CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
OPC COMPETENTE
MEDIDAS CAUTELARES
CONVERSA INFORMAL
Sumário

I - Para se poderem equacionar as consequências processuais desvaliosas mencionadas na conclusão de recurso (nulidade) para a decisão subsequente sobre as medidas de coacção, deve estar inequivocamente estabelecido um nexo relacional e causal entre o conteúdo da “conversa informal” com um suspeito / arguido e o teor do respectivo depoimento, ou seja, que se leve expressamente em consideração tal depoimento.
II – Se estivermos perante um fortemente indiciado crime de tráfico de estupefacientes, já caracterizado por um grau considerável de complexidade logística, traduzida na alocação de diversos meios materiais e humanos, que exigem uma disponibilidade financeira e um conhecimento aprofundado do meio criminal atinente, quer a jusante (contactos com os traficantes menores e consumidores), quer a montante (contactos, neste caso internacionais, com os fornecedores “grossistas” da droga), estas características concretas tornam muito provável a materialização de interferências na investigação, com a inerente dissipação / ocultação de materiais probatórios, a que acresce a existência de um suspeito não identificado, que, como se afirma na decisão recorrida, sempre poderia, caso o recorrente ficasse em liberdade, com ele comunicar / interagir, colocando em causa o normal decurso do inquérito.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos autos de inquérito n.º 29/21.5PESXL o Exm.º Sr. Juiz de Instrução Criminal do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal (J1) do TJ da Comarca de Setúbal proferiu despacho que determinou a aplicação a HTSD da medida de coacção de prisão preventiva, após 1.º interrogatório de arguido detido, tendo este interposto recurso de tal despacho, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“A. O Douto despacho recorrido não poderá subsistir na ordem jurídica, sobretudo por ter valorado provas absolutamente proibidas, obtidas através de “conversas informais” com os Arguidos, o que inquina as declarações dos arguidos prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial (“efeito à distância”).

B. Os meios de prova foram obtidos por Órgão de Polícia Criminal (“OPC”) absolutamente incompetente para a investigação do crime objeto destes autos, nem tais provas se poderá “salvar” com recurso às medidas cautelares e de polícia, na medida em que a PSP após obter a notícia do crime (denúncia anónima) teve mais do que tempo (12horas!) para preparar uma ação destinada a deter os arguidos, mas nesse período de tempo não foi capaz de fazer o que realmente podia e devia que era comunicar essa notícia à Polícia Judiciária, o que inevitavelmente afasta o pressuposto básico Com necessidade e urgência, inexistindo circunstancialismo que exigisse uma intervenção pronta e rápida da PSP, nem nem há nos autos – o que seria admissível – qualquer despacho da autoridade judiciária competente (Ministério Público) a delegar competências na PSP, nos termos dos artigos 9.º, n.º 2 e 55º, ambos do CPP.

C. Acresce que o despacho recorrido, com o devido respeito, não indicia os factos (fortes) subsumíveis ao tipo penal imputado ao Arguido. Dito de outro modo, os factos alegadamente indiciários (objetivos e subjetivos) não integram qualquer crime

D. Os fundamentos que determinaram a prisão preventiva não têm o mínimo de correspondência à matéria indiciária, não passando de argumentos vagos e genéricos, que necessariamente não podem vingar.

ÂMBITO MATERIAL DO RECURSO

E. Com efeito, o Recorrente impugna a decisão recorrida, por ter valorado meios de prova proibidos, em razão de terem sido obtidos por OPC incompetente para investigar o crime objeto dos presentes autos como, ademais, inexiste qualquer circunstancialismo que impusesse uma intervenção pronta e rápida da PSP; valorou matéria de facto obtida com recurso a métodos proibidos de prova (“conversas informais”); ausência de matéria indiciária subsumível ao tipo penal imputado ao Recorrente e, finalmente, não há indícios suscetíveis de serem enquadrados nos fundamentos invocados para aplicação da prisão preventiva (perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação do inquérito e perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas),o que constitui violação, entre outras, das normas ínsitas nos artigos 27.º e 32.º, n.ºs 1, 2 e 8, ambos CRP, 14.º e 26.º, ambos do CP e 58.º, 59.º, 127.º, 129.º, 191.º, 193.º, 202.º, 204.º, alíneas b) e c), 248.º, 249.º, 250.º e 356.º, n.º 6 , todos do CPP, artigos 5.º, 6.º e 7.º, n.º 3, alínea i), todos da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, com a redação conferida pela Lei n.º 57/2015, de 23 de junho e artigos 21.º, n.º 1, 57.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01.

DA PRISÃO PREVENTIVA

(1) Condições gerais

F. A prisão preventiva é uma medida de coação que sendo meio processual penal limitador da liberdade pessoal, de natureza meramente cautelar, é aplicável aos arguidos sobre os quais recaiam fortes indícios da prática de um crime, mas que não deve ser confundida com as penas e, contrariamente ao que se sustenta no douto despacho recorrido, o que se aplicou, verdadeiramente, ao Recorrente foi uma pena, desde logo por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação da prisão preventiva.

G. Os pressupostos gerais das medidas de coação são reconduzíveis às categorias tradicionais do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, as quais não se verificam.

[(2) Condições específicas]

H. O Tribunal a quo sufraga a existência de fortes indícios da prática pelo Recorrente, em coautoria, do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22/01, bem como o risco de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e ainda o perigo de perturbação do decurso do inquérito, os quais não se verificam.

[2. A) DOS FORTES INDÍCIOS]

I. A noção de «fortes indícios», inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é, não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma medida tão gravosa como esta em relação a alguém que pode estar inocente, resultando da Lei Fundamental, mormente do seu artigo 27.º, que qualquer cidadão só poderá ser sujeito à medida de coação de prisão preventiva se existirem provas sérias (válidas) de prática dolosa de, pelo menos, um crime grave, isto é, a factualidade imputada terá de se subsumir ao tipo objetivo e subjetivo do tipo penal, in casu, de tráfico de estupefacientes. Assim,

[2. A. I. NULIDADE INSANÁVEL: INCOMPETÊNCIA DA PSP]

J. A Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, com a redação conferida pela Lei n.º 57/2015, de 23 de junho, aprovou no ordenamento jurídico português o regime da organização da investigação criminal (“LOIC”), estando cometida a direção da investigação à autoridade judiciária competente em cada fase do processo, que é assistida pelos órgãos de polícia criminal os quais atuam no processo sob direção e na dependência funcional daquela, sendo o Ministério Público por excelência o órgão do Estado que detém o monopólio do exercício da ação penal, e o processo penal tem de ser promovido pelo MP nos termos em que a Constituição (art.º 219.º da CRP) e a lei (art.º 48.º do CPP) determinam.

K. O CPP não diferencia, para efeitos de investigação criminal, os OPC, mas a LOIC faz clara e inequivocamente essa distinção, por via dos seus artigos 6.º e 7.º, n.º 3, alínea i), estando inequivocamente reservado à Polícia Judiciária a competência exclusiva para a investigação de crimes de catálogo, nos termos previstos na LOIC, mormente o tipo penal em investigação nestes autos (artigos 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro).

L. Acresce que o próprio DL n.º 15/93, de 22/01, por via do seu artigo 57.º, n.º 1, estatui que se presume deferida à Polícia Judiciária, através da Direcção Central de Investigação do tráfico de estupefacientes, a competência para a investigação do crime tipificado no artigo 21.º do citado DL, sendo residual a competência da GNR e PSP, prevista apenas para situações de distribuição direta a consumidores, o que não vem indiciado nestes autos (cf. art. 57.º, n.º 2, alínea a)), nem tão pouco está em causa a prática de atos pela PSP legitimados por decisão do Ministério Público, que seriam, em princípio, válidos à luz dos artigos 9.º, n.º 2 e 55º, ambos do CPP, que autoriza a delegação de diligências em qualquer OPC, sem distinção, nem está em causa atos de natureza cautelar e urgente.

M. Destarte, tendo os atos sob escrutínio sido levados a cabo por OPC incompetente em razão da matéria, antes da abertura de inquérito, as revistas e detenções são nulas, não podendo a prova obtida com tais medidas ser utilizada, de acordo com os artigos 119.º, alíneas b) e e) e 122.º, ambos do CPP.

N. A iniciativa própria dos OPC surge na sequência da notícia do crime, isto é, a partir do momento em que tenham conhecimento da ocorrência de um crime devem, ainda antes de comunicarem à autoridade judiciária competente, executar as medidas cautelares e de polícia que se impuserem, fundando-se assim no periculum in mora. Com efeito,

[2. A.II. ENQUADRAMENTO DAS MEDIDAS DE CAUTELAR E DE POLÍCIA]

O. As medidas cautelares e de polícia devem obedecer ao princípio da tipicidade (ou numerus clausus), i.e. só podem ser levadas a cabo no campo de atuação por iniciativa própria dos OPC, que se encontrem previstas na lei processual penal, e servem para assegurar os meios de prova, sendo que esta competência, precisamente por ter um carácter de garantia, é excecional pois, por regra, os OPC atuam por encargo da Autoridade Judiciária.

P. De harmonia com o artigo 248.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, os OPC que tiverem notícia de um crime, por conhecimento próprio ou mediante denúncia, ainda que manifestamente infundada: (i) Transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo; (ii) Que não pode exceder 10 dias; e em caso de urgência, determina o n.º 3 do citado art. 248.º que essa transmissão possa ser feita por qualquer meio de comunicação para o efeito disponível.

