***



DECLARAÇÃO DE VOTO


Vencida, nos seguintes termos.


Conforme se deixou expresso no Acórdão recorrido, do qual fui Relatora, e aqui se volta a reafirmar:

«[O] artigo 942º, nº 4, é claro preciso e conciso, como aliás já o era o art. 1014º-A, nº 4, do CPCivil pregresso, ao consagrar que “da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo”, de onde se extrai que nesta fase específica, liminar, deste processo especial, apenas há um grau de recurso.

A leitura efectuada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, de 13 de Novembro de 2003, daquele preceito legal, mostra-se descontextualizada, nele não tendo qualquer correspondência verbal, nem expressa nem tácita, infringindo, desta feita as regras interpretativas decorrentes do disposto no artigo 9º, nº2 do CCivil, sendo certo que os demais Acórdãos citados, de 23 de Abril e de 29 de Outubro de 2002, nem sequer se referem à problemática do conhecimento do objecto do recurso, tendo-se limitado a dele conhecer, conhecimento esse que em nada preclude a possibilidade de uma interpretação discordante, no sentido de a Lei não permitir, sequer, a impugnação ora encetada, a não ser nos casos que na mesma são expressamente ressalvados, em que o recurso é sempre admissível.

Ademais, a conclusão aqui trazida provinda da anotação a um CPCivil, mostra-se questionável, porquanto a recorribilidade da decisão em apreço, em sede de recurso de Apelação, mesmo que oferecesse dúvidas face ao normativo inserto no nº1 do artigo 644º do CPCivil, tais dúvidas sempre ficariam desvanecidas face à alínea i) do seu nº2, de onde se poder concluir que a própria Lei prevê, expressamente, quais as situações em que as decisões são passíveis de recurso, quer em segundo grau, quer para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, in casu, embora a decisão produzida fosse recorrível para o Tribunal da Relação, já o não é para este órgão, a não ser que tivessem sido invocados quaisquer dos fundamentos aludidos nas alíneas a) a d) do nº2 do artigo 629º daquele mesmo diploma legal, o que aqui não ocorreu.

(…) 

As razões invocadas em tal decisão, mantêm-se in totum, sem embargo de infra se adiantarem outros argumentos coadjuvantes, tendo em atenção o arrazoado conclusivo agora apresentado, com apoio no parecer junto.

Assim.

O processo especial de prestação de contas divide-se em duas fases, uma inicial, de apuramento da obrigação de prestar contas e uma outra subsequente, caso o Tribunal determine tal dever.

Dispõe o normativo inserto no artigo 924º, nº4 do CPCivil que «Da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.», sendo que, a impugnação que vem efectuada pela Recorrente, incide sobre o Acórdão da Relação de Coimbra que decidiu, na fase inicial do processo, que havia lugar à prestação de contas da sua parte com o Requerente, aqui Recorrido.

Como anteriormente se afirmou, este normativo é claro preciso e conciso, como aliás já o era o artigo 1014º-A, nº4 do CPCivil pregresso, ao consagrar que apenas há lugar ao recurso de Apelação de onde se extrai que nesta fase específica, liminar, o que decorre vítreo da letra do preceito em equação, bem como do seu espírito, clarificado, aliás, pela história da norma, contrariamente ao que vem porfiado pela Reclamante.

Se é certo, como se defende «[A]pós a Reforma levada a cabo pelo Decreto-Lei n.° 329-A/95, de 12 de dezembro, a fórmula constante no n.° 4 do artigo 1014.°-A do Código de Processo Civil (com total correspondência hoje no n.° 4 do artigo 942.° do CPC de 2013) tomou posição sobre um problema que atormentava a doutrina e a jurisprudência, desde tempos recuados, sobre a espécie de recurso adequado (agravo ou apelação?) a interpor da decisão de 1.ª instância.», aliás na esteira do entendimento de JA dos Reis, cfr Processos Especiais, Volume I, 326.

