NATUREZA URGENTE DO PROCESSO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
TEMPESTIVIDADE
Sumário

I – É incorrecto fazer alterar a natureza do processo (fazendo cessar a natureza urgente) meramente a partir da interpretação do requerimento para abertura da instrução e do seu recorte quanto aos crimes pelos quais se pretende a respectiva pronúncia, sem que exista qualquer decisão judicial que sancione tal entendimento.
II - A ser admissível este entendimento, nestes casos, a tempestividade do requerimento para abertura da instrução nunca estaria assegurada à partida, dependendo de um eventual e posterior juízo, que a confirmaria ou infirmaria, solução contrária ao princípio da segurança e da legalidade processuais.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Instrução Criminal de Faro (J2) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro foi proferido despacho no processo de instrução n.º 57/20.8GAOLH, que rejeitou o requerimento para abertura da instrução (1) apresentado por MSMJP, na qualidade de representante legal do menor GILP.

Inconformada com essa decisão, a requerente interpôs recurso, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“I - O presente recurso vem interposto da douta decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Faro – Juiz 2, o qual rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentada pela ora Recorrente, por alegadamente extravasado o prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1 do CPP.

II - Da decisão recorrida resulta que: “(…) No caso em análise, RF, foi notificada do despacho de arquivamento, por carta registada simples depositada em 26/11/2020, pelo que se presume a sua notificação no dia 01/12/2020.

Deste modo, o prazo para requerer a abertura de instrução terminava em 21/12/2020 (ou em 06/01/2021, mediante o pagamento da respetiva multa pela apresentação tardia).

Assim, no dia em que o requerimento em análise foi apresentado, já o mesmo se mostrava extemporâneo.

Nos termos do art.º 287.º, n.º 3, do Cod. Proc. Penal, “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Deste modo, uma vez que o requerimento em análise é extemporâneo, vai o mesmo rejeitado. (…)”

III - Não pode a Recorrente concordar com a decisão recorrida, na medida em que da análise efetuada resulta claro uma incorreta apreensão da globalidade do processo e, bem assim, uma incorreta interpretação do versado nos artigos 113.º, n.º 14, 287.º, n.ºs 1 e 6 do CPP.

IV - O artigo 113.º, n.º 14, que determina o benefício do prazo para a prática de atos, após notificações, enumera de igual modo os requisitos de admissibilidade destes requisitos, nomeadamente, previsão expressa, a existência de mais do que um Arguido ou mais do que um Assistente e a ocorrência da notificação do mesmo ato processual em datas diversas, que originem termos de prazos diferentes para a prática de atos.

V - Ora, nos autos em causa, a previsão expressa de aplicabilidade do benefício do prazo vem previsto no artigo 113.º, n.º 14.

VI - Nos autos a Recorrente e LLG são simultaneamente Arguidos e Assistentes, e foram ambos notificados do mesmo ato em datas diversas.

VII - A Recorrente (Arguida/Assistente) foi notificada do despacho de arquivamento em 01/12/2020, terminando o prazo para requerer a abertura de instrução em 06/01/2021.

VIII - O Arguido/Assistente LLG foi notificado posteriormente em 09/12/2020, (folhas 394 dos autos) sendo que o termo do prazo para requerer a abertura de instrução terminava em 11/01/2021.

IX - O prazo para a prática do ato (vinte dias), teve início após respetivas notificações do despacho de arquivamento.

X - Sucede que, em virtude da notificação dos sujeitos em data diversa, verifica-se que, uma vez que o Arguido/Assistente LLG foi notificado a 09/12/2020, terminando o prazo para a prática do ato tendente à abertura de instrução em 11/01/2021, ou 14/01/2021, mediante pagamento da respetiva multa, de tal prazo beneficiaria também a Assistente/Arguida MP, só assim se fazendo uma correta interpretação e aplicação do vertido nos artigos 113.º, n.º 14, 287.º, n.º 6, conjugados com o artigo 287.º, n.º 1 do CPP.

XI - Assim, o termo do prazo para todos os sujeitos requererem a abertura de instrução era em 11/01/2021, ou 14/01/2021, mediante pagamento da respetiva multa.