Q. Sem prejuízo do dever de comunicação "no mais curto prazo", o OPC pode proceder a atos cautelares necessários e urgentes "para assegurar os meios de prova", constituindo uma competência cautelar própria, mesmo antes de instaurado o inquérito, todavia essa competência própria dos OPC obedece a dois vetores principais: 1 — Os atos cautelares e de polícia integram-se nas finalidades do processo penal, agindo as entidades policiais em substituição precária da autoridade judiciária; 2 — Os atos cautelares e de polícia dependem dos pressupostos de necessidade e de urgência, isto é, de um circunstancialismo que exige uma intervenção pronta da entidade policial, sendo globalmente norteados por um princípio de eficácia que justifica que atuem sem prévia solicitação da autoridade judiciária, o que apenas pode ocorrer dentro de rigorosos pressupostos legais.

R. Ora, os actos levados a cabo pela PSP, salvo melhor e douta opinião, não revestem a natureza cautelar, por inexistência dos seus pressupostos básicos, a necessidade e urgência, exigindo antes o circunstancialismo do caso concreto que esse OPC informasse a Polícia Judiciária da notícia do alegado crime, ou em alternativa, comunicasse ao MP para, querendo, determinasse a prática dos aludidos atos.

S. Destarte, tendo os atos sob escrutínio sido levados a cabo pela PSP, que não se inserem no quadro das medidas cautelares, por ausência dos seus requisitos legais (urgência e necessidade) antes da abertura de inquérito, mormente as revistas e detenções são atos nulos, por violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1 da LOIC, 249.º do CPP, nem se verifica qualquer despacho do MP, nos termos dos artigos 9.º, n.º 2 e 55.º, ambos do mesmo Código, nulidade que desde já se invoca, não podendo a prova obtida com tais medidas serem utilizadas, de acordo com os artigos 119.º, alíneas b) e e) e 122.º, ambos do CPP.

[2. A. III. PROIBIÇÃO DE PROVA: “CONVERSAS INFORMAIS” E EFEITO À DISTÂNCIA]

T. No auto de notícia por detenção a fls. 3, consta matéria de facto que, alegadamente, envolvem o Recorrente no crime em investigação nestes autos, todavia aquela que se afigura como válida e constitui a perceção dos OPC, com os efeitos dos arts. 363.º, n.º 2, do Código Civil, e 169.º deste Código, é meramente circunstancial.

U. O Recorrente tinha na sua posse dinheiro (que não é proibido!) e cerca de 10g de canábis (supostamente) que serviria para o seu consumo, e a sua alegada participação no “plano” de compra e transporte de estupefaciente resulta clara e inequivocamente de uma “conversa informal” (absolutamente proibida) havida entre o OPC e o co-arguido GM, constando essa referência de forma cristalina na página 5 do aludido auto e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

V. Foi com base nesta “conversa informal” que o MP submete o Recorrente a primeiro interrogatório judicial e com ela foi confrontado – em claro atropelo às mais elementares regras processuais penais – e foi também com base nela que o Mm.º Juiz a quo o indiciou pela prática, enquanto coautor, do crime em investigação nestes autos, mas essa “estratégia” enveredada pela PSP, aparentemente acolhida pelo MP e, também, pelo Tribunal recorrido, é absolutamente ilegal, por constituir prova proibida, e, por inerência, o depoimento prestado em sede de primeiro interrogatório judicial por ser o “produto da árvore envenenada” (efeito-à-distância da prova proibida).

W. Aliás todo o interrogatório judicial dos arguidos foi conduzido com base nessa prova proibida, na medida em que o Juiz, em cumprimento das alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 141.º do CPP, informa o arguido dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, não havendo dúvidas que a “conversa informal” foi preponderante, se não mesmo condição sine qua non dos depoimentos dos arguidos.

X. Resulta de forma cristalina do auto de notícia que o OPC não observou, nem presenciou qualquer dos factos que alegadamente implicam o Recorrente na prática do crime, sendo antes a tal “conversa informal” que o envolvem no putativo “plano”.

Y. Com efeito, as “conversas informais” dos suspeitos, ainda não arguidos, ou mesmo após terem sido constituídos nessa qualidade, quer ocorram antes quer depois da abertura do inquérito, são desprovidas de valor probatório, não podendo ser usadas como meio de prova, ao usá-las com tal fim, violaria flagrantemente o estatuto do arguido só fala se quiser e quando quiser. (cf. Artigos 129.º e 356.º, n.º 7, ambos do CPP), sendo esta e interpretação mais conforme às garantias de defesa do arguido no processo criminal, consagradas no art.º 32.° da CRP.

Z. Uma vez que o legislador pretende instituir a exclusividade de produção (realização) do meio de prova “declarações do arguido” através de uma forma vinculada, taxativa, típica, prevista ao pormenor nos artigos 140 a 144º do CPP, com o nome “interrogatório de arguido”, com exclusão de qualquer outra forma, querendo ainda evitar que as forças policiais consigam introduzir em audiência de julgamento (ou interrogatórios judiciais) um elemento de prova cujo cumprimento normativo é inexistente e, consequentemente, cuja falta de fiabilidade é patente e potenciadora da violação de direitos do cidadão.

AA. Donde, as “conversas informais” são uma informalidade afrontosa, fraudulenta, que permite a violação desses direitos que se pretendem acautelar e surgem nos processos como forma de tornear a previsão dos artigos 140 a 144º e 356º e 357º do CPP, ou seja, constituem uma forma de tornear direitos e, assim, negá-los, em nome de uma suposta verdade “descoberta” pelo investigador policial que, dessa forma, pretende determinar o resultado do julgamento. São, portanto, um expediente de má polícia. Um abuso. Uma fraude à lei e ao Direito. E incumbe a qualquer tribunal impedir essa fraude ao Direito.

BB. Daí que as “conversas informais” sejam habitualmente, com pouca ambição, consideradas prova nula, não apreciável em sede de livre apreciação e vedada como base motivacional de facto. Em nossa opinião devem ser mais (pelo que se acaba de dizer em sede de “tipicidade de interrogatório” de arguido), conduzindo à inexistência do meio de prova declarações de arguido, se estas surgirem através de uma “conversa informal”.

CC. Mutatis mutandis, o regime acabo de traçar, que proíbe o testemunho de OPC em sede de audiência de julgamento, vale para todo e qualquer ato processual, isto é, a proibição de reprodução de afirmações do arguido tem um conteúdo amplo que exclui todas as situações de declaração formal, ou informal, devendo ser pura e simplesmente expurgadas de consideração e só podem ter valor probatório se transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova, em obediência ao princípio da legalidade.

DD. Não há volta a dar. A “conversa informal” vertida no auto de notícia por detenção não pode ser usada – que constitui o único elemento que implica o Recorrente -, extraindo-se como elemento adicional o regime do artº 250.º do CPP, a favor da não admissão das ditas “conversas informais” entre OPC e suspeitos ou arguidos, e, para além delas, mesmo a respeito de autos (de ocorrência) que venham a ser lavrados ou relatórios elaborados nos termos do artº 253º, onde porventura se incluam referências à confissão do arguido.

EE. Decorrendo do n.º 8 do citado artigo 250º que os OPC podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artº 59º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária, e estando esta norma inserida numa disposição que vai dirigida para a actuação dos OPC em lugares públicos, onde se contactam pessoas por fundada suspeita de envolvimento na prática de crimes - em flagrante, quase flagrante, como será a regra - ou em permanência irregular no território nacional ou por existência de mandado de detenção contra as mesmas. Tal actuação é determinada pela urgência da situação, destinada à descoberta e à conservação de meios de prova, mas quanto à recolha de informações úteis relativas ao crime, logo se ressalva, em relação ao suspeito, o disposto no artº 59º. Ou seja, no momento em que surja fundada suspeita de que a “fonte de informação” pode coincidir com o arguido de um crime, o agente de órgão de polícia criminal suspende de imediato o acto de pedido de informações, sob pena de tais declarações não poderem ser usadas contra ela - n.º 3 do artº 59º e n.º 4 do artº 58º.

FF. Consequentemente, deverá declarar-se como proibida as “conversas informais” com os arguidos, em particular com o Arguido GM, plasmadas no auto de notícia por detenção, por violação do disposto nos artigos 1.º e 32.º, n.os 1 e 8, ambos da CRP, 57.º, 61.º, 127.º, 129.º, 250.º, n.º 8, 356.º, n.º 6, todos do CPP, não lhe podendo dar qualquer relevo probatório, e, por inerência, é a sentença nula, nos termos do disposto da alínea c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.

GG. Em resultado da proibição de prova, aplica-se o regime do efeito-à-distância, isto é, a violação de uma proibição de produção (recolha/obtenção) de prova reflete-se na recusa de valoração (utilização) da prova assim obtida e também na da prova consequencial, quer dizer, daquela que só por força da prova proibida foi alcançada (in casu, o depoimento dos arguidos prestada em sede de interrogatório judicial).

HH. Assim, inevitável é que as declarações prestadas pelos Arguidos em sede de primeiro interrogatório judicial, motivadas pela aludida prova proibida, não podem ser valoradas, por constituir o “fruto da árvore proibida”, proibição esta que deverá igualmente ser declarada.

[2. A. IV. TIPO OBJETIVO E SUBJETIVO DO CRIME TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES (AUSÊNCIA DE INDÍCIOS)]

II. A prisão por facto pelo qual a lei não permite abrange uma multiplicidade de situações, nomeadamente a não punibilidade dos factos imputados ao preso, e, neste contexto, são elementos típicos objetivos do tipo de crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º do DL n.º 15/93, de 22/01, (I) A verificação da prática não autorizada de qualquer das atividades descritas no normativo, (II) a não verificação de atividade de cultivo, aquisição ou detenção, com finalidade de consumo próprio exclusivo, nos termos previstos no art. 40.º, (III) a verificação da existência de plantas, substâncias ou preparações, compreendidas nas tabelas anexas I, II, III e IV (não nas tabelas V e VI, estas a punir pelo art. 25º).

JJ. Tais elementos típicos objetivos constituem o tipo base ou norma matriz, abrangendo um vastíssimo leque de atuações do agente, nas suas modalidades de ação, relativamente aos produtos constantes das tabelas I a IV e fora dos casos previstos no art. 40.º, isto é, sem ser para consumo pessoal exclusivo.

