EXECUÇÃO ESPECÍFICA
NÃO CUMPRIMENTO
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PRAZO
INTERPELAÇÃO
CITAÇÃO
Sumário

I) Para efeitos de admissibilidade da execução específica é suficiente a mora no cumprimento da obrigação, não sendo necessária a conversão daquela em incumprimento definitivo.
II) A parte cumpridora num contrato-promessa não pode obter através da execução específica um efeito jurídico que o promitente faltoso esteja impedido de produzir.
III) Não pode considerar-se que não tenha prazo o contrato-promessa em que se clausulou que “… a escritura seria efectuada logo após estar toda a documentação em ordem, o que se previa ocorresse no prazo de seis meses a contar da data da assinatura do contrato promessa;” e que “… a escritura seria marcada pela promitente vendedora, ou seus legais representantes, os quais avisariam a promitente compradora da data da mesma, por escrito e com pelo menos oito dias de antecedência, a qual deveria nesse prazo indicar quem será o comprador definitivo.”.
IV) O contrato referido em III) tem prazo definido por uma cláusula de termo incerto ou de natureza híbrida, devendo a escritura ser marcada, por força da boa-fé, num prazo breve, curto, após a obtenção da documentação.
V) A interpelação para cumprimento da promessa pode resultar da citação para a acção em que se peticiona a execução específica do contrato-promessa.

Texto Integral

Acordam a 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A..., S.A., com sede na Rua ...., Lisboa, propôs a presente acção declarativa com processo comum contra B..., residente na Plaza ...., Madrid, Espanha, pedindo:
A) Se proferisse sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial da ré, ou seja, vender à autora os três imóveis sitos no lugar de x... , freguesia de y... , concelho de w... , inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 4232, 4231 e 4233, e descritos na Conservatória do Registo Predial de w... sob os números 3091, 3089 e 3090, nas condições convencionadas no contrato-promessa de compra e venda celebrado no dia 12 de Abril de 2004;
B) Subsidiariamente, se tal não fosse possível, a condenação da ré, nos termos do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, no pagamento da quantia pecuniária referente à diferença entre o preço fixado no contrato-promessa e o actual valor do prédio, acrescida da quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento a liquidar em execução de sentença, mas nunca inferior a € 250 000,00;
C) Se declarasse que, desde 12 de Abril de 2004, a autora entrou na plena fruição dos três imóveis e ali desenvolve explorações agrícolas (ali edificou muros e vedações, procedeu a desaterros, terraplanagens, abriu poços, instalou sistemas de rega gota-a-gota, plantou vinhas, pomares de macieiras e pereiras, olivais, etc), exercendo, assim, sobre tais imóveis e desde aquela data uma posse pública, pacífica, continuada e de boa fé, na convicção segura de que é a única e exclusiva possuidora desde a data referida e simultaneamente de que sobre os ditos imóveis tem o animus de vir a tornar-se proprietária;
D) A condenação da ré a reconhecer que a autora goza do direito de retenção sobre os três identificados imóveis.

Para o efeito alegou em síntese:
1. Que no dia 12 de Abril de 2004, celebrou com C... , entretanto falecida, um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual esta prometeu vender à autora os seguintes imóvis, de sua propriedade, todos eles sitos em x... , freguesia de y... , concelho de w... :
a) Pinhal, sito à Cerca, com a área aproximada de 2.300 m2 omisso na matriz, e sem descrição na competente Conservatória do Registo Predial de w... , a confrontar a norte com ribeiro, nascente com ... e outro, sul com ... e outros e poente com....;
b) Pinhal, sito ao Olival da Capela, com a área aproximada de 100.000 m2, omisso na matriz, e sem descrição na competente Conservatória do Registo Predial, a confrontar de norte com ribeiro, de nascente com caminho e outros, de sul com ... e outros, e de poente com herdeiros de .... e outros;
c) Terreno de cultura e pastagem, sito ao Olival da Capela, com a área aproximada de 97.000 m2, omisso na matriz, e sem descrição na competente Conservatória do Registo Predial, a confrontar de norte com ..... e outros, de nascente com .... e caminho, de sul com ribeiro, e de poente com ... e outros.
2. Que o preço da prometida venda, € 48 000,00 (quarenta e oito mil euros), foi integralmente pago pela autora;
3. Que a autora entrou de imediato na posse dos prédios onde procedeu a obras e benfeitorias;
4. Que nos termos do contrato-promessa ficou ajustado que cabia à promitente vendedora, ou aos seus legais representantes, proceder à marcação da escritura de compra e venda, devendo avisar a autora da data da mesma, por escrito e com pelo menos 8 dias de antecedência;
5. Que C... prometeu celebrar a respectiva escritura pública «… logo após estar toda a documentação em ordem, o que previa ocorra no prazo de seis meses contar da data de assinatura do presente contrato-promessa.»;
6. Que a ré é herdeira e legatária de C... ;
7. Que a ré herdou os três imóveis a que respeita o contrato-promessa;
8. Que o legal representante da promitente vendedora, na qualidade de procurador da ré B... , requereu junto do Serviço de Finanças de w... a inscrição na matriz dos prédios prometidos vender, aditou tais imóveis à relação de bens do falecido marido da promitente vendedora e procedeu de igual modo junto da Conservatória do Registo Predial de w... ;
9.  Que a ré não diligenciou no sentido de marcar a escritura de compra e venda apesar de a autora ter instado inúmeras vezes os sucessivos procuradores da ré nesse sentido.

