ABERTURA DE INSTRUÇÃO
NOTIFICAÇÃO PARA DEBETE INSTRUTÓRIO
NULIDADE
IRREGULARIDADE
Sumário

Nos presentes autos o Ministério Público imputou aos arguidos a prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º do DL 15/93 de 22.01, sendo que o fez em autoria simples e individual, isto é, aos arguidos não foi imputada nem a co-autoria do crime nem a atuação em grupo.
O arguido CL foi acusado em autoria material do crime de tráfico de estupefacientes, não requereu a instrução e a factualidade descrita na acusação não integra qualquer das situações previstas no artº 24º alíneas c), d) e e) do CPPenal.
Assim sendo, o arguido CL não tinha que ser notificado para a realização do debate instrutório, como pretende fazer crer.
A lei não exige a presença do arguido ou da sua defensora no debate instrutório, pelo que carece de razão o arguido ao invocar a nulidade ou irregularidade, por não ter sido notificado para tal ato.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I-Relatório

No processo com o número mencionado do Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo de Instrução Criminal de Portimão – Juiz 2) o Mmo. Juiz pronunciou o arguido CRAL e outros pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º nº 1 do DL 15/93 de 22-01, por autoria simples e individual e decidiu manter a prisão preventiva do arguido, conforme decisão infra transcrita em II.1.

De imediato, a mandatária do arguido veio arguir uma nulidade/irregularidade, após o que foi proferida a decisão, infra transcrita em II.2, a indeferir tal vício.

Inconformado, o arguido interpôs recurso das duas decisões, tendo concluído em relação à primeira, do seguinte modo:

« 1-O presente recurso visa sindicar a decisão proferida pelo Mmº. Senhor Juiz de Instrução Criminal junto do Tribunal de Portimão, que determinou a manutenção da mais grave medida de coacção em direito permitida – falamos evidentemente da prisão preventiva.

2-É imputada ao arguido a prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 21º, nº.1, do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro.

3-Mais é imputada a prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 86º, nº. 1, alíneas c) e d) ex-vi artigos 2º, nºs. 1, alínea na e 3, alínea p), ambos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº. 50/2019, de 24 de Julho.

4-Em síntese: em data que não se consegue identificar; em hora que não se conhece; grosso modo, a pessoas que não se sabe quem são; com número de venda indeterminado; o arguido vendeu…

5-O que temos: Pouco ou nada!

6-Ou seja, em dia que não se conhece…em datas que não se identificam …às horas que ninguém imagina…o arguido vendeu…a um conjunto de pessoas que, grosso modo, não se sabem quem são…e com isso lucrou…não se sabe o quê…

7-Mas tem que ser sujeito a prisão preventiva… porque alegadamente se mostra preenchido o tipo legal supra identificado… É isso o que resulta da Lei do Processo? Não…, não é! Por isso muito longe estamos do cumprimento da Lei.

8-O que temos suposições…sugestões…conjecturas…teorias…suspeições… desconfiança…cisma…dedução.

9-O que não temos verdadeiramente: Um consumidor de produto estupefaciente que, com vista à obtenção de produto para o seu consumo, compra, procede ao corte e vende produto estupefaciente a pessoas próximas das suas relações.

10-É manifesto que não estamos perante o tipo previsto no artigo 21º do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro.

11-Estamos, sem dúvida, perante o tipo legal previsto no artigo 25º do diploma legal supra identificado.

12-Perante tal factualidade o ora Recorrente solicitou interrogatório completar. Em sede de declarações o arguido fez referência à sua dependência e à forma como conseguia obter produto para o seu consumo. De diferente nada resulta do processo.

13-Por tudo o exposto com a decisão em referência não pode o aqui Recorrente conformar-se. Por tal razão interpõe o presente recurso.

14-Entende o aqui Recorrente que se verifica a inexistência de pressupostos de facto ou fundamentos / motivos jurídicos válidos que determinem a aplicação e agora a manutenção ao arguido da mais grave medida de coacção em direito permitida. Falamos de medida privativa da liberdade, absolutamente limitadora e pensada como ultima ratio.

15-Nos presentes autos não se verifica o circunstancialismo que, de acordo com o douto despacho, objecto do presente recurso, fundamentou a aplicação e agora a manutenção da mais grave medida de coacção, não obstante a liberdade ser o regime regra.