KK. Ora, resulta à saciedade que a decisão que determinou a prisão preventiva do Requerente, ou mesmo a douta promoção que a antecede, não se mostra alegado e indiciado que o Recorrente não estaria autorizado a exercer qualquer uma das atividades descritas no aludido artigo 21.º, nem que o produto apreendido diz respeito a qualquer uma das espécies previstas nas tabelas I a IV.

LL. Não podemos esquecer que a exigência legal para determinar a prisão preventiva é superior à dedução da acusação, que apenas exige “indícios suficientes”, ao passo que aquela implica “fortes indícios”, os quais não se verificam por omissão flagrante dos elementos típicos do crime ao abrigo do qual o Requerente está ilegalmente preso.

MM. Ademais, os factos indiciados também não são suscetíveis de integrar o tipo subjetivo do aludido crime, constando na decisão recorrida que: (i) Quiseram os arguidos transportar e ter em sua posse o estupefaciente que foi apreendido e que se destinava à venda a terceiros; (ii) os arguidos sabiam que a detenção e transacção de canábis, em qualquer uma das suas apresentações, a qualquer título, é proibida por lei e, ainda assim actuou do modo descrito.

NN. E o elemento subjetivo exigível para a incriminação pelo crime de tráfico, p. e p. pelo art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22/01, é o dolo genérico, ou seja, a vontade de desenvolver sem autorização legal e a representação e o conhecimento por parte do agente da natureza e características estupefacientes do produto objeto da ação e uma atuação deliberada, livre e consciente de ser proibida a sua conduta

OO. O dolo está legalmente definido, nas suas diversas modalidades, no art. 14.º do CP, comportando um elemento intelectual e um elemento volitivo, devendo a acusação pela prática de um crime doloso descrever obrigatoriamente, sob pena de nulidade, o conhecimento (ou representação/consciência em sentido psicológico) de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objeto do ilícito; e a intenção de realizar o facto (tratando-se de dolo direto), ou a previsão do resultado danoso como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

PP. Tudo isto vale para a acusação onde se exigem “indícios suficientes”, mutatis mutandis é aplicável à decisão que aplica a prisão preventiva onde se exige “fortes indícios”.

QQ. Ora, percorrida a decisão recorrida é patente a ausência de factualidade que evidencie a vontade de desenvolver sem autorização legal e a representação e o conhecimento por parte do agente da natureza e características estupefacientes do produto objeto da ação e uma atuação deliberada, livre e consciente de ser proibida a sua conduta.

RR. Sob outra perspetiva, pese embora a incompetência da PSP para praticar qualquer ato, antes da abertura do inquérito – o que invalida o teste rápido a fls. 40 e as fotografias de fls. 10 a 12, 42 a 46 -, ainda assim não se poderá dizer que o aludido teste é válido e que das fotografias existentes nos autos se possa inferir (por presunção) que no interior de cada uma caixas visíveis estejam condicionados/embalados estupefacientes.

SS. Com efeito, o aludido teste não poderá, de forma alguma, formar a convicção de quem quer seja, desde logo, porque o Agente Principal, presumindo que realizou esse ato de acordo com a legis artis, não pode certificar que testou 20169,71 gramas (corresponde à quantidade apreendida ao arguido MG), uma vez que as fotografias de fls. 10 a 12, 42 a 46 demonstram tratar-se de meras caixas, com dinheiro e telemóveis à frente, não constando em lado algum a visualização de estupefaciente, ou pelo menos uma mera aparência que permitisse convencer, podendo até, no limite, conter outro tipo de produtos (e.g. telemóveis, dinheiro, tabaco, etc). Dito de outro modo, o agente não verificou o produto existente naquelas caixas!

TT. Assim, fazendo o despacho recorrido alusão ao transporte e apreensão de 20 kg de resina de canábis, o que não tem correspondência com os elementos de prova disponíveis, primeiro, o teste rápido a fls., diz que o produto é “Haxixe”, que não integram qualquer uma das tabelas I a III do DL n.º 15/93, de 22/01; segundo, pese embora a realização de uma pesagem, não é possível inferir, com base naquele teste e nas fotografias a fls. 10 a 12, 42 a 46, que as caixas em causa tenham acondicionados/embalados estupefacientes, pela singela razão de não ter sido verificado o seu conteúdo, podendo legitimamente presumir-se que tais caixas possam conter, no limite, outro tipo de produtos (e.g. telemóveis, dinheiro, tabaco, etc); terceiro, foi realizado por OPC incompetente; não resta senão determinar a revogação de tal despacho.

UU. Destarte, atenta a inexistência, sequer, de indícios que sustentem a imputação ao Recorrente, seja por ausência de factualidade subsumível aos tipos objetivo e subjetivo do crime em causa, seja por os elementos de prova recolhidos não permitirem, pelas razões apontadas, sustentar tal premissa, a decisão recorrida é nula, nos termos disposto na alínea a) do n.º 6 do art. 194.º do CPP, nulidade que desde já se invoca.

[2. B) DO PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO DECURSO DO INQUÉRITO]

VV. No douto despacho recorrido sustentou-se, além do mais, verificar-se o perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito, de acordo com artigo 204.º, alínea b) do CPP), cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido. Contudo, salvo o devido respeito, esta fundamentação não tem qualquer suporte na matéria indiciária, trata-se de mera especulação, do uso de fórmulas vagas desprovidas de qualquer suporte probatório, ainda que mínimo.

WW. Com efeito, o art. 204.º, n.º b) do CPP exige que o perigo seja avaliado em concreto, analisando-se a capacidade efectiva do arguido impedir ou perturbar a investigação e especialmente a recolha da prova ou a sua conservação ou genuinidade, assente em factos que indiciem essa capacidade de atuação, sendo ainda insuficiente a mera possibilidade de o arguido contactar testemunhas da defesa e/ou acusação, impondo-se que esse contacto seja acompanhado de ameaças, promessas ou outros factos idóneos a perverter o sentido da testemunha e quais as provas que o arguido, em liberdade, poderia impedir que viessem a ser recolhidas.

XX. Este normativo legal implica um exercício de prognose baseada em indícios, que permitam supor que o arguido poderá intervir ilicitamente no decurso do inquérito, os quais têm de assentar fundamentalmente na possibilidade que o arguido possa ter, de sabotar a investigação e alterar ilicitamente a aquisição processual da prova, havendo sempre que avaliar os poderes que o arguido dispõe, que lhe permitam atuar desse modo, ao que acresce a necessidade de indicação precisa das circunstâncias, objetivas e subjetivas, que tornam altamente provável “uma intervenção ‘inquinante’ sobre as fontes de prova.

YY. Dito isto, pese embora o Tribunal a quo sustente a verificação do perigo de perturbação do decurso do inquérito com a circunstância de «os arguidos, tendo agora conhecimento destes autos, poderão exercer represálias e coação sobre as eventuais testemunhas, e até uns contra os outros (nomeadamente com o indivíduo suspeito que ainda não foi possível identificar e trazer aos autos), em ordem a condicionar os depoimentos das mesmas. Entendemos que este perigo é real e efetivo, pois, para além do mais, os arguidos sempre poderão reatar contatos conotados com o tráfico de estupefacientes e, por essa forma, condicionar ou manipular eventuais depoimentos a prestar por vendedores ou compradores de produtos estupefaciente. Mais do que isso: os arguidos e o suspeito ainda não identificado (o tal F) poderão contatar entre si, contaminando a prova que ainda importa obter neste inquérito para o dotar de instrumentos e mecanismos probatórios suficientemente sólidos», inexiste qualquer facto que, objetiva e subjetivamente, tornem altamente provável a intervenção do Recorrente nos termos sustentados pelo Tribunal a quo, nem se poderá inferir os eventuais poderes do Arguido para atuar nos moldes descritos, também por ausência de qualquer ponderação concreta, pelo que não se verifica, pois, este requisito.

[2. C) DO PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA E DE PERTURBAÇÃO GRAVE DA ORDEM E TRANQUILIDADES PÚBLICAS]

ZZ. Sustenta ainda o despacho recorrido a verificação do perigo de continuação da atividade perigosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, de acordo com artigo 204.º, alínea c) do CPP), cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

AAA. Sucede que esta disposição legal impõe que o perigo se reporte à prática de crimes de natureza idêntica ao imputado no processo, devendo fundar-se num juízo muito rigoroso e preciso de plausibilidade de reiteração criminosa, apoiado nas circunstâncias do caso e na personalidade revelada pelo arguido.

BBB. Este perigo de continuação da actividade criminosa não se confunde, necessariamente, com a consumação de novos factos criminosos, devendo antes ser aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indicados e personalidade do arguido neles revelada, que permitam supor que poderá continuar a sua atividade ilícita, e que de outro modo estar-se-ia a aplicar ao arguido não uma medida de coação de natureza meramente cautelar, num concreto processo penal em curso, mas sim uma medida de segurança, que nem a lei substantiva permite a sua aplicação a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual atividade criminosa.