A ré contestou a acção. Na sua defesa, além de tomar posição sobre os factos narrados na petição (aceitando uns, impugnando outros e declarando, ainda em relação a outros, que os desconhecia, sem ter a obrigação de os conhecer), alegou que, embora mantivesse interesse no cumprimento do contrato-promessa e o quisesse cumprir, não o podia fazer na presente data porque no início de Janeiro de 2019, assinou por erro, dolo e incapacidade acidental, outros contratos-promessa de compra e venda dos mesmos prédios, tendo pedido a nulidade de tais contratos através de acção intentada contra J... , que corre termos no juiz 2 do juízo central cível da comarca de Coimbra sob o n.º 1515/19.2T8CBR.

Terminou a contestação pedindo:
· A procedência do pedido principal e consequente marcação de escritura definitiva de compra e venda, quando possível e determinado por sentença;
· A improcedência total dos restantes pedidos por falta de prova e inutilidade superveniente face ao cumprimento do contrato-promessa quando possível e determinado por sentença.

No despacho saneador, a Meritíssima juíza do tribunal a quo, conhecendo do mérito da acção, julgou a acção totalmente improcedente e em consequência:
1. Não determinou a execução específica do contrato-promessa celebrado entre a autora e a ré, no dia 12 de Abril de 2004;
2. Não declarou resolvido o contrato-promessa celebrado entre a autora e a ré, no dia 12 de Abril de 2004;
3. Não declarou que, desde 12 de Abril de 2004, a autora tem a posse sobre os prédios rústicos objecto do contrato-promessa;
4. Não declarou o direito de retenção da autora sobre os prédios objecto do contrato-promessa;
5. Absolveu a ré do demais peticionado.

O recurso

(…)


*

Objecto do recurso

Antes de entrarmos na apreciação do recurso, importa precisar o respectivo objecto. Esta precisão impõe-se pelo seguinte. A parte dispositiva da sentença contem várias decisões desfavoráveis à recorrente e uma vez que esta, no requerimento com que interpôs o recurso, não o restringiu a nenhuma delas, o recurso abrangia todas as decisões (n.ºs 2 e 3 do artigo 635.º do CPC).

Sucede que nas conclusões da alegação, a recorrente insurgiu-se apenas contra a decisão que julgou improcedente o pedido principal (pedido de execução específica do contrato-promessa).

Considerando este facto e o n.º 4 do artigo 635.º do CPC, é de afirmar que o recurso tem como objecto apenas a decisão que julgou improcedente o pedido principal. Estão, assim, fora do objecto do recurso as decisões que julgaram improcedentes os pedidos subsidiários. Deste modo, na hipótese de este tribunal julgar improcedente o recurso não lhe cabe conhecer da legalidade das restantes decisões.


*

Factos a considerar provados

Ainda antes de entramos na apreciação da questão suscitada pelo recurso, importa precisar os factos que devem ser considerados provados.

