PEDIDO CIVIL EMERGENTE DA PRÁTICA DE CRIME
REMESSA DAS PARTES PARA OS TRIBUNAIS CIVIS
Sumário

1. O juiz só poderá remeter as partes de pedido cível enxertado no processo penal para os tribunais cíveis, nos termos previstos no artigo 82.º, § 3.º CPP, se razões poderosas do julgamento da causa cível o impuserem ou verificando-se circunstância que possa retardar intoleravelmente o julgamento da causa penal.
2. Na ponderação a efetuar o juiz não poderá deixar de equacionar os prejuízos que de tal remessa poderão advir para as vítimas do crime, nomeadamente o desperdício de tempo e de meios já investidos no processo penal, o aumento de custos e o potencial risco de contradição de julgados.

Texto Integral

I – NOTA PRELIMINAR
No exame preliminar (1) verifica-se que a questão a decidir – critério sobre a remissão dos pedidos cíveis para os meios comuns – vem sendo judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado (2) , circunstância que integra o pressuposto previsto no artigo 417.º, § 6.º, al. d) do CPP, pelo que se passa a proferir Decisão Sumária.

II – RELATÓRIO

1. No 2.º Juízo (3) Local de Lagos, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro corre processo criminal contra JFFB, acusada que foi pelo Ministério Público, como autora de um crime de homicídio por negligência, previsto no artigo 137.º, § 1.º do Código Penal (CP), em concurso com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto no artigo 291.º, n.º 1, al. b) CP e nove contraordenações.

DOCM e LOCM, na qualidade de ofendidos e lesados, constituíram-se assistentes nos autos e deduziram pedido civil contra L…– Companhia de Seguros, S. A., requerendo a condenação desta a pagar-lhes indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante de 203 384€, acrescida de juros moratórios, em virtude da morte do seu progenitor (LFCM), decorrente de acidente de viação causado pela arguida (cujo veículo se encontrava segurado na demandada).

Contrariamente ao que parece vir indicado nesse petitório, a parte civil (demandante) são os menores (não a sua mãe - que é apenas a representante deles, conforme decorre do disposto no artigo 74.º, § 1.º CPP e 16.º, § 1.º CPC).

Também o Centro Hospitalar … deduziu pedido de indemnização contra a referida seguradora, para indemnização decorrente das despesas que teve com o internamento do malogrado LFCM.

Estes pedidos cíveis foram admitidos por despacho judicial no qual igualmente se designou data para audiência (artigo 311.º CPP).

Posteriormente NJC, alegando que vivia em união de facto com o malogrado LFCM (vítima mortal no acidente de viação referido), constituiu-se assistente nos autos e, suscitando de introito o que denominou «incidente de oposição», deduziu pedido civil contra a mesma seguradora (4) !

Na sequência da apresentação deste pedido civil a Mm.a Juíza proferiu o seguinte despacho (transcrição):

«Face à dedução do específico incidente, por parte da assistente NJC, o Tribunal entende que, para efeitos do disposto no artº 82º, nº 3, do CPP, a questão suscitada retardará de forma acentuada o presente processo penal.

Assim, decide-se remeter as partes civis para os tribunais civis, ficando sem efeito a parte do despacho de 12.05.2021, que admitiu os pedidos de indemnização civil.

Notifique.»

2. Inconformados com esta decisão, por a considerarem violadora do princípio da adesão, constante do artigo 71.º CPP e da natureza excecional da remessa das partes para os tribunais civis, dela recorreram os ofendidos/lesados DOCM e LOCM, apresentado as seguintes conclusões (transcrição):

«1 – Em 14/5/2021, os assistentes, aqui recorrentes, foram notificados do despacho que designa dia para a audiência, nos termos do artigo 313 do CPP, proferido em 12/5/2021.

2 - Através de tal despacho, transitado em julgado, foi designado o dia 6/10/2021 para a realização do julgamento e admitido o pedido de indemnização civil apresentado pelos recorrentes.

3 - Ou seja, o julgamento está agendado para daqui a cerca de 4 meses.

4 – A decisão de admissão ou não admissão do incidente apresentado pela assistente NC não irá provocar um retardamento intolerável do processo porque poderá e deverá ser tomada sem que ponha em causa o agendamento do julgamento.

5 – O despacho recorrido é omisso na fundamentação que sustenta a remessa das partes civis para os meios civis, não podendo servir de argumento o simples facto de ter sido deduzido um incidente nos autos.

6 – A aplicação do artigo 82, nº3 do CPP é de carácter excecional, não se encontrando verificada tal excecionalidade no caso em apreço.

7 – Pelo que, o despacho recorrido violou o artigo 71 e 82, nº3, ambos do CPP.»

3. O Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância respondeu ao recurso sustentando não se verificar a excecionalidade prevista na lei, mais considerando que a decisão de admissão ou de não admissão do incidente apresentado pela assistente NC não provocará retardamento intolerável ou insustentável na regular marcha do processo.

4. Respondeu também a assistente NJC, sustentando que em seu entendimento se verificam os pressupostos do artigo 82.º, § 3.º CPP, devendo as partes discutir as suas razões nos meios civis.

5. Neste Tribunal Superior o Ministério Público limitou-se a apor visto.

III – FUNDAMENTAÇÃO.

a. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (5) .

De acordo com as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância é a de saber se os termos da causa integram a exceção que permite remeter o litígio cível das partes, conexo com a questão penal, para os meios comuns (para o tribunal cível).

b. Cumpre conhecer

Dispõe o artigo 129.º CP que a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Isto é, o regime substantivo relativo aos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, fundada na culpa do lesante, ou a fundada no risco, é o do direito civil, constante matricialmente nos artigos 483.º, 494.º, 496.º, 499.º e ss., 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil.

Mas adjetivamente o nosso sistema consagra o chamado «princípio da adesão obrigatória», previsto no artigo 71.º CPP, segundo o qual: «o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.» Havendo, pois, um sistema de dependência da ação cível face à ação penal, que tem como exceções as previstas no artigo 72.º CPP e as circunstâncias previstas no § 3.º do artigo 82.º CPP.

Este princípio da adesão assenta em três pilares essenciais: na economia processual (organizando-se um só processo); uniformização de julgados; e celeridade e eficácia no reconhecimento dos direitos dos lesados à indemnização.

Admite-se, porém, excecionalmente a formulação de pedidos em separado, nos tribunais cíveis, nos casos previstos no artigo 72.º CPP; podendo, também excecionalmente, vir a determinar-se a remissão para os tribunais cíveis dos pedidos formulados no processo penal quando estes, pela sua complexidade, inviabilizem uma decisão rigorosa no processo penal; ou quando por efeito de incidentes inerentes a tais pedidos de indemnização civil isso puder retardar intoleravelmente o processo penal (artigo 82.º, § 3.º CPP).

Tal poderá suceder quando tal «comprometer significativamente o dever de o Estado assegurar, no processo penal, os direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente do arguido, maxime o seu direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa; por último, pode o atraso colocar em crise a última das finalidades primárias do processo penal, apontadas: o restabelecimento da paz jurídica comunitária ou paz social, particularmente relevante em crimes especialmente graves, designadamente quando se trate de crimes contra as pessoas.» (6)

No caso presente não é isto que sucede.

Vejamos. O tribunal a quo fundou a decisão de reenvio de todas as ações cíveis enxertadas para os tribunais civis, em razão da «dedução do específico incidente, por parte da assistente N [o qual] retardará de forma acentuada o presente processo penal.»

Ora, se é certo que a lei atribui larga margem ao juiz para remeter as partes para os tribunais civis (artigo 82.º, § 3.º CPP), seguramente que para o invocado retardamento alguma razão concreta, efetiva e séria, terá de haver (7).

Mas nenhuma se indicou!

Por que razão tal «incidente» retardará o processo penal?

Não descortinamos de onde possa advir circunstância que possa protelar «intoleravelmente» (§ 3.º do artigo 82.º CPP), isto é, de modo insuportável (8), inaceitável (9), inadmissível (10) o andamento do processo criminal! (11)

O Ministério Público, titular da ação penal, também o não vislumbra.

É verdade que no pedido civil apresentado pela demandante NC se alude a um incidente de intervenção de terceiros, privativo do processo civil («incidente de oposição»), mas o mesmo não tem nenhum cabimento no processo penal, por este se reger por regras próprias relativas à dedução dos pedidos cíveis (artigos 73.º e ss.).

Donde, sendo o pedido tempestivo (artigo 76.º) deverá simplesmente ser o mesmo notificado à demandada para o exercício do contraditório; e não o sendo, terá de ser indeferido. Nada mais.

E como assim, não só não vislumbramos motivo para qualquer retardamento do processo penal (muito menos «intolerável), nem razão que possa comprometer o julgamento rigoroso e célere de toda a causa (a responsabilidade penal da arguida e a responsabilidade civil transferida para a seguradora demandada), como o julgamento conjunto de toda a matéria permitirá lograr, de forma integrada, uma decisão harmoniosa, como afinal é preconizado pela lei (neste sentido apontando também o artigo 16.º da Diretiva 2012/29/EU do Parlamento e do Conselho, de 25out20212, na sequência da Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho. de 15 de março de 2001).

Ao invés disso, o reenvio das partes para os tribunais civis, como preconizado no despacho recorrido, acarretaria para as vítimas e demais intervenientes um prejuízo acrescido, com desperdício de tempo e de meios já investidos neste processo, aumento de custos e sobretudo potencial risco de contradição de julgados.