CCC. Avulta aqui como essencial a natureza e as circunstâncias em que o crime foi indiciariamente cometido, desde logo, se ele aparenta natureza fortuita, esporádica, cometido em situações irrepetíveis, ou se se trata de um crime suporte de uma atividade suscetível de se prolongar no tempo. Para tanto a análise ainda que sumária da personalidade do arguido é muito importante, designadamente se a mesma revela tendência criminógena ou não. Tal tendência pode ser avaliada, não só pelas circunstâncias do crime praticado, como também pelos antecedentes criminais do arguido, que sendo vastos e recentes, revelam seguramente indiferença pela lei e pela justiça. Também a inserção laboral do arguido, com existência de meios estabilizados de subsistência, são de ponderar, em contraponto com o apelo do tráfico de droga, que proporciona rendimentos fáceis e rápidos. Nos casos de bandos ou organizações criminosas ou até simples coautoria, é fundamental, ponderar o grau de intervenção, participação, liderança e convicções criminosas do arguido

DDD. Revertendo tais premissas ao caso dos presentes autos, consta na fundamentação da decisão recorrida, além do mais, que «sucede que, como ainda não foi possível apurar com clareza qual dos envolvidos assume o papel principal e ascendente na estrutura e na organização da viagem, não cabe ainda nesta sede diferenciar as medidas de coação a aplicar. Os factos são imputados aos três, sem diferenciação e, como tal, na falta de outros elementos nesta fase, também os perigos que urge acautelar no caso concreto se fazem sentir em idêntica medida aos três arguidos», a qual é clara e notoriamente inconstitucional, porquanto havendo dúvidas deverá prevalecer o princípio in dúbio pro reo e não o contrário, isto e, não se sabendo qual o papel de cada um, podendo passar desde o coautor ao mero cúmplice, a medida a aplicar deveria ser uma das menos gravosas, nem fez, como se lhe impunha, o exercício de análise sobre a personalidade do Recorrente.

EEE. Por outro lado, optou o Tribunal a quo por invocar matéria de facto que não está claramente indiciária para sustentar a verificação deste pressuposto, e tanto quanto se saiba a esta data não é possível estabelecer, como ali se sustentou, a existência de “avultada compensação monetária”, até porque, embora o Recorrente tivesse sido detido na posse de € 2.300,00, face ao alegado produto apreendo não é, diz-nos as regras da experiência, uma quantia de relevo, nem há factualidade que nos permita inferir que tal quantia esteja relacionada com o tráfico de estupefacientes.

FFF. Como inexiste factualidade indiciária que permita presumir que têm uma estrutura montada ou um expediente ligado ao tráfico, ou que tenham uma rede de vendedores e consumidores. Trata-se de assunções que manifestamente não resultam dos meios de prova existentes nos autos, constituindo antes matéria claramente especulativa.

GGG. Destarte, o tribunal recorrido ao fundamentar a aplicação da prisão preventiva com base no alegado perigo de continuação da atividade criminosa, violou o disposto nos art.ºs 32.º, n.º 2 da CRP, conjugado com o disposto nos artigos 192.º, 196.º e 204.º, alínea a), todos do CPP.

HHH. Em relação ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, deve resultar de circunstâncias concretas e particulares, verificadas e aferidas em concreto, não se confundindo com a convicção – seja ela mais ou menos justificada - de que, em abstracto, certo tipo de crimes –v.g. o tráfico de estupefacientes – justifica sempre ou pelo menos em regra a aplicação de uma medida de coação, maxime, a prisão preventiva, dado o seu carácter especialmente perigoso ou odioso. O perigo de perturbação da ordem pública, reporta-se ao fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, não bastando uma mera alteração da ordem, é necessário que essa alteração prejudique, cause dano à ordem pública, e há-de resultar de factos concretos capazes de mostrar que a libertação do arguido poderia causar danos à ordem e tranquilidade da sociedade em geral.

III. Dito de outro modo, considerar-se que existe perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas por causa da natureza do crime indiciado e da nocividade que o mesmo encerra pressupõe uma interpretação da alínea c) do artigo 204º que conflitua de uma forma clara com a presunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrada (artigo 32º, nº 2, da CRP) uma vez que atribui às medidas de coação em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o artigo 191º do CPP, e após as alterações da Lei 48/2007, de 29/08, ficou claro que na ponderação do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, enquanto requisito geral da aplicação de medida de coação, não se atende apenas à natureza e às circunstâncias do crime e à personalidade do arguido. É necessário que o arguido em concreto crie o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, exigindo-se agora igualmente que tal perigo seja grave, constituindo uma maior exigência face ao direito anterior.

JJJ. Finalmente, chama-se à liça a necessidade de uma análise, ainda que sumária, à personalidade do arguido, antecipando-se aqui uma atitude emocional de perturbação popular, suscetível de gerar um efeito negativo no meio envolvente, como sejam a revolta ou a intimidação, o que pode atentar contra a paz social.

KKK. Vertendo tais princípios ao caso sub judice, verifica-se que o Tribunal a quo colocou o assento tónico no alegado perigo de continuação da atividade criminosa, não tendo avançando um único fundamento, sustentado em indícios, que permitam atestar a existência deste perigo, mostrando-se ausente qualquer referência ao perigo “grave” da ordem e tranquilidades públicas, como inexiste qualquer resquício que permita concluir que o Recorrente em liberdade poderia efectivamente “perturbar”, isto é, alterar negativamente a ordem pública, causando dano.

LLL. Destarte, salvo douto e melhor entendimento, o Tribunal a quo ao fundamentar a aplicação da medida de coação prisão preventiva ao Recorrente com base no perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, que não se verificam, violou o disposto nos art.ºs 32.º, n.º 2 da CRP, conjugado com o disposto nos artigos 192.º, 196.º e 204.º, alínea a), todos do CPP.

MMM. Acresce a tudo isto que, como se refere no despacho recorrido, «sucede que, como ainda não foi ainda possível apurar com clareza qual dos envolvidos assume papel principal e ascendente na estrutura e na organização da viagem, não cabe ainda nesta sede diferenciar as medidas de coação a aplicar», e se dúvidas houvesse quanto a saber qual das medidas se mostra proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao Recorrente, a opção teria de recair eventualmente na obrigação de permanência na habitação, por força da subsidiariedade da prisão preventiva.

NNN. Assim, subsidiariamente, caso se verifique a existência de fortes indícios da prática do crime objeto destes autos, o que não se aceita nem concebe, deverá ser alterada a medida de coação para obrigação de permanência na habitação e, não desconhecendo que a jurisprudência no caso de crimes de tráfico assume uma posição tendencialmente negativa, cita-se o Aresto do Venerado Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 24/11/2020 (Proc. n.º 27/20.6GBALM-A.L1-5), que admite a aplicação de tal medida à modalidade de “transporte”, que é precisamente o caso dos presentes autos, desde já anuindo o Recorrente com a eventual aplicação de tal medida, com recurso a fiscalização de meios à distância.”

Termina pedindo:

“Nestes termos e nos melhores de direito, impetrando o sempre mui douto suprimento de Vossa Excelência, deverá ser julgado procedente o presente Recurso, devendo:

A) Revogar o despacho recorrido, por:

i. ter valorado provas proibidas (e.g., conversas informais, meios de prova obtidos por OPC incompetente em razão da matéria);

ii. os factos indiciários não se subsumirem ao tipo objetivo e subjetivo ao crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do DL n.º 15/93;

iii. não se encontrarem preenchidos os pressupostos específicos da medida de coação aplicada, mormente por ausência absoluta de factos que sustentem o perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito e, também, que sustentem o perigo de continuação da atividade criminosa ou que perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas;

B) Declarar a PSP como sendo o OPC incompetente para investigar o crime objeto destes autos, nos termos do disposto nos artigos 6.º e 7.º, n.º 3, alínea i), ambos da LOIC e artigo 57.º, n.º 1 e 2, alínea a), ambos do DL n.º 15/93, de 22/01, e, em consequência, declarando, por inerência, a nulidade dos atos por ela praticados (revistas e apreensões), de acordo com os artigos 119.º, alíneas b) e e) e 122.º, ambos do CPP.

C) Declarar que os actos levados a cabo pela PSP não se inserem no quadro das medidas cautelares, por ausência dos seus requisitos legais (urgência e necessidade) antes da abertura de inquérito, devendo tais atos (revistas e apreensões) ser declarados nulos, não podendo a prova obtida com tais medidas serem utilizadas, de acordo com os artigos 119.º, alíneas b) e e) e 122.º, ambos do CPP.

D) Declarar como proibidas as “conversas informais” encetadas pelo OPC com o arguido MG, exaradas no auto de notícia a fls. 3, expurgando do processo esse meio de prova, por violação do disposto artigos 1.º e 32.º, n.os 1 e 8, ambos da CRP, 57.º, 61.º, 127.º, 129.º, 250.º, n.º 8, 356.º, n.º 6, todos do CPP, não lhe podendo dar qualquer relevo probatório, e, por inerência, é a sentença nula, nos termos do disposto da alínea c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP declarando, ainda, como inválidas, por operar o efeito à distância daquela, as declarações prestadas pelos arguidos em sede de primeiro interrogatório judicial;

E) Deverá em todo o caso a presente Recurso ser julgado procedente, revogando o douto despacho recorrido, com a consequente revogação da medida de coação por ele aplicada, ordenando a imediata libertação do Arguido, HTSD, o qual deverá aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de termo de identidade e residência.

Subsidiariamente,

F) Deverá a medida de coação ser substituída pela medida de obrigação de permanência na habitação, sujeita à fiscalização, com recurso a meios técnicos à distância.”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“A) Nos termos do disposto nos Artº 7º, nº 3, alínea i) e 6º da Lei nº 49/2008 de 27 de Agosto a PSP é competente para a realização da investigação porquanto tomou conhecimento dos factos que lhe foram a si denunciados;

B) Ainda que assim não fosse, não existe norma que comine a nulidade dos actos praticados por órgão de polícia criminal a quem não foi delegada a investigação;

C) Os actos praticados pela PSP têm que se considerar abrangidos pelo Artº 249º do Código de Processo Penal porquanto teria sido impossível ao Ministério Público determinar a prática de qualquer acto em tempo útil para garantir a aquisição e integridade da prova;

D) A PSP actuou no âmbito da delegação genérica de competências pela Procuradoria-Geral da República operada no ponto IV.1 da Circular nº 6/2002;

E) As conversas informais havidas entre um dos arguidos e os agentes da PSP, embora mencionadas no auto de notícia não foram mencionadas em primeiro interrogatório judicial e não fundamentaram a decisão recorrida;

F) Uma vez que nos encontramos em fase de inquérito, não se exige prova cabal, mas sim indiciária, o que resulta de teste rápido de identificação da substância apreendida, sem necessidade de testar as 200 placas;

G) O teste realizado e as circunstâncias em que foram encontradas as 200 placas, conjugados com as regras da experiência comum são suficientes para considerar fortemente indiciado que todas são canábis, vulgarmente designadas como haxixe;

H) Os perigos previstos no Artº 204º do Código de Processo Penal, enquanto perigos que são, têm que ser necessariamente uma previsão assente em factos concretos que constam elencados na decisão recorrida embora de forma sucinta;”

Termina do seguinte modo:

“Face ao exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Factos imputados (tal como descritos pelo Ministério Público):

No dia 11 de Maio de 2021, o arguido DS, já depois de ter organizado uma viagem ao sul de …, concretamente … a fim de adquirir resina de canábis, contactou o arguido MG determinando-lhe que no dia seguinte o acompanharia.