Esta precisão impõe-se uma vez que a sentença sob recurso, apesar de entender que o estado do processo lhe permitia conhecer sem necessidade de mais provas, do mérito da causa, não discriminou, de entre os factos alegados pela autora, ora recorrente, quais os que considerava provados. Ao arrepio do que prescreve o n.º 3 do artigo 607.º do CPC, segundo o qual é dever do juiz discriminar os factos que considera provados, a sentença laborou com base nos facos alegados pela autora, “independentemente da sua prova ou não prova”.

Este tribunal considera admitidos por acordo os seguintes factos alegados pela autora:
1. No dia 12 de Abril de 2004, a Autora outorgou com a C... , entretanto falecida, que também usava e foi conhecida por CC... , escrito particular epigrafado “contrato-promessa de compra e venda”.
2. A ré B... é herdeira e legatária de C... .
3. Fruto desse Legado, a Ré B... herdou, entre muitos outros, os três imóveis a que respeita o Contrato-promessa.
4. Nos termos das cláusulas 1ª e 2ª do contrato de promessa celebrado, a de cujus  C... prometeu vender à Autora os seguintes imóveis, de sua propriedade, todos eles sitos em x... , freguesia de y... , concelho de w... :
a) Pinhal, sito à Cerca, com a área aproximada de 2.300 m2, omisso na matriz, e sem descrição na competente Conservatória do Registo Predial de w... , a confrontar a norte com ribeiro, nascente com ... e outro, sul com ... e outros e poente com ...;
b) Pinhal, sito ao Olival da Capela, com a área aproximada de 100.000 m2, omisso na matriz, e sem descrição na competente Conservatória do Registo Predial, a confrontar de norte com ribeiro, de nascente com caminho e outros, de sul com ... e outros, e de poente com herdeiros de ... e outros;
c) Terreno de cultura e pastagem, sito ao Olival da Capela, com a área aproximada de 97.000 m2, omisso na matriz, e sem descrição na competente Conservatória do Registo Predial, a confrontar de norte com ... e outros, de nascente com ... e caminho, de sul com ribeiro, e de poente com ... e outros.
5. O preço da venda prometida foi de 48 000,00 euros (quarenta e oito mil euros), que foi integralmente pago pela autora.
6. Nos termos do Contrato-promessa sub judice ficou ajustado que competia à promitente vendedora, ou aos seus legais representantes, proceder à marcação da prometida Escritura de compra e venda, devendo avisar a Autora da data da mesma, por escrito e com pelo menos 8 dias de antecedência
7. Sendo certo que a C... prometeu celebrar a respectiva escritura pública «… logo após estar toda a documentação em ordem, o que prevê ocorra no prazo de seis meses contar da data de assinatura do presente contrato-promessa.
8. Na verdade, à data, tais imóveis prometidos vender não se encontravam registados na Conservatória do Registo Predial de w... , nem se encontravam inscritos na respectiva matriz predial.
9. Fruto das diligências do Legal Representante da promitente vendedora, vieram os três prometidos imóveis a ser objecto do competente registo predial e inscrição matricial passando a identificar-se como segue:
a) Terra de Pinhal, sito à Cerca, lugar de x... , freguesia de y... , concelho de w... , com a área de 2.270 m2, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 4232, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de w... sob o nº 3091;
b) Terra de Pinhal, sito ao Olival da Capela, lugar de x... , freguesia de y... , concelho de w... , com a área de 105.500 m2, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 4231, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de w... sob o nº 3089;
c) Terreno de cultura e pastagem, sito ao Olival da Capela, com a área de 98.730 m2, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 4233, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de w... sob o nº 3090;
10. A autora instou D... , na qualidade de procurador da ré, no sentido de agendar a realização da escritura.
11. Depois, por diversas vezes instou pessoalmente o Sr. E... , entretanto nomeado procurador da Ré, no sentido de se agendar a celebração da escritura prometida.
12. Posteriormente, instou pessoalmente a Sr.ª F... , também nomeada procuradora da Ré, no sentido de se agendar a celebração da escritura prometida.
13. Entretanto, instou pessoalmente o Sr. Dr. G... , também nomeado procurador da Ré, no sentido de se agendar a celebração da escritura prometida.
14. Mais recentemente, instou pessoalmente a Sr.ª Dr.ª H... , também nomeada procuradora da Ré, no sentido de se agendar a celebração da escritura prometida.
15. Por último, instou pessoalmente a Sr.ª I... , também nomeada procuradora da Ré, no sentido de se agendar a celebração da escritura prometida.
16. A ré não procedeu à marcação da escritura.

