ALTERAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO
VIOLAÇÃO DE OBRIGAÇÕES IMPOSTAS
RECUSA DA FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES IMPOSTAS
Sumário

Uma coisa é a violação das obrigações impostas propriamente ditas (a obrigação de não permanecer nas imediações da residência e do local de trabalho da ofendida e em qualquer outro local por esta frequentado, e a obrigação de não contactar por qualquer forma com a ofendida), outra coisa é a recusa da fiscalização do cumprimento de tais obrigações mediante sistema de vigilância electrónica, e, estando em causa nos autos o incumprimento desta última, tal não é de molde a justificar, por si só (ou seja, sem outros elementos que reforcem a ideia de não estarmos perante uma ocasião acidental ou da intencionalidade de aproximação à ofendida) a prisão preventiva do arguido ou o agravamento da medida de coação mediante qualquer outra medida.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I

[i] No âmbito do processo de Inquérito nº 203/20.1 GAFA, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Procuradoria da República do Juízo de Competência Genérica de Ferreira do Alentejo, após interrogatório judicial complementar de arguido, nos termos prevenidos no artigo 144º, do Código de Processo Penal, realizado no dia 21.12.2020, pelo Mmº Juiz de Instrução foi decidido:

“Veio o Ministério Público, por promoção de 17-12-2020, com a ref.ª Citius 31494465, requerer que fosse designada data para sujeição do arguido a interrogatório complementar, com vista a eventual alteração da medida de coacção que lhe foi aplicadas, com emissão de mandados de detenção, a fim de assegurar a sua presença na data que viesse a ser designada para o efeito.

Estando em causa o eventual agravamento das medidas de coação impostas ao arguido e tendo em vista o exercício do contraditório, foi proferido despacho na mesma data, com a ref.ª Citius 31495018, determinando a realização de interrogatório complementar do arguido, com designação da respectiva data, assim como, a notificação do arguido, por OPC, para esse efeito.

O arguido compareceu voluntariamente a este interrogatório complementar, nos dois períodos da sua realização, e prestou declarações tendo estritamente por objecto os motivos do alegado incumprimento da medida de coacção que lhe foi aplicada e em que se baseou o Ministério Público no seu requerimento.

*

Está em causa decidir do agravamento da medida de coacção decidida aplicar ao arguido, em sede de 1º interrogatório judicial realizado, em 03-12-2020, por alegada violação das obrigações então impostas.

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Para a sua decisão, o Tribunal considerou as declarações do arguido prestadas no interrogatório complementar que antecedeu.

Perguntado sobre os motivos do seu alegado incumprimento, o arguido, sintetizando, justificou que, por um lado, preocupa-o que a boa reputação de que beneficia em … seja prejudicada com a utilização da pulseira electrónica, assim como a sua reputação junto dos seus médicos, e por outro, justificou que a utilização deste equipamento interferirá com a sua saúde e com os tratamentos médicos que se encontra a receber para combater a doença cancerígena de que padece.

Sobre este último aspecto, transmitiu que se encontra a fazer quimioterapia e, neste âmbito, tem que se deslocar ao Centro …, em …, cerca de duas vezes por mês, onde costuma realizar um exame de scanner do corpo, que não é compatível com a utilização de pulseira electrónica. Mais afirmou que a utilização da pulseira electrónica lhe causa stress, contribuindo para os efeitos secundários da quimioterapia.

O arguido declarou, ainda, que respeita o Tribunal e a lei portuguesa, e que cumprirá a medida de vigilância electrónica, se for possível não utilizar o equipamento nas suas deslocações a … para realização dos referidos tratamentos médicos, agradecendo ao Tribunal que tal seja tido em consideração.

Perguntado sobre, se após a decretação da medida de coacção, se se aproximou da residência da ofendida, admitiu que sim, justificando que não o fez intencionalmente, mas quando estava de passagem para casa de um amigo, na estrada, acompanhado do filho, da nora e dos netos, nunca tendo parado junto à casa da ofendida.

Além das declarações do arguido, na parte respeitante ao cumprimento ou não da medida de coacção, o Tribunal considerou, ainda, as informações da DGRSP de 04-12-2020, com a ref.ª Citius 1876910, e de 11-12-2020, com a ref.ª Citius 1880988, cujo teor aqui se dá por reproduzido e que, em suma, dão conta de que o arguido não aceitou os equipamentos de vigilância eletrónica para fiscalização da medida de coacção decidida aplicar ao arguido.

Concretizando, da informação da DGRSP de 11-12-2020, com a ref.ª Citius 1880988, ressuma ainda que o arguido “não aceitou os equipamentos de vigilância eletrónica para fiscalização da medida de coação de proibição de contactos, mesmo após conversa com o seu mandatário, tendo o mesmo assinado a declaração de não consentimento que junto se anexa”. Também aí se informa que, “o arguido refere, recorrentemente, não perceber o que lhe é transmitido pelos técnicos da equipa de vigilância eletrónica, mesmo quando se comunica em inglês.”.