No dia 12 de Maio de 2021, cerca das 8h.., os arguidos dirigiram-se às instalações da sociedade designada …, sitas na …, e alugaram dois automóveis.

Um dos automóveis tem a matrícula … e foi alugado ao arguido DS, tendo-lhe sido entregue às 9h40m com 157.800km.

O outro automóvel tem a matrícula … e foi alugado ao arguido MG, tendo-lhe sido entregue às 9h45m com 152.414km.

Os três arguidos, acompanhados de um quarto indivíduo que não foi possível identificar, já na posse dos automóveis, deslocaram-se para o ….

Desconhece-se qual o percurso exacto que fizeram, mas cerca das 11h40m passaram por uma ponte em … – a Ponte … – e pelas 13h49m os ocupantes do veículo com a matrícula … encontravam-se na área de serviço de …, na A…, tendo saído da A… em … pelas 13h24m.

Os arguidos deslocaram-se a …, concretamente à …, … onde adquiriam 20 kg de resina de canábis. O estupefaciente foi adquirido pelo arguido DS e colocado no automóvel com a matrícula …, conduzido pelo arguido MG.

Após os arguidos regressaram para a zona de … através da A… tendo o arguido M parado na área de serviço de …, pelas 20h14m. O dinheiro para pagar o combustível foi-lhe disponibilizado pelo arguido D através de MBWay.

Os arguidos seguiram em direcção a norte, mantendo uma distância de 8/10km entre ambos os veículos, sendo o caminho liderado pelos arguidos DF e HD, acompanhados do terceiro indivíduo não identificado. Seguiram na A… até ao nó com a A… para onde saíram, no sentido do ….

O veículo com a matrícula …, conduzido pelo arguido MG foi interceptado na zona da …, transportando na mala 200 placas de resina de canábis, com o peso total de 20.179,56g. o automóvel registava então 153.960 km, tendo por isso percorrido a distância de 746km.

O veículo com a matrícula …, conduzido por HD seguiu o seu caminho, parou na Avenida …, … e aí deixou ficar o indivíduo não identificado. Iniciou novamente viagem até à Praceta …, …, onde foi interceptado. O automóvel registava então 158.640 km, tendo por isso percorrido a distância de 840km.

HD tinha consigo €2255 em dinheiro e DF tinha consigo €200 em dinheiro.

Quiseram os arguidos transportar e ter em sua posse o estupefaciente que foi apreendido e que se destinava à venda a terceiros.

Os arguidos sabiam que a detenção e transacção de canábis, em qualquer uma das suas apresentações, a qualquer título, é proibida por lei e, ainda assim actuou do modo descrito.

*

Os factos resultam indiciados dos seguintes meios de prova:

a) Auto de notícia por detenção de fls. 3;

Autos de apreensão 14, 16, 18, 20, 22, 24 e 26;

c) Testes rápidos e termos de pesagem de fls. 40; d) Fotografias de fls. 10 a 12, 42 a 46; e

e) Documentos de fls. 47 a 51.

(…)

Seguidamente, o Mmº Juiz de Instrução Criminal proferiu o seguinte:

DESPACHO

Valida-se a detenção dos arguidos.

Indiciam fortemente os autos a prática pelos arguidos da factualidade elencada no despacho do Ministério Público que antecede – que se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais — suscetível de consubstanciar a prática pelos mesmos, em coautoria material, do seguinte crime: um crime de trafico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Tais indícios resultam dos elementos de prova carreados para os autos e melhor descritos nos autos, concretamente: Auto de notícia por detenção; Autos de apreensão; Teste rápido e termo de pesagem; Fotografias; e Documentos juntos aos autos.

Em sede deste primeiro interrogatório judicial, os arguidos prestaram declarações: apresentaram versões basicamente coincidentes (ainda que com divergências entre eles); os arguidos D e D colocaram o papel ascendente do “plano” num indivíduo que se pôs em fuga e que não foi possível identificar (um tal de F); já o arguido M diz ter sido convidado para aderir ao “plano” pelo arguido D. Seja como for, os arguidos reconhecem genericamente os factos imputados, ainda que não se percecione bem o papel e a posição de cada um deles na estrutura.

Face ao exposto, considerando os meios de prova carreados para os autos, conjugados e devidamente articulados entre si, e com apelo às regras da experiência comum e da lógica, não pode deixar de entender o Tribunal que os arguidos estão fortemente indiciados da prática dos factos em causa.

De tais factos retira-se que a atividade de tráfico de estupefacientes levada a cabo pelos arguidos assenta numa estrutura montada suficientemente organizada, para além de se tratarem de factos graves e de intensidade elevada.

**

As medidas de coação e de garantia patrimonial são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos, pelo que assumem natureza excecional e estão taxativamente previstas na lei – princípio da legalidade (artigo 191.º do CPP)

Ainda assim, a aplicação de qualquer medida de coação dependerá da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 58.º, da pessoa que dela for objeto, e, por outro lado, nenhuma medida de coação ou de garantia patrimonial é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal – artigo 192.º, n.º 1 e 6 do CPP.

Seja como for, as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas – artigo 193.º, n.º 1, do CPP.

Deste modo, apenas se justifica a aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial em função das exigências processuais de natureza cautelar concretamente sentidas, pelo que a aplicação de medidas de coação a aplicar em concreto é precedida de um juízo de prognose orientado pelos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. Em virtude disso, deve ser aplicada a medida de coação que satisfaça as exigências cautelares do caso concreto, e na medida em que outra medida de coação menos gravosa não satisfaça as referidas exigências.

De facto, o artigo 193.º do CPP, dando tradução ao princípio constitucional previsto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, consagra os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas coativas, em atenção às exigências cautelares que o caso requer e à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

Por outro lado, a lei processual penal concede às medidas de coação privativas da liberdade estatuto de excecionalidade, de subsidiariedade e mesmo de ultima ratio, esclarecendo o n.º 2 do artigo 193.º do CPP que a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas e insuficientes as outras medidas de coação. Ademais, quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade, deve o Tribunal dar preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares – artigo 193.º, n.º 3, do CPP.

Quanto às condições de aplicação das medidas, à exceção do Termo de Identidade e Residência, nenhuma medida de coação pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar, no momento da respetiva aplicação, pelo menos um dos requisitos gerais referidos no artigo 204.º do Código de Processo Penal, a saber:

1. Fuga ou perigo de fuga;

2. Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

3. Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Tais perigos que ora nos referimos têm de ser verificar, em concreto e em termos efetivos, no caso em apreço.

**

Impõe-se apreciar as exigências cautelares do caso concreto e eventual aplicação de medida de coação aos arguidos.

Quanto ao perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito (artigo 204.º, alínea), b) do CPP) – os arguidos, tendo agora conhecimento destes autos, poderão exercer represálias e coação sobre as eventuais testemunhas, e até uns contra os outros (nomeadamente com o indivíduo suspeito que ainda não foi possível identificar e trazer aos autos), em ordem a condicionar os depoimentos das mesmas. Entendemos que este perigo é real e efetivo, pois, para além do mais, os arguidos sempre poderão reatar contatos conotados com o tráfico de estupefacientes e, por essa forma, condicionar ou manipular eventuais depoimentos a prestar por vendedores ou compradores de produtos estupefaciente. Mais do que isso: os arguidos e o suspeito ainda não identificado (o tal F) poderão contatar entre si, contaminando a prova que ainda importa obter neste inquérito para o dotar de instrumentos e mecanismos probatórios suficientemente sólidos.

Quanto ao perigo de continuação da atividade perigosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (artigo 204.º, alínea), c) do CPP) - Os factos imputados aos arguidos são de elevada gravidade e a natureza e atitude desresponsabilizante dos arguidos não podem deixar de, neste contexto, suscitar os mais elevados receios de continuação atividade criminosa por parte dos arguidos. Não obstante os arguidos não terem antecedentes criminais dignos de relevo, a verdade é que se tratam de pessoas adultas, pelo que seria de exigir relativamente aos mesmos um nível superior de maturidade e de responsabilidade. Face à gravidade e intensidade dos factos em questão, o perigo de continuação da atividade criminosa é real. Na verdade, os arguidos terão contactos ligados ao tráfico de estupefacientes (têm acesso a produto estupefaciente, conhecem fornecedores e os seus clientes, e toda uma rede de vendedores e consumidores; de resto, os próprios arguidos disseram ser consumidores de estupefaciente), pelo que poderão cair de novo na tentação de obter dinheiro forma fácil, até pela reincidência típica deste tipo de atividade. Os arguidos são pessoas desempregadas ou com empregos precários, o que permite crer que os arguidos poderão com facilidade recorrer de novo ao tráfico de estupefacientes, como forma de auferir quantias monetárias avultadas, de forma fácil e célere. Acresce resultar dos autos que os arguidos têm uma estrutura e um expediente ligado ao tráfico montado, com uma rede de contactos (os arguidos já se conheciam entre si antes da prática dos factos que lhes são imputados), movendo-se com fluidez no mercado do tráfico de estupefacientes, o que, como é bom de ver, eleva consideravelmente o perigo de continuação da atividade criminosa.