Visto que a ré, ora recorrida, alegou em relação aos factos descritos supra sob os números 10 a 16 que os desconhecia e que não tinha obrigação de conhecer (artigo 24.º da contestação) cumpre expor a razão pela qual, apesar desta posição processual, os consideramos admitidos por acordo.

Segundo o n.º 3 do artigo 574.º do CPC, se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.

No entender deste tribunal, os factos acima referidos compreendem factos pessoais e factos de que a ré deve ter conhecimento. Vejamos. Eles compreendem duas afirmações: uma a identificar os representantes da ré; outra a dizer que tais representantes foram instados a marcar a escritura de compra e venda.

As afirmações relativas à identificação dos representantes da ré são factos que lhe dizem directamente respeito. Daí que, em relação a eles, não pode valer como impugnação a declaração de que os desconhecia e que não tinha obrigação de os conhecer. Depõe a favor do dever de conhecimento de tais factos, a circunstância de a própria ré alegar que nunca lidou directamente com nenhum comprador e que teve sempre procuradores e representantes legais a fazê-lo em seu nome (artigo 39.º da contestação).

A outra afirmação a dizer que tais representantes foram instados a marcar a escritura de compra e venda, embora não compreenda um facto pessoal relativo à ré, é um facto que ela deve ter conhecimento. Na verdade, alegando a autora que havia instado os representantes da ré para marcar a escritura, e não impugnando ela, ré, que as pessoas identificadas na petição sejam, na realidade, seus representantes, era dever dela averiguar junto deles se foram instados ou não para marcar a escritura e, em resultado dessa averiguação, tomar posição definida sobre a alegação da autora. Assim lho impunha o dever de boa fé-processual (artigo 8.º do CPC). E assim a ignorância de tais factos não vale como impugnação.


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Descritos os factos passemos à resolução da questão suscitada pelo recurso.

O pedido principal da autora suscitava a questão de saber se lhe assistia o direito de executar especificamente o contrato-promessa de compra e venda que havia celebrado com C... .

A sentença respondeu-lhe negativamente com base em suma nos seguintes fundamentos:
· Que o acordo celebrado entre a autora e C... ajustava-se a um contrato-promessa de compra e venda, com eficácia meramente obrigacional sem a fixação de um termo resolutivo;
· Que o artigo 830.º do Código Civil exigia, para que o tribunal se pudesse validamente substituir ao devedor dando cumprimento à prestação em falta a verificação das seguintes condições: 1) que a natureza da obrigação assumida pela promessa não fosse incompatível com a substituição da declaração negocial; 2) que não existisse convenção em contrário; 3) que se verificasse a mora (retardamento culposo da obrigação de celebrar o contrato definitivo) e já não incumprimento definitivo pleo promitente demandado;
· Que no caso não se verificava a mora da ré. Segundo a sentença não se verificava a mora pela seguinte: 1) o prazo de cumprimento do contrato-promessa estava fixado a favor do promitente vendedor; 2) estando o prazo fixado a favor do promitente vendedor, ele só incorreria em mora se lhe tivesse sido fixado pelo promitente comprador um prazo para cumprir ou se o tribunal tivesse fixado um prazo para o cumprimento e ele não cumprisse dentro desse prazo e, no caso não se verificava, nenhuma destas hipóteses.