*

Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi decidido aplicar-lhe a seguinte medida de coacção, em acréscimo ao termo de identidade e residência:

a) Obrigação de não permanecer nas imediações da residência e do local de trabalho da ofendida e em qualquer outro local por esta frequentado, nos termos do disposto nos artigos 200º, nº 1, als. a) e d) do Cód. Proc. Penal e 31º, nº 1, al. d) da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro; e

b) Obrigação de não contactar por qualquer forma com a ofendida, nos termos do disposto nos artigos 200º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Penal e 31º, nº 1, al. d) da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.

Ademais, foi determinado que a execução de tal medida fosse controlada por vigilância electrónica, fixando-se o perímetro de exclusão em 400 (quatrocentos) metros, quer quanto à zona de protecção fixa (residência da ofendida e local de trabalho desta), quer quanto à zona de protecção dinâmica, dispensando-se a prestação de consentimento pelo arguido para este efeito, porquanto, em face de todo o circunstancialismo sobredito e julgado indiciado, a utilização de meios técnicos de controlo à distância mostrava-se imprescindível para a protecção dos direitos da ofendida, cfr. artigo 36º, nº 7, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.

Ora, determina o artigo 203º, nº 1, do Cód. Proc. Penal que, “Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas neste Código e admissíveis no caso.”

Por seu turno, determina o nº 2 do mesmo artigo que: “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 193.º, o juiz pode impor a prisão preventiva, desde que ao crime caiba pena de prisão de máximo superior a 3 anos: a) Nos casos previstos no número anterior; ou b) Quando houver fortes indícios de que, após a aplicação de medida de coacção, o arguido cometeu crime doloso da mesma natureza, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.”.

Para efeitos e agravamento de uma medida de coacção decretada “(…) o juiz deverá, após a apreciação dos “motivos” da violação, conjugados com a gravidade do crime imputado, ponderar, à luz dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, se existe uma maior exigência cautelar e consequentemente necessidade de “reforço” das medidas de coação, impondo outra ou outras medidas de coação que sejam admissíveis no caso. A violação deverá ser sempre culposa” (sublinhado nosso, in Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, 2ª edição, 2016, págs. 820 e 821).

Do exposto, resulta, em síntese, que para a alteração da medida de coacção decidida aplicar, no sentido do seu agravamento, não bastará todo e qualquer incumprimento do arguido, posto que só um incumprimento culposo poderá justificar tal agravamento.

Por outro lado, é necessário que a medida resultante do agravamento se mostre necessária, adequada e proporcional face às novas exigências cautelares que se suscitem no caso, em conformidade com os princípios consagrados no artigo 193º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.

Estando em causa o agravamento para prisão preventiva é também necessário que ao crime caiba pena de prisão superior a 3 (três) anos e que quaisquer outras medidas de coacção menos restritivas dos direitos e liberdades do arguido sejam inadequadas e insuficientes, devendo sempre ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.

Subsumindo, agora, as circunstâncias do caso concreto a estas ideias orientadoras, pensa-se que, por ora, é de rejeitar o agravamento imediato da medida de coacção decidida aplicar ao arguido, designadamente a prisão preventiva, por não se mostrar necessário, adequado ou proporcional, e por não resultar clarividente dos autos um incumprimento culposo daquela medida.

Com efeito, dos elementos considerados pelo Tribunal, incluindo a justificação apresentada pelo arguido no interrogatório complementar precedente, não há dúvidas que o mesmo se opôs à instalação do sistema de vigilância electrónica.

Não há dúvidas, também, que os receios de perda de reputação invocados pelo arguido não constituem justificação idónea ou razoável para o exonerar da sujeição à vigilância electrónica.

Sucede, porém, que o arguido também justificou a sua recusa com a incompatibilidade entre a vigilância electrónica e os seus problemas de saúde e tratamentos médicos e, não sendo controvertido nos autos que o arguido é doente de cancro e que se encontra a receber tratamento médico para a sua cura, o crivo do alegado incumprimento tem que ser mais fino e cauteloso, estando em causa o direito fundamental à saúde do arguido.

É certo que não está ainda comprovada, designadamente por atestado médico, que se mostra pertinente, a incompatibilidade da instalação dos equipamentos de vigilância electrónica com o estado de saúde do arguido ou com os tratamentos médicos e medicamentosos que este se encontra a receber, contudo, poderemos estar ante motivo atendível para justificar a oposição do arguido, de molde a obstar ao imediato agravamento da medida de coacção, para mais mediante a decretação da sua prisão preventiva.

Acresce dizer, em reforço de ideias, que não está comprovado que o arguido já tivesse a efectiva oportunidade de juntar aos autos documentos médicos comprovativos da tal incompatibilidade da medida de fiscalização com os seus tratamentos médicos.