Sublinhe-se, ainda, que a droga aqui em causa é considerada uma droga dura e quantidade apreendida é muito significativa, suscetível de envolver muito dinheiro com a futura venda deste produto estupefaciente, o que aumenta a gravidade da ilicitude em questão.

**

Para acautelar os referidos perigos julga-se necessária, adequada e proporcional a aplicação de medida de coação relativamente aos arguidos, diferente do Termo de Identidade e Residência.

A obrigação de apresentação periódica em posto de OPC não elimina qualquer um dos perigos assinalados, pois apenas impede que os mesmos se verifiquem durante o tempo em que os arguidos se apresentariam para cumprimento dessa medida, assegurando-lhes liberdade para no demais tempo continuar a atividade criminosa.

E a proibição de contatos, por si só, revela-se manifestamente insuficiente para demover os arguidos de continuarem a atividade criminosa e não é eficaz a acautelar os indicados perigos.

Por isso, só uma medida de coação privativa da liberdade dos arguidos é capaz de eliminar os perigos assinalados e ser proporcional à gravidade do crime indiciado e às sanções em que eles incorrem. Neste aspeto, a lei processual penal concede às medidas de coação privativas da liberdade estatuto de excecionalidade, de subsidiariedade e mesmo de ultima ratio, esclarecendo o n.º 2 do artigo 193.º do CPP que a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas e insuficientes as outras medidas de coação. Ademais, quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade, deve o Tribunal dar preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares – artigo 193.º, n.º 3, do CPP.

Os factos indicados são graves, para além de que a prova já carreada para os autos (complementada com as declarações ora prestadas pelos arguidos em sede de primeiro interrogatório judicial) é de uma relativa solidez.

Sucede que, como ainda não foi ainda possível apurar com clareza qual dos envolvidos assume papel principal e ascendente na estrutura e na organização da viagem, não cabe ainda nesta sede diferenciar as medidas de coação a aplicar. Os factos são imputados aos três, sem diferenciação e, como tal, na falta de outros elementos nesta fase, também os perigos que urge acautelar no caso concreto se fazem sentir em idêntica medida aos três arguidos.

Face ao exposto, entendemos que in casu a obrigação de permanência na habitação, mesmo que fiscalizada com meios de vigilância eletrónica, não seria capaz de eliminar o perigo de continuação da atividade criminosa, não sendo adequada e proporcional ao caso concreto. É que o crime de tráfico de estupefacientes pode também ser praticado em casa, aí mantendo os arguidos livremente contactos entre si, assim como com os eventuais fornecedores e compradores de produtos de estupefacientes, passando eles a realizar a atividade de tráfico de estupefacientes diretamente dos seus domicílios. E isto é assim independentemente da obrigação de permanência em habitação ser controlada ou não por vigilância eletrónica. Cremos que as exigências cautelares impõem que não seja aplicada esta medida de coação aos arguidos, pois os mesmos poderiam continuar, com facilidade, em casa, a proceder à venda de estupefacientes, com relativa autonomia operacional.

Por outro lado, as exigências cautelares no caso em apreço não recomendam essa medida de coação obrigação de permanência na habitação, mesmo que fiscalizada com meios de vigilância eletrónica: é que o perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito para aquisição, conservação ou veracidade da prova não seria suficientemente neutralizado por essa via. A verdade é que a obrigação de permanência na habitação – mesmo com sujeição a vigilância eletrónica – não seria por si suficiente e adequada para impedir que os arguidos mantivessem livremente contactos entre si (quer através do telefone ou das redes sociais), como ainda com terceiros que se podem configurar como testemunhas relevantes nestes autos, condicionando tais declarações e depoimentos; ou seja, contaminando a prova. Mais: a obrigação de permanência na habitação – mesmo com sujeição a vigilância eletrónica – não acautela que os arguidos não sejam contatados pelo suspeito ainda não identificado nestes atos (o tal F), desde logo para tentar “controlar” as declarações destes. De resto, a obrigação de permanência na habitação não impede que os arguidos sejam visitados em suas casas por terceiros. Importa, pois, assegurar a aquisição, conservação e veracidade da prova e, diga-se, que nesta fase do inquérito a medida de coação de obrigação de permanência na habitação não seria necessária e adequada a acautelar este perigo.

Atento o exposto, estamos em crer a obrigação de permanência na habitação, fiscalizada com meios de vigilância eletrónica, é insuscetível de eliminar os indicados perigos.

A prisão preventiva é, assim, a única medida que assegurará plena e eficazmente que os arguidos não voltem a cometer crimes de tráfico de estupefaciente.

**

Afigurando-se necessário e adequado às exigências cautelares que o caso requer, e proporcional à gravidade do crime praticado e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas, decide-se aplicar, para além do TIR, já prestado, a medida de coação de prisão preventiva relativamente aos três arguidos.

Tudo nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 196.º, 202.º, e 204.º alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – Verifica-se ou não nulidade insanável dos elementos de prova (nomeadamente revistas e detenções) decorrente da incompetência da Polícia de Segurança Pública para a realização da investigação;

2.ª questão – Verifica-se ou não nulidade dos elementos de prova por serem consequência de diligências praticadas antes da abertura de inquérito e fora do âmbito das medidas cautelares e de polícia;

3.ª questão – Ocorreu ou não a valoração de “provas absolutamente proibidas” materializadas em “conversas informais”.

4.ª questão – Verifica-se ou não a ausência de fortes indícios da prática do crime fundamento da medida de coacção;

5.ª questão – Verificam-se ou não os perigos que fundamentaram a aplicação da medida de coacção;

6.ª questão – Verifica-se ou não a adequação e proporcionalidade da medida de coacção decretada (prisão preventiva) em detrimento da obrigação de permanência na habitação.

*

B. Decidindo.

1.ª questão – Verifica-se ou não nulidade insanável dos elementos de prova (nomeadamente revistas e detenções) decorrente da incompetência da Polícia de Segurança Pública para a realização da investigação.

Desde logo, cumpre salientar a evidente confusão que o recorrente estabelece entre o perímetro dos actos integrados na competência investigatória deferida a determinado órgão de polícia criminal (OPC) e as “providências cautelares de polícia”, nos exactos termos recortados pelo art.º 249.º e o art.º 2.º da Lei de Organização da Investigação Criminal (2) (LOIC).

Defende o recorrente que os actos de investigação do crime de tráfico de estupefaciente praticados pela PSP estão feridos de nulidade (prevista nos artigos 119.º, b) e e) e 122.º, uma vez que os artigos 7.º, n.º 3, alínea i) da LOIC e 57.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, deferem a competência investigatória dos mesmos à PJ.

O art.º 7.º, n.º 3, alínea i) da LOIC – que é uma reprodução parcial do art.º 57.º, n.º 1 do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro – determina que é competência reservada da PJ a investigação do crime previsto no art.º 21.º deste último normativo, quando o mesmo lhe é participado ou de que colha notícia.

Deste modo, quanto ao crime do art.º 21.º do DL 15/93, a competência investigatória mostra-se legalmente deferida ao OPC que primeiro do mesmo tenha conhecimento, por participação ou por qualquer outra via.

No caso dos autos, independentemente da consideração de estarmos ou não perante medidas cautelares quanto a meios de prova, inexistem elementos nos autos que permitam inferir (aliás, dos autos consta que a chamada telefónica que terá despoletado o acompanhamento das viaturas e demais acções foi recebida em esquadra da PSP) que o crime em causa tenha sido participado à PJ ou esta dele tenha colhido notícia., caso em que a competência investigatória lhe estria inequivocamente deferida.

Por último, há ainda que mencionar o teor da Circular da Procuradoria-Geral da República 6/2002, de 03.113, mais especificamente o ponto IV.1, na qual a competência uma investigação como esta, se mostra genericamente delegada na PSP.

Impõe-se, consequentemente, uma resposta negativa à questão, não se vislumbrando qualquer violação das pelo recorrente invocadas normas, constitucionais ou legais.

2.ª questão – Verifica-se ou não nulidade dos elementos de prova por serem consequência de diligências praticadas antes da abertura de inquérito e fora do âmbito das medidas cautelares e de polícia.

Como vimos, o recorrente entende que as diligências realizadas são nulas por não serem medidas cautelares de polícia e terem sido praticadas antes da abertura do inquérito.

Mais concretamente, defende aquele que as revistas, buscas e detenções realizadas nos autos são nulas porquanto a PSP teve “mais do que tempo (12 horas!)” para comunicar a “notícia do crime” à PJ e ao MP.

Relativamente à “obrigação” de comunicação à PJ da notícia do crime, remete-se para o decidido quanto à questão anterior, nada mais havendo a acrescentar.

Importa decidir se os actos praticados nos autos são ou não subsumíveis a “providências cautelares de polícia”, ou seja, os actos “necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, não tendo essa questão conexão com a definição do âmbito de competências investigatórias deferidas a cada OPC.

O recorrente afirma, muito convenientemente, que “nem está em causa atos de natureza cautelar e urgente” (sic) (4).

Discordamos.

Lê-se no auto de notícia que as suspeitas foram transmitidas por telefonema anónimo “no período da manhã” (sem indicação da hora), tendo sido apenas indicadas as matrículas dos veículos. A partir daí, como justamente se sublinha na resposta do MP ao recurso e até à hora em que se concretizou a detenção, as diligências realizadas pela PSP limitaram-se a averiguar quem eram os proprietários dos automóveis identificados e a efectuar vigilância nos locais que a isso se adequavam e onde, de acordo com a denúncia, os veículos passariam. É no âmbito dessa actividade que ao condutor de um dos veículos foi dada ordem de paragem e o mesmo declarou voluntariamente que transportava estupefaciente.