XII - O requerimento para abertura de instrução para abertura de instrução apresentado pela ora Recorrente (Arguida/Assistente), data de 08/01/2021.

XIII - Assim, porque apresentado nos três dias que antecederam o termo do prazo não poderia ser rejeitado por extemporâneo.

XIV - Consequentemente, o douto Tribunal “a quo” ao decidir pela rejeição do requerimento de abertura de Instrução apresentado, com fundamento na sua extemporaneidade, procedeu a uma incorreta interpretação dos artigos 113.º, n. º14, 287.º, n.º 1 e 6, do CPP, logo, numa incorreta aplicação do direito, violando a previsão normativa do benefício do prazo concedido os sujeitos processuais.”

Pugnando, em síntese:

“Nestes termos, não deveria ter sido rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Recorrente em 08/01/2021, com base na sua alegada extemporaneidade, porque apresentado antes do termo do prazo para a prática do ato, o qual se fixava em 11/01/2021, podendo e devendo este Tribunal da Relação de Évora, determinar a revogação da douta decisão Recorrida, posta em crise, determinado que o processo prossiga os seus termos até final.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

“I - Nos presentes autos investiga-se uma multiplicidade de factos subsumíveis a diversos tipos de crime;

II - Entre os quais o crime de violência doméstica, previsto e punível nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, perpetrado por LLG na pessoa de MSMJP;

III - Os inquéritos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, nos termos do disposto no artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas);

IV - Tais inquéritos mantém a natureza urgente, ainda que a denunciante se conforme com a decisão de arquivamento pelo Ministério Público no que à prática do crime de violência doméstica respeita;

V - Ou seja, ainda que os factos respeitantes ao eventual crime de violência doméstica não sejam chamados à colação no requerimento de abertura da instrução, a unidade processual em que os mesmos se inserem implicam a manutenção e a aplicação da natureza urgente ao todo processual que é constituído pelos factos da violência doméstica e todos os demais;

VI - Os prazos para a prática de actos processuais em processos de natureza urgente correm em férias judiciais;

VII - Tendo ocorrido a última notificação em 09 de Dezembro de 2020, o prazo normal para requerer a abertura da instrução tem de incluir na sua contagem o período de férias judiciais, pelo que, quando a ora recorrente apresentou o seu requerimento de abertura da instrução, tal prazo já havia decorrido na íntegra e, bem assim, os três primeiros dias úteis posteriores que permitiriam ainda a prática do acto processual mediante o pagamento da respectiva multa pela apresentação tardia;

VIII - Pelo que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela recorrente em 08 de Janeiro de 2021 é extemporâneo.

IX - Por conseguinte, somos do parecer que o presente recurso deve ser julgado improcedente e, em consequência, ainda que com fundamentos diferentes, ser confirmada a douta decisão recorrida que fez boa e correcta aplicação do Direito e da Lei.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (2).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Requerimento de abertura de Instrução e de constituição como Assistente de MSMJP: Por acto processual de 08/01/2021, veio MP requerer a sua constituição como Assistente, bem como a abertura de instrução.

Apreciando.

Dispõe o art.º 287.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, que “A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento”.

No caso em análise, RF foi notificada do despacho de arquivamento, por carta registada simples depositada em 26/11/2020, pelo que se presume a sua notificação no dia 01/12/2020.

Deste modo, o prazo para requerer a abertura de instrução terminava em 21/12/2020 (ou em 06/01/2021, mediante o pagamento da respectiva multa pela apresentação tardia).

Assim, no dia em que o requerimento em análise foi apresentado, já o mesmo se mostrava extemporâneo.

Nos termos do art.º 287.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Deste modo, uma vez que o requerimento em análise é extemporâneo, vai o mesmo rejeitado.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão (única) a decidir no presente recurso é: Foi ou não o RAI apresentado no prazo legal.

B. Decidindo.

Questão – Foi ou não o RAI apresentado no prazo legal.