Face ao que se acaba de dizer, pensa-se que, ainda, não é seguro afirmar que estamos perante uma recusa injustificada, uma rebelião a uma ordem judicial ou, ainda, que o arguido incorreu em incumprimento culposo da medida de coacção, tanto mais que o mesmo declarou em sede de interrogatório complementar antecedente, que aceita sujeitar-se à medida de vigilância electrónica, pedindo apenas para não ter que usar o equipamento nas suas deslocações para tratamento médico.

Por outro lado, é preciso distinguir dois tipos de incumprimentos: uma coisa é a violação das obrigações impostas propriamente ditas (a obrigação de não permanecer nas imediações da residência e do local de trabalho da ofendida e em qualquer outro local por esta frequentado, e a obrigação de não contactar por qualquer forma com a ofendida), outra coisa é a recusa da fiscalização do cumprimento de tais obrigações mediante sistema de vigilância electrónica.

Importa ponderar que o que está claro nos autos, por ora, é o incumprimento do meio de fiscalização das obrigações impostas, cuja gravidade se reputa diferente do incumprimento das obrigações impostas em si mesmas.

A propósito deste aspecto, é certo que o arguido admitiu ter passado à frente da residência da ofendida, mas as circunstâncias em que admitiu tê-lo feito – de passagem, sem parar, a caminho da casa de amigos, na estrada, acompanhado por familiares, numa comunidade em que as distâncias entre locais são particularmente reduzidas e as vias de comunicação por estrada não abundam – não são de molde a justificar, por ora, por si só (ou seja, sem outros elementos que reforcem a ideia de não estarmos perante uma ocasião acidental ou da intencionalidade de aproximação à ofendida) a sua prisão preventiva ou o agravamento da medida de coacção mediante qualquer outra medida.

Em suma, não é ainda possível concluir por um agravamento das exigências cautelares nas circunstâncias do caso concreto, apto a determinar um agravamento da medida de coacção decretada em 03-12-2020, sem prejuízo de tal poder vir a suceder, ante a comprovada persistência injustificada da oposição do arguido à vigilância electrónica.

Nos termos e com os fundamentos de facto e de Direito acima expostos DECIDE-SE:

- Manter a medida de coacção decidida aplicar em 03-12-2020, em sede de primeiro interrogatório judicial e, concomitantemente,

- Determinar a notificação da DGRSP para, com urgência, previamente à instalação dos equipamentos de vigilância electrónica, que de novo se determina, aferir junto do Centro … da incompatibilidade da utilização de algum desses equipamentos com o estado de saúde do arguido, ou com os tratamentos médicos que o mesmo aí se encontra a receber (cuja frequência e rotinas a DGRSP deverá igualmente apurar) para cura da doença cancerígena de que padece.

Após, deverá a DGRSP reportar as suas conclusões ao Tribunal, sendo que:

a) se concluir por alguma incompatibilidade técnica ou outra, deverá informar o Tribunal dos procedimentos adequados aos dias de tratamento, designada e eventualmente, a retirada ou desactivação do equipamento durante o tempo necessário aos tratamentos, sem prejuízo do acompanhamento do arguido, pela DGRSP, por outros meios, por forma a controlar a sua localização;

b) se concluir pela inexistência de qualquer incompatibilidade, deverá proceder imediatamente à instalação do sistema de vigilância electrónica, nos termos do despacho de 03-12-2020, devendo reportar ao Tribunal quaisquer obstáculos que surjam ou a persistência da recusa do arguido.

Em qualquer caso, fica o arguido advertido de que a sua oposição injustificada à instalação do sistema de vigilância electrónica poderá, reunidos os requisitos legais, justificar o agravamento futuro da medida de coacção decretada e em vigor, incluindo a aplicação da medida de prisão preventiva.

Comunique à GNR de … o presente despacho, em complemento do despacho de 03-12-2020, solicitando que o Tribunal seja informado em caso de incumprimento por parte do arguido.

Notifique.

Remeta os autos aos serviços do Ministério Público.”.

[ii] Inconformada com esta decisão, dela recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

1. O Ministério Público vem, de acordo com o disposto nos artigos 219.º, n.º 1, 401.º, n.º 1, alínea a) e 411.º do Cód. Proc. Penal, recorrer do despacho que não determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido MSL, em sede de interrogatório complementar de arguido nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 203.º e 212.º do Cód. Proc. Penal, por entender, em suma, que “(…) uma coisa é a violação das obrigações impostas propriamente ditas (a obrigação de não permanecer nas imediações da residência e do local de trabalho da ofendida e em qualquer outro local por esta frequentado, e a obrigação de não contactar por qualquer forma com a ofendida), outra coisa é a recusa da fiscalização do cumprimento de tais obrigações mediante sistema de vigilância electrónica” e que, estando em causa nos autos o incumprimento desta última, tal não é “(…) de molde a justificar, por ora, por si só (ou seja, sem outros elementos que reforcem a ideia de não estarmos perante uma ocasião acidental ou da intencionalidade de aproximação à ofendida) a sua prisão preventiva ou o agravamento da medida de coacção mediante qualquer outra medida”.