Assim, entendemos que o acompanhamento de uma viagem (5) com as características mencionadas nos factos indiciados cabe perfeitamente na alínea b) do n.º 2 do art.º 249.º, ou seja, visa colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime, inexistindo nos autos quaisquer elementos de infirmem o seu carácter necessário e urgente, antes se evidenciando o contrário, ou seja, se tal acompanhamento não fosse feito (e feito naquele tempo), os agentes do indiciado crime ficariam por descobrir. Também se sublinha que só com a intercepção do veículo …. na … e subsequentes actos se descobre efectivamente a prática do indiciado crime. Nestes termos, não só os agentes da PSP não estavam impedidos de agir como estavam legalmente obrigados a praticarem os actos em causa necessários e urgentes para assegurarem os meios de prova. Se o não tivessem feito, muito provavelmente não teria sido possível a intercepção e a descoberta do estupefaciente, resultado porventura querido pelo recorrente, mas que os mecanismos previstos na lei pretendem exactamente acautelar.

É verdade que, nos termos do art.º 2.º, n.º 3 in proemio da LOIC, o OPC tem que comunicar ao Ministério Público a notícia do crime no prazo mais curto prazo, não podendo exceder 10 dias, o que efectivamente aconteceu, uma vez que os factos foram comunicados ao MP no dia 12 ou 13.05, sendo certo que também consta do auto de notícia que a partir daí foi cumprido o determinado pela Magistrada do MP competente.

Assim, é evidente a comunicação ao MP foi efectuada ao MP e foi-o em menos de 10 dias, quando foi possível fazê-la sem resultar em constrangimento / impedimento à recolha (urgente e necessária) da prova.

Impõe-se, consequentemente, uma resposta negativa à questão, não se vislumbrando qualquer violação das pelo recorrente invocadas normas, constitucionais ou legais.

3.ª questão – Ocorreu ou não a valoração de “provas absolutamente proibidas” materializadas em “conversas informais”, com o inerente “efeito à distância”.

Discorre minuciosa o recorrente sobre proibições de prova, conversas informais e efeito à distância.

Sem prejuízo do maior ou menor acerto dessa reflexão, importa averiguar de uma questão prévia e, potencialmente, prejudicial, a saber: A “conversa informal [em causa] foi preponderante, se não mesmo condição sine qua non dos depoimentos dos arguidos”, como alega o recorrente?

Do auto de notícia consta (na página 5) inequivocamente um trecho onde se alude a uma “conversa informal” mantida com o arguido GM.

Para se poderem equacionar as consequências processuais desvaliosas mencionadas na conclusão de recurso “FF” (não para a “sentença”, como ali certamente por lapso se indica) para a decisão subsequente sobre as medidas de coacção, entendemos que deve estar inequivocamente estabelecido um nexo relacional e causal entre o conteúdo da “conversa informal” com um suspeito / arguido e o teor do respectivo depoimento, ou seja, que se leve expressamente em consideração tal depoimento.

Contudo, do despacho recorrido não consta que tal “conversa informal” tenha sido (ainda que minimamente) valorada como elemento de prova ou que, como afirma o recorrente, o mesmo tenha sido com o teor da mesma “confrontado”, daí resultando qualquer condicionamento do seu depoimento.

Não se evidencia que, em qualquer momento do interrogatório, aquela “conversa informal” tenha sido referida ou escrutinada, sendo certo que, na decisão recorrida, se afirma que “os arguidos reconhecem genericamente os factos imputados”, não se vislumbrando qualquer contaminação global ou “efeito-à-distância” nas declarações prestadas pelos arguidos, por constituírem o “fruto da árvore proibida”.

Impõe-se, consequentemente, uma resposta negativa à questão, não se mostrando violados quaisquer dos preceitos legais/constitucionais invocados.

4.ª questão – Verifica-se ou não a ausência de fortes indícios da prática do crime fundamento da medida de coacção.

O recorrente fundamenta esta alegada ausência de indícios (o que determinaria a nulidade da decisão, nos termos do art.º 194.º, n.º 6, alínea a), nas seguintes vertentes:

1 – Não consta da decisão ora sob censura que o recorrente não tinha autorização para o transporte da droga, in casu, 20kg de resina de canábis.

Recorde-se que o tipo legal em causa tem a seguinte redacção: “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

É de sublinhar que a droga em causa era transportada em viatura desacompanhada de qualquer documentação que autorizasse o respectivo transporte/detenção, não tendo o ora recorrente (ou qualquer outro arguido) mencionado a existência de tal documentação.

Concatenando a ausência de documentação que justificasse (autorizasse) a posse da droga com a experiência comum, mostra-se fortemente indiciada a inexistência de autorização para a posse e transporte da mesma.

Aliás, por último e não menos importante, consta do despacho recorrido que o ora recorrente (juntamente com os demais arguidos) sabia que a detenção da droga em causa, a qualquer título, era (é) proibida por lei e que, mesmo assim, actuou do modo descrito, ou seja, querendo transportar e ter na sua posse aquela droga e que se destinava à venda a terceiros, o que é totalmente incompatível com a existência de uma qualquer autorização para aqueles actos, que, como se disse, também não invocou.

Trata-se, pois, de alegação notoriamente destituída de fundamento.

2 – A inexistência de dolo.

Segundo o recorrente, “é patente a ausência de factualidade que evidencie a vontade de desenvolver sem autorização legal e a representação e o conhecimento por parte do agente da natureza e características estupefacientes do produto objecto da acção e uma atuação deliberada, livre e consciente de ser proibida a sua conduta.”

Segundo o art.º 14.º, n.º 1 do Código Penal, age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.

Como vimos, consta do despacho sob censura que os autos indiciam fortemente a prática pelos arguidos, entre outros e no que agora nos interessa, dos seguintes factos:

Quiseram os arguidos transportar e ter em sua posse o estupefaciente que foi apreendido e que se destinava à venda a terceiros.

Os arguidos sabiam que a detenção e transacção de canábis, em qualquer uma das suas apresentações, a qualquer título, é proibida por lei e, ainda assim actuou do modo descrito.

Em face destes factos, não deixa de causar acentuada perplexidade a afirmação do recorrente de que seja “patente a ausência de factualidade que evidencie a vontade de desenvolver (…) e a representação e o conhecimento por parte do agente da natureza e características estupefacientes do produto”. Com efeito, se os arguidos quiseram transportar / deter a droga em causa, que se destinava à venda a terceiros e que a detenção é proibida por lei e ainda assim actuaram, não vemos como não se possa entender não estarem descritos o conhecimento e vontade de praticar os actos em causa. A descrição do dolo não está, obviamente, sujeita a formulas canónicas obrigatórias, bastando que a factualidade atinente preencha a previsão legal, o que acontece in casu.

Trata-se, assim, de alegação notoriamente insubsistente.

3 – A não demonstração de que o teste (rápido) à droga tenha abrangido as “20169,71 gramas” apreendidas, uma vez que não foi verificado o seu conteúdo.

É de sublinhar que as embalagens (placas) relativamente às quais foi emitido o juízo de forte indiciação de conterem resina de canábis se encontravam acondicionadas uniformemente (todas com o “logotipo do …” (6) e juntas (7). É perfeitamente compreensível e justificável que, numa situação destas, tenha sido efectuado um teste rápido a uma delas, presumindo-se, com recurso às regras da experiência comum, que as demais contenham produto semelhante. É evidente que, nesta fase do inquérito, este é o procedimento adequado, sendo totalmente injustificada, nas circunstâncias em que ocorreu, a exigência de uma pesagem e testagem de todo o produto apreendido, desde logo pela necessidade de cumprimento de prazos processuais apertados, absolutamente incompatíveis com tal procedimento, que, obviamente com o desenrolar do inquérito, se poderá justificar (8). Relativamente à designação de “haxixe”, trata-se de um conceito corrente para designar a resina de canábis, não tendo esta imprecisão terminológica, juntamente com a concorrência de quaisquer outras circunstâncias que legitimamente pusessem em causa tal categorização, qualquer relevância.

Estamos, assim, perante alegação notoriamente insubsistente.

Impõe-se, consequentemente, uma resposta negativa à questão, não se mostrando violados quaisquer dos preceitos legais/constitucionais invocados.

5.ª questão – Verificam-se ou não os perigos que fundamentaram a aplicação da medida de coacção.

Segundo o recorrente, não só não se verificam os perigos de perturbação do inquérito, continuação da actividade criminosa e perturbação grave da tranquilidade e ordem públicas, como a decisão recorrida não fundamenta a sua verificação em factos concretos.

Na decisão recorrida afirmou-se a existência do perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente decorrente do possível condicionamento de testemunhas pelos arguidos, sublinhando-se que existe ainda um suspeito em liberdade (identificado como “F”), que poderia contactar com os arguidos (e estes entre si), “contaminando a prova que ainda importa obter neste inquérito para o dotar de instrumentos e mecanismos probatórios suficientemente sólidos”.

Discorda o recorrente, afirmando que “inexiste qualquer facto que, objectiva e subjectivamente, tornem altamente provável a intervenção do Recorrente nos termos sustentados pelo Tribunal a quo”.

Não tem razão.

Importa desde logo lembrar que estamos perante um fortemente indiciado crime de tráfico de estupefacientes, já caracterizado por um grau considerável de complexidade logística, traduzida na alocação de diversos meios materiais e humanos, que exigem uma disponibilidade financeira e um conhecimento aprofundado do meio criminal atinente, quer a jusante (contactos com os traficantes menores e consumidores), quer a montante (contactos, neste caso internacionais, com os fornecedores “grossistas” da droga). Estas características concretas (que o recorrente ostensivamente ignora) tornam muito provável a materialização de interferências na investigação, com a inerente dissipação / ocultação de materiais probatórios, sendo ainda de sublinhar a existência de um suspeito não identificado (“F”), que, como se afirma na decisão recorrida, sempre poderia, caso o recorrente ficasse em liberdade (9), com ele comunicar / interagir, colocando em causa o normal decurso do inquérito.