16-Com a não aplicação ao aqui Recorrente do regime regra, viola-se, notoriamente, o disposto no nº. 2 do artigo 28º da Constituição da República Portuguesa.

17-Entende o aqui Recorrente que não se verifica, concretamente, qualquer dos requisitos plasmados no artigo 204º do Código de Processo Penal, violando-se de forma clara e objectiva o disposto nos artigos 191º, 193º, 202º, nº.1 e 204º, todos do Código de Processo Penal.

18-Ao arrepio do entendimento do aqui Recorrente, decidiu o Mmº. Senhor Juiz de Instrução Criminal que era de aplicar e agora manter a prisão preventiva. Ora, o arguido, assim não entende. E não entende porque não consegue responder às seguintes questões:

-Que actividade criminosa?

-Quando começou essa “actividade criminosa”?

-Em que moldes se desenvolve ou desenvolveu tal actividade?

19-À excepção do termo de identidade e residência – medida prevista no artigo 196º do Código de Processo Penal – as demais só podem se aplicadas ou mantidas se verificado algum dos requisitos constantes das alíneas a) a c) do artigo 204º do já identificado diploma legal. Ora, in caso, tal não se verifica. A ser assim deveria ser aplicada ao arguido a medida de coacção prevista no 196º do CPP.

20-Não se basta a lei com a simples indicação, percepção, suspeita, intuição da existência de um qualquer perigo.

21-Entende a lei como necessária a verificação, em concreto de, pelo menos, um desses perigos – alíneas a) a c) do artigo 204º do CPP.

22-É evidente para nós que inexiste o perigo invocado para a aplicação da mais grave medida de coacção.

23-Essa evidência resulta do facto de estarmos perante um individuo social, pessoal e profissionalmente inserido – vide documentos já juntos aos autos. Um homem trabalhador, com responsabilidades assumidas, estimado, querido e respeitado por todos. Trabalhador assíduo e apontado como exemplo.

24-O arguido vive com a sua companheira. Tem total apoio da família que o entende e que o acompanha. Tem total apoio dos colegas de trabalho e amigos que o estimam, consideram e admiram.

25-Assim, notório é que os factos que serviram de base / suporte à aplicação e agora á manutenção ao arguido da medida de coacção prevista no artigo 202º do Código de Processo Penal inexistem.

26-Atenta a não verificação de tais factos e a consequente inexistência do fundamento invocado, necessário e justo será proceder à sua alteração.

27-Atenta a linha proposta deverá manter-se o arguido sujeito à seguinte medida de coacção: obrigações decorrentes do termo de Identidade e residência que já prestou.

28-Admitimos (a título meramente académico), porém, a entender-se verificado o perigo invocado: nesta circunstância e, tendo em atenção o supra exposto, entende o aqui Recorrente que, deve ser substituída a medida de coacção agora mantida, respeitando-se o disposto no artigo 28º da CRP e, obedecendo-se ao espírito do legislador numa das últimas alterações ao CPP.

29-A prisão preventiva é, conforme se sabe, uma medida de carácter excepcional, tem natureza subsidiária e residual, podendo ser aplicada se, em concreto se verificarem desadequadas e insuficientes as demais medidas de coacção em direito permitidas.

30-Por desadequada, desproporcional e manifestamente excessiva deverá, ser, desde já, revogada a medida aplicada, sendo substituída por outra que respeite a Lei e obedeça / entenda o legislador.

31-Assim sendo, a prisão preventiva imposta deve ser revogada, aplicando-se em sua substituição, porque adequada e proporcional as seguintes medidas de coacção:

A) obrigações decorrentes do TIR já prestado

B) apresentação semanal no posto de polícia mais próximo da área de residência do arguido.

32-Entende o aqui Recorrente que as medidas referidas, aplicadas de forma cumulativa, satisfazem o Direito e acautelam de forma plena o perigo que fundamenta a aplicação da medida de coacção indicada.

33-No entanto, sempre se dirá que: o Recorrente tem casa e família à sua espera e, apesar de acreditar ser excessiva e desproporcional admite e aceita a sua sujeição à medida de coacção prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal – Obrigação de Permanência na Habitação, com recurso a meios técnicos de controlo à distância.