A recorrente contesta esta fundamentação imputando à sentença a violação do disposto nos artigos 356.º, n.º 1, 358.º, n.º 1, 780.º, n.ºs 1 e 2, 804.º, n.º 2, 830.º, n.º 1, do CC, bem como o disposto nos artigos 219.º e seguintes e 564.º do CPC. Esta imputação assenta, em síntese, na seguinte linha argumentativa:
1. Que a citação da ré valia como interpelação judicial ara cumprir a declaração negocial em falta, nos termos e para os efeitos do artigo 805.º do Código Civil;
2. Que as interpelações da ré para cumprir não eram necessárias porque: 1) a ré confessou o pedido da autora; 2) a ré confessou que outorgou um contrato-promessa a favor de terceiro, tendo por objecto os prédios prometidos vender à autora e que este facto significa que que a ré tem a intenção de não cumprir o contrato prometido à autora, em o significado de ma recusa categórica de cumprir o que configura incumprimento definitivo;
3. Que a ré afirmou nos artigos 56.º e seguintes da contestação que não é sua intenção celebra a escritura definitiva por estar impossibilitada de o fazer; recusa reiterada na audiência prévia e na resposta que apresentou em 29.01.2020;
4. Que perante estas declarações da ré é inútil e desnecessária a interpelação admonitória a que alude o artigo 805.º, n.º 1. Citou em seu abono o acórdão do STJ proferido em 26/01/1999, no processo n.º 07ª749, publicado na CJ Ano VII, Tomo I, páginas 61;
5. Que a ré, ao confessar ter prometido vender os mesmos imóveis a terceiro, diminuiu a garantia do cumprimento do contrato prometido, permitindo á autora exigir o cumprimento imediato da obrigação de celebração do contrato-prometido.

Apreciação do tribunal

A resposta à questão suscitada pelo recurso passa por responder à questão de saber se a sentença incorreu em erro quando afirmou que a autora, ora recorrente, não tinha o direito de obter a execução específica do contrato-promessa porque a ré não estava em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa de venda. Como se verá mais à frente, a procedência do recurso depende ainda da resposta que se der à questão de saber se ainda é possível à ré, ora recorrida, cumprir a promessa de venda.

Uma vez que estas questões estão relacionadas com a execução específica do contrato-promessa e com a mora do devedor, importa indicar e interpretar os preceitos aplicáveis à execução específica do contrato-promessa e à mora do devedor.

A execução especifica do contrato-promessa está sujeita ao regime do artigo 830.º do Código Civil. Para o caso interessa-nos de modo especial o n.º 1. Nos termos deste preceito “se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso sempre que a isso nãos e oponha a natureza da obrigação assumida”.

Resulta deste preceito que a execução especifica do contrato-promessa pressupõe a verificação das seguintes circunstâncias:
1. Que alguém se tenha obrigado a celebrar certo contrato;
2. Que não cumpra promessa;
3. Que não exista convenção em contrário à execução específica;
4. Que a natureza da obrigação assumida não se oponha à execução específica.

No caso está tão só em questão a verificação da segunda condição. Não se discute, assim, na presente apelação:
· Que o acordo celebrado entre a autora e C... ajusta-se à figura do contrato-promessa prevista no n.º 1 do artigo 410.º do Código Civil;
· Que se trata de um contrato-promessa de compra e venda, no qual a autora tem a posição de promitente compradora e C... a de promitente vendedora;
· Que com a morte da promitente vendedora, a ré sucedeu-lhe nos direitos e obrigações (artigo 412.º do Código Civil);
· Que não há convenção em contrário à execução específica;
· Que a natureza da obrigação assumida pela promitente vendedora não se opõe à execução especifica.

É, pois, a 2.ª condição que está em questão no recurso. E em relação a ela, não está em questão saber se a ré, ora recorrida, não cumpriu a promessa de venda. É um facto incontrovertido que a não cumpriu. Na verdade, dizendo o n.º 2 do artigo 762º do Código Civil que “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” e o n.º 1 do artigo 406º do Código Civil que “o contrato deve ser pontualmente cumprido…”, dá-se o não cumprimento do contrato-promessa quando algum dos promitentes não emite a declaração negocial correspondente ao contrato prometido nos precisos termos que constam da promessa. É o que se passa no caso com a declaração negocial de venda.

O que está em causa nesta apelação é saber se, apesar de não ter cumprido a promessa, a ré, ora recorrida, não está em mora quanto ao cumprimento dela. E a questão da mora assume relevância para efeitos de execução específica porque o n.º 1 do artigo 830.º do CC, na parte em que se refere ao não cumprimento da promessa, basta-se com o atraso, com a mora no cumprimento da obrigação. Citam-se abono desta interpretação do n.º 1 do artigo 830.º na parte em que se refere ao não cumprimento da promessa, a título de exemplo, as seguintes decisões do STJ: o acórdão do STJ proferido em 5 de Março de 1996, no recurso n.º 87 846 [acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ Ano IV, Tomo I – 1996, páginas 115 a 118], o acórdão do STJ de 07-10-2020, no processo n.º 341/18.0T8ABT.E1.S1 e o acórdão do mesmo tribunal proferido em 28-01-2021, no processo n.º 1790/17.7T8VFX.L1., ambos publicados em www.dgsi.pt.