Assim, ao contrário do que alega o recorrente, existem factos que, objectiva e subjectivamente, tornam “altamente provável” (10) uma sua intervenção perturbadora do inquérito.

Quanto aos perigos de continuação da actividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas:

Segundo o recorrente, quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, “inexiste factualidade indiciária que permita presumir que têm uma estrutura montada ou um expediente ligado ao tráfico, ou que tenham uma rede de vendedores e consumidores” e que, como consta da decisão recorrida que não se mostra apurado papel de cada um dos arguidos nos factos, aplicar a prisão preventiva aos três é claramente inconstitucional, devendo funcionar o princípio in dubio pro reo.

Para Germano Marques da Silva (11), “a aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado”, ou seja, tem como escopo apenas a prevenção de comportamentos que sejam o prolongamento da actividade (12) já indiciada.

As razões invocadas na decisão recorrida para fundamentar o mencionado perigo afiguram-se-nos ser consistentes e válidas.

Desde logo, ao contrário do que afirma o recorrente, existem factos que indiciam fortemente a existência de uma actividade de tráfico de estupefacientes com um grau de complexidade apreciável, pois, como acima dissemos, pressupõe a reunião de meios e o conhecimento aprofundado do meio criminal atinente, quer a jusante, quer a montante da rede, nada disto assumindo carácter “especulativo”. Aliás, apenas se poderá especular quanto à existência de integração dos factos indiciados numa rede de tráfico de estupefacientes ainda mais complexa, aumentando a ilicitude da actividade (e nunca a diminuindo, pois apenas foram considerados os factos investigados até ao presente).

Quanto aos “papéis” que cada um dos arguidos teve nos factos, a interpretação (e atinente alegada inconstitucionalidade) que o recorrente faz da decisão recorrida é totalmente insubsistente. Com efeito, através da decisão recorrida não se sujeitam a prisão preventiva todos os arguidos “na dúvida” sobre qual o “papel” desempenhado por cada um nos factos. O que dos factos resulta é a atinente prática em co-autoria, não se evidenciando qualquer modulação significativa na respectiva integração na estrutura organizacional da actividade. O que a decisão recorrida significa é que os factos indiciados a todos responsabilizam por igual, não permitindo descortinar uma participação “menos grave” (13) que permitisse a ponderação de aplicação de outras medidas.

Deste modo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime indiciado, crê-se, pelos motivos expostos, efectivamente verificado o perigo de continuação da actividade criminosa.

Relativamente ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, muito embora esteja referido na decisão recorrida, pensamos que só o foi como enunciado como referente legal (referência global à alínea c) do art.º 204.º), nada na mesma havendo que permita afirmar que ali foi considerado. Não tendo servido para fundamentar a aplicação da medida, nada há a analisar sobre eventuais violações legais e constitucionais que tal fundamentação poderia corporizar.

Impõe-se, consequentemente, uma resposta negativa à questão, não se mostrando violados quaisquer dos preceitos legais/constitucionais invocados.

6.ª questão – Verifica-se ou não a adequação e proporcionalidade da medida de coacção decretada (prisão preventiva) em detrimento da obrigação de permanência na habitação.

Importa sublinhar, uma vez que o recorrente impugna o decretamento da prisão preventiva, que rege nesta sede o princípio da subsidiariedade, ou seja, de acordo com o art.º 193.º, n.º 2: “… só pode[ ] ser aplicada[ ] quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”).

Segundo o recorrente, caso se verifique [?] a existência de fortes indícios da prática do crime objecto destes autos” deve ser alterada para obrigação de permanência na habitação, uma vez que o caso dos autos se traduz na modalidade “transporte”.

Desde logo, cumpre sublinhar que os factos em causa não se esgotam numa situação de transporte (como os conhecidos correios de droga), transcendendo essa dimensão, desde logo pela parte atinente à aquisição da droga em ….

A decisão recorrida, por seu turno, indica minuciosamente os motivos pelos quais apenas a prisão preventiva conseguirá previsivelmente evitar a concretização dos perigos que a fundamentam.

Mais ali se fundamenta a necessidade e adequação da prisão preventiva, nomeadamente em detrimento da obrigação de permanência na habitação, nomeadamente pelas características do tráfico de estupefacientes e da sua não dependência de locais determinados e facilidade de concretização em função dos multimeios comunicacionais hoje disponíveis. Com efeito, “[e]stamos perante uma criminalidade grave, considerada pelo legislador como «altamente organizada» e que gera alarme social, pela violência que habitualmente lhe está associada e pela elevada moldura penal correspondente, quer ainda pela sua repetição constante, em especial nos grandes centros urbanos mas que se tem disseminado, de modo algo expressivo, em algumas zonas rurais, potenciando a prática de vários outros crimes por parte dos seus consumidores, em especial contra o património. Razão pela qual, não podemos deixar de reconhecer que as exigências de prevenção estão num patamar bastante elevado. A experiência e os estudos que existem sobre esta realidade dizem-nos que os traficantes, quando embrenhados nessa actividade e dela dependem, raramente ou nunca a abandonam voluntariamente, porque não querem prescindir dos elevados rendimentos que o negócio lhes proporciona a curto prazo e lhes permite o acesso a bens e modo de vida que, de outra maneira, dificilmente ou jamais obteriam, preferindo correr os riscos que, sobejamente, conhecem.” (14)

O anteriormente mencionado, torna, de per si, totalmente insubsistente a fundamentação para aplicação alternativa de quaisquer outras medidas de coacção, nomeadamente a obrigação de permanência na habitação, como propugna o recorrente.

“A obrigação de permanência na habitação, mesmo que associada à proibição de contactos, também não permitiria acautelar tais necessidades uma vez que não são ainda conhecidas (todas) as pessoas com quem o arguido se relacionava.” (15)

Por seu turno, quanto à eficácia da obrigação de permanência na habitação relativamente aos perigos acima mencionados, ainda é de sublinhar que “[a] barreira física decorrente do confinamento de alguém a um domicílio não assenta exclusivamente na valia dos meios técnicos postos na detecção de eventuais ausências”. Estes têm essencialmente por função dar a conhecer as “violações” da obrigação de permanência na habitação.” (16)

Em síntese, a prisão preventiva decretada mostra-se adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

Impõe-se, consequentemente, uma resposta positiva à questão, não se mostrando violados quaisquer dos preceitos legais/constitucionais invocados.

O recurso é, pois, totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 12 de Outubro de 2021

Edgar Gouveia Valente

Laura Maria Peixoto Goulart Maurício

Sumário

I - Para se poderem equacionar as consequências processuais desvaliosas mencionadas na conclusão de recurso (nulidade) para a decisão subsequente sobre as medidas de coacção, deve estar inequivocamente estabelecido um nexo relacional e causal entre o conteúdo da “conversa informal” com um suspeito / arguido e o teor do respectivo depoimento, ou seja, que se leve expressamente em consideração tal depoimento.

II – Se estivermos perante um fortemente indiciado crime de tráfico de estupefacientes, já caracterizado por um grau considerável de complexidade logística, traduzida na alocação de diversos meios materiais e humanos, que exigem uma disponibilidade financeira e um conhecimento aprofundado do meio criminal atinente, quer a jusante (contactos com os traficantes menores e consumidores), quer a montante (contactos, neste caso internacionais, com os fornecedores “grossistas” da droga), estas características concretas tornam muito provável a materialização de interferências na investigação, com a inerente dissipação / ocultação de materiais probatórios, a que acresce a existência de um suspeito não identificado, que, como se afirma na decisão recorrida, sempre poderia, caso o recorrente ficasse em liberdade, com ele comunicar / interagir, colocando em causa o normal decurso do inquérito.

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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Lei n.º 49/2008, de 27.08.

3 Disponível em https://www.ministeriopublico.pt/iframe/circulares.

4 Conclusão “L” in fine.

5 E actos subsequentes, como as revistas e detenções. No sentido de que tais actos se integram no conceito em causa, vide Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 3.ª edição, 2021, página 893.

6 Cfr. página 3 do auto de notícia.

7 Cfr. fotograma do interior da bagageira do veículo … junto aos autos.

8 É de sublinhar que, no auto de notícia – página 5 – se afirma o envio para o LPC, para análise, de “todo o produto estupefaciente apreendido”.

9 E lembremo-nos que o recorrente realizou a viagem em causa nos autos com este suspeito, tendo da mesma saído antes da imobilização da mesma, em Agualva-Cacém (página 4 do auto de notícia).

10 Utilizando a expressão empregue pelo mesmo (conclusão YY).

11 Ob. cit. página 301.

12 Muito embora, segundo nos diz o Insigne Mestre imediatamente acima citado, tal não signifique apenas “a continuação da execução do mesmo crime, mas [também] a prática de crimes análogos ou da mesma natureza daqueles pelos quais está a ser processado.” (idem, ibidem)

13 Consta da decisão recorrida, lembre-se, que “os factos são imputados aos três, sem diferenciação e, como tal, na falta de outros elementos nesta fase, também os perigos que urge acautelar no caso concreto se fazem sentir em idêntica medida aos três arguidos.”

14 Acórdão da Relação de Lisboa de 11.06.2019 proferido no processo 1534/17.3T9TVD-A.L1-5 (Relator José Adriano), disponível em www.dgsi.pt.

15 Acórdão deste TRE de 31.01.2012 proferido no processo n.º 8/11.0TESTB-B.E1 (Relatora Ana Brito) disponível no site acima mencionado.

16 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo n.º 991/12.9PCSNT.A.L1 (Relator Luís Gominho), idem.