A referência feita às «vítimas» alinha com a evolução recente do processo penal, no sentido de uma acrescida tutela dos seus direitos (v. g. artigo 67.º-A CPP, Estatuto da vítima (12) e o Regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica (13) ), que a jurisprudência (14) e a doutrina (15) vêm igualmente valorizando, sendo também e indubitavelmente parcela relevante dessa tutela o julgamento célere e integrado de todas as questões que as envolve.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, deverá dar-se provimento ao recurso.

IV – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, no integral provimento do recurso, decide-se:

a) Revogar a decisão recorrida, determinando-se, nos termos sobreditos, o prosseguimento das causas cíveis neste processo criminal.

b) Custas a cargo da assistente Natasha Jones Costa, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (artigo 515.º, al. b) CPP).

c) Notifique.

Évora, 17 de novembro de 2021

J. F. Moreira das Neves

Assinado digitalmente

1 Ultrapassadas que estão as questões relacionadas com a admissibilidade e tempestividade do recurso e da legitimidade dos recorrentes, uma vez que foram conhecidas em despacho anterior do relator, juntamente com determinação de junção ao presente apenso de peças processuais em falta.

2 Há jurisprudência uniforme e reiterada no sentido de não se verificando razões muito fortes a implicar a separação dos processos, em linha com a excecionalidade subjacente ao § 3.º do artigo 82.º CPP, deve manter-se a unidade procedimental de julgamento no processo penal: cf. acórdãos do TRGuimarães, de 8/2/2021, proc. 111/18.6T9VRL-A.G1, Des. Teresa Coimbra; Ac. TRGuimarães, de 26/6/2017, proc. 299/16.1T8BRG.G1, Des. Amílcar Andrade; do TRPorto, de 3/10/2018, proc. 4169/15.1T9AVR-A.P1: do TRCoimbra, de 12/12/2012, proc. 344/08.3TACBR-A.C1, Des. Alberto Mira; do TRE, de 3/10/2018, proc. 1646/07.1PCSTB, Des. Proença da Costa; do TRÉvora, de 21set2021, proc. 153/15.3GJBJA-A.E1, Des. Laura Goulart Maurício; e do TRÉvora, de 9/11/2021, proc. 276/15.9 GFELV-A.E1, Des. Maria Filomena Soares (no qual o signatário foi adjunto).

3 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

4 Mais dando nota de ter intentado ação cível contra a Lusitânia – Companhia de Seguros, S. A., a correr termos no Juízo Central Cível de Portimão (proc. 1792/19.9T8PTM).

5 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

6 Acórdão de 21set2021, proc. 153/15.3GJBJA-A.E1, Des. Laura Goulart Maurício.

7 Neste conspecto divergindo das opiniões que sustentam que a decisão de remessa dar partes para os tribunais civis constituem atos dependentes da livre resolução do tribunal, sendo por isso irrecorríveis (Henriques Gaspar, Código de Processo Penal comentado, 2021, 3.º edição, Almedina, pp. 239/240 (em anotação ao artigo 82.º); e Luís Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, 2019, Almedina, pp. 876 (em anotação ao artigo 82.º).

8 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, pp. 2147.

9 Idem.

10 Ibidem.

11 Jurisprudência uniforme e reiterada no sentido de não se verificando razões muito fortes a implicar a separação dos processos, deve manter-se a unidade procedimental de julgamento no processo penal: cf. acórdãos do TRGuimarães, de 8/2/2021, proc. 111/18.6T9VRL-A.G1, Des. Teresa Coimbra; Ac. TRGuimarães, de 26/6/2017, proc. 299/16.1T8BRG.G1, Des. Amílcar Andrade; do TRPorto, de 3/10/2018, proc. 4169/15.1T9AVR-A.P1: do TRCoimbra, de 12/12/2012, proc. 344/08.3TACBR-A.C1, Des. Alberto Mira; do TRE, de 3/10/2018, proc. 1646/07.1PCSTB, Des. Proença da Costa; do TRÉvora, de 21set2021, proc. 153/15.3 GJBJA-A.E1, Des. Laura Goulart Maurício; e do TRÉvora, de 9/11/2021, proc. 276/15.9 GFELV-A.E1, Des. Maria Filomena Soares (no qual o signatário foi adjunto).

12 Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.

13 Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro.

14 Cf. acórdão do TRLisboa, de 12/2/2014, proc. 4811/12.6T3AMD.L1-3, Des. Jorge Langweg.

15 Cf. Pedro Miguel Vieira, A Vítima Enquanto Sujeito Processual e à Luz das Recentes Alterações Legislativas, JULGAR, n.º 28, 2016, pp. 171 ss.; e Maria Inês Pina Cabral de Sá Couto, O Princípio de Adesão vigente no Código de Processo Penal Português: Uma vantagem ou um inconveniente? Faculdade de Direito, Universidade Católica Portuguesa, 2019, pp. 29; O Novo Estatuto da Vítima em Portugal: Sujeito ou enfeite do Processo Penal Português?