Contudo não podemos ignorar que quer as subsequentes alterações ao CPCivil, quer as introduzidas pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto, que estabeleceu o regime monista de recursos, quer a da Lei 41/2013, de 26 de Junho, podendo fazê-lo, não alteraram aquele segmento, sendo certo que a recorribilidade da decisão proferida naquela sede preliminar do processo, estaria sempre garantida pelo normativo inserto no nº1, alínea a) do artigo 644º do CPCivil, tornando-se despicienda qualquer outra consignação no sentido de a mesma poder ser impugnada, estando igualmente salvaguardado o regime de subida através do disposto no artigo 645º, nº1, alínea a) do mesmo diploma.

Dir-se-á em contraponto que faltaria sempre o efeito a atribuir, mas a utilidade do preceito não se poderá resumir a esse particular, constituindo antes uma intenção expressa de afastar qualquer outra impugnação recursiva, nomeadamente através da Revista, porquanto como se disse, o regime monista de recursos salvaguardaria a recorribilidade em um grau se ali não fosse mencionada tal possibilidade.

Adianta a Recorrente, em abono da sua tese que quando a lei quer excluir a admissibilidade do recurso de revista, utiliza para tal fórmulas categóricas, que não deixam margem para dúvidas, dando como exemplo o disposto nos artigos 370º, nº2 do CPCivil, procedimentos cautelares e 662º, nº4, no que se refere às decisões sobre a matéria de facto, mas isso não significa que o legislador não possa afastar a possibilidade dessa impugnação através de outras fórmulas, como acontece no caso sub especie, a qual exclui, literalmente, qualquer outra impugnação recursiva ao prevenir expressamente e tão só a recorribilidade através do recurso de Apelação, o que igualmente se mostra contemplado pelo artigo 644º, nº 2, alínea i) do CPCivil.

Ademais, mal se compreenderia que neste tipo de processo especial, em que a fase liminar é sumária, aplicando-se-lhe o regime dos incidentes, como deflui do nº3 do artigo 942º do CPCivil, pudesse comportar dois graus de recurso, e, no caso de a acção prosseguir os seus termos para a segunda fase, nesta ter lugar esses dois patamares recursivos, quando é manifesta a intenção do legislador, em todas as alterações legislativas que tiveram lugar ao longo da última década, de limitar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, encontrando a sua justificação em interesses de celeridade e eficiência da administração da justiça.

E, não se trata de coactar às partes o acesso nem à justiça, nem aos tribunais, trata-se antes do poder de conformação do legislador, como tem sido afirmado e reafirmado pelo Tribunal Constitucional em vários arestos, do qual se retira que o acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses, cfr inter alia 328/2012 (Relator Vitor Gomes), 657/2013 e 280/2015 (Relator Carlos Cadilha), in www.dgsi.pt.».

As razões alinhadas, mostram-se válidas, não sendo abalada a sua sustentabilidade pelos argumentos agora invocados em sede uniformizadora, tratando-se esta de uma visão possível sobre a problemática em questão, mais abrangente do que aquela que, na minha opinião, as sucessivas alterações normativas visaram antes restringir.

Se não.

Em primeiro lugar, não creio que a essencialidade do processo de prestação de contas se encontre na fase inicial, a qual, tem uma natureza incidental sumária, como deflui do disposto no artigo 942º, nºs 1 e 2 do CPCivil.

Por outro lado, in casu, a decisão recorrida, ao invés do que se advoga, foi a produzida nessa fase inicial e não na subsequente, correspondente ao processo comum, cfr o disposto no artigo 295º do CPCivil, para o qual aqueloutro dispositivo remete.