2. Entendeu ainda a Mma. Juiz ser de “(…) rejeitar o agravamento imediato da medida de coacção decidida aplicar ao arguido, designadamente a prisão preventiva, por não se mostrar necessário, adequado ou proporcional, e por não resultar clarividente dos autos um incumprimento culposo daquela medida” e que sempre seria de distinguir a violação das obrigações propriamente ditas e a recusa da fiscalização do cumprimento de tais obrigações mediante sistema de vigilância electrónica, sendo aquela mais gravosa do que esta.

3. No caso vertente, e no que concerne à gravidade do crime imputado ao arguido, importa considerar que a Mma. Juiz considerou mostrar-se fortemente indiciada a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) do Cód. Penal, integrando tal crime a denominada criminalidade violenta.

4. Depois, e o que concerne à destrinça entre os tipos de incumprimento, o Ministério Público entende que, tendo sido determinada a fiscalização do cumprimento de tais medidas com recurso à vigilância electrónica, o comportamento do arguido face a tal tem que ser analisado como um todo e, por conseguinte, qualquer violação nesta sede assume relevância – quer da obrigação propriamente dita, quer da forma de controlar a mesma.

5. Desde logo porque a imposição do aludido meio de fiscalização se julgou como sendo um plus imprescindível para a protecção dos direitos da ofendida, sendo incompatível com tal a decisão ora proferida.

6. Com efeito, a necessidade de aplicação de tal mecanismo de controlo prende-se, resumidamente, com a dificuldade de controlar a execução da medida de coacção por outra forma e com a absoluta necessidade de, atentos os concretos factos indiciados, assegurar uma efectiva protecção da vítima, pelo que, permitir a aplicação de tais medidas – ao menos nas situações de violência doméstica – sem a correspondente fiscalização por meios de vigilância electrónica é esvaziar de utilidade as mesmas.

7. Donde resulta, em nosso entendimento, que quer a violação da obrigação concretamente imposta, quer a violação do meio de fiscalização, assume especial relevância e gravidade.

8. Depois, e perguntado acerca das razões de tal incumprimento o arguido justificou, em suma, que, por um lado, preocupa-o que a boa reputação de que beneficia em … seja prejudicada com a utilização da pulseira electrónica, assim como a sua reputação junto dos seus médicos, e por outro, que a utilização deste equipamento interferirá com a sua saúde e com os tratamentos médicos que se encontra a receber para combater a doença cancerígena de que padece.

9. Entendeu assim a Mma. Juiz, em face de tal, que “(…) não está ainda comprovada, designadamente por atestado médico, que se mostra pertinente, a incompatibilidade da instalação dos equipamentos de vigilância electrónica com o estado de saúde do arguido ou com os tratamentos médicos e medicamentosos que este se encontra a receber, contudo, poderemos estar ante motivo atendível para justificar a oposição do arguido, de molde a obstar ao imediato agravamento da medida de coacção, para mais mediante a decretação da sua prisão preventiva. Acresce dizer, em reforço de ideias, que não está comprovado que o arguido já tivesse a efectiva oportunidade de juntar aos autos documentos médicos comprovativos da tal incompatibilidade da medida de fiscalização com os seus tratamentos médicos”.

10. Porém, não pode o Ministério Público concordar com tal entendimento porque, pelo menos desde 03.12.2020, que o arguido sabe da pendência dos presentes autos e das obrigações que sobre si impendiam, pelo que desde essa data que poderia ter comprovado a sua situação clínica e a impossibilidade de sujeição a tal medida de fiscalização.

11. Porém, o arguido não o fez em sede de interrogatório judicial, onde recusou imediatamente a sujeição a tais medidas, argumentando com aquela que é a sua rotina – designadamente, a frequência de cafés e restaurantes – e, relativamente à necessidade de sujeição a fiscalização electrónica, referindo que “não vai usar nenhuma pulseira”.

12. Nem o fez posteriormente, designadamente perante a DGRSP que, no âmbito das suas funções, procurou por duas vezes proceder à instalação dos referidos equipamentos, sem sucesso, e que nada relatou a propósito da justificação apresentada pelo arguido ou pelo seu MI Defensor a esse respeito.

13. Ademais, veja-se que, em primeira linha, a explicação do arguido para o seu incumprimento reconduz-se à preocupação com a sua reputação junto da comunidade de … e dos seus médicos.

14. Pelo que, tudo visto, não podemos deixar de considerar que o arguido se colocou, voluntária e conscientemente, numa situação de incumprimento das obrigações que lhe foram impostas.