34-Para além do mais, deverá ser ao arguido imputada a prática de um crime de um crime de tráfico de menor gravidade previsto e punido nos termos do disposto no artigo 25º do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro.

Por tudo o exposto e, pelo mais que Vªs. Exª.s mui doutamente suprirão, deverá o despacho objecto do presente recurso ser revogado e substituído por outro que aplique medida de coacção não privativa de liberdade por suficiente, adequada e proporcional, nos termos peticionados».

O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Quanto ao recurso da decisão sobre o vício processual o arguido apresentou as seguintes conclusões:

«1-O presente recurso visa sindicar a decisão proferida pelo Mmº. Senhor Juiz de Instrução Criminal junto do Tribunal de Portimão supra transcrita:

2-O Despacho supra transcrito resulta do requerimento apresentado pelo arguido em sede de instrução – único acto de instrução a que o arguido assistiu (representado pela Defesa, uma vez que até para este acto o arguido não foi levado a Tribunal – Leitura da decisão Instrutória:

“CL, arguido no âmbito do processo devidamente identificado, vem nestes termos invocar a verificação de vício processual.

O arguido não foi notificado para estar presente nas sessões realizadas no âmbito da Instrução. O arguido tomou conhecimento neste momento que essas sessões se realizaram na sua ausência. O arguido não podia estar presente por iniciativa própria por se encontrar preso preventivamente necessitando de notificação e disponibilização de veículo para o efeito.

A ausência do arguido ou do seu defensor em diligência desta natureza, entende a Defesa, configura o vício previsto no art.º 119.º, al c) do C.P.P. com as consequências previstas no art.º 122.º. Sendo certo que, ainda que assim não fosse, tendo o arguido tomado conhecimento hoje da existência de uma instrução no processo e da não notificação para sua comparência seria sempre esta uma irregularidade que, desde já, se invoca para todos os efeitos legais – art.ºs 123.º, 122.º.

É este o entendimento do arguido, V. Ex.º decidirá conforme for de justiça.”

3-O arguido, aqui Recorrente, não é o único arguido nos presentes autos.

4-Dois dos arguidos do processo notificados do despacho de acusação e para os efeitos do disposto no artigo 287º do Código de Processo Penal, deram entrada de requerimento de abertura de instrução.

5-A instrução foi declarada aberta. Foram realizados todos os actos entendimentos como necessários. Foi realizado debate instrutório.

6-De todos estes actos o arguido, ora Recorrente, não foi notificado.

7-Por não ter sido notificado, não esteve presente.

8-O arguido requereu a sua inquirição não no âmbito da instrução conforme resulta do despacho objecto do presente recurso mas antes ao abrigo do disposto nos artigos 213º e 194º, ambos do Código de Processo Penal. Vide requerimento apresentado e supra transcrito.

9-Com a não notificação para estar presente nos diversos momentos da Instrução entende o aqui Recorrente que foi violado o princípio da legalidade.

10-A posição assumida pelo Mmº. Senhor Juiz de Instrução Criminal configura inobservância das disposições da lei processo penal.

11-A ausência do arguido ou do seu defensor em diligência desta natureza configura o vício previsto no art.º 119.º, al c) do C.P.P. com as consequências previstas no art.º 122.º.

12-Ainda que assim não fosse, tendo o arguido tomado conhecimento à data da existência de uma instrução no processo e da não notificação para sua comparência seria sempre esta uma irregularidade que, desde já, se invoca para todos os efeitos legais – art.ºs 123.º, 122.º.

13-Assim, necessário será concluir pela violação / incorrecta interpretação das seguintes disposições legais:-118º;-119º;-122º;-123º;-194º;-213º;-287º; e,-297º,Todos do Código de Processo Penal.

14-Mais configura clara violação dos seguintes Princípios:-da legalidade; -de uma efectiva defesa.

15-Tendo em atenção o exposto deverá ser considerado procedente o alegado, com as consequências previstas no artigo 122º do Código de Processo Penal.

Por tudo o exposto e, pelo mais que Vªs. Exª.s mui doutamente suprirão, deverá o despacho objecto do presente recurso ser revogado e substituído por outro, com todas as consequências legais».