A recorrente vem colocar em crise o despacho recorrido, afirmando que ali apenas se atentou à data da sua própria notificação (de despacho de arquivamento), não se valorando o disposto no art.º 113.º, n.º 14 (aplicável por força do disposto no art.º 287.º, n.º 6), aplicável aos autos, uma vez que a requerente e LLG têm nos autos ambos as qualidades de denunciantes / denunciados e este último foi notificado posteriormente (09.12.2020), em data que torna o RAI que apresentou tempestivo.

O MP, na resposta, em síntese, aceita que aproveita à requerente, nos termos das disposições legais citadas, o prazo resultante da notificação posterior do outro denunciante / denunciado nos autos, mas que, mesmo assim, o RAI é extemporâneo, dada a natureza urgente do processo.

Assim, é pacífico (3) que LLG foi notificado do despacho de arquivamento do MP em 09.12.2020 (fls. 394 dos autos) e que à requerente aproveita tal notificação para efeito de início de contagem do prazo para requerer a abertura da instrução.

Porém, como justamente assinala o MP, há a ponderar a questão da natureza do processo e da sua potencial influência na tempestividade do RAI.

É de sublinhar que, em 24.02.2020, foi exarado nos autos de inquérito que os mesmos “assumem natureza urgente – artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro”, mais ali se exarando que “deverá ser feita menção a tal – crime, natureza urgente e legislação atinente – em todo o expediente a elaborar no decurso dos autos.”

Por seu turno, no despacho de arquivamento proferido em 15.11.2020 não foi feita qualquer referência a uma eventual alteração da natureza urgente dos autos.

Assim, entendemos que, até existir decisão que determine ou referencie uma alteração da natureza dos autos, os mesmos mantêm a respectiva natureza urgente.

Com efeito, afigura-se-nos incorrecto fazer alterar a natureza do processo (fazendo cessar a natureza urgente) meramente a partir da interpretação do RAI e do seu recorte quanto aos crimes pelos quais se pretende a respectiva pronúncia, sem que exista qualquer decisão judicial que sancione tal entendimento. A ser admissível este entendimento, nestes casos, a tempestividade do RAI nunca estaria assegurada à partida, dependendo de um eventual e posterior juízo, que a confirmaria ou infirmaria, solução contrária ao princípio da segurança e da legalidade processuais.

Pelo exposto, entendemos que os autos mantêm a natureza urgente até decisão que eventualmente a altere.

Deste modo, considerando a natureza urgente do processo, é jurisprudencialmente pacífico que o prazo para interposição de recurso corre em férias judiciais (4).

Consequentemente, tendo sido a última notificação do despacho de arquivamento efectuada em 09.12.2020, o prazo de 20 dias previsto no art.º 287.º, n.º 1 terminou em 29.12.2020, pelo que, mesmo considerando a possibilidade de prática do acto nos três primeiros subsequentes, com multa (art.º 107.º-A), a apresentação do RAI em 08.01.2021 é extemporânea.

A decisão recorrida deve, assim, ser confirmada, embora por fundamento diverso, com a inerente improcedência do recurso.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em não conceder provimento ao recurso, confirmando-se, por fundamento diverso, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 12 de Outubro de 2021

Edgar Gouveia Valente

Laura Maria Peixoto Goulart Maurício

Sumário

I – É incorrecto fazer alterar a natureza do processo (fazendo cessar a natureza urgente) meramente a partir da interpretação do requerimento para abertura da instrução e do seu recorte quanto aos crimes pelos quais se pretende a respectiva pronúncia, sem que exista qualquer decisão judicial que sancione tal entendimento.

II - A ser admissível este entendimento, nestes casos, a tempestividade do requerimento para abertura da instrução nunca estaria assegurada à partida, dependendo de um eventual e posterior juízo, que a confirmaria ou infirmaria, solução contrária ao princípio da segurança e da legalidade processuais.

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1 Doravante RAI.

2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

3 Nada havendo, da nossa parte, a opor.

4 Neste sentido, entre muitos outros, vide o Acórdão do STJ de 07.07.2016 proferido no processo n.º 603/12.0GAVVD.G1.S1, da Relação de Coimbra de 24.09.2014 proferido no processo 637/09.5PBCTB.C1, desta RE de 20.01.2015, proferido no processo 243/11.1TAGLG.E1, bem como os mencionados na resposta do MP.