15. Por fim, e no que diz respeito ao eventual agravamento das exigências cautelar que o presente caso demanda é de salientar que os autos dispõem, precisamente, de elementos que contrariam a asserção da Mma.Juiz que considerou que a admissão do arguido – de ter passado em frente à residência da ofendida – não permite concluir, sem mais, que tal foi voluntário e intencional.

16. Com efeito, a ofendida relatou o sucedido, tendo referido que tal sucedeu cerca de três vezes por dia, no período compreendido entre 03.12.2020 e 06.12.2020 e com o arguido a circular de carro e a baixa velocidade junto à sua residência, acompanhado pelo filho e por um amigo e que o arguido terá abordado uma professora da filha da ofendida a quem contou que esta já estaria envolvida com outro homem com quem pretendia casar, comportamento que deixou a menor triste e perturbada.

17. Ora, no nosso entender, tais circunstâncias contribuem que se possa concluir pelo agravamento das exigências cautelares, em concreto, pelo agravamento dos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, dado que tal comportamento por banda do arguido apenas pode ser explicado com o propósito de querer pressionar a ofendida mediante a imposição da sua presença nos espaços por aquela frequentados e perante as pessoas com que se relaciona.

18. Por fim, e no que concerne ao juízo de adequação, necessidade e proporcionalidade, é manifesto que as medidas de coacção anteriormente aplicadas ao arguido se revelaram inadequadas e insuficientes, atento o seu incumprimento e o agravamento das exigências cautelares que nem sequer se atenuaram após o contacto do arguido com o sistema judicial.

19. Depois, e atenta a sua recusa em submeter-se a fiscalização electrónica, tal permite antever a sua recusa em sujeitar-se a tal controlo em sede de obrigação de permanência na habitação, resultando assim que apenas a prisão preventiva se mostra capaz de satisfazer as exigências cautelares que o presente caso demanda.

20. Nestes termos, tudo visto e ponderado, entendemos que em face da violação, pelo arguido, das obrigações que lhe foram impostas em sede de interrogatório judicial, porque culposa, e considerando as exigências cautelares que o presente caso demanda e a gravidade do crime imputado, devia ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, em obediência ao disposto nos artigos 203.º e 212.º, n.º 4, ambos do Cód. Proc. Penal

Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser a despacho recorrido objecto de revogação, e substituído por outro que aplique ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, por ser aquela que melhor acautela os perigos que se mostram verificados nos presentes autos e por, atento o disposto no artigo 203.º do Cód. Proc. Penal, ser adequada, necessária e proporcional em face da gravidade do crime e dos motivos da violação das medidas anteriormente impostas.

Assim decidindo, farão V. Exas. JUSTIÇA!”.

[iii] Admitido o recurso interposto e notificados os devidos sujeitos processuais, o arguido apresentou articulado de resposta, alegando em síntese conclusiva o seguinte:

“1. – Este recurso incide sobre o douto despacho da Mª Juíza que não determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, na sequência do interrogatório complementar do Arguido nos termos e para efeitos do disposto nos Artº 203º e 212º, ambos do C.P.P.;

2. – Após o primeiro interrogatório do Arguido foram aplicadas a obrigação de não permanecer nas imediações da residência e do local de trabalho da ofendida e em qualquer outro local por esta frequentado, nos termos do disposto nos Artº 200º, nº 1 al. a) e d) do CPP e 31º, nº 1 al. d) da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e da obrigação de não contactar por qualquer forma com a ofendida, nos termos do disposto nos Artº 200º, nº 1, al. d) do CPP e 31º, nº 1 al. d) da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro;

3. - Para cumprimento daquelas obrigações foi imposta a colocação dos meios técnicos de vigilância electrónica;

4. – Para o efeito o Arguido foi contactado pelos serviços da DGRSSP e na altura não aceitou assinar a declaração de permissão, sendo certo que não tinha a noção exacta das eventuais consequências desse acto;

5. – Tal recusa não foi gratuita e ostensiva à autoridade judicial, porque o Arguido não fala a língua portuguesa e mesmo com intervenção de intérprete há muita informação que se perde na tradução e comunicação ao Arguido;

6. – No interrogatório complementar o Arguido teve oportunidade e esclarecer as razões da sua postura estavam relacionadas com a vergonha e boa reputação que merece junto da população local, junto dos médicos e a eventual incompatibilidade da sua utilização com os exames e tratamentos médicos da sua doença cancerígena;

7. – Não foi uma violação groseira dos deveres e uma indesculpável actuação que não mereça ser tolerada nem desculpada que consuma uma situação incompreensível e inaceitável;

8. – De resto após aquele interrogatório ao Arguido foi instalado o respectivo disposto electrónico no passado dia 24 de Dezembro, revelando clara atitude de colaboração e respeitadora da autoridade judicial;

9. - Requerer a inversão das medidas aplicadas ao Arguido por via deste recurso e em sua substituição aplicar a prisão preventiva parece-nos uma gritante injustiça;

10. – O processo está no início e ainda não estão esclarecidas as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram e as medidas cautelares iniciais não mereceram qualquer reparo por parte da ora Recorrente;

11. - O Arguido tem 70 anos de idade;

12. – É primário, está social, familiar e profissionalmente integrado.