O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Nesta Relação, a Exma Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de se confirmarem as decisões recorridas.

Observado o disposto no art. 417º, nº 2 do CPP, o arguido respondeu, pugnando pela posição assumida nos autos.

Procedeu-se a exame preliminar.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1.A decisão sobre a medida de coação, é do seguinte teor:

Da prisão preventiva aplicada aos arguidos RM, MN, JM e CL

Consigna-se que o Tribunal levou e consideração as declarações do arguido CL prestadas no dia 24/6/2021 e o requerimento do arguido MN junto a fls. 4736 e seguintes.

No tocante ao arguido CL, o mesmo confirmou na generalidade os factos, sendo que inexistem dúvidas da sua elevadíssima gravidade. Quer pelo decurso no tempo, as diferentes espécies de estupefacientes vendidas e o modo de vida do arguido. De tais declarações resulta um reforço da gravidade dos factos e a sua confirmação. A circunstância de ao arguido ser oferecido trabalho caso seja revogada a medida de coacção de prisão preventiva não releva, pois em nada bule com os perigos que o Tribunal elencou no despacho inicial de aplicação de medidas de coacção.

Idem para o arguido MN. A sua situação familiar (como as dos demais arguidos), não sendo irrelevante, contudo não bule nem com a elevada gravidade dos factos, com os indícios probatórios nem inibe os perigos referidos. Tal juízo, de jaez abonatória, deve ser efectuado em sede de medida da pena e não no debate de aplicação de medidas de coacção, baseadas em factos subsumíveis a concretos perigos plasmados no art. 204.º do C.P.P..

*

Tendo sido proferido despacho de pronúncia, impõe-se, à luz do disposto no art. 213.º, n.º 1, b) do C.P.P., proceder ao reexame dos pressupostos que presidiram à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva aos mencionados arguidos.

Os arguidos JCFM, CRAL, RESFM e MAPN encontram-se sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, na sequência de 1.º interrogatório judicial, iniciado no dia 21/10 e findo a 22/10/2020, por estarem comprometidos, com a prática, por cada um deles, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21.º, n.º 1, do DL. 15/93, de 22/01, cf. fls. 2563 e s. (Vol. 14.º).

Atentos os fundamentos do despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido e que aqui damos por integralmente reproduzido, verifica-se que, não foram ilididos os fortes indícios da prática do ilícito.

Acresce que se mantêm os perigos mencionados em tal decisão e que estiveram subjacentes à prolacção da mesma.

Ora, os fortes indícios existentes da prática do ilícito supra referido e os concretos perigos que se pretende acautelar com a sujeição dos arguidos a prisão preventiva, fazem-nos concluir, como já em sede de primeiro interrogatório judicial, que nenhuma outra medida de coacção, que não a prisão preventiva, é adequada e suficiente a acautelar tais necessidades.

Como é sabido, as medidas de coacção estão sujeitas à condição “rebus sic stantibus”. Desta condição extrai-se que, com excepção do decurso dos prazos legalmente impostos, as medidas em vigor mantêm a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que assentou a sua aplicação, cf. os Acórdãos da Relação de Évora, de 20/12/2012, Relatora Ana Bacelar Cruz (Proc. 30/10.4PEBJA-C.E1 ); de 31/08/2016, Relator João Gomes de Sousa (27/15.8GBSTB-A.E1) e de 08/03/2018, Relator António Condesso (Proc. 110/13.4 PEBRR-E.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Ora, na situação em apreciação nada sobreveio que se reflicta sobre em que assentou a aplicação da prisão preventiva e o prazo de duração máxima dessa medida de coacção ainda não se completou.

Face ao exposto, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 202.º, nº 1, alíneas a) e b), por referência ao artigo 1.º, alínea m), 204.º, alíneas a) e c), 212.º“a contrario” e 213.º, nº 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal, decido manter a medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos JCFM, CRAL, RESFM e MAPN”.

II-2 O teor da decisão sobre o vício invocado é o seguinte:

“Nos presentes autos o Ministério Público imputou aos arguidos a prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º do DL 15/93 de 22.01, sendo que o fez em autoria simples e individual, isto é, aos arguidos não foi imputada nem a co-autoria do crime nem a atuação em grupo.