E, é esta decisão de admissão, ou de não admissão de prestar contas, preliminar portanto, que a Lei expressamente prevê a impugnabilidade através do recurso de Apelação, tout court, afastando assim a possibilidade de recurso de Revista, porquanto se assim não fosse, não havia qualquer necessidade de ter consignado a possibilidade de tal recurso, pois a mesma já resultava do normativo inserto no artigo 644º, nº1, alínea i) do CPCivil, aplicável por remissão do disposto no artigo 549º, nº1 do mesmo diploma; por outro lado, continuo a afirmar que não se concebe que neste tipo de processo especial, com duas fases distintas, se admitam duas Apelações e duas Revistas, pois a história do preceito e o elemento literal mínimo constante no artigo 9º do ccivil, apontam para a leitura que o Acórdão recorrido faz do disposto no artigo 942º, nº4 do CPCivil, ao que acresce a circunstância de todos conhecida de o legislador ter querido ao longo dos anos limitar a possibilidade de impugnação para o STJ (finalidade que contraria o princípio invocado no projecto que se deve privilegiar a interpretação mais favorável à admissibilidade da Revista).

Isto quer dizer o seguinte: a primeira fase é preliminar, dependendo a constatação do dever de prestar contas da prova sumária dos elementos factuais trazidos aos autos pelo Autor na sua causa de pedir, não constituindo a decisão de prestar contas qualquer caso julgado no que tange ao desfecho da segunda fase, a qual, dependerá sempre, quer seja ou não seja contestada a obrigação, de uma análise subsequente de outros elementos, bem como da produção de melhores meios de prova, decidindo o juiz a final segundo o seu prudente arbítrio, nos termos do artigo 945º, nº5 do CPCivil, podendo a sentença final, a respeito, concluir pela inexistência de qualquer obrigação por banda do Réu em prestar as contas, veja-se a propósito as alterações efectuadas a este processo pelo DL 329-A/95, o qual veio nele consagrar, expressamente, os poderes de averiguação oficiosa do Tribunal, adiantou o seguinte no seu preâmbulo «No tocante à contestação da obrigação de prestar contas, aduzida pelo réu, abandonou-se a solução consistente na suspensão da instância e consequente remessa para os meios comuns, privilegiando-se a decisão no âmbito do próprio processo de prestação de contas, sem prejuízo do necessário rigor. Assim, prevê-se que, na impossibilidade de a questão ser decidida de forma sumária, o juiz determine que se sigam os termos subsequentes do processo comum, o qual, recorde-se, está concebido de forma particularmente flexível, designadamente no tocante à possibilidade de o juiz adequar a tramitação a finalidades específicas», e como decorre da estrutura legal do processo de prestação de contas a falta de apresentação das contas pelo Réu, nem sequer tem qualquer efeito cominatório.

Em segundo lugar, o paralelo efectuado com outros processos especiais, vg, i) divisão de coisa comum, carece de qualquer fundamento minimamente estruturado, a não ser na asserção de que se mostra «implícita» a inadmissibilidade de Revista, artigo 926º, nº2 do CPCivil; ii) mutatis mutandis no que se refere ao processo especial de acompanhamento de maiores, artigo 901º do CPCivil, onde a letra da Lei nos parece conduzir, igualmente e  tão só à conclusão que a alusão à impugnabilidade recursiva se limita ao recurso de Apelação; iii) quanto ao processo de inventário, chamo a atenção para o facto de o artigo 1123º no seu nº1 prescrever, especificamente que ao processo de inventário se aplicam «as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos.», o que faz desde logo abranger a se a possibilidade de Revista, referindo-se o nº2, apenas e tão só, aos casos em que cabe Apelação autónoma ( sic Cabe ainda apelação autónoma:), situação esta, cujo enquadramento se encontra desintegrado do seu contexto normativo, na tese que faz vencimento, ao destacar a alínea c) daquele segmento, onde se enuncia Da sentença homologatória da partilha.

Ademais, em sede de processos especiais, tenha-se em atenção que o CPCivil apenas se refere ao recurso de Apelação, especificamente, naqueles três casos: processo especial de maior acompanhado, divisão de coisa comum e prestação de contas, omitindo qualquer referência específica à admissibilidade desta espécie de recurso nos outros processos, sendo que, quanto ao processo de tutela de personalidade, o artigo 880º, nº1, se refere genericamente aos recursos interpostos pelas partes, sem qualquer limitação de espécie, e, na acção de indemnização contra magistrados, o artigo 971º prevê que «Da decisão do juiz de direito ou da relação que admita ou não admita a acção cabe recurso», o que pressupõe apenas o recurso em um grau.   

Tertio, o Acórdão recorrido não efectua nenhum corte abrupto e surpreendente com qualquer corrente jurisprudencial que se tenha pronunciado de forma constante no sentido do Acórdão fundamento, a não ser que se entenda que as decisões implícitas podem significar, também, uma tomada de posição: o que se tem visto ao longo dos anos é apenas e tão só uma aceitação por inércia do conhecimento do objecto do recurso e não um olhar crítico sobre o problema que aqui se põe, o qual apenas se mostra tratado directamente, embora em termos insuficientes, pelo Acórdão fundamento e pelos Acórdãos de 25 de Outubro de 2012, 2828/10 (inédito) (Relator Pires da Rosa), de 1 de Março de 2007, 199/07 (inédito) (Relator Alberto Sobrinho), de 21 de Outubro de 2020, 239/09 (Relator Ferreira da Cunha) e de 15 de Dezembro de 2020, 1797/07 (Relatora Maria Olinda Garcia), este com o meu voto de vencida, como vêm citados no projecto.

Ora, a ratio essendi do presente recurso para uniformização versa sobre matéria de recursos, cuja tecnicidade é patente, sujeita, pois, a alterações constantes, máxime, de natureza legal, sempre se dizendo, ex abundanti, que o direito é a vida e esta está em constante mutação, cfr Cabral de Moncada, in Filosofia do Direito e do Estado, vol. 2º, 154/159.

Assim sendo, nada de mais comum nos Tribunais do que a mudança de visão sobre certos assuntos e a revisão de posições decisórias, sem que esta alteração de um status quo possa evidenciar uma qualquer «violação» de direitos adquiridos ou frustração de espectativas, nem tão pouco uma possível afronta ao princípio da confiança, originadora, quem sabe, de uma potencial discutível inconstitucionalidade decisória. 

Todas as teorias/teses/posições estão sujeitas a mudanças e a alterações, bem como a nossa visão perante o mundo e neste, perante o direito que servimos, pois a sua base – o conflito – só é susceptível de soluções de compromisso e/ou transitórias, daí os teóricos e a própria Lei admitirem a inversão jurisprudencial, mesmo ao nível da própria uniformização existente. Veja-se a propósito a sequência de Acórdãos Uniformizadores sobre o tema da eficácia do registo em relação a terceiros e mais recentemente, os Acórdãos controversos sobre a resolução do contrato promessa em sede insolvencial e as suas consequências, não sendo estranho, por isso, as constantes e sucessivas mudanças de posição sobre as várias temáticas jurídicas.

Concluindo, a tese explanada no Acórdão recorrido mostra-se consentânea com a interpretação efectuada do artigo 942º, nº4 do CPCivil, segundo os critérios fixados no artigo 9º, nºs 1, 2 e 3 do CCivil, na minha perspectiva, como Relatora do Acórdão recorrido, aqui vencida.

Confirmaria, pois, o Acórdão recorrido, por mim relatado, e faria retirar o seguinte segmento uniformizador:

«O Acórdão da Relação incidente sobre a decisão de primeira instância proferida ao abrigo do nº 3 do artigo 942º do CPCivil, que aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, apenas admite recurso de Apelação».


(Ana Paula Boularot)



***



Processo n.º 1132/18.4T8LRA-C1.S1-A

Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência


*


Declaração de voto


Votei vencido.

Embora reconheça a valia argumentativa da tese que fez vencimento, inclino-me a pensar que o acórdão recorrido, que subscrevi como adjunto, encerra a melhor interpretação da (a meu ver dúbia) lei, pelo que deveria ser confirmado. As razões que me levam a defender a bondade do acórdão recorrido são precisamente as indicadas na respetiva fundamentação, e que estão transcritas no texto do presente acórdão do plenário.

José Inácio Manso Rainho