13. – Tem comparecido junto das autoridades judiciárias sempre que foi solicitado;

14. - A REGRA É A LIBERDADE. A prisão, em especial a preventiva, é sempre e só a excepção. O Artº. 28º., nº.2 da nossa Constituição impõe que a prisão preventiva deve ser substituída por outra medida de coacção menos gravosa, sempre que possível;

15. - De acordo com o prescrito no Artº 204º, do C.P.P., nenhuma medida de coacção pode ser aplicada, à excepção do termo de identidade e residência, sem que se verifiquem as seguintes condições: Fuga ou perigo de fuga; -Perigo para a instrução do processo;- Perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa;

16. - A natureza excepcional da prisão preventiva resulta claramente do disposto no Artº 193º, nº 2, do C.P.P.;

17. - A prisão preventiva não é nem pode ser um castigo prévio e não é uma antecipação da justiça;

18. - A prisão preventiva é uma medida de coacção subsidiária, que somente poderá ser aplicada na falência de outras medidas;

19. - Ora, salvo melhor opinião, a prisão preventiva proposta para o Arguido é manifestamente desproporcionada e desajustada;

20. – O processo está no início, mas a generalidade da prova já foi recolhida, pelo que a perturbação do decurso do inquérito não se justifica;

21. - O pressuposto da continuação da actividade criminosa é um pressuposto de difícil precisão e só em casos muito concretos deve ser aplicado;

22. - A execução e planificação de crime da mesma natureza será difícil porque o casal já está separado e com vidas independentes;

23. – E não existe qualquer receio de fuga nem a sua situação actual causou qualquer alarme social;

24. – Em face do que acima fica exposto não nos parece passível de qualquer censura o douto despacho da Mª Juíza.

TERMOS, em que mantendo-se o douto despacho se fará a mais lídima J U S T I Ç A”.

[iv] Remetidos os autos a esta Relação, sem que o Tribunal a quo tivesse feito uso do disposto no artigo 414º, nº 4, do Código de Processo Penal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, alegando, em síntese, que “(…) Nesta conformidade somos do parecer que o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente, pelo que deve revogar-se o douto despacho recorrido e substituir-se por outro que aplique a pena de prisão preventiva ao arguido em conformidade com o disposto nos artigo 203.º b) e 212.º, n.º 4, ambos do CPP”.

[v] Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido feito uso do direito de resposta.

[vii] Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.

Foi realizada a Conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação [(cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82)].

Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância é a seguinte:

(i) - Se o Tribunal a quo incorreu (ou não) em erro de direito ao não ter sancionado o incumprimento do arguido à medida de coacção primeiramente imposta com o decretamento da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 203º e 212º, do Código de Processo Penal.

III

Vem o presente recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público porquanto, em suma, não se conforma com o indeferimento do pedido de agravamento do estatuto pessoal/medidas de coacção a que o arguido se acha sujeito no âmbito dos presentes autos e, consequentemente, com a rejeição da sua submissão à medida de coacção privativa de liberdade de prisão preventiva cuja aplicação havia requerido em sede de interrogatório complementar do arguido.

Como temos repetidamente afirmado em diferentes arestos em que a matéria em causa respeita à liberdade dos cidadãos, a [aplicação de] prisão preventiva exige uma definição rigorosa e clara dos respectivos pressupostos que se reavivam.

O estado de liberdade é o estado natural de todo o ser humano [Simas Santos e Leal-Henriques em “Código de Processo Penal Anotado”, vol. I, Rei dos Livros, 2ª ed., pág. 993, em anotação ao artigo 202º afirmam “A liberdade individual é, a seguir à vida, um dos mais relevantes bens do Homem”] e é, por isso, que o direito à liberdade vem consagrado como um direito fundamental no artigo 27º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, definindo logo o texto constitucional as excepções a esse direito entre as quais (cfr. nº 3, alínea b), do citado preceito) a possibilidade de prisão preventiva por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, pelo tempo e nas condições que a lei determinar.

Para que ficasse bem vincada a excepcionalidade da prisão preventiva, o artigo 28º, nº 2, do texto constitucional assim o consagra expressamente, mais estipulando que não pode ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.

Assim, da Constituição logo resultam os princípios fundamentais a observar em matéria de aplicação de medidas de coacção e, particularmente, no que concerne à privação da liberdade, a sua natureza excepcional e, portanto, residual e subsidiária relativamente a outras medidas de coacção.