Tal significa que sendo apenas requerida a abertura de instrução por parte de dois arguidos não é necessária a notificação dos demais. Tal só aconteceria se, como se asseverou, o Ministério Público houvesse imputado os factos em co-autoria. Caso o arguido CL pretendesse ver discutida alguma questão na fase de instrução deveria ter procedido à sua abertura. O mesmo não foi notificado, como não o foram os demais arguidos, uma vez que tal ato não está determinado.

Acresce que o arguido há muito que tem conhecimento da fase de instrução, pois inclusive requereu a sua própria audição para efeitos de reexame da medida de coação, foi ouvido pelo Tribunal no pretérito dia 24.06.2021 e foram, quer o arguido quer a sua Il. Advogada, informados que se mostrava pendente a instrução e que o reexame da medida de coação seria decidido em conjunto com a decisão proferida no dia de hoje.

Carece assim de qualquer fundamento a alegação efectuada, não sendo sequer a mesma oportuna, pelo que se expôs, indeferindo-se a arguição da nulidade/irregularidade efectuada».

III- Apreciação do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação (cfr. art. 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do C.P.Penal).

Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Da qualificação jurídica dos factos;

2ª- Dos perigos de fuga, de perturbação da instrução do processo da ordem e da tranquilidade pública e do perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido de que este continue a atividade criminosa.

3ª- Do vício na nulidade/irregularidade processual.

1ª- Da qualificação jurídica dos factos.

O arguido alega que o circunstancialismo descrito na acusação pública, por insuficiente concretização espácio-temporal e identificação dos respetivos consumidores não permite a subsunção da conduta do arguido à prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artº 21º nº 1 do Dl 15/93 de 22-1, mas sim do artº 25º do DL 15/93 de 22-1.

Cumpre decidir.

Estabelece o artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro: “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40°, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas 1 a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos.

Por sua vez, estabelece o artigo 25º, al. a), do mesmo diploma legal: “se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.

Este crime distingue-se do crime base previsto no artº 21º, apenas através da diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe que seja considerável, indicando como fatores aferidores da menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

A aferição de qualquer situação de tráfico no sentido de saber se se deve ou não qualificar como de menor gravidade não pode prescindir de uma análise de todas as circunstâncias objetivas que em concreto se revelem e sejam suscetíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito.

Assim, como se refere no Acórdão do STJ de 20-12-2006, proferido no procº nº 06P3059, consultável em www.dgsi.pt “para além das circunstâncias atinentes aos factores de aferição da ilicitude indicados no artº 25º do Dl nº 15/93, já antes referidos, há que ter em conta as demais circunstâncias suscetíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que se traduzam numa menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico), àquele tipo privilegiado, como vem defendendo o Supremo Tribunal, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir os casos de tráfico de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo do crime -tipo , o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência (ausência) daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e actividades contemplados no crime-tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para a integração da norma que prevê e pune o crime-tipo”.

Tecidos estes considerandos, analisemos a situação concreta.

Os factos estão devidamente concretizados no espaço e no tempo, com a identificação de alguns dos consumidores, bem como os atos de venda a que o arguido procedeu.

É certo que, não estão identificados alguns dos consumidores que adquiriram estupefacientes ao arguido, mas tal decorre dos meios de prova, através dos quais se apuraram tais factos, nomeadamente através das interceções telefónicas e das vigilâncias efetuadas, e tal facto não é motivo para imputar ao arguido um crime de tráfico de menor gravidade.

O crime de tráfico de menor gravidade pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída, tendo em conta os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, o que não se verifica no caso concreto tendo em conta a elevada quantidade de atos de venda de estupefacientes levada a cabo pelo arguido, a variedade de produto estupefaciente vendido, canábis, cocaína e heroína, as quantidades que detinha consigo no dia 20 de Outubro de 2020 ( 9,33 gramas de Canabis e a quantia monetária de €2.355,00 na sua residência sita na Rua …, em …, e heroína com o peso bruto de 6,36 gramas, Canabis com o peso bruto de 35,09 gramas e cocaína com o peso bruto de 39,93 gramas, 45 comprimidos de um produto (de corte) indeterminado e duas balanças digitais no interior da sua residência sita na Rua …, em … e no seu veículo automóvel detinha 0,6 gramas de cocaína) e o facto de fazer modo de vida da atividade do tráfico.