De resto, foi com este sentido e alcance que o preceito foi interpretado pela sentença recorrida, sem qualquer reparo por parte da recorrente.

Daí que o n.º 1 do artigo 830.º, na parte em que se refere ao não cumprimento da promessa, remeta para o regime da mora do devedor, especialmente para a noção de mora constante do n.º 2 do artigo 804.º do CC e para o momento da constituição em mora constante do n.º 1 e n.º 2 do artigo 805.º do mesmo diploma.

Segundo o n.º 2 do artigo 804.º do CC, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devida.

O n.º 1 do artigo 805.º estabelece que o devedor só fica constituído em mora, depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

O n.º 2 do mesmo preceito prevê casos em que há mora do devedor, independentemente de interpelação.

Como se vê, a noção de mora remete para o tempo devido da prestação e para a possibilidade dela, ou seja, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, “A simples mora supõe a possibilidade futura do cumprimento da obrigação” [Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, página 61]. Assim, se a prestação não foi efectuada porque ainda não chegara o tempo devido para a sua realização não há mora. E se havia um tempo devido para a realização da prestação, mas se ela não foi efectuada em tal tempo porque ela se tornou impossível, a situação também não é de mora; será de impossibilidade da prestação ou de incumprimento definitivo.

Interpretando o n.º 2 do artigo 804.º do Código Civil com o sentido exposto, a resposta à questão de saber se a ré, que sucedeu nos direitos e obrigações da promitente vendedora, estava em mora quanto ao cumprimento da promessa de venda dos prédios, remete-nos para a questão do tempo devido para esse cumprimento e para a questão da possibilidade desse mesmo cumprimento.

Observe-se que a questão da possibilidade da venda dos prédios é de resolução obrigatória. Por um lado, como se escreveu no acórdão do STJ proferido em 18 de Fevereiro de 1997, no recurso n.º 472/96 “… o tribunal só pode substituir-se ao devedor faltoso no caso de este se recusar a celebrar o contrato prometido, podendo embora fazê-lo. As partes não podem conseguir, …, através do recurso ao tribunal, um efeito contratual que não pudessem elas próprias levar a cabo [acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência Acórdãos do STJ ano V Tomo I- 1997, páginas 111 a 113]. Por outro lado, a resposta à questão da mora está dependente de tal resposta. Por fim, a ré, ora recorrida, alegou na contestação que está impossibilitada de vender os prédios.

Sobre o momento devido para a celebração da escritura, os promitentes convencionaram o seguinte:
· Que a escritura seria efectuada logo após estar toda a documentação em ordem, o que se previa ocorresse no prazo de seis meses a contar da data da assinatura do contrato promessa;
· Que a escritura seria marcada pela promitente vendedora, ou seus legais representantes, os quais avisariam a promitente compradora da data da mesma, por escrito e com pelo menos oito dias de antecedência, a qual deveria nesse prazo indicar quem será o comprador definitivo.

Apesar de este acordo sobre o tempo de realização da escritura de compra e venda não compreender a indicação de uma data para a mesma, não se pode dizer que a obrigação de celebrar o contrato de compra e venda não tivesse prazo. Tinha-o. Sucede apenas que a celebração da escritura estava dependente de um facto futuro, de verificação certa para as partes (a obtenção da documentação necessária à celebração da escritura), mas em data incerta.  O acórdão do STJ proferido em 26 de Janeiro de 1994, no recurso n.º 84 478 julgou, a propósito de uma cláusula com teor semelhante à que consta do contrato-promessa em questão nos autos, que se estava perante uma cláusula de “termo incerto ou de natureza hibrida” [acórdão está publicado na Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano II, Tomo I – 1994, páginas 63 a 65]. A comprovar que o facto futuro foi perspectivado pelas partes como de verificação certa está a circunstância de elas terem previsto que a documentação seria obtida no prazo de seis meses a contar da data da assinatura do contrato-promessa.

Deste modo, a afirmação de que a ré incorreu em mora estava necessariamente dependente da prova de que a documentação necessária à escritura de compra e venda estava em ordem. A prova da obtenção da documentação competia à autora, ora recorrente, pois era um dos factos constitutivos do direito à execução específica (n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil).