No desenvolvimento do texto constitucional a lei processual penal estabelece diversos requisitos substantivos de cuja verificação depende a aplicação de medidas de coacção, alguns deles traduzidos em princípios que directamente derivam daquele texto.

Assim, o artigo 191º, nº 1, do Código de Processo Penal estipula que “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.” – princípio da legalidade das medidas de coacção. Consiste este princípio em que só pode ser aplicada medida de coacção ou de garantia patrimonial prevista na lei e para os fins de natureza cautelar nela previstos.

O artigo 192º, nº 6, do mesmo diploma estipula que “Nenhuma medida de coacção (…) é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.” – princípio da necessidade na aplicação de medidas de coacção, que consiste em que o fim visado pela concreta medida de coacção decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido.

O artigo 193º, nº 1, do citado diploma preceitua que “As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.” – princípios da adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas de coacção. Destes princípios decorre, por um lado, que as medidas de coacção e de garantia patrimonial devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e, por outro, proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao arguido.

O nº 2 do mesmo preceito, importando o próprio texto constitucional, determina que a prisão preventiva bem como a permanência na habitação só possam ser decretadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção – princípio da subsidiariedade na aplicação da medida de coacção privativa da liberdade, a que alguns autores se referem como critério de última ratio.

O artigo 202º, nº 1, do Código de Processo Penal, reforçando os princípios da adequação e subsidiariedade, estipula novos requisitos substantivos agora relativos ao crime imputado e grau de indiciação da sua prática, ponto de partida para o equacionar da aplicação deste tipo de privação da liberdade. E para que tal possa ser equacionado, à luz dos princípios antes referidos, necessário é que, prima regra, existam fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos – cfr. alínea a) do citado preceito. Ou seja, nos termos do preceituado no artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, a prisão preventiva apenas pode ser aplicada se estiver em causa crime doloso, desde que punível com pena de prisão de limite superior a cinco anos e desde que fortemente indiciada a sua prática pelo respectivo agente e destinatário da medida. Note-se, novamente, que a este nível ainda se exige que, num juízo de prognose, seja proporcional à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada, o que deve impedir a sua aplicação quando seja previsível a aplicação de pena de multa cominada alternativamente na norma incriminadora, a aplicação de pena de prisão substituível por multa ou de duração previsivelmente inferior à da privação da liberdade ou, ainda, cuja execução venha a ser suspensa.

E, se é certo que o legislador de 2010 (através da Lei nº 26/2010, de 30.08, entrada em vigor em 29.10.2010, que deu nova redacção a vários preceitos do Código de Processo Penal, designadamente aos artigos 1º, alíneas j) e m) e 202º, do mesmo diploma), veio permitir o alargamento da admissibilidade da prisão preventiva a crimes puníveis com pena de prisão de máximo igual a cinco anos (por via do alargamento do conceito de criminalidade violenta – cfr. artigos 1º, alínea j) e 202º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal), e bem assim a crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a três anos (quer por via do alargamento do conceito de criminalidade altamente organizada – cfr. artigos 1º, alínea m) e 202º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, quer por via do conteúdo normativo vertido nas alíneas d) e e), do no mencionado artigo 202º), não é menos certo que optou claramente por manter a regra de que a prisão preventiva só pode ser aplicada aos crimes dolosos puníveis com pena máxima de prisão superior a cinco anos, nos termos da alínea a) do nº 1, do artigo 202º, que não sofreu alterações.

Por último, a lei processual penal fornece-nos o quadro das exigências cautelares que justificam a aplicação de medidas de coacção, que não o termo de identidade e residência, sob a designação de requisitos gerais da aplicação das medidas de coacção (quanto aquela medida – termo de identidade e residência - deve ser sempre aplicada independentemente da existência ou não das exigências cautelares que a seguir se referem) – cfr. artigo 204º, do Código de Processo Penal.

Preceitua o artigo 204º, do Código de Processo Penal que “Nenhuma medida de coacção à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”.

Ou seja, relativamente a medidas privativas da liberdade, as referidas exigências cautelares terão de ser de tal modo intensas que se possa concluir que não podem ser devidamente acauteladas com a aplicação de qualquer outra medida de coacção não privativa da liberdade, isolada ou cumulativamente, nos casos em que a cumulação é permitida.

Sem prejuízo do que adiante se afirmará, à luz dos princípios enunciados, importará apurar se na presente situação as medidas de coacção impostas ao recorrente aquando do seu primeiro interrogatório judicial realizado em 03.12.2020 - obrigação de não permanecer nas imediações da residência e do local de trabalho da ofendida e em qualquer outro local por esta frequentado e obrigação de não contactar por qualquer forma com a ofendida, ficando a execução de tais medidas controlada por vigilância electrónica - v.g. artigos 191º, 193º, nºs 1 e 2, 204º, alíneas b) e c) e 200º, nº 1, alíneas a) e d), do Código de Processo Penal e 31º, nº 1, alínea d) e 36º, nº 7, da Lei nº 112/2009, de 16.09 - continuam conformes às exigências prescritas nos mencionados artigos do Código de Processo Penal e 27º e 28º, da Constituição da República Portuguesa, ou se, entretanto - aquando do despacho judicial recorrido que determinou a manutenção de tal status quo - tais medidas de coacção, porque incumpridas pelo arguido, devem ser revogadas e substituídas pela medida de coacção de prisão preventiva.