Por outro lado, por decisão de 21 de Outubro de 2020, após o primeiro interrogatório judicial foi imputado ao arguido um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artº 21º nº 1 do Dl nº 15/893 , de 22-1 e foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva, que foi mantida no despacho de 28 de Junho de 2021, proferido após a pronúncia, objeto de recurso, não tendo entretanto surgido após aquele despacho quaisquer factos ou circunstâncias que infirmem os indícios do indiciado crime.

Assim sendo, não nos merece reparo o fato do Mmo Juiz de instrução ter considerado que está fortemente indiciado o crime previsto no artº 21º nº 1 do DL 15793 de 22-1.

2ª- Dos perigos de fuga, de perturbação da instrução do processo da ordem e da tranquilidade pública, do perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido de que este continue a atividade criminosa.

O recorrente alega que inexistem os perigos mencionados previstos no art. 204º als. a) a c) do CPPenal para aplicação da medida de coação de prisão preventiva, já que é um indivíduo social, pessoal e profissionalmente inserido. Um homem trabalhador, com responsabilidades assumidas, estimado, querido e respeitado por todos. Trabalhador assíduo e apontado como exemplo. Vive com uma companheira. Tem apoio total da família que o entende e acompanha. Tem total apoio dos colegas de trabalho e amigos que o estimam, consideram e admiram.

Conclui, assim que a prisão preventiva deve ser substituída pala apresentação semanal no posto de polícia mais próximo da área de residência, ou mediante a Obrigação de permanência na habitação.

O arguido CL foi submetido a 1º interrogatório que se iniciou em 21-10-2020 e por despacho proferido no dia seguinte foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva, por haver fortes indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21º nº 1 do DL nº 15/94 de 22-1, por se verificarem os perigos previstos no artº 204º, als. a) a c) e por outras medidas se mostrarem inadequadas e insuficientes.

A medida de coação aplicada ao arguido tem sido mantida ao longo do processo nos termos do artº 213º do CPPenal, o que também aconteceu com o despacho objeto do recurso proferido aquando da pronúncia.

Ora, mantêm-se os indícios do crime que lhe foi assacado, como já referimos, na questão nº 1, bem como os perigos que se pretendem ver acautelados.

Na verdade, o arguido e outros dois constituem o núcleo da investigação e o centro das trocas de produto estupefaciente, procurando constantemente executar trocas e encontrar fornecedores.

Por outro lado, e como consta do despacho inicial, o arguido “ não tem atividade declarada, o que implica um efetivo recrudescimento do perigo de continuação da atividade criminosa, pois a única renumeração que adquire é a que lhe provém da a atividade ilícita”, além de que faz modo de vida da atividade de tráfico, procurando assim obter lucros de uma forma fácil e sem grande esforço, pelo que caso seja restituído à liberdade há perigo de que continue a dedicar-se a tal atividade.

Quanto ao perigo de fuga, da deficiente integração social do arguido da gravidade dos factos e da pena que corresponde ao crime resulta fundado receio de que o arguido se subtraia à ação da justiça.

Relativamente ao perigo de perturbação da instrução do processo, da ordem e da tranquilidade pública, dada a natureza do crime as testemunhas são vulneráveis e sempre permeáveis à intimidação face até à necessidade que eventualmente continuarão a ter de obtenção de estupefaciente, o que, bem sabem, é sempre dificultado a alguém conhecido por delator. Entendemos por isso que, relativamente a este arguido, pelo menos nesta fase concreta em que são fortes tais perigos nomeadamente de perturbação do processo, apenas a privação da liberdade ou seja, a prisão preventiva e a proibição de contactos com os demais arguidos, poderão evitá-los.

Há que ter também em conta que os factos eram praticados um pouco por toda a cidade de …, alguns em locais públicos, e em plena luz do dia o que é apto a gerar receio na comunidade

Considerando que há fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes, a que corresponde a pena de 4 a 12 anos de prisão, que se verificam os perigos acima mencionados, em observância aos princípios da excepcionalidade, da subsidariedade da aplicação da prisão preventiva afigura-se-nos que esta é a única medida adequada, isto é, idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e proporcional ao caso concreto, pelo que se mantém a prisão preventiva do arguido.