Esta prova está feita. Vejamos. Apesar de os promitentes não terem especificado no contrato-promessa qual era a documentação que tinham em vista, os documentos em causa eram essencialmente os seguintes:
1. Certidão comprovativa da inscrição do prédio na matriz ou certidão comprovativa da declaração para inscrição, se os prédios tivessem omissos (n.º 1 do artigo 31.º do Código de Registo Predial);
2. Certidão comprovativa da descrição dos prédios na conservatória do registo predial (alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º do Código do Registo Predial);
3. Certidão comprovativa de que os bens estavam inscritos no registo predial a favor da promitente vendedora (alínea c) do n.º 1 do artigo 44.º do Código de Registo Predial).

Estes documentos foram obtidos, como o atestam o facto descrito sob o número 10 e os documentos juntos com a petição inicial sob os números 2, 3, 4, 17, 18 e 19, concretamente: certidões da Conservatória do Registo Predial comprovativas do registo de aquisição dos prédios a favor da ré, ora recorrida, desde de Janeiro de 2007, e certidões comprovativas da inscrição dos prédios na matriz. 

Uma vez obtida esta documentação era dever da ré, ora recorrida, marcar logo a escritura, sem necessidade de ser interpelada para o efeito. Na verdade, a promitente vendedora obrigou-se a marcar a escritura logo que obtida a documentação necessária para o efeito, sem necessidade de ser interpelada para tanto.

Apesar de as partes não terem concretizado quanto tempo depois da obtenção da documentação é que devia ser marcada a escritura, o dever de boa-fé (n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil) impunha à ré, ora recorrida, que marcasse a escritura num prazo breve, curto, após a obtenção de tal documentação, o que ela não fez.  

E ainda que se entendesse que a ré só cairia em mora quanto ao cumprimento da promessa se fosse interpelada pela autora para marcar a escritura de compra e venda, é de considerar verificada esta condição pois está provado que a ora recorrente instou diversas vezes os representantes da ré em tal sentido.

Observe-se que a interpelação da ré não carecia de ser feita com a advertência ou cominação de que, não sendo marcada a escritura no prazo indicado, se considerava não cumprida a promessa de venda. A fixação de um prazo ao devedor, que está em mora, para realizar a prestação, com a cominação de que, não a realizando nesse prazo, se considera não cumprida a obrigação está prevista na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil. A função de tal interpelação é a de converter a situação de mora do devedor na de incumprimento definitivo. Ora, como se escreveu mais acima, o n.º 1 do artigo 830.º do Código Civil, na parte em que se refere ao não cumprimento da promessa, basta-se com a mora no cumprimento da promessa. Não exige, pois, a conversão dessa mora em incumprimento definitivo.

Mais: mesmo que se julgasse não provado que os representantes da ré haviam sido interpelados para marcar a escritura, ainda assim devia considerar-se que a ré, ao ser citada para a presente acção, fora interpelada para cumprir a promessa de venda. Citam-se em abono deste entendimento o acórdão do STJ de 07-10-2020, no processo n.º 341/18.0T8ABT.E1.S1 e o acórdão do mesmo tribunal proferido em 28-01-2021, no processo n.º 1790/17.7T8VFX.L1., ambos publicados em www.dgsi.pt.

Diga-se, ainda a favor da tese de que a ré está em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa, que a constituição dela em tal situação não estava dependente da prévia fixação de um prazo, por parte do tribunal, dentro do qual devia a ré ora recorrida marcar a celebração da escritura pública de compra e venda. Vejamos.

Resulta do número 2 do artigo 777.º do Código Civil que o recurso do credor ao tribunal para fixar o prazo de cumprimento de uma obrigação pressupõe a verificação das seguintes circunstâncias:
1. Que nem o contrato nem a lei fixe prazo para o cumprimento da obrigação;
2. Que a fixação do prazo se se torne necessária, quer pela natureza da prestação, que por virtude das circunstâncias, quer por força dos usos;
3. Que as partes não acordam sobre a sua determinação.

Como se escreveu acima, o cumprimento da promessa estava sujeito a um facto futuro e incerto no tempo, mas provou-se que esse facto se verificou. Não se tornava, pois, necessária a fixação de um prazo, por parte do tribunal, para a ré cumprir a promessa.

Também como se escreveu acima, a não realização da prestação no tempo devido só faz incorrer o devedor em mora quando a prestação ainda seja possível.

Daí que para afirmar que a ré se considera constituída em mora quanto ao cumprimento da sua obrigação é necessário que a venda dos bens ainda seja possível.

Esta possibilidade é de afirmar, no caso, visto que a situação que a ré alega na contestação para justificar a impossibilidade de cumprir a promessa a que está vinculada não a impossibilita de vender os bens. Vejamos.

A ré alega, em síntese, que, no princípio de Janeiro de 2019, prometeu vender, por erro, dolo e incapacidade acidental, os bens a uma terceira pessoa e que propôs uma acção com vista a obter a declaração de nulidade de tal negócio. Laborando com base nesta alegação, a conclusão a que se chega é a de que o ou os novos contratos-promessa têm efeitos meramente obrigacionais. Depõe neste sentido o facto de nas certidões da Conservatória do Registo Predial juntas aos autos não constar o registo de tais promessas de venda, o que teria de acontecer se a tal promessa ou promessas tivesse sido atribuída eficácia real, considerando o disposto no n.º 1 do artigo 413.º do Código Civil e a alínea f) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do Registo Predial.

Tendo tais novas promessas eficácia meramente obrigacional, continua a ser legalmente possível a venda dos bens à autora, ora recorrente. A ré, ora recorrida, não está, pois, impossibilitada de cumprir a promessa de venda dos prédios, a que está vinculada por força do contrato-promessa em questão nos presentes autos.     

Em suma: a ré está em mora quanto ao cumprimento da promessa de venda.

Em consequência do exposto, ao julgar improcedente o pedido principal com a justificação de que a ré, ora recorrida, não estava em mora quanto ao cumprimento da promessa de venda, a sentença sob recurso violou o n.º 1 do artigo 830.º, o n.º 2 do artigo 804.º e o n.º 1 do artigo 805.º, todos do Código Civil.

Há fundamento, pois, para revogar a sentença e substitui-la por decisão com o sentido indicado pela recorrente.

Observe-se que, no caso, não há que chamar à resolução do recurso o n.º 5 do artigo 830.º, do Código Civil, porquanto a ré, que podia invocar a excepção de não cumprimento do contrato, não a invocou. Acresce, contra o chamamento do preceito ao caso, que está provado que a autora já pagou o preço devido pela venda dos 3 imóveis (ponto n.º 5 dos fundamentos de facto).  

Diga-se por fim, respondendo a um dos argumentos da recorrente, que, no entender deste tribunal, a ora recorrida, ao terminar a sua contestação, pedindo a procedência do ponto A) do pedido da autora, no sentido do cumprimento do contrato-promessa e consequente marcação de escritura definitiva de compra e venda dos terrenos rústicos objecto dos presentes autos, quando possível e determinado por sentença, não confessou em bom rigor o pedido principal. Com efeito, a confissão do pedido é, socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis, “o reconhecimento, que o réu faz, do direito do autor afirmado na acção” [Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, Limitada, página 85]. Ora, ao terminar a contestação nos termos acima expostos, o que a ré reconhece é que seja a sentença a marcar a escritura de compra e venda dos prédios, mas quando seja possível, o que, no entender dela, não o podia fazer na presente data.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e substitui-se a mesma por sentença a suprir os efeitos da declaração negocial da ré, ora recorrida, declarando vendidos à autora, ora recorrente, os seguintes imóveis:
a) Terra de Pinhal, sito à Cerca, lugar de x... , freguesia de y... , concelho de w... , com a área de 2.270 m2, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 4232, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de w... sob o nº 3091;
b) Terra de Pinhal, sito ao Olival da Capela, lugar de x... , freguesia de y... , concelho de w... , com a área de 105.500 m2, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 4231, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de w... sob o nº 3089;
c) Terreno de cultura e pastagem, sito ao Olival da Capela, com a área de 98.730 m2, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 4233, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de w... sob o nº 3090.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando o disposto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrida ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesmas nas custas do recurso, restritas a custas de parte.

 Comunicações:

Após o trânsito em julgado remeta cópia do acórdão ao serviço de finanças da área da situação dos prédios.

Coimbra, 23 de Novembro de 2021