É que, convém enfatizar, in casu estamos no âmbito dos normativos a que aludem os artigos 203º, do Código de Processo Penal, [que sob o título “Violação das obrigações impostas”, dispõe, “1 - Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas neste Código e admissíveis no caso. 2 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 193.º, o juiz pode impor a prisão preventiva, desde que ao crime caiba pena de prisão de máximo superior a 3 anos: a) Nos casos previstos no número anterior; ou b) Quando houver fortes indícios de que, após a aplicação de medida de coacção, o arguido cometeu crime doloso da mesma natureza, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.”] e 212º, do mesmo Código [que, sob a epígrafe “Revogação e substituição das medidas”, estatui, “1- As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar: a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação. 2- (…). 3- (…). 4- (…).”.

Sendo sabido que as medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus no sentido que a sua validade e eficácia permanecem inalteradas enquanto inalterados se mantiverem os pressupostos em que o seu decretamento assentou, não é menos certo que as medidas de coacção podem ser modificadas ou substituídas quando se verificar uma violação das obrigações por elas impostas, ou um agravamento das exigências cautelares ou, ao invés, um desagravamento dessas mesmas exigências.

O juiz pode substituir a medida aplicada por outra mais grave ou determinar uma forma mais gravosa da sua execução, necessário é, porém, que se verifique um agravamento das exigência cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção. O agravamento destas exigências pode não depender da violação das obrigações decorrentes da medida de coacção imposta, posto que pode haver agravamento das exigências cautelares sem violação das ditas obrigações.

Quer se atente nas situações elencadas no artigo 212º ou nas prevenidas no artigo 213º, ambos do Código de Processo Penal, a lei pressupõe sempre [sublinhado nosso] que algo mudou entre a primeira decisão e a segunda ou subsequentes decisões de reexame dos pressupostos de facto e de direito das medidas de coacção, maxime das privativas de liberdade. Recordando o ilustre Professor Alberto dos Reis, em caso algum pode o juiz, sem alteração das circunstâncias de facto ou de direito, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão. É que, também aqui, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objecto, nos termos do disposto no artigo 666º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Ora, no caso em apreço, como se afirma na decisão recorrida, dúvidas inexistem que o arguido, com 70 (setenta) anos de idade, se opôs à instalação do sistema de vigilância electrónica e fundou tal oposição na argumentação oferecida pelo próprio e acolhida na decisão recorrida que bulia a mesma com a sua reputação na comunidade em que vive e bem assim com os tratamentos médicos a que se acha sujeito por padecer de doença cancerígena.

Como na decisão recorrida, dúvidas não temos que as razões apresentadas pelo arguido não têm a virtualidade de fundamentar ou justificar aquela sua oposição. Porém, como entendido pelo Tribunal a quo, diferentemente da pretensão recursiva, cremos que a postura do arguido não permite, à data da decisão recorrida, concluir pelo incumprimento culposo das decretadas medidas de coacção, mais se nos afigurando que, ciente que ficou das putativas consequências da sua oposição/incumprimento, pautará, no futuro, a sua conduta de acordo com o estatuto pessoal a que se acha sujeito. Como se lê na decisão recorrida e se acolhe, “não é seguro afirmar que estamos perante uma recusa injustificada, uma rebelião a uma ordem judicial ou, ainda, que o arguido incorreu em incumprimento culposo da medida de coacção, tanto mais que o mesmo declarou em sede de interrogatório complementar antecedente, que aceita sujeitar-se à medida de vigilância electrónica, pedindo apenas para não ter que usar o equipamento nas suas deslocações para tratamento médico.”. Acresce que os autos não demonstram, nem informam ter ocorrido, à data da decisão proferida, qualquer agravamento das exigências cautelares per se.

Do exposto resulta que o recurso interposto não merece, pois, provimento.

IV

Nos termos do disposto no artigo 522º, do Código de Processo Penal, não há lugar a tributação.

V

Decisão

Nestes termos, acordam em:

A) - Negar provimento ao recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público e, em consequência, manter a decisão recorrida nos seus precisos termos;

B) - Não ser devida tributação.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente por ambos os subscritores (cfr. artigo 94º, nºs 2 e 5, do Código de Processo Penal)]

Évora, 9 de Novembro de 2021

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

J. F. Moreira das Neves