Por fim importa ter em consideração que as medidas de coação estão sujeita à condição «rebus sic stantibus» de acordo com a qual as medidas devem ser revistas logo que se apresentarem circunstâncias que o justifiquem (cf. Figueiredo Dias, D.P.P., fls 410, conforme foi sufragado em Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ nº 3/96 publicado no DR I-A em 14-03-1996. Assim, e de acordo com a jurisprudência a decisão que aplicar a medida, no caso a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável enquanto subsistirem os pressupostos que a determinaram, isto é, enquanto não houver alterações das circunstâncias que fundamentaram a decisão que a impôs.

O tribunal pode, a qualquer momento, a requerimento ou não, substituir as medidas de coação fixadas por outras menos gravosas, desde que se verifique uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, mas se nada surgir que demonstre a sua insubsistência, ou que seja suscetível de as atenuar, a medida subsistirá é o que resulta do artº 212º nº 3 do CPPenal.

Como se diz no Ac. TRG de 10-09-2012, Proc. 48/12.2GAVNF-B.G1, disponível em www.dgsi.pt, «a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira e a segunda decisão. O juiz não pode, sem alteração dos dados, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogá-lo. Também, inversamente, por maioria de razão, não pode “aperfeiçoá-lo”, acrescentando-lhe fundamentos que antes foram omitidos.»

No caso concreto, após o despacho inicial que aplicou a prisão preventiva, por ser a única medida adequada, isto é, idónea para satisfazer as necessidades cautelares e proporcional à gravidade do crime não surgiram, nem foram alegados quaisquer factos ou circunstâncias supervenientes, que infirmassem a existência do crime indiciado ou que diminuíssem as necessidades cautelares, e por isso ao proferir a decisão recorrida, o Mmo Juiz mais não fez do aplicar a lei, que é de manter.

3ª- Do vício da nulidade/irregularidade processual.

O arguido vem alegar que não foi notificado para estar presente nas sessões realizadas no âmbito da instrução, o que em seu entender, configura o vício da nulidade previsto no artº 119º, al. c) do CPP com as consequências previstas no artº 122º do CPPenal, ou se assim não se entender sempre e prevista no artº 123º do CPPenal.

Dispõe o artº 118º do CPPenal:

“1- A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.

2- Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto é irregular”.

Por sua vez, dispõe o artº 123º do CPPenal que no seu nº 1 estabelece que “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

Nos presentes autos foi deduzida acusação contra oito arguidos, entre os quais REM, ERC e CRAL, em que lhes foi imputado em autoria material um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artº 21º nº 1 do DL nº 15/93, de 22-1.

Nos termos do artº 287º do CPPenal apenas requereram a instrução os arguidos RM e EC.

Foi declarada a abertura da instrução, por despacho de 25 de Maio de 2021 e como não foi requerida qualquer diligência nem o tribunal vislumbrou a necessidade de a realizar foi designado dia para o debate instrutório.

Dispõe o artº 297º nº 3 do CPPenal: « A designação de data para o debate instrutório é notificada ao Ministério Público, ao arguido e ao assistente pelo menos cinco dias antes de aquele ter lugar. Em caso de conexão de processos nos termos das alíneas c), d), e e) do nº 1 do artº 24º, a designação de data para o debate instrutório é notificada aos arguidos que não tenham requerido em instrução».

Ora, o arguido CL foi acusado em autoria material do crime de tráfico de estupefacientes, não requereu a instrução e a factualidade descrita na acusação não integra qualquer das situações previstas no artº 24º alíneas c), d) e e) do CPPenal

Assim sendo, o arguido CL não tinha que ser notificado para a realização do debate instrutório, como pretende fazer crer.

A lei não exige a presença do arguido ou da sua defensora no debate instrutório, pelo que carece de razão o arguido ao invocar a nulidade ou irregularidade, por não ter sido notificado para tal ato.

IV- Decisão

Termos em que se nega provimento ao recurso interposto pelo arguido CRAL e se mantêm as decisões recorridas.

Custas pelo arguido com taxa de justiça que fixamos em 3Ucs.

Notifique.

Évora, 12 de outubro de 2021

(texto elaborado e revisto pelo